Eram as sobrancelhas mais vistosas do Cinema desde Groucho Marx!
Bernard Pruvost (1957 - 2025) em "P'tit Quinquin" (Bruno Dumont, 2014)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Bernard Pruvost (1957 - 2025) em "P'tit Quinquin" (Bruno Dumont, 2014)
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É inevitável não estabelecer paralelos com "Teacher's Lounge", de İlker Çatak, ao sermos confrontados com este "Lesson Learned", primeira obra do hungaro Bálint Szimler (integrada na secção Cineasti del Presente em Locarno de 2024 e vencedora do último FEST, em Espinho), cuja coluna vertebral se constrói em torno de Palkó (Paul Mátis), uma criança relocalizada da Alemanha para a Hungria, cuja experiência escolar se converte numa arena de confronto, tanto com a sua própria inadequação, como com o impacto do desencaixe cultural perante o novo país.
Mas onde "Teacher’s Lounge" e "Lesson Learned" verdadeiramente se cruzam é na figura da jovem professora idealista (aqui sob a pele de Anna Mészöly), em certa medida estigmatizada pelos colegas e incompreendida pelos pais (sem, no entanto, a consoante óbvia da inamizade das crianças para com o seu docente). E as convergências ficam por aqui. O confronto entre mundos distintos resulta numa exploração do ambiente escolar — das reuniões de pais às conversas no recato da sala dos professores, com situações provocateur que nos colocam na posição de julgadores, influenciados por uma mise-en-scène próxima da do sueco Ruben Östlund e dos seus constantes jogos geométricos. É um filme de ambiências, que espicaça o espectador de forma constante e, entre silêncios e zonas de vazio, implementa uma crítica sussurrada ao seu meio natural. Será este o espelho possível de uma Hungria contemporânea, vista e televisiva nos nossos medias ou da “orbanização” dos seus sistemas, incluindo o educacional?
Esses ventos e discordâncias pairam. Mas "Lesson Learned", como o título parece sugerir, evoca lições aprendidas com gosto, uma delas,a recusa de impor uma interpretação única, confiando ao público a liberdade por onde acorrer; outra, a deambulação pela alusão (ou alegoria, como se quiser chamar), através de uma peça de teatrinho escolar, e é aí que as nossas aliciações se revelam. Szimler filma essa sequência como um sonho, um banho onírico que nunca se verga à tentação do failsafe, porque é através dessa perspectiva ( a das crianças sob a sua encenação da Roma Antiga) que lidamos com os nossos próprios fantasmas.
Uma primeira obra plena, discretamente provocadora, sem com isto ser-se fácil.
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Claramente inspirado pela migração de Madonna para Lisboa (e pelo tratamento quase exclusivo e prestigiante que lhe foi dado, revelando uma distância, seja cultural ou social, em relação à cidade) “C’est Pas la Vie en Rose”, longa-metragem de Leonor Bettencourt Loureiro, responde com sarcasmo e lucidez através do formato mockumentário, aludindo a uma fictícia banda francesa que se apropria da capital. Descrita desde o início como um “vampiro”, entre risinhos e copos de álcool chique nos habituais “beberetes sociais”, a banda simboliza um fenómeno muito real: a gentrificação e a ascensão dos chamados “lisboetas de primeira”, impulsionados por políticas autárquicas recentes e, mais amplamente, por um frenesim global do Ocidente contemporâneo.
Lisboa surge como cidade cool e “timeoutizada”, moldada a um ideal turístico e cosmopolita, enquanto o resto — a órbita que envolve a banda: casais tóxicos, divas decadentes, destruição, queerbaiting, elitismos, entre outros — representa o desgaste anunciado. A mensagem é clara, o ativismo evidente no seio da paródia, no entanto, ao filme falta mais do que boas intenções: falta-lhe acidez, profundidade contextual e, sobretudo, a ousadia de sair do seu próprio umbigo. O discurso aspira ao combate, numa jigajoga de um humor ressentido e do acenar de bandeirinhas dos seus ativismos, estruturado numa estética superficial do reality show ou do fugaz do lixo televisivo (MTV contemporânea?). Esta escolha, em si, não é um problema, adapta-se à lógica do pastiche e da crítica feita por dentro da própria forma, acabando por funcionar, como muitas sátiras, na apropriação do modelo em que satira.
Existe uma presença marcante de um universo queer urbano que, embora legítimo, tende a reduzir Lisboa a uma identidade única, impedindo os problemas sociais abordados, da habitação à precariedade, ir além de qualquer comunidade específica. Essa focalização exclusiva cria um certo fechamento, um sabor a precedência e a “first world problems” que, em vez de reforçar a crítica social, a enfraquece. Aponta-se o dedo ao privilégio dos outros, sem reconhecer que o próprio retrato em cena é, ele mesmo, privilegiado e por vezes sobranceiro. E nota-se, por exemplo, pela participação em modo cameo de Jessica Athayde, surgindo como ela própria, a lançar sermões sobre a situação vivente da capital, acentuando ainda mais essa bolha social de onde o filme fala. “C’est Pas la Vie en Rose” não falha na sua intenção, mas fraqueja na forma como constrói o seu discurso ... aliás vários discursos num só.
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A vida é a arte do encontro embora haja muitos desencontros”
António-Pedro (“Carta Branca”), autoproclamado artista multidisciplinar, concebe “Mississipis” como apêndice da sua trajetória artística, uma derivação do projecto “A Viagem”, peça itinerante que cruza dança contemporânea com a tradicional, recriada no interior do país com performistas amadores, “gente da terra”, cujo empenho há de contagiar os seus respectivos quotidianos.
Sem mais demoras, a articulação entre as duas plataformas, não se traduz. A longa-metragem não se aproxima em nada do seu autonomo registo, mesmo que António-Pedro tente fazer dessa bandeja o seu prato intimista, com recortes e recuerdos, para depois seguir na capacidade da sua trupe rumo ao espectáculo que se adivinha. Documentário ou acessório, o espectador interpretará como quiser, da minha parte encaro-o como uma espécie de making-of intrometido no recreio cultural espelhado. Sendo assim, é do Cinema que se deposita não só uma definição, mas múltiplas, sendo que essa subserviência do meio perante o outro me provoque alguma espécie de urticária, (talvez alheia à forma como as imagens são apresentadas ou à estética, por vezes eclética, que se adequa ao contexto momentâneo).
Porém, damos de ‘caras’ com um beco sem saída: a estratégia final tem dois gumes. O primeiro é de nunca nos levar diretamente ao produto final [a peça], acompanhamos a preparação e dos bastidores não saímos. Por outro lado, isso mesmo, o espectáculo em palco declara a sua independência em relação ao Cinema, e por sua vez, o Cinema reduz-se ao estatuto de subordinado. Portanto, não é bem um encontro que vemos, e antes uma função, um dispositivo, uma missão para que a “cria” acerte no seu primeiro voo emancipadamente.
Dois “mississipis”: o esforço vale, o planeamento podia ser outro.
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Será que Joseph Kosinski se comprometeu a replicar o seu anterior feito em "Top Gun: Maverick"? O de tornar um cinema energético, elaborado na sua proeza e autenticidade enquanto espectáculo físico, como resposta à artificialidade em excesso da Hollywood que coabita? Talvez sim, mesmo que essa dita “continuidade” se faça por outros terrenos … ou melhor: no terreno, com pista adentro, na Fórmula 1, em mais um saque do "homem velho" que ainda aprende glórias.
