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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
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Há 84 anos, nascia um dos melhores - Andrei Tarkovsky
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Citando Andrei Tarkovsky no seu livro “Esculpindo o Tempo”: a nostalgia é um estado mental que afeta sobretudo os russos que se encontram longe da sua terra natal. Sob esta premissa, o realizador apostou numa primeira “aventura” espiritual fora do território da União Soviética, partindo assim para Itália, filmando entre a região de Toscana e Roma. Inicialmente contando com o apoio da Mosfilm (produtora russa que sempre o acolhera desde então), Tarkovsky viu o seu financiamento misteriosamente negado por esta durante as rodagens desta sua 6ª longa-metragem. Felizmente, a Televisão Pública da Itália e a Gaumont [estúdio francês] tudo fizeram para que o realizador conseguisse terminar as filmagens a tempo. Como resultado desta “traição”, Tarkovsky induziu em “Nostalghia”, uma prolongada renúncia ao país que o viu nascer, como se vê nos primeiros minutos da fita: “Fala italiano, se faz favor“. Até nos breves momentos em que é falada a língua russa, esta é imposta como um dialecto maligno, cujo vocabulário transporta o protagonista para a mais derradeira solidão. Uma solidão mental, física e sobretudo espiritual.
No entanto, até mesmo esta revolta tem os seus ares nostálgicos: os poemas de Arseni Tarkovsky [pai do realizador], são lidos e mais tarde defendidos com garra pelo seu "rebento”. “O Poema é intraduzível, a Arte é mesmo assim“. Para lá da traição russa, Tarkovsky parece sobretudo insurgir-se contra os atentados cometidos à própria arte, referindo-se a esse estado como uma alienação não “ouvida” pelos meros mundanos, mas compreendida pelos seus congéneres, os homens e mulheres ligados ao ramo artístico, os marginais de uma sociedade cada vez mais preocupada com o materialismo.
É essa relação de cumplicidade que se transcreve na narrativa desta "Nostalghia'', a viagem de um poeta russo a uma cidade italiana em busca de informação de um compositor local. Este exilado fascina-se automaticamente pela trágica figura de um “louco”. Um homem ostracizado pelos restantes habitantes devido a ações no seu passado, que procuravam a salvaguarda dos seus entes queridos de um iminente apocalipse. A redenção da alma, a procura espiritual e as ligações inerentes entre homem e Deus, unirão estes dois indivíduos evidentemente divergentes, mas ambos, há sua maneira, com a mesma determinação para salvar o Mundo através do sacrifício (fica a nota que a seguinte e última obra de Tarkovsky tem como título “Offret” = “Sacrifício”).
Sob o registo do martírio (outro estado continuamente presente na filmografia do realizador), “Nostalghia” comporta-se como um prolongamento de “Stalker” [a anterior obra], que refletia sobre a existência humana e os desejos íntimos e inalcançáveis, assim como sobre a penitência da alma. Ambos são reconhecivelmente próximos quando invocados certos elementos visuais, como, por exemplo, a água e a abundância dela que diversas vezes transmitem os estados emocionais das personagens, recortando a paisagem desolada e ruinosa que serve de palco para reflexões do tamanho do Mundo ou debates que provocam mais questões do que dão respostas sobre a verdadeira definição de Humanidade. Tal como “Andrei Rublev”, o confronto oratório é impulsionado por tal elemento, a relevância da água que reluz nas paredes e nas faces das personagens, comportando-se como reservatórios de sentimentos, sabedorias e de revelações.
Estes diálogos são testemunhados por um outro ser também emprestado de “Stalker”: o cão. A pureza provavelmente procurada por Tarkovsky e sem o seu conhecimento encontrado no canídeo. Este comporta-se como um visitante pouco notado, mas inquietado com o destino das personagens (como se pode verificar numa importante sequência de auto-incineração, em comparação com a indiferença dos restantes humanos). Último exemplo de unificação entre os dois trabalhos é o fascínio de Tarkovsky pela Sinfonia Nº 9 de Beethoven e o seu uso exclusivo para o verdadeiro clímax.
Mas não devemos presumir que “Nostalghia” é uma sequela não assumida de “Stalker”, essa última obra-prima de Tarkovsky em terras russas. Ao contrário da obra referida, esta viagem à Itália é esperançosa e vinculada numa fé tremenda e abalável (1+1=1 como se pode visualizar estampado nas paredes preenchidas por “quartos” de parede invisíveis). É um filme que encurta ainda mais a relação procurada pelo autor com a entidade divina que o comanda, confiando cegamente em julgamentos incompreensíveis e em rituais endereçados pelo preconceito natural. Novamente referindo “Andrei Rublev” (1966), “Nostalghia” tenta alcançar o seu estado de pureza e é nessa genuidade que Tarkovsky inicia esta jornada. As primeiras imagens, passadas num convento e mencionando a Nossa Senhora do Parto de Piero Della Francesca, são de uma beleza quase irrespirável. Em certos momentos, o nosso cineasta parece fazer uso das correntes artísticas que crescem na cinematografia italiana, com Fellini e a sua definição de neo-realismo “à cabeça” (o parto de pássaros é uma sequência tão dita “felliniana”).
À 6ª longa-metragem, Andrei Tarkovsky reafirma-se como um senhor do tempo e a utilização deste como uma passagem que transporta o espectador a viver o filme e não somente vê-lo. O ambiente rodeia-nos e faz-nos esquecer por momentos que existe um mundo exterior à nossa espera. O realizador não só ilustra, como torna esse dito interior numa solidez quase real. É em filmes como este, dotados de uma beleza capaz de converter qualquer agnóstico num crente (nem que seja pela divindade transcrita nas artes), que ao vê-lo (ou revê-lo) nos sentimos sobretudo… nostálgicos, infinitamente nostálgicos.
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Andrei Rublev, considerado o maior pintor iconográfico da Rússia, é atualmente uma figura de difícil desmarque de Andrei Tarkovsky. Não pelo facto de a obra ter sido bem-sucedida dentro da comunidade cinéfila e de apresentar particularidades hoje raras no subgénero da cinebiografia, mas porque a história narrada deste artista funde-se cada vez mais com o cineasta e poeta.
O paralelismo entre a Rússia do século XV e a de Tarkovsky é evidente. Tão visíveis, que as autoridades soviéticas tudo fizeram para impedir o seu visionamento além-fronteiras. Felizmente, essa tentativa foi um fracasso, tendo a obra sido projetada numa sessão in extremis no Festival de Cannes em 1969, sete anos depois do Festival de Veneza ter condecorado a primeira longa-metragem do realizador – “Ivan’s Childhood” – com o tão cobiçado Leão de Ouro, tornando Tarkovsky num herói junto aos seus conterrâneos. Desde os tempos áureos de Eisenstein, não se vira um cineasta russo a ser tão apreciado no Ocidente. “Andrei Rublev” é uma produção épica, centrada não no próprio pintor, mas na sociedade em que vivia: o Reino Russo em plenas mudanças sociopolíticas (um pouco como os anos 60 na União Soviética, em plena De-Estalinização por Nikita Khrushchev).
A obra também visa uma estreita relação entre o Homem e Deus, entre o Mortal e o Eterno, o Carnal e o Divino (o pintor foi canonizado em 1988), o estado da alma e a preservação desta frente ao pecado comum. Uma demanda à pureza que Tarkovsky constrói como degraus para o seu protagonista, constantemente desafiado por esta análise que é tudo menos glorificante. Até porque Rublev era um herói nacional, explorado agora por um cineasta com intenções para além do habitual retrato heróico, que tanto agradava o regime soviético. A nossa personagem é um homem obcecado pelo seu estatuto na sociedade, mas a sua pureza está longe de ser evidenciada. Andrei Rublev é um ser ambíguo, entre o pedante e o vulgar, um génio que cedo é declarado, mas sempre duvidando pelas “fintas” do realizador em relação aos pontos vitais da sua biografia. Por exemplo, em momento algum deparamos com o nosso protagonista em plena fase de criação, ou seja, a pintura nunca é aqui mostrada. Nem sequer os feitos ilustres que são citados pelos seus historiadores. Tarkovsky não quer ser um trovador, antes uma testemunha. A forma como esboça o cenário que o rodeia é, por si, o auge da sua pintura: não se limita à miopia do personagem destacado, mas mostra o lugar que o artista ocupa no Mundo.
“O que é hoje elogiado, amanhã será criticado e depois esquecido“, afirma o também pintor iconográfico Feofan Grek (Nikolay Sergeev) durante o seu confronto verbal e ideológico com Andrei Rublev, interpretado pelo ator-fetiche de Tarkovsky (Anatoly Solonitsyn), numa das sequências mais relevantes e filosóficas do filme. O debate centra-se numa premonição apocalíptica quanto ao destino da civilização e nas comparações inevitáveis com o destino de Jesus Cristo no Novo Testamento. Neste longo frente-a-frente é evidente a determinação de Rublev em atingir um objetivo celestial, encontrando conforto nas escrituras e a liberdade dos pensamentos na própria pintura. Todo este caminho, que teima ser o correto da eventual santificação, levará o pintor a um poço de arrogância e a consequências maiores. Consequências, essas, que coincidiram com um ponto de viragem histórico no destino da Rússia, a invasão dos Tártaros e a limpeza étnica levada a cabo por estes. Será possível reencontrar o tão destacado conforto perante a perda de esperança na Humanidade?
A análise de Tarkovsky a esta etapa histórica é profunda, mas não carece de espectacularidade. “Andrei Rublev” comporta-se, mesmo assim, como um épico dignamente soviético, mostrando um trabalho esforçado na caracterização, nos cenários, na fidelidade histórica e nos seus conteúdos sociais e políticos. Mesmo sendo um filme, Tarkovsky parece enviar os seus atores à Idade Média, salientando-o com diálogos centrados na religiosidade e crença, na superstição e na preocupação prioritária da alma ao invés da entidade física.
Outro ponto que “Andrei Rublev” parece favorecer é a denúncia subliminar da opressão da mulher na Idade Média, sem nunca ceder ao panfleto forçado nem ao politicamente correto hoje investido nas produções globais. Essa denúncia encontra-se fundida na reconstituição épica e nas transcrições das escrituras, que sugeriam uma dominação dita masculina e redução da Mulher na imagem do Pecado Original (basta ver os casos de Maria Madalena e o da tentação de Eva, invocada em forma de serpente). “É tradição a Mulher russa sentir-se oprimida” como é citado a certa altura, no seio de um debate sobre o uso do véu e o pecado oriundo de rituais pagãos.
Andrei Rublev é um “outsider” da sua condição de cinebiografia, apesar de se basear sobre os mesmos propósitos, que é o de documentar, mas até mesmo este registo está acima de qualquer episódio biográfico. Tarkovsky trouxe-nos uma obra complexa, motivada pelo olhar do espectador que se deslumbra por um mundo sólido que não é o seu. É como o quadro “A Subida do Calvário” pintado por Pieter Bruegel (1525 – 1569): um panorama que se modifica perante a nossa interpretação e sensibilidade.
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