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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Os "não-filmes" de Godard

Hugo Gomes, 09.03.23

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Vamos antes ver o ‘Terminator 4''', sugere o par de jovens que abandona o cinema de bairro após a resposta negativa quanto à presença de peitos em “Bolero Fatal”, esse tumultuoso filme-fictício que serve de coração para a narrativa de “For Ever Mozart” (Jean-Luc Godard, 1996). Esta atitude em forma de sketch segue no eixo de uma caricatural première, o qual, após uma debandada generalizada dos possíveis espectadores, o filme, esse “Bolero”, é erradicado automaticamente da mesma sala. Isto para salientar um dos aspetos importantes deste filme que por sua vez reflete na demanda de Godard, a busca pelo “não-filme”, o seu interesse pela “possibilidade de” e não o concreto. 

Antes da notícia que abalou o mundo cinéfilo - o Cinema órfão de Jean-Luc Godard, - a SR Teste Edições editava a tradução dos diálogos entre o cineasta e a escritora e realizadora Marguerite Duras, uma compilação deliciosa em três saltos temporais, que subtilmente revelava um embate de ideias quanto à palavra e a sua importância para com quem trabalha com imagens. Por diversas vezes, Godard mencionava os “não-filmes” por entre os diálogos, desde aquele trocado por Duras e Gerard Depardieu em "Le Camion" (1977), ou a adaptação inconvencional de “L'Amant” [livro da autoria de Duras] através dessa troca de ideias, até ao desprezo ostentado por Bertolucci pelo preciso momento em que avança com “The Last Emperor”. Godard escolheu o caminho eremítico, questionando e debatendo a própria cerne do Cinema enquanto estrutura estabelecida, e como tal possibilitou-nos a assistir nessas suas últimas pegadas na Terra, tremendas tentativas em concretizar um “não-filme”. Gestos algo falhados, portanto, inconcebível porque desde o momento que se avançava num projeto, esse idealizado “não-filme” deixaria automaticamente de existir. 

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É um paradoxo, aquele em que Godard se “enfiou”, mas antes disso, é a mentira que tentou vender a si mesmo para "disfarçar" a sua perda de crença no Cinema. Sim, Godard deixou de acreditar no Cinema, deixou de vê-lo como uma arte humana, criada por Homens e pensada por Homens. Deixou de crer no Cinema enquanto algo atingível. Para Godard, o Cinema havia esgotado, não restava nada, apenas os filmes ditos e nunca elaborados, nunca encenados, nunca escritos, os tais “não-filmes”. 

Em “For Ever Mozart”, existe uma inicial crença na vitalidade do Cinema, tentando repescar esse espírito dos anos 60, onde a desconstrução, o burlesco, a aceleração e as ideias invocadas e rachadas em película seriam o mote do seu diálogo audiovisual. Mas tudo se tratou de uma miragem, de uma ilusão, no fim de contas, o verdadeiro filme, o Cinema digamos nós, em Godard, está no “Bolero Fatal”, o “não-filme” do seu “filme-real”. O “não-filme” como macguffin. O “não-filme” todo ele renegado da sua estreia. 

Desta maneira, é possível constatar a descrença, não só no Cinema, como também no seu público, desinteressados quanto à subversão e à perversão. Convertendo-se em escravos da indústria e do cinema “empapado”, ansiosos pelo que estão familiarizados (o gag do ‘Terminator 4’) do que a descoberta que um filme “fatal” poderia proporcionar.  

 

Sangue e a Cidade

Hugo Gomes, 08.03.23

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Após seis filmes enquanto assassino-protagonista, Jason Voorhees [“Friday the 13th”] migra para Manhattan continuando a matança em largos número, por sua vez, após assumir a propriedade de “Scream” do falecido Wes Craven e do argumentista Kevin Williamson, a dupla Matt Bettinelli-Olpin / Tyler Gillett decide transportar Ghostface para Nova Iorque para uma eventual “mudança de ar”. Em certa parte funcionou com o terceiro filme, ambientando o dito slasher pós-moderno e desconstrutivo em terras de Hollywood (mesmo que a ausência de Williamson fizesse sentir na intriga), e inspira neste novo modelo da saga que pouco ou mais nada tem a acrescentar. 

