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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Os príncipes de cavalo branco também falam crioulo

Hugo Gomes, 30.08.20

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Numa conversa descontraída enquanto o seu filme era exibido numa segunda sessão da 17º Indielisboa, Basil da Cunha referiu-me que este seu regresso ao “bairro” consistia em filmar as pessoas que não conhecera completamente, uma outra geração que não a sua e que mesmo assim, encontrava-se presente no seu anterior “Até Ver a Luz”, porém em segundo plano. Esta mudança de protagonismo, ou antes mais, uma reveza de forma a continuar, hereditariamente, este mesmo universo. Será esta a sua única maneira de preservação?

Com um punhado de curtas contabilizadas na sua filmografia e a mencionada longa estreada em 2013 que envolvia o bairro da Reboleira (Amadora) em tons de misticismo quase xamânico, Basil (e os espectadores) retornam à comunidade pelos olhos de Spira (Michel Spencer), jovem “acabadinho” de sair da casa de correção, após 8 anos no estabelecimento. De volta a casa, deparará com um território do qual já não reconhece, constituído por novas hierarquias e por novos objetivos, enquanto o próprio bairro desmorona para dar lugar a outras “realidades”.

O dito jovem, filho da “teta” da Reboleira, detém outros desejos, o da evasão, o de outras ambições e a aventura – talvez tendo como imagem o seu pai residente na Suíça – em novos lugares e heranças. Sim, é uma personagem que anseia pelo novo, repugnando o “velho” endereçado ao seu passado delinquente, que o projeta em mundanos “adornos”, seja pela amiga agora virada mãe solteira, seja pelo semi-astral cavalo branco existente algures num descampado ali perto. Em comparação com o seu “Até Ver a Luz”, Basil da Cunha indicia uma obra mais térrea para com o seu realismo, mas nunca perder o gosto pela fantasia materializada. É um filme, que tal como o protagonista, não pretende sujeitar-se às primeiras instâncias.

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A jornada de Spira, no seu gangue e no seu biótopo, é um pego de cinema de guerrilha, povoado por gente-local que dialogam diretamente connosco [espectadores]. Sentimos aqui a voz dos marginalizados, mas não os retendo enquanto instrumentos de uma politização, “O Fim do Mundo” (curiosamente, quase partilhando o título com outro conto de desprezados [“Um Fim do Mundo” de Pedro Pinho]) não crê em utopias, mesmo resistindo para nos trazer dos confins do seu cosmos, os seus “miseráveis”, os ditos portugueses de segunda, anos e anos “empurrados” para as estribeiras da capital. Cada um a mercê da sua própria sorte. É uma discriminação espacial, esta, a da formação do dito bairro social, porém, não seguiremos por essas linhas, o filme é mais que o grito de guerra no propósito de um ativismo. É um retrato, literal como metafórico, de uma população sem lugar na nossa sociedade, escorraçados até mesmo dos seus condenados lares.

Nesse sentido, “O Fim dos Mundo” paraleliza com o cinema de Pedro Costa nos últimos anos, não numa mimetização estética ou formalizada, e sim no jeito como encara os dramas, porventura, esquecidos perante um ecossistema em constante desabamento. Aquele lugar, a Reboleira, tornar-se-á um não-lugar, uma memória distante. Para Spira, essa recordação a que certo dia apelidou de “casa” converteu-se no seu motivo de luta, não pela sua preservação, e antes pela sua separação.

O Fim do Mundo” “captura” um universo em extinção e o encara como a sua propriedade, preservado em âmbar, neste caso em filme com as promessas da sua “eternidade”. Uma coprodução luso-suíça que envergonha muitos da sua espécie e da sua nacionalidade pela forma como bravamente utiliza o “know-how”, pavimento de sugestões, fora-de-campos e o “desenrasque” (palavra tão portuguesa) para nunca perder a credibilidade deste quadrante de violência em cada esquina.

Calculado até à medula, revoltado no seu espírito e com a garra de quem deseja fazer Cinema a todo o custo. Eis um portento!

Até ver o "Fim do Mundo" ...

Hugo Gomes, 19.08.20

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Depois do místico “Até ver a Luz”, Basil da Cunha continua a dar palco às vozes marginalizadas, num conto de náufragos sem vitimizaçõe, nem heroísmos. Estes são os nossos “Miseráveis”, os nossos subúrbios, a continuação do biótopo à desmoronar como um certo Quarto’, que hoje acreditamos ter mudado a face do cinema português para o novo milénio, avançou. Mas não se deixem colar pela menção, há aqui, neste “O Fim do Mundo”, artificio calculado, engenho e verdadeiramente, Cinema com sangue na guelra. Depois da sua estreia mundial em Locarno no ano passado e com chegada marcada para os cinemas em setembro (sem antes fazer a sua visita no Indielisboa), será este o filme português do ano (mesmo sendo coprodução)? Bem, confesso que estou maravilhado com este universo.

«Até Ver a Luz», porque fora isso é a obscuridade que reina

Hugo Gomes, 05.08.14

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Após 15 curtas no currículo, três das quais chegaram a marcar presença no Festival de Cannes, o realizador luso-suíço Basil da Cunha demonstra como o cinema português poderá evoluir na escassez de verbas e subsídios com a sua primeira longa: “Até ver a Luz”. Uma história de “misfits” noturnos em busca da redenção num bairro da Reboleira, na Amadora, onde o realizador reside, aprendendo assim a interpretar o seu redor e de uma forma algo enigmática e sempre subliminar, transcrevê-la para o grande ecrã.

Tendo em conta que não foi há muito tempo que “O Bairro”, produção nacional da autoria de Francisco de Moita-Flores, uma conversão de 20 episódios duma série televisiva para uma “recolagem” cinematográfica, estreou entre nós, “Até Ver a Luz de Basil” da Cunha separa-se a anos-luz da pseudo-telenovela com tiques de mainstream americano e presenteia-nos um “aperitivo” daquilo que há muito os portugueses não se encontravam habituados nas suas produções audiovisuais: olhar realista à realidade dos mais marginalizados. O facto do realizador viver no local onde esta fita foi filmada e concebida, torna-o conhecedor da linguagem social destes “locais malditos de pura marginalização” que nas mãos de Basil da Cunha nos revela uma comunidade rica e viva subjugada à violência e em constante batalha por um “lugar ao sol” na aceitação social. Para além da credibilidade que o autor deposita na trama e nos seus personagens, é de louvar a linguagem cinematográfica que emane na sua narrativa e na transposição dos seus elementos.

Existe alguma influência de Akira Kurosawa na loucura das suas personagens e Jim Jarmusch no seu conceito marginal, na incursão de uma monstruosidade à lá Fellini e um espírito vanguardista não prejudicial ao realismo fílmico. Por outras palavras, há muito mais cinema neste “Até Ver a Luz” do que imaginamos, mais do que o simples exercício naturalista (e falado 80% em crioulo) o qual é realçado graças à preservação de tal factor por Basil da Cunha, existente no ambiente envolto como nos “não-atores”, simples moradores do bairro que dão um contributo importante para a longa-metragem. 

Ainda por mais e tendo em conta os planos de imagem fechada bem enquadradas e concretizados, o primeiro filme longo da sua carreira apenas demonstra o nato realizador que Basil da Cunha aparenta ser.