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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

"Pouca-terra ... pouca-terra ... pouca-terra"

Hugo Gomes, 08.10.20

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No final dos anos 1960, as produções de grande escala de um rigoroso e perfeccionista Akira Kurosawa converteram-se em registos obsoletos e dispendiosos, enquanto surgia um punhado de novos cineastas com a capacidade de fazer com menor custos e saciando a procura intensa de sexo e violência por parte de um novo tipo de espectadores. Com isso, o realizador virou-se para Hollywood, com resultados desastrosos e sem frutos que apenas lhe causaram danos à reputação. Face a essa mudança radical, Kurosawa juntou-se a outros três cineastas da sua geração – Kon Ichikawa, Masaki Kobayashi e Keisuke Kinoshita –, formando o coletivo “O Clube dos Quatro Mosqueteiros”, como apoio para todos produzirem e conceberem as suas obras de livre vontade e sem dívidas criativas para com uma indústria que lhes colocava entraves.

O primeiro (e último) elemento a ser beneficiado desta cooperação foi o próprio Akira Kurosawa com aquela que seria a sua estreia a cores, algo há muito desejado pelo cineasta, com formação como pintor e cujos elaborados “storyboards” têm sido reconhecidos como pequenas grandes peças de arte. O projeto que concretizaria essa ambição foi “Dodeskaden”, que traduz literalmente uma onomatopeia dos comboios a vapor (“Pouca Terra”). A adaptação de oito dos quinzes contos do livro “Uma Cidade sem Estações”, de Shûgoro Yamamoto, é uma narrativa entrelaçada e coletiva de um bairro de lata, onde o miserabilismo dos seus habitantes ostenta doses de trágico e de mirabolantemente comédia.

O “pouca terra” do título expõe uma imaginária ferrovia na qual um jovem autista convencido que é maquinista de um comboio nos leva, enquanto espectadores, por paragens insólitas de personagens caricatas e pontuadas pelas suas... "anomalias". O regresso será também por via da boleia desta viagem invisível, mas até lá, seguimos as diferentes histórias que cruzam estas “barracas” ou a falta delas, desde as mais hilariantes, como a de um par de amigos que se emborcam em álcool e “acidentalmente” trocam de casa e mulheres, até aos destinos mais nefastos, como a criança-mendiga “morta de fome” a sucumbir aos devaneios do pai, que por vias da imaginação constrói a casa dos seus sonhos.

Dodeskaden” representa um olhar passivo para esta miséria onde os destinos desafortunados destas personagens nunca adquirem um efeito de honra ou justiça. Akira Kurosawa perdia a sua crença nas altas virtudes da Humanidade, e injustamente, perante a sua estreia "colorida" (as cores berrantes e plastificadas trazem consigo um artificialismo onírico), foi acusado de perpetuar o embelezamento da dor de outrem, de capitalizar e vender como arte a miséria.

Este filme foi o seu grande "fracasso" artístico e comercial a que só o tempo daria dignidade: esta é uma corrente de contos de derrotados, impotentes e conformados com as suas ridículas existências. Não existem aqui as epifanias e legados conquistados de “Viver – Ikiru” ou do senso de dignidade e de justiça dos seus ensaios feudais “Seven Samurai” ou “Yojimbo”, apenas uma passagem lateral por tudo isso.

Depois deste filme, Kurosawa tornou-se um cineasta derrotado, mas as suas "derrotas" traduzir-se-iam em projetos ainda mais gloriosos...

Como Akira Kurosawa reflete sobre a efémera existência humana

Hugo Gomes, 30.09.20

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Espreitar o Ocidente sob a lente oriental foi um dos "modus operandi" de Akira Kurosawa na sua jornada pelo estatuto de “maior dos cineastas japoneses”, como se constata pelos diferentes géneros profundamente americanos que “contaminavam” as suas incursões populares até às inspirações literárias e dramatúrgicas, que iam de Shakespeare a Dostoyevsky e até Tolstoy, de onde origina parte deste “Viver – Ikiru”.