Aqui, Brad Pitt é o Brad Pitt na sua persona cinematográfica: o fracassado que, quando surge a oportunidade, se entrega à corrida pelo universo que o abandonara anteriormente — a dita (e maldita) F1 — competindo com sangue novo, mas velhas glórias. Kosinski tem à sua disposição um argumento de A a B, com C como conclusão, não transgride quase nada, apenas percorre, oleosamente, a pista da narração. Mas o que torna este "F1", tal como a sequela de "Top Gun", numa experiência à parte, é essa quase sensação sensorial do espectáculo em sala. E isso, como se pode evidenciar, deve-se ao empenho perfeccionista em recriar essas corridas: com carros reais, sem truques, e com CGI no mínimo requeridos ao olho humano. Manobras simuladas que amplificam a perceção sensorial.
Um blockbuster que se remete à lógica do seu próprio formato: oferecer a extravagância daquilo que produções modestas não conseguem, e que a televisão jamais alcança. Nesse sentido, não fugiremos às equações, nem aos enólogos do storytelling que tudo reduzem a mero binarismo, nem sequer à compreensão do cinema enquanto motivador político (mesmo que por debaixo da sua camada de entretenimento rigoroso poderá escapar algumas mensagens subliminares destas brisas bafientas). Nada feito. "F1" é básico na sua concepção, mas, convenhamos, há que reconhecer o mérito de ser um projecto megalómano, um tanto narcisista (Brad Pitt é produtor e é protagonista), em pé de igualdade com o ecrã. O "make the big screen great again" (mesmo no cinismo de ser uma produção Apple TV). Sim, é com exemplos como "F1" que o cinema resiste enquanto exclusivo de sala. O resto são outros “esmiuçares”.
Falemos de cinema no seu registo mais polido, o engenho de Hollywood a aquecer a máquina das suas glórias … passadas, evidentes, só que na simplicidade da sua milionária estrutura. Como suplemento: o choque de adrenalina para o miolo.
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Rebekah Del Rio (1967 - 2025) em "Mulholland Drive" (David Lynch, 2001)
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O Ancoradouro do Tempo (2024)
Da varanda do Frangipani, vemos Moçambique: uma ilha, uma fortaleza, um crime, e, na sua trajetória, um detetive determinado a resolvê-lo e a deter o homicida. Contudo, a investigação escapa pelos dedos deste agente da justiça, a verdade nem sempre é linear: é burlona, trocista, finteira.
“O Ancoradouro do Tempo”, a nova longa-metragem de Sol de Carvalho, estreia entre nós após a sua inauguração na última edição do Leffest. Trata-se de um thriller imaginado nas palavras de Mia Couto, num duelo sem ganhos nem vencidos para com o real e o mundo espectral do além. Nesta conversa com o realizador, partimos do ambiente da produção, mas não cedemos à âncora, prosseguimos para outras margens, outros cantos, e, no fim, para um lamento sobre o estado do cinema moçambicano.
Então vou começar pela génese do projeto. O que é que o fascinou no livro do Mia Couto? Já sei que não é a primeira vez que trabalha com um texto dele [“Mabata Bata”, 2017]...
Está a falar d’ “A Varanda do Frangipani”, certo? Porquê que cheguei a essa obra? Há uma história por trás disso. Eu e o Mia somos amigos há muito tempo, já tínhamos colaborado antes. Na altura, eu tinha acabado de fazer "Mabata Bata”, que foi uma criação muito livre a partir de um conto dele. E ele disse-me: “Vamos fazer um trabalho mais estruturado juntos.” E assim surgiu a proposta para adaptar “A Varanda do Frangipani”.
Quando li o livro, a primeira coisa que me fascinou foi o facto de ser uma história que se podia filmar num ambiente mais fechado, mais contido, que é um tipo de espaço que me agrada muito de trabalhar. Um lugar onde tudo acontece, mas onde o próprio ambiente contribui para a narrativa. Depois, quando surgiu a ideia de filmar na Ilha de Moçambique, percebi logo o potencial que aquele espaço tinha para enriquecer a história. A ilha, o seu tempo, a sua arquitetura... tudo isso podia ser mais do que cenário, podia funcionar quase como uma personagem. Nos primeiros guiões, demos muita importância à própria ilha, talvez até demais. Mais tarde, tentámos reequilibrar isso, dar mais peso às personagens, para não dispersar demasiado.
Mas o que me atraiu mesmo foi isso: uma história fechada num espaço onde o ambiente ajuda a revelar a psicologia das personagens. É como se o espaço e a história conversassem.
Gosto muito dessa questão do ambiente, porque em todo o filme sentimos quase uma aura fantasmagórica, muito presente naquela fortaleza, e várias vezes ao longo do filme também se evoca o passado colonial. Neste filme, o Sol brinca com algo que não é bem o sobrenatural, mas talvez uma certa (sobre)naturalidade da memória. Um lado mais... espectral, talvez?
Sim, exatamente. O que acontece é que os “velhos” - e no filme são mesmo chamados assim - acabam por representar, de certa forma, a identidade moçambicana. Há elementos que talvez uma audiência estrangeira não capte de imediato. Por exemplo, o filme é falado em três línguas nacionais, e há ainda um personagem que representa, de certa forma, a comunidade indiana: uma comunidade com muita importância em Moçambique, mas que é, historicamente, vinda de fora.
Mesmo entre os personagens, há trajetórias distintas. Essa personagem, por exemplo, é de origem local, mas acaba por sair do país. É uma espécie de retrato da viagem dos moçambicanos ao longo de 50 anos de história. Temos também a personagem mais “refilona”, a que contesta, e depois o director, mais autoritário, vertical, ligado à ideia de ordem. Tudo isto, de certa forma, reflete o que está a acontecer em Moçambique hoje. Ou seja, dentro daquele espaço fechado, os personagens funcionam quase como símbolos da sociedade moçambicana, da sua identidade, da sua moral.
O Ancoradouro do Tempo (2024)
Há uma pergunta que paira no filme: o que é o bem e o mal? O que é a coerência? O que pode ser a integridade de um polícia? A sua determinação em não ceder à corrupção, ao roubo fácil?
Tudo isso me fascinou no livro, e o facto de se passar na Ilha de Moçambique foi muito significativo. Aliás, acabámos por reescrever algumas cenas em função dos cenários que fomos encontrando. Tivemos algumas dificuldades, por exemplo, dois dos espaços principais, como o quarto da personagem Nhonhoso, tinham condições de som muito complicadas. Tivemos de adaptar para conseguir filmar.
Mas visualmente eram muito fortes, tinham aquele impacto que queríamos. Portanto, foi um guião que começou num livro, passou por uma fortaleza, encontrou um espaço concreto… e esse espaço também acabou por influenciar a própria escrita do guião.
Há um lado que me interessou bastante neste filme, e por isso é que fiz aquela pergunta anterior sobre o seu acesso ao livro, mas, na verdade, o que quero destacar é outra coisa: essa estrutura do policial, do detectivesco, a investigação de um crime rodeado de múltiplas verdades. Quase até ao final seguimos essa lógica típica do whodunit, em que vamos juntando pistas até chegar à verdade. E, nesse percurso, o espectador pode assumir duas posturas: ou tenta ele próprio resolver o caso, como um detective, ou então entende tudo como metáforas, entrando num jogo mais simbólico.