É correria e facaria, de pés assentes na sua nostalgia herdada e piscadela de olhos a novos públicos (adeus Neve Campbell, olá Jenna Ortega) seguindo o manual de “como conquistá-los”. Para isso recorre-se a um capítulo graficamente violento (o mais explícito de toda a franquia) e um “punhado” de easter eggs que nos transporta para uma montra memorialista quanto aos restantes filmes (união geracional, operando num só uniformizado). Bettinelli-Olpin e Gillett “brincam” à Wes Craven, mimetizando tiques e toques e atentando com “chico-espertice” o seu legado, sem os refrescos necessários para construir um próprio, porque o desejo é mais simples que isso (prestígio em tão pouco esforço). Contudo, comparativamente ao filme anterior [o inequívoco “Scream” apenas], é mais confiante, desenrascado e ritmado (a sequência no metro é das visualmente mais bem-sucedidas em toda esta confusão, quase redimindo a obra), para esboçar velhas fórmulas, praticadas uma e outras vezes, a caminho de uma exaustão (e com uns quantos plot holes). 

Depois disto, e seguindo a trajetória de outras sagas slashers, daqueles que tanto adoram invocar, o Espaço é possivelmente a última fronteira e o seu degredo final (se realmente acontecer, leram aqui primeiro). 

Prémios Curtas - 1ª Edição

Hugo Gomes, 07.03.23

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Na próxima sexta-feira (10 de março) irá decorrer a 1ª Cerimónia de entrega dos Prémios Curtas, Auditório Fernando Pessa (Lisboa), apresentado por Rui Alves de Sousa (jornalista e radialista da Antena 1) e com exibição de três curtas-metragens (“Glória de Fazer Cinema em Portugal” de Manuel Mozos, “Arena” de João Salaviza e a animação “Nestor” de João Gonzalez [o mesmo de “Ice Merchants”, nomeado ao Óscar]). Integrei o júri em conjunto com Bruno Gascon (realizador de “Carga” e “Sombra”), Mia Tomé (atriz e radialista), Edgar Morais (ator), Inês Moreira Santos (crítica e blogger), Teresa Vieira (curadora, crítica e radialista da Antena 3), Rafael Félix (crítico) e André Pereira (videografo e editor de vídeo). 

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Os nomeados poderão ser conferidos aqui.

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Rage Against the Machine

Hugo Gomes, 05.03.23

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Costuma-se vulgarmente sublinhar que “a escola é um reflexo da sociedade corrente”, nesses mesmos termos podemos considerar a “sala de professores” como os bastidores do Poder regedor dessa mesma. Quase como hanekiano na forma como se presta a construir presunções sociológicas através dos pequenos detalhes (como também na estética fria e ocasionalmente rígida), e por sua vez, até de grandes eventos em vias de acontecer (como foi o caso de “The White Ribbon” (2009) e os sinais marcantemente sociológicos no qual previa a Segunda Grande Guerra), em “The Teachers’ Lounge” de İlker Çatak [a sua segunda longa-metragem], não se trata de uma previsão, mas sim constatação.

A desventura dá-se na perspetiva de Carla Novak (uma destemida Leonie Benesch), uma jovem professora de matemática e de desporto que acarreta novos ideais pouco impressionáveis aos seus mais veteranos colegas. A protagonista coloca em prática o que sabe (aliás, o que acredita) para tentar desvendar uma cadeia de roubos que têm lugar na chamada sala de professores. Furtos, esses, o qual todos suspeitam ser obra de uma aluno. O que Novak descobrirá alterará para sempre a sua posição enquanto professora, como também desequilibrará a hierarquia estabelecida entre lecionadores e pupilos. 

Há dois pontos a reter em “The Teachers’ Lounge” para além da sua alegórica político-social (até um jornal de escola joga-se na representação da liberdade de imprensa), a primeira é o registo narrativo do filme em nunca sair do seu cenário [leia-se escola], como também repugnando automaticamente essa evasão (como soubesse que a sua “força” está enraizada naquele cenário e naquele cenário apenas), desta forma a não evidenciar “backgrounds” pessoais sobre as personagens e principalmente da sua protagonista. A escola é um mundo feito, cumprido e emancipador. 

Segundo ponto, apesar da enorme importação cultural vinda dos EUA que “contagia” sociedades, nomeadamente as europeias, o cinema do Velho Mundo persiste em retratar a figura do enfant como ambígua (ao contráio da "infantilização" dos cogéneres americanos), ou de inclinações maquiavélicas, seja a (re)invocação de Haneke (uma curiosidade, Benesch foi atriz em “The White Ribbon”) ou de outras variações (recentemente presenciamos a crueldade infantil no belga “Un Monde” de Laura Wandel, também nunca fugido do seu espaço escolar). A criança é vista como uma “criatura” perversa, porque serve de protótipo ao adulto do amanhã. 