Este filme de 1952 tem como contexto o "boom" socioeconómico do Japão pós-Segunda Guerra Mundial, olhado como a primazia da burocracia, e o impacto que este sistema tinha (e tem) na vida social e pessoal dos seus cidadãos. Fora das bandejas neorrealistas e de foro político-social, “Viver” é a história de um velho funcionário público que de sábio nada tem: Kanji Watanabe (Takashi Shimura, um dos colaboradores recorrentes de Kurosawa) está reduzido a uma mera secretária cujo grande orgulho é o de nunca ter faltado, um dia que seja, ao seu serviço durante 30 anos, mas que altera radicalmente a sua perspetiva de vida após lhe ser diagnosticado um cancro no estômago. A forma como este ancião viúvo encara essa notícia e os dias que lhe restam varia ao longo da narrativa, partindo numa autodestruição entre bebidas, festas e mulheres, para chegar à redenção quando se envolve na conceção e construção de um parque público.

Tal como Kanji Watanabe deambula no pêndulo da sua vida, "Viver" tende a moldar-se conforme a ocasião: começa como uma abordagem emotiva e pessoal, com a voz off que antecipa o seu destino, enquanto uma segunda parte é conduzida por relatos de terceiros que tentam apurar como foram os seus derradeiros momentos (um exercício muito ao estilo do seu anterior e incontornável “Rashomon: Nas Portas do Inferno”). Quanto mais próximo do "kanji", que se traduz por "fim", o filme retrai as suas garras quanto às críticas à própria estrutura burocrática, libertando-se pelo drama humano, nas decisões estéticas de Kurosawa para transmitir o estado de espírito do ancião (a neve adquire um manto poético que cobre a Morte) e o expressivo Takashi Shimura a condensar toda uma vida descartável que debate, em modo de epifania, a sua miserável existência.

"Viver – Ikiru" não é apenas uma obra para se ver, mas sim, ao contrário do que fazia o seu protagonista, para se viver. Se possível, no grande ecrã...

Um duelo ao sol nascente

Hugo Gomes, 23.09.20

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Entre as grandes obras-primas de Akira Kurosawa, “Yojimbo, o Invencível” é uma ópera minimalista de calculista agressividade. Ainda hoje, é inesquecível a entrada deste Ronin [samurai sem dono] interpretado por Toshirô Mifune no vilarejo sem eira nem beira, fantasmagoricamente recolhido aos seus mais profundos temores. A cada passo, a banda sonora composta por Masaru Satô acompanha-o na cadência de um convite amargo e de longe, um cão rafeiro, trazendo nas suas “bocarras” uma mão amputada, reforça o "ultimato": o aviso foi feito e a partir disto nada será como dantes, nem mesmo para o cinema ocidental.

De um modo geral, Akira Kurosawa voltava a "apropriar-se" do Ocidente para o recitar em vestes orientais e a seguir resultar um "manual de influências": se “Seven Samurai” se tornou um dos filmes mais relembrados e imitados nas odes da ação e aventura, “Yojimbo”, de menor escala, viria assumir-se como o ingrediente fulcral para o western spaghetti, quando foi "roubado", palavras do próprio mestre japonês, pelo realizador italiano Sergio Leone no seu “For Few Dollars” (1964), que definiria a estrutura das produções italianas baratas que repescavam os elementos do western americano com ventos da glória e discursos de patriotismo e lhe incutiam um teor selvagem, sangrento, sujo e imoral.

Admirador convicto do classicismo idiossincrático de John Ford e das suas “coboiadas”, o cineasta japonês engrena um duelo por entre a poeira e o sol nascente, recorrendo a uma desconhecida figura errante que paira numa cidade marcada pela violência e corrupção. Esta é uma lavagem ambígua da jornada heroica do cinema americano, dos pistoleiros de honra sempre “guiados” das boas morais segundo as condutas de Hollywood. Aqui, o que resta de John Ford é despojado num sangrento conto de um anti-herói sem passado que aplica a sua justiça com estratagemas duvidosos sobre malfeitores para receber várias recompensas.

Por outras palavras, “Yojimbo” é uma busca pela essência do "jidai-geki", o subgénero de filme de samurais, com a temperatura reconhecida dos "westerns fordianos", despidos e encorajados numa crítica de "pescadinha de rabo na boca" aos seus alvos fílmicos (a constante presença do revólver nas mãos de um dos seus adversários é exemplo desse olhar inquisidor). Aqui, Mifune compõe um personagem que o espectador pouco ou nada sabe para confiar nos seus questionáveis feitos heróicos.