Sim, a estrutura de “Crime no Expresso do Oriente” foi, de certa forma, uma inspiração para este filme. Mas há uma nuance e era precisamente aí que eu queria chegar com essa ideia da ambiguidade. Nós colocámos, de forma deliberada, elementos no filme para que o espectador perceba que as histórias que estão a ser contadas pelas personagens podem ser plausíveis... mas talvez não sejam verdadeiras.
Há adereços, por exemplo, que ajudam a sinalizar isso: uma bengala que se parte e depois aparece inteira, e o espectador pode até pensar “ah, erro de continuidade”. Mas não é. Foi feito de propósito. Ou uma pedra com uma mancha de sangue. Pequenos detalhes que piscam o olho ao espectador e dizem: “atenção, isto pode ser mentira.”
Outra coisa que fizemos foi dar uma instrução muito específica aos actores: não representem nem como se fosse teatro, nem como cinema realista. Façam algo ali no meio. É difícil explicar, mas a ideia era criar uma certa distância, como se o actor estivesse, ao mesmo tempo, a contar a história e a dar uma piscadela ao espectador, dizendo: “estou a aldrabar este tipo.”
No fundo, todos ali sabem que estão a mentir. Mas ao mesmo tempo, e é aí que acho que está a genialidade do texto do Mia Couto, as histórias têm uma base de verossimilhança tão sólida que o espectador pode perfeitamente acreditar que são verdadeiras. Fica ali uma confusão — propositada — no espectador: “Então, há um assassino ou não? Quem será? Será que há mesmo um crime?” Mas isso é um truque. Porque, na verdade, a história é outra. Cheguei a fazer uma versão mais longa do filme, com duas horas e quarenta e tal minutos, e mostrei metade a um grupo de pessoas, só para fazer um inquérito. A maioria dizia: “Queremos saber quem é o assassino!” Ou seja, o filme prende porque entra nesse território do whodunit, mas depois subverte-o completamente.
Ao contrário dos romances da Agatha Christie, por exemplo, onde tudo é resolvido no fim com base nas pistas que foram sendo lançadas, aqui a explicação final está completamente fora dessas pistas. Só quando se revê o filme, com atenção, é que se percebem dois ou três detalhes, como quando a rapariga fala dos olhos vermelhos e das câmaras de pangolins, que já dão a entender que há uma camada mais profunda. Essa ambiguidade foi totalmente propositada, e, sinceramente, é uma das coisas que mais gosto no filme.
Também é uma forma de convidar o espectador a ver o filme outra vez.
Também. É uma forma de o agarrar. Sou da opinião, e estou no campo dos cineastas que acreditam nisto, de que podemos ser profundos, claro, mas não precisamos ser… vou usar um termo talvez feio… intelectualoides. Quando digo -oides, digo mesmo isso: um certo tipo de intelectualismo vazio. Não estou a atacar o pensamento intelectual, que é necessário, mas sim aquela postura que afasta, que se distancia do público.
A ideia que tento sempre construir nos meus filmes é a de criar diferentes camadas. Há sempre uma história mais superficial, digamos, que pode ser seguida como entretenimento. Porque o cinema, antes de mais, tem que entreter. Mas depois, sim, podemos usar essa base para fazer com que as pessoas pensem, reflitam, tomem consciência de algo. Sou adepto desse cinema que entretém, mas também inquieta, que oferece algo a quem quiser ir mais fundo. Mas não acredito na ideia de “agora vou fazer um discurso muito elaborado, complexo, denso” e pronto, esqueço o público. Não. As pessoas têm que gostar do filme, têm que se envolver.
Sol de Carvalho
Têm que sentir essa verdade …
Exactamente! Penso que o Mia faz isso muito bem. Quando ele brinca com as palavras, está a criar imagens que são quase culinárias, ele é um verdadeiro chefe de cozinha das palavras. Nunca pensei que fosse usar essa expressão [risos], mas pronto. É isso. Nós lemos Mia com um sorriso nos lábios, mesmo quando o conteúdo é denso ou sério. Essa é a ideia: não afastar o espectador, manter essa ligação. Seja com o leitor, seja com quem vê o filme.
Falando em ligação, olhando para a sua carreira, e os seus muitos trabalhos, não consigo deixar de ver neste filme, sobretudo quando os suspeitos contam as suas histórias, uma dimensão quase documental, de investigação.
Sim. Há algo disso. Comecei como jornalista, e o Mia também. Aliás, o nosso primeiro contacto profissional foi enquanto jornalistas. Isso cria uma ligação natural com a realidade. Depois há um outro ponto: o cinema em Moçambique surgiu numa altura em que não havia televisão, por isso, desde o início, o documentário teve um papel central. Mas, com o tempo, comecei a interrogar-me sobre o que era essa “verdade” do jornalismo. O que é que significa, por exemplo, o direito ao contraditório? Se um lado tem 70% de razão e o outro só 30%, faz sentido dar 50% a cada um? Isso é justo? Descobri também que, na história, nunca há uma versão final. A história é escrita pelos vencedores, e está sempre incompleta. Deve ser posta em questão, deve ser divulgada, sim … mas nunca é fechada.
Nessa altura, até por causa do contexto político, o regime era difícil (vou dizer isto como forma simpática), percebi que talvez fosse mais honesto, da minha parte, dizer a verdade a partir da ficção. Mas atenção: essa ficção tem que possuir uma base real, sólida. E mais: acredito muito que o espaço alimenta a narrativa. Se quero fazer um filme sobre as viúvas em Inhambane, vou lá, escuto, observo. Não faço necessariamente um documentário, mas recolho elementos da realidade para construir uma ficção a partir disso.
Por exemplo, “O Jardim do Outro Homem” (2007) nasceu de entrevistas com raparigas que tinham sido vítimas de chantagem sexual por parte de professores. Em plena rodagem, chegámos a apanhar uma professora em flagrante, numa dessas situações. Em “A Herança da Viúva” (2000), fiz a mesma coisa. E em “Mabata Bata” (2017), quando abordámos as cerimónias e os espíritos, fomos à procura do que esses elementos significavam localmente. A questão simbólica das árvores, por exemplo. Usámos a figueira selvagem — a fig tree — que é uma árvore muito respeitada, onde as pessoas sobem em caso de cheias, uma árvore de salvamento. Por isso mesmo, nunca é cortada. É também o local onde se acredita que habitam espíritos.
Tudo isso nasceu da realidade. Não se inventa do nada. Há uma recolha. Mas depois eu liberto-me disso para criar. Às vezes não me liberto assim tão bem [risos], mas enfim... são os riscos do ofício.
Gostava de falar um pouco desse traço da busca pela verdade. Porque o Sol, tal como mencionou, foi jornalista, fez vários documentários, e muita da sua ficção tem esse lado social. Na verdade, queria fazer duas perguntas numa só: Este filme tem uma dimensão social clara, mas também foi filmado no contexto da pandemia, e isso está presente, até pela simbologia do pangolim. Por um lado, temos a questão da criminalidade contra os albinos, por outro, o contexto da pandemia. A ficção serve aqui como um veículo para trazer esses temas?