Quanto a “The Teachers’ Lounge”, os temas são mais que muitos, a sua mesclavagem e embutimento no décor, tornam esta pseudo-distopia fascinante o suficiente para nela encontrarmos o retrato dos nossos dias. A inocência é uma impunidade fantasiada nesta sociedade, ora os educandos não escondem a sua silenciosa anarquia, ora os educadores "cochicham" na sua sagrada “sala” para encontrar formas de os “controlar”. Este controlo parte na instituição de uma doutrina, e como tal é necessário determinar rituais cegamente cumpridos. A nossa protagonista não é “santa” no seu retrato, as palmas ritmadas com que exerce para demarcar a ordem na sua própria sala de aula, respondida de igual pelos seus alunos, é uma detalhe de como esta relação de Poder é uma preocupação neste sistema de ensino. 

Talvez o cinema contemporâneo tenha a urgência de falar da nossa modernidade, uma demonstração das preocupações de uma arte ambivalente, ora propagandista, ora alarmista, conforme a “mão” de quem a usa, e dos “olhos” de quem a vê. Çatak constrói uma fábula sobre essa designação de Poder e de todas as suas consoantes [populismo, corrupção, panópticos, autoridade, repreensão, institucionalização], sem com isto sair da turma. 

Tom Sizemore (1961-2023), um bravo secundário americano

Hugo Gomes, 04.03.23

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True Romance (Tony Scott, 1993)

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Blue Steel (Kathryn Bigelow, 1990)

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Strange Days (Kathryn Bigelow, 1995)

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Natural Born Killers (Oliver Stone, 1994)

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Red Planet (Antony Hoffman, 2000)

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Heat (Michael Mann, 1995)

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Saving Private Ryan (Steven Spielberg, 1998)

Será que as tartarugas também amam?

Hugo Gomes, 03.03.23

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Feita uma pausa na dedicada procissão ao inventário artístico e intelectual de Pedro Costa, Júlio Alves encena a novela de Mário de Carvalho - “A Arte de Morrer Longe” - um “Marriage Story” à portuguesa, constrangido e dotado de um senso de absurdo que passa por representação da espuma dos nossos dias. 

Aqui, o casal Arnaldo e Bárbara (Pedro Lacerda e Ana Moreira) colhe os frutos da negligência aos seus “felizes para sempre”, sintetizando que em “terra enfadonha” não existe príncipes encantados e como tal, a separação soa-nos um golpe de misericórdia ao suplício de uma relação moribunda. O processo formaliza-se como um inventário (aliás, outro para a carreira de Alves) - “da cozinha podes ficar com o microondas” - até que alguém menciona o “elefante da sala”, mais precisamente outro animal a assumir o silencioso e embaraçoso ícone do conflito: uma tartaruga. 

O pequeno e singelo réptil é a partir daquele específico momento a exaltação de um necessário final de compromissos, possivelmente a última em que o “casal” terá como tomar enquanto … isso mesmo, casal. Porém, através de debates para apurar quem “fica com o ‘bicho’”, ou de quem o “‘bicho’ é propriedade”, que Arnaldo e Bárbara conformam-se em unir ao derradeiro destino do animal, naquele, aparentemente, simbólico e pequeno gesto, uma emancipação dos mesmos, o direito da sua respectiva individualização (possivelmente o digno final do casal, esse conjuntivo social o qual se empreenderam anos e anos). 

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A Arte de Morrer Longe” é uma tragicomédia que embarca na alegoria do quelônio, o medidor de tensão arterial a uma relação, prescrevendo-a a um digno final, mais do que a consolidação. O desfecho será visto como acesso à independência social. Enquanto isso, a jornada doméstica destes seres não habilitados para com o anterior animal de estimação é tido num visual respeito quanto à sua privacidade, dito isto são os constantes planos engendrados em que Arnaldo e Bárbara mantêm-se, de alguma forma, separados e retidos para com o seu redor, a solidão por ambos emanadas traduzir-se em “gravidades” próprias (bem presente devaneios oníricos que aludem a essa, cada vez mais, distância para com o estabelecido conformismo), apenas intercalados por grandes planos da tartaruga, cuja natural vagarosidade do animal transfere uma certa indiferença ao conflito do casal. 

Dito isto, Júlio Alves converte-se num certificador da imaginária e criada “ordem de restrição" decretada pelas personagens, e sem barricadas, indicia um invulgar trilho de superação para ambas. Os atores, por sua vez, são cúmplices dessa entranhada e voluntária melancolia. O que existe depois do amor?