Mais tarde, Kurosawa revelaria que as veias do cinema "noir" inspiraram a criação deste “yojimbo” [guarda-costas], sobretudo pelo cinzentismo das suas vontades, pensamentos e a sua função na história, citando como exemplo "The Glass Key”, de Stuart Heisler (1942). E embora não seja correto afirmar que a personagem sem-nome de Mifune seja um dos primeiros anti-heróis no cinema, não é delírio vê-lo como um dos modelos principais para outros que apareceram a seguir e é reciclado até hoje num cinema mais cínico e sem fé em heróis à americana.

Uma curiosidade: "Yojimbo, o Invencível" foi o maior sucesso de Akira Kurosawa no seu país, que faria logo no ano a seguir a sequela “Sanjuro”, que alteraria para sempre o próprio subgénero "jidai-geki" e a forma de encararmos as fatalidades no universo dos samurais.

Glória ou Morte!

Hugo Gomes, 14.09.20

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“Seven Samurai” (“Os Sete Samurais”) é um épico de grande escala de Akira Kurosawa que rompeu várias vezes o seu orçamento, mas os frutos recolhidos desse risco encontram-se no sucesso global que conheceu e nas influências que trouxe a todo um registo de ação, quer no cinema (logo no "remake" à americana em 1960, “The Magnificent Seven”, de John Sturges, um dos mais bem-sucedidos do seu género), quer na cultura popular. E no facto de, quase 70 anos mais tarde (1954), continuar a ser um dos mais grandiosos e míticos da história do Cinema.

Para lá de todos estes gigantescos predicados cinematográficos, encontra-se um filme delicado e sensível, diversas vezes conduzido pelas ações das suas personagens - seis espadachins marginalizados e um vagabundo aspirante (Toshirô Mifune, ator-fetiche do realizador), que se juntam para defender uma aldeia desafortunada de um grupo de bandidos que de vez em quando lá surgem para implantar o caos e a destruição. Será também dentro deste grupo que nasce uma escalada afetiva com o povoado, que vai revelando os caráteres emocionais destes homens de força e dever que se vão tornar improváveis herois. E é por aí que o filme joga nos detalhes, como um samurai de primeira ordem (Seiji Miyaguchi) se importa com a sua posição para lançar a derradeira e mortífera tacada.

Akira Kurosawa filma, com o cuidado pelo qual é reconhecido, as expressões dos seus herois, os seus movimentos, os seus foros íntimos (sentimos uma aura de pacificação fabulista no campo de flores, que suscita um provável par amoroso) e os enquadra numa tática estratégia de os resumir num todo. Os sete são sete, é verdade, mas quando a batalha se adensa por entre vilões sem qualquer perfil (no realizador, as forças antagónicas são passadas para segundo plano) e os nosso herois caem um a um, é que a perda se vai, por fim, sentir, e o coletivo se dissolve.

São estas as “forças invisíveis” que tornam “Os Sete Samurais” num espetáculo de coração cheio, honroso para com a sua luta e que no final adquire um tom algo fúnebre que nos acompanha até ao gigantesco “kanji”, a representar FIM, a dominar o ecrã. Para lá dos cenários de grande dimensão e uma figuração engenhosa e à sua maneira “tosca” (uma das grandes características do dito épico à moda de Kurosawa) e das sequências de ação arrastadas maioritariamente num plano só, esconde-se um filme humanista que maneja as suas emoções como ninguém.

7 Anos de Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 25.07.14

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Seven Samurai (Akira Kurosawa, 1954)

O Cinematograficamente Falando … faz sete anos de vida, nada mau para um singelo blog de Cinema escrito por um apaixonado e nada mais que isso. E talvez seja por isso que não me surpreenda esta longevidade, visto que reconheço o meu amor pela arte, o qual muitos irão afirmar que se trata somente de obsessão. Com este espaço aprendi muito, não apenas sobre o Cinema em si, mas sobre mim próprio, o gosto da sinceridade, exigência e a evolução que penso ter tido nestes sete anos de trabalho. Gostaria de agradecer aos meus assíduos leitores, às inúmeras pessoas que conheci neste percurso, remetendo-me vivências e altas horas de debates cinematográficos, ao meus entes mais próximos por me aturarem a minha "loucura" e a por vezes imensa expressividade que revelou quanto à matéria. Resumidamente gostaria de agradecer a todos que contribuíram para que sete anos não fosse uma distância longínqua, mas sim uma realidade.

UM MUITO OBRIGADO E CONFORME SEJA A VOSSA ESCOLHA, BONS FILMES!