Sempre. Sempre. Há duas frases que uso muitas vezes: o cinema é a transfiguração do real. Ou seja, vou ao real, bebo dele, digiro — faço a digestão — e depois vomito. Mas quando vomito, já é outra coisa. Já não é o mesmo. É um processo que se passa dentro de mim: cerebral, mental, às vezes até físico.
Depende da minha aproximação com o tema, do olhar: se olho com grande-angular, se uso uma teleobjetiva, se isolo a pessoa, se a coloco no contexto do espaço. São escolhas do cinema, claro, mas todas ligadas à verdade. Agora, o porquê dessa insistência na verdade?
Já tive esta discussão com o Mia, ele também sente essa ligação com a verdade, está nos livros dele, é evidente, mas ele sente-se mais livre. Ele gosta de deixar o leitor ou o espectador na dúvida: será isto verdade ou não? No meu caso, o que me interessa é essa ambiguidade entre o real e o imaginário, especialmente por causa do nosso universo espiritual moçambicano. Aqui, em Moçambique, tu podes estar sentado numa sala e alguém diz: “aqui ao lado está o espírito”. E sentem mesmo isso.
Não sinto, confesso, cresci de outra maneira, com outras referências - Deus, o Diabo, essas coisas da cultura católica -, mas Moçambique é uma mistura: temos a cultura católica, sim, mas também uma cultura sincrética e uma cultura animista muito forte. Essas culturas misturam-se. Então tens Cristo ao lado do Espírito ancestral. É difícil explicar isso a alguém de fora, mas aqui faz todo o sentido.
Esses elementos são tão fortes que, se os respeitar no meu cinema, não estou a mentir ao espectador. Estou a criar um mundo imaginário, sim, mas esse mundo é verdadeiro dentro da nossa lógica cultural. Quando vejo um filme como o “Black Panther”, por exemplo, aquilo é claramente imaginário, ninguém duvida. Mas nos meus filmes, essa separação não é assim tão óbvia. Essa ambiguidade está muito ligada ao nosso mundo espiritual. Dou um exemplo: uma série que estou a fazer agora, por causa da guerra, tem um episódio sobre o Ritual da Reconciliação. Esse ritual é essencial para os soldados que mataram e sobreviveram. Quando voltam para as suas aldeias, têm que passar por esse ritual, que envolve o sangue, a lavagem, para se purificarem. Se não fizerem isso, não podem viver na comunidade. Porque trazem os maus espíritos com eles. E sabes que mais? Esses rituais de reconciliação foram, em muitos casos, 300 vezes mais eficazes do que os grandes discursos das Nações Unidas. Os panfletos diziam “vamos reconciliar as famílias”. Mas a reconciliação, a verdadeira, acontecia através desses rituais.
Portanto, esse mundo espiritual é tão forte em Moçambique, mas tão forte, que não preciso inventar nada. Só preciso ir lá, escutar, respeitar e beber dele.
Na rodagem de "O Ancoradouro do Tempo" (2024)
E falando desse mundo espiritual... No filme há aquele ritual ligado aos barcos de pesca, e depois aparece o capataz: “Já disse para vocês não fazerem esta macacada.” Há também uma repressão interna a esse lado tradicional, dentro do próprio Moçambique?
Não, não... Pelo contrário. Houve repressão no início, sim, mas depois veio uma abertura, uma libertação, e hoje isso já está bastante aceite. Os curandeiros e até os chamados feiticeiros já fazem parte do Sistema Nacional de Saúde. Estão integrados.
Porquê? Porque há uma dimensão psicoemocional da cura que, se não passar pelo curandeiro, não acontece. O comprimido, sozinho, não resolve. Foi assim na pandemia, mas já era evidente nos casos de HIV. O próprio curandeiro sabe que não pode curar HIV, ele reconhece que é preciso o medicamento. Mas sem o ritual, a pessoa não acredita que está curada.
Dou-te um exemplo recente: saiu uma reportagem na RTP sobre um ritual chamado Cuxinga. É um ritual sexual em que as viúvas têm que dormir com os irmãos do marido falecido, para serem “purificadas”. Tenho discutido muito esse tema em Moçambique, e as conversas são intensas. Os jovens criticam; os adultos dizem: “Sim, é mau … mas se não houver esse ritual, essas mulheres ficam desprotegidas.” É um pouco como a poligamia: a justificação é que, se formos monogâmicos, 20% das mulheres vão ficar sozinhas (não estou a defender a poligamia, só estou a explicar o raciocínio dentro do sistema social).
Fiz um filme sobre o Cuxinga, e correu muito bem cá. Mas, curiosamente, houve um certo medo. Algumas mulheres diziam: “Não, quero fazer esse ritual. Tenho que fazer.” Mesmo sendo um ato de violência, inclusive sexual, onde não podem mostrar prazer, não podem falar, nada. É um tema duríssimo. Mas existe e mexe com o nosso mundo atual. E porquê abordar isso no cinema? Porque é como no Irão: se não tiveres ligação ao Islão, não entendes as regras. Ou na China, se não tiveres ligação ao Budismo. Ou na Índia, sem compreender o Hinduísmo.
O que quero dizer é que, quando tentamos aplicar políticas novas, às vezes criadas por universidades americanas, sem conhecer as realidades locais, não funciona. Por exemplo, o lobby do “não sexo até aos 16 anos” para combater o HIV... Isso é uma política imposta, completamente desligada das tradições africanas. Há choques e isso é uma discussão essencial no desenvolvimento: tens que desenvolver mantendo a identidade. Se não, vais ser sempre uma cópia, e a cópia é sempre pior que o original.
Isso leva-me à outra pergunta: usar a ficção para trazer estes temas sociais. Que são temas difíceis — e fazer filmes também é dispendioso. O “Jardim do Outro Homem”, por exemplo, foi na altura um dos filmes mais caros de Moçambique, mas continua a trazer temas sociais sensíveis, mesmo quando não são fáceis de abordar dentro da própria sociedade moçambicana.
Sim. Cá, em Moçambique, não tenho problemas com isso. Lembro-me de mostrar “O Jardim do Outro Homem” em Espanha, e houve um espectador que disse: “Gostei muito do filme… mas não sei se gosto da forma como usou um caso excepcional para fazer uma denúncia.” E eu perguntei: “O senhor quer mesmo saber? Mais de 70% das raparigas em Moçambique sofrem chantagem sexual.”
Ou seja, não estamos a falar de um caso excecional, estamos a falar de um problema estrutural. É o mesmo com o Cuxinga. Há quem diga: “Mas isso existe mesmo?” Existe. Marca vidas. São temas que muitas vezes estão escondidos debaixo do tapete. E eu, como realizador, gosto de tirar essas coisas debaixo do tapete e pô-las à vista.
Lembro que o primeiro filme seu que vi foi por volta de 2013 ou 2014, no Festin, e foi “Impunidades Criminosas” (2012). Tocava a questão da violência doméstica …
Exatamente. Esse é outro caso. Lembras-te da música?
Sim — “Bate, bate, morre, morre.”
[Riso] Pois. E a pergunta que fazia era: Onde é que está o espírito? No filme, o espírito é o marido morto. Está ali enquanto ela está com outro homem. Ele persegue-a. Só quando ela mata o espírito, é que se liberta. Era essa a mensagem que queria passar: não adianta falar de libertação se, na cabeça, a pessoa ainda não se libertou. Isso é essencial. Também no “Impunidades” quis trazer o espírito para o mundo dos vivos.
Impunidades Criminosas (2012)
Volto ao exemplo do “Black Panther” — não para julgar o filme — mas para mostrar a diferença: Se queres pôr um rinoceronte gigante de ferro, arranjas efeitos especiais e fazes, no meu caso, se quero mostrar um espírito, uso a sombra. Se o espírito sai por ali, mas a sombra anda noutro sentido, há algo errado. Então perguntava sempre: Onde é que o espírito dorme?
Em Maputo, quando mostrei o filme, toda a gente respondia com convicção: “Claro que dorme nos crocodilos.”
E já que falamos dos crocodilos... Vou contar uma história engraçada. Os crocodilos do filme eram pequenos, com cerca de um metro. Fomos buscá-los a uma barragem perto de Maputo. À noite, voltavam numa caixa grande, e eu dizia: “Ficam aqui fechados, e amanhã filmamos.” Mas ninguém da equipa queria deixá-los lá à noite! Então, todos os dias fazíamos 35 km para ir buscá-los de novo. E antes de começar a filmar fizemos uma cerimónia para acalmar os espíritos, porque íamos filmar naquela zona.
Acredito nisso? Não. Mas era importante, para que a equipa e a comunidade se sentissem bem. No “Mabata Bata” fizemos o mesmo, a senhora que fez a cerimónia sacrificou animais — é uma festa, um ritual mesmo — e depois disse ao nosso diretor de fotografia: “Esta tarde vai chover. Mas vocês são muito bem-vindos.” Ela sentiu que o tempo ia mudar, e aquilo criou uma ligação: entre nós, a equipa, e a comunidade. Estávamos numa cidade pequena, toda a gente nos conhecia. Correu tudo bem até ao fim.
Essa maneira de fazer cinema com as pessoas… é isso que me entusiasma. Gosto muito disso.
Você tem um cinema chamado Scala e também faz parte da programação dele. Gostaria que me falasse um pouco dessa experiência.
Os cinemas foram todos nacionalizados depois da independência, e, passado algum tempo, quando se regressou à economia de mercado (devia pôr aqui entre aspas "selvagem", porque na verdade esse regresso foi pior do que uma transição normal), os cinemas foram todos privatizados. Na altura, nós estávamos a tomar conta de três cinemas. Não havia filmes, mas estávamos envolvidos, íamos mostrando o que havia, às vezes com filmes trazidos no avião. Então, quando esse processo de privatização começou, solicitámos a compra do Scala. Foi-nos vendido e demorámos 25 anos a pagar … mas pagámos. O Scala pertence agora à nossa empresa.
Porquê o Scala? Porque é um cinema de 1931, clássico, ainda com as cadeiras originais, foi o primeiro cinema sonoro de Moçambique. No início, fazíamos programações com filmes paralelos, o que aparecesse, passámos até alguns filmes indianos. Depois, uns seis ou sete anos antes da pandemia, criámos a Associação Cultural Scala e entregámos-lhe a gestão do cinema. Aí começámos a focar a programação em cinema africano no geral e moçambicano no particular. Neste momento, somos a única sala que mostra cinema moçambicano regularmente. Todas as quintas-feiras temos uma sessão e fazemos também ciclos de cinema. Em Moçambique, não há praticamente hipótese de ver cinema holandês, argentino, italiano, cinematografias muito interessantes, então estas instituições culturais ajudam-nos a organizar ciclos, como o papel que o Cinema São Jorge tem aqui [em Lisboa].
Agora, claro, não temos tido apoio. A manutenção do espaço é complicada, exige muito, só que somos resistentes. Estamos a resistir enquanto pudermos. Mostramos programação moçambicana e temos agora um projeto para começar uma programação africana mais ampla. Mas não é fácil, há poucos filmes disponíveis online. Temos de contactar diretamente os produtores e estamos a negociar isso.
O cinema também tem uma história cultural rica: já atuaram lá o Gilberto Macuácua, a Amália Rodrigues... Tem teatro, dança, música. O Xiquitsi, que é a companhia que ensina norte-americanos a tocar música clássica, está lá instalado, e temos ainda um restaurante. Portanto, vamos aguentando. Mas não é algo que dê rendimento, fazemos isto mesmo por uma missão: somos a única sala a mostrar cinema moçambicano ponto. E fazemos uma programação constante. Todos os filmes moçambicanos e africanos estão a passar ali, em ecrã grande. Um ecrã de 13, 14 metros.
Cinema Scala, Maputo
Sem DCP, não é?
Mas com boa projeção.
E passam película também?
Não. As máquinas de película eram antigas, com carvão, projetores enormes. Estão lá, mas ficaram paralisadas, a qualidade já não era boa. Depois recebemos um apoio para montar o sistema de som, mas não temos som 5.1 nem DCP, são investimentos muito caros, e o nosso público em Moçambique é pequeno. Por exemplo, com “O Jardim do Outro Homem”, tive a segunda maior audiência em sala: 3 mil pessoas. Mas tive muito mais audiência com o “Jardim” quando o levámos a todo o país com projetor e jipe — mais de 50 mil pessoas viram o filme assim, em aldeias, ao ar livre.
Em sala, é muito difícil. A massa crítica é pequena.
Sobre isso … sobre a cinefilia e a cinematografia moçambicana hoje … eu, como europeu, noto uma certa ideia de que estamos a evidenciar um “boom” do cinema africano no geral, seja em festivais ou até em plataformas de streaming como o MUBI. Tem sentido isso?
Acho que não estou muito de acordo com essa ideia. Talvez em alguns festivais se veja isso… Houve sim um grande boom nos anos 70, 80, 90. Nessa altura cresceu muito. É importante lembrar que os três grandes apoios ao cinema africano eram: a União Europeia (na altura através do ACP — África, Caraíbas e Pacífico), os franceses e, curiosamente, os portugueses, que tiveram um papel super importante na produção de ficção africana. Sem esse apoio, o cinema de ficção — longa-metragem — está condenado. Os nossos países não têm meios para financiar isso sozinhos.
Digo isto não por diplomacia, porque tenho críticas a Portugal também, mas é um facto: devemos muito ao país. Pelo menos há concursos que ainda permitem fazer um documentário, ou uma ficção, e depois articulamos com a ACP, com a UE, que também dá fundos. Os franceses também dão, mas claro, focam-se mais na francofonia.
E sim, nesses países francófonos há mais desenvolvimento agora, também porque os apoios nacionais lá são mais fortes. No caso do “Ancoradouro”, o primeiro dinheiro que consegui foi do ICA [Instituto do Cinema e do Audiovisual], depois fui buscar financiamento noutros lugares, como a Alemanha. Agora, muitos fundos africanos viraram-se (com alguma razão) para o grande desenvolvimento que está a acontecer no cinema asiático.
Veja: faz-se um filme coreano, traduz-se para chinês, e mesmo se for um flop, são 4 milhões de espectadores. E não é só a China, há também a Malásia, Indonésia… Se conseguir entrar no mercado chinês, o filme está pago. Veja bem: 800 mil chineses a pagar 1 euro! … o filme está pago!
Eu não consigo nem 30 mil pessoas a pagar 5 dólares em Moçambique. Fora de questão! E é essa a grande diferença.
Daí que as co-produções sejam tão determinantes...
Sim, só os custos de produção já são um obstáculo. É preciso haver massa crítica … e quando digo massa crítica, não estou a falar só de público interessado, mas de pessoas com dinheiro para pagar bilhete de cinema. Sem isso, não é possível. Tem de haver apoio do Estado, para fazer esse equilíbrio. Houve ali um momento de transição entre a película e o digital, em que surgiram algumas manifestações interessantes. Mas, de resto, o que é que temos em África? Só se for a Nigéria?
Quando referi cinema africano conscientemente exclui a Nigéria, que como bem sabemos é uma indústria à parte.
Exato. Veja: eles fazem filmes para 120, 130 milhões de pessoas, que noutros contextos, que adoram cinema. Em Moçambique, se tiver 250 pessoas numa sala, mesmo com preço de estudante, já é muito. Porque só para sair de casa já há custos. E é por isso que Moçambique está como está. As pessoas não têm condições para sustentar uma indústria cinematográfica. Não concordo com isso — claro que não — mas tenho de aceitar que é essa a realidade.
Houve um deslocamento dos fundos. Muitos foram para a Ásia, para a América do Sul que também são mercados grandes (o Brasil, por exemplo, já funciona por si só), e há todo um mercado de língua espanhola. O ACP (África, Caraíbas e Pacífico), que era uma das grandes fontes de financiamento, agora lança concursos de 3 em 3 ou de 4 em 4 anos. E ainda se dividiu: há agora um ACP francês e um ACP alemão.
Se quiseres voltar a concorrer, tens de ir bater à porta de todos esses. Depois há uns fundos pequenos da Suíça, da Noruega, dedicados ao chamado “Terceiro Mundo”. Mas nós, africanos, tirando a parte francófona, que tem o fundo da OIF e da Francofonia, temos cada vez menos.
O Jardim do Outro Homem (2007)
Portanto, isso limita também o aumento da cooperação...
Claro. Há algumas cinematografias árabes com bons apoios … mas isso já é outro universo. A África subsariana, ou “negra”, como se costuma dizer, perdeu importância. Há sempre quem continue a organizar festivais e dar visibilidade, mas não estamos a crescer como devíamos. O nosso mercado é insípido: o dinheiro vai todo para a produção, e não há retorno. Num mundo como o de hoje, é difícil continuar a defender estas ideias, a não ser que tenhas muito dinheiro para queimar.
No mundo em geral já é difícil...
E no nosso caso há ainda outro problema: os hiatos. Houve um falhanço na passagem de testemunho, que tem a ver com educação, formação, e com o boom das televisões. A televisão é produção rápida, com equipas reduzidas, dois ou três numa sala. Costumo dizer que virou a "televisão de excelência". Hoje, mesmo nas grandes indústrias, como as dos EUA, já se discute se vale a pena lançar um filme no cinema ou diretamente nas plataformas, cuja a única vantagem, segundo essas empresas, é de ver num ecrã maior. Na nossa realidade, essa passagem de testemunho entre gerações falhou.
Mas apareceu uma geração nova, cheia de criatividade, gente que faz “leite das pedras”. Por exemplo, conheço um jovem em Quelimane que faz um filme de ficção por ano... com 100 dólares! É polícia de profissão, chama os amigos, filma e *já está*. Faz um, dois filmes por ano, e são trabalhos com impacto, com caráter. Tem sucesso! São filmes muito bons, e estão na internet. Gosto muito dele, incentivo-o sempre a continuar, porque ele faz mesmo sem condições nenhumas, e consegue contar histórias.
Há vários realizadores que fazem esse tipo de experiências...
E que resultam. Resultam mesmo!
Assim de repente vem-me à memória Fede Alvarez …
Exatamente. Agora, em termos de produção... É como no desporto: a Lurdes Mutola foi campeã olímpica, mas sem estrutura. Depois dela, deixámos de ter representação olímpica. É tudo uma questão de bases e no cinema é igual.
Temos muitos jovens talentosos, criativos, mas precisavam de mais apoio e essa negociação com a Europa também devia ser mais acompanhada. Porque eu, com um currículo de 30 anos, consigo ir lá e ganhar fundos. Mas se for a alguém, com apenas dois filmes, ou que está a começar, vai perder. Porque o currículo conta muito. Devia haver incentivos para primeiras e segundas obras.
Mas não há muito disso. Vamos ver...
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Se o antecessor abria portas a um estilo camp infiltrado, à paisana, na sua camada de cinema de terror sério, consciente da sua atualidade, este upgrade, "2.0", abraça apertadamente esse roliço. É parvo à partida, e não o esconde, até porque esse júbilo abre-lhe portas para uma maior adesão do público (várias idades, várias castas).
Contudo, nesta ‘primazeca’ de "Terminator", com indícios de Philip K. Dick, o contexto temporal em modo zapping insere-o no centro da discussão sobre as ferramentas da IA e os avanços tecnológicos, nomeadamente na área bélica, sem nunca se apresentar como conhecedor do que o rodeia. Aliás, a ficção científica pontapeia o terror e surge como salvadora de qualquer lição moralizadora dos nossos tempos. Nesta sequela, a vilania de "M3gan" é reconstruída para combater uma maquinaria avançada, preparada para a guerra... e para a dominância do mundo (pois!). Por um lado, segue os passos — de fininho — da trajectória daquela tal saga de James Cameron, com o "2" a transformar antagonistas em aliados dignos do nosso carinho. E, daí, penetramos no maior conflito do filme, também inserido noutra tendência: a de uma silenciosa propaganda de amor à máquina.
Enquanto o tal "Terminator 2" e outros congéneres colocavam a máquina no sacrifício pela Humanidade (também recordar "A.I." de Steven Spielberg, onde existe esse descarte em prol de uma higienização entre o homem e o sintético), em "M3gan 2.0" dá-se o oposto: a empatia pelo artificial gera o sacrifício humano por ele, como uma aceitação, ou rendição à Máquina perante o humanismo. Já aconteceu, de forma gritante e subliminarmente, em "Alien: Romulus", onde a protagonista (Cailee Spaeny armada em Ripley de feira) decide largar a sua amiga grávida para arriscar a vida pelo andróide. Um gesto que nos cospe na cara o facto de se dar lugar a estes novos entes, em detrimento da vida gerada por meios biológicos. Já esta sequela, os protagonistas de "carne e osso", tudo fazem para impedir a perda da entidade tecnológica de sucumbir ao seu derradeiro sacrifício.
Talvez estejamos a ser overthinking quanto aos temas, muitos deles escritos em modo subconsciente nestes filmes. Mas é por esse estado que envergamos pela crítica. Está em curso uma mensagem subliminar, trazida sobretudo por Hollywood e os seus alicerces tecnológicos (não esquecer da Silicon Valley, onde, seguindo o conselho de Hal Holbrooks em “All the President’s Men”, farejando o rasto deixado pelo capital). "M3gan 2.0", exercício disparatado em comparação ao seu downgrade, está a jogar o dito jogo como bem sabe fazer: fingir que não sabe nada. De nada.
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A Vida Luminosa (2025)
Uma conversa entre alfacinhas, poderíamos, desta maneira, descrever o reencontro entre João Rosas e o Cinematograficamente Falando .... um ano após a morte declarada da cidade, no seu documentário sem título subtil, “A Morte de uma Cidade”, o retorno faz-se na luz, não uma alegoria da ressurreição, mas dessa luminosidade que a capital ainda detém como sua.
“A Vida Luminosa” é também um reencontro, o quarto com Nicolau (Francisco Melo), personagem que surgiu em modo passageiro na curta “Entrecampos” (2013) e, desde então, nunca mais largou a vida fílmica de Rosas (conta-se mais duas curtas). Aqui, na sua primeira longa-metragem ficcional, o “rapaz de Lisboa” procura a emancipação. Mesmo à deriva, um (des)confortável estado em que se encontra, deixa-se levar por peripécias que vão desde Pais Natais em pleno verão, fantasmas da Cinemateca, papelarias frequentadas por trindades, encontros, desencontros, desilusões, surpresas, até ao cemitério não como o Fim, mas como fim de ciclo.
“A Vida Luminosa” é um filme habitado: de gente, de lugares, de marcos ou cultura identificável, é o coming-of-age que nos olha com tamanha esperança, pois, na “flor da idade”, tomam-se riscos, e a indecisão converte-se numa constante da sua naturalidade. Dialogamos sobre o filme … e não só … sobre espectros e parafernálias, cinema e a sua questão essencial, e ainda houve tempo para esquerdas, humanização e o tal “público português” que tantos desejam refugiar.
No outro dia tentava descrever “A Vida Luminosa” a alguém, entendendo que este filme parte de um certo afecto a uma cidade, a de Lisboa e todo o seu biótopo. Gostaria de começar por aí: poderemos considerar este filme numa carta de amor a uma do qual declarou óbito no filme anterior [“A Morte de uma Cidade”, 2022]?
Sim, é uma ressurreição pelo amor. Enfim... carta de amor? Sim, talvez ... Tendo em conta os meus outros filmes, é óbvio que a cidade, e Lisboa em particular, está muito no centro deles. Mais do que estar no centro ou do que isso ser propriamente um programa ou uma intenção, os filmes nascem mesmo da cidade. e, portanto, não é tanto uma carta de amor no sentido em que se costuma dizer — aquela coisa da luz, do rio, dos monumentos — e sim um interesse e fascínio pela própria vida da cidade. A vida urbana enquanto espaço de encontro com o outro, de amizade, de relações, de convívio, e também um espaço de memórias, de lado afetivo.
Os filmes vem muito disso: por um lado, do quotidiano da cidade, que me dá ideias para a dramaturgia das cenas, para onde quero filmar e o que é que vou filmar; mas também da minha relação, ao longo dos anos, com a cidade, e tento que isso não seja, no filme, um discurso nostálgico ou memorialista, mas, pelo contrário, que ela apareça como uma entidade viva e em constante mudança. Os filmes começam sempre com um primeiro argumento: uma história geral, com cenas, etc. É só um ponto de partida para um processo de trabalho que começa precisamente por percorrer a cidade a pé.
Revisito certos sítios do meu quotidiano, presto atenção a certas coisas, volto a lugares do meu passado ou que fazem parte da minha relação com a cidade. Portanto, o filme começa por esses percursos, por andar a pé. É uma forma de ler a cidade e recolher elementos.
A Vida Luminosa (2025)
Quero mesmo chegar a esse lado pedestre, que é um ponto interessante …
Os filmes também têm, como pano de fundo, esta ideia, muito óbvia, muito simples, de que a cidade, enquanto espaço, forma também a nossa identidade. No caso do Nicolau, o filme está construído nessa lógica: o movimento dele pela cidade, por um lado, leva-o a encontrar outras pessoas; por outro, essas pessoas levam-no a descobrir uma nova cidade.
O próprio processo do filme parte daí. Depois destes primeiros percursos, digamos, a minha cidade, os meus lugares, há uma fase longa de casting. Vou à procura dessas pessoas, muitas vezes encontradas na própria cidade, ou através de anúncios. Acabo por trabalhar com não-atores, precisamente por isso: interessa-me mais as pessoas do que a sua capacidade de dizer as falas. Isso trabalha-se. Interessa-me a vivência que essas pessoas têm da cidade, e, por isso, a cidade que aparece no filme é uma construção a partir da minha cidade e da cidade que os outros trazem.
Dessa fragmentação constrói-se esta cidade, que alguns veem como uma carta de amor, e percebo isso. É óbvio que Lisboa é uma cidade que gosto muito, é a minha cidade, e interessa-me continuar a filmá-la.
Voltando a esse pormenor ou essência — como referiste, o de caminhar a pé — é comum encontrarmos, diversas obras decorridas em Lisboa, onde, por via do artístico ou da possibilidade do cinema enquanto construção de não-lugar, um por vezes desrespeito pela geografia da cidade. Contudo, no teu filme sinto que há um respeito pelo local e a sua distância. Vemos as personagens a sair da Cinemateca e a entrar pela Avenida, e quem vive na cidade percebe que aquilo faz sentido geograficamente. É claro que a pessoa apanha o metro em Sete Rios e sai na Estação da Luz, são ‘coisas’ que os lisboetas entendem na perfeição.
Sim. Para mim não faria sentido fazer de outra maneira. Todo o filme é realista — com mais ou menos elementos fantasiosos ou oníricos, por vezes — mas estou, sem dúvida, numa tradição de cinema realista, que é o que me interessa. E o cinema também é uma forma de cartografia. Uma cartografia emocional, claro, sentimental. Por isso, faz-me sentido respeitar a geografia real da cidade, e ao mesmo tempo ir desenhando esse mapa: um mapa da minha relação com Lisboa.
Quero que esse mapa tenha coerência ao longo dos filmes. Ele começou a ser desenhado em “Entrecampos”, que germinava essa ideia de mapa muito presente. A Mariana, a rapariga que se muda para Lisboa, tenta apropriar-se do espaço e transformá-lo num lugar vivido, associado a emoções. Já estava ali a semente, sem me dar conta, do que me viria a interessar: a cidade como lugar de encontro e de amizade. A amizade com o Nicolau, nesse filme, é o que lhe dá as boas-vindas à cidade. E o filme acaba com ela nesse fluxo urbano. O mapa está no centro desse filme, e agora vejo (não tinha pensado nisso na altura) que, mesmo sendo também o meu primeiro... vá, filme mais profissional (porque o anterior tinha sido um trabalho de escola), foi também uma primeira tentativa de cartografar. Ou seja, eu próprio estou com a Mariana a tentar apropriar-me deste lugar, que já conhecia através do cinema.
É engraçado ver o filme hoje como quase uma nota de intenções daquilo que viria a fazer. Esse mapa que venho desenhando interessa-me que seja coerente e que as pessoas possam, de facto, percorrer os caminhos que aparecem no filme. Não é só uma questão de vontade. Como disse, as ideias vêm da cidade. Quando filmo a Cinemateca e depois a entrada no metro, é porque a própria cidade me leva a isso.
Por um lado, a Cinemateca é um lugar da minha cidade, onde tenho muitas emoções associadas, muitos anos daquilo, muitos anos a “virar frangos” [risos]. Por outro, já fiz aquele caminho muitas vezes. Quase como se fosse a cidade que me pede para ser filmada. Faz sentido filmar esses lugares. As estações de metro, por exemplo, são muito óbvias para mim, são espaços de entrada e saída, de cruzamento, com essa ideia do encontro ou da possibilidade de reencontro com o outro. Seria um desrespeito para a cidade, que tanto elemento me dá ao próprio filme, para depois, ignorá-las. Aliás, como disse, preparo os filmes assim: faço os próprios percursos que aparecem no filme. Não me faria sentido estar na Cinemateca e, de repente, ir filmar a estação dos Olivais, porque não... Vou desenhando essa teia a partir dos meus próprios movimentos.
Além disso, os lugares também falam do próprio personagem. Aqueles espaços falam do percurso dele, do seu clã, digamos assim. Não é uma questão utilitária: “vou filmar aqui esta porta nos Olivais e depois filmo ali noutro sítio porque dá mais jeito à produção”. Não. Faz parte da forma como vivo o cinema: filmar é também uma maneira de viver o lugar. Tem de fazer sentido, tem de ser coerente.
A Vida Luminosa (2025)
Sobre a Cinemateca … como bem referiste “A Vida Luminosa” tem uma linha realista, mas há ali um elemento quase fantasioso, encantado, na forma como é tratada a Cinemateca. Além da gag do Nuno Lisboa como um crítico que só cita Bresson, tem uma sequência que me conquistou completamente: eles estão a ver um filme do [Erich von] Stroheim — “The Wedding March” (1928) …
Exactamente!
… e as mãos das personagens falam por elas. No meu alfabeto cinematográfico, os grandes cineastas sabem filmar mãos: o Buñuel, o próprio Bresson… [risos]
Sim, sim. Essa sequência chegou a ser escrita, numa fase muito inicial da ideia, como se eles estivessem a ver o “Pickpocket” (Robert Bresson, 1959), que é um dos meus filmes preferidos e, claro, um dos grandes da história do cinema. Nesse filme, o trabalho com as mãos é incrível. A sequência que acabámos por filmar foi construída em torno da ideia das mãos e dos olhares.
O que me interessava ali, em termos formais, era esse trabalho, esse diálogo entre os olhares dos três atores no filme — o Stroheim, a mulher e o marido — e como ele consegue, só através dos olhares, ligar as personagens. Foi algo que sempre me fascinou no cinema: essa capacidade de ligação pelo olhar. Tentei reproduzir isso, ver se conseguia também construir uma sequência só com olhares, e com as mãos a falarem pelas personagens.
Além disso, a Cinemateca, como dizia em relação à cidade, não é apenas um espaço onde tenho muitas memórias. Para mim, tem uma importância quase política no cinema. Enquanto arte, enquanto fenómeno cultural que está em decadência, pelo menos em sala de cinema afirma-se, como um lugar de encontro, de comunhão, de experiência coletiva. Todos já sentimos isso: por muito que gostemos de ver um filme em casa (e vemos, e gostamos), a experiência de o ver numa sala, com outras pessoas, é completamente diferente. É esse conjunto de anónimos a viver algo ao mesmo tempo, e também um lugar de comunhão amorosa. Não só aquela com a massa anónima, mas também aquela fantasia (ou não) de se apaixonar por alguém que está ali ao lado, um espectador ou espectadora, constatar certas reações, cruzar olhares... Todo esse imaginário interessava-me.
Agora, em relação à questão da cinefilia, para mim é importante. Tem a ver com a maneira como tento trabalhar. A cinefilia — ou outras referências, literárias, etc. — não deve ser algo imposto ao espectador, nem algo que seja preciso decifrar para se entender o filme. Interessa-me que tudo isso esteja integrado de forma orgânica na narrativa. Todo o trabalho de preparação, de escrita, de ensaios e depois de rodagem é um trabalho no sentido da simplificação: a partir de coisas complexas.
Como é o caso deste filme: estamos a falar da formação da identidade. O que é que está associado a essa idade? Como é que essa fase da vida molda os nossos primeiros passos como indivíduos autónomos? Até aí, fomos filhos, estudantes... Depois começamos a dar passos por conta própria e essa fase pode durar anos, por vezes, nunca acaba, mas como abordar isso em hora e meia de filme? A resposta é: tentar depurar, simbolizar, encontrar uma forma formal de o exprimir, e é aí que entra a cinefilia, como mais uma camada de sentido. Mas não é preciso conhecer as referências para perceber o que está ali.
O importante é que o espectador consiga desfrutar daquele momento, aquele instante rico de estar numa sala de cinema, a viver aquilo intensamente. Além disso, o próprio cinema tem esse lado onírico, fantasmático. A própria arquitetura da sala contribui para isso…
Em relação à Cinemateca e ao fantasmagórico, existe ainda esta sua personagem que nos soa quase um fantasma da própria Cinemateca. E, acredita, já ouvi relatos de que há mesmo um fantasma lá… [risos]
A sério? [risos]
Sim. Mas passando para outro lugar: os cemitérios. No filme, eles têm uma presença que não é tanto de fim, mas talvez de reentrada — de reinício até — para a personagem do Nicolau. Gostava de explorar também a simbologia arquitectónica do cemitério, como espelho de uma certa amortização anterior, sem ficar preso a um paralelismo direto entre o cemitério e morte.
Porque o que vemos é … deixa-me só fazer uma interpretação … um jovem de 24 anos, já naquela idade em que é suposto começar a definir o que quer da sua vida. Um adulto, mas ainda em transição, que está numa cidade que também se desfragmenta. Tudo o que conhecia está a escapar-lhe: a namorada que o deixou, o círculo de amigos, os lugares, os rituais... e então encontra no cemitério um ponto de fecho dessa vida anterior. A parte dali, não oferecendo-se diretamente para outra pessoa, mas abrindo caminho para outra direção. Não sei se o cemitério em “A Vida Luminosa” representa esse anúncio de morte ou de passagem?
Sim, o cemitério é um lugar com essa riqueza. É polissémico, permite muitas leituras, não é? E tem, de facto, um papel central no filme, mesmo não estando no meio da narrativa. Mas chego lá por razões mais simples. O que me interessa é sempre como, através de rimas narrativas e formais, as coisas vão permitindo leituras mais ricas e mesmo partindo de elementos que, às vezes, são corriqueiros. Por um lado, o cemitério tem para mim um valor semelhante à Cinemateca ou a outros sítios que aparecem no filme. Faz parte da minha relação com a cidade, da minha vida. Tenho uma história associada àquele lugar e queria filmá-lo.
Por outro lado, a questão da arquitetura dos cemitérios começou com uma história real, ou, pelo menos, com o início de uma. Conheci uma rapariga, num desses encontros pela cidade, que estudava cemitérios. Nunca mais a vi, nem sequer morava em Lisboa, mas fiquei com aquilo na cabeça: “Isto é uma boa história!”. E fabulei a partir daí: o que seria uma personagem que faz isso da vida?
A Vida Luminosa (2025)
Claro que o cemitério acaba também por se ligar ao próprio título do filme. A presença da morte é o que torna a vida luminosa. É ali que o Nicolau dá uma guinada, ou é levado - porque ele é também uma personagem que se deixa levar. Está em transição: entre vidas, entre luz e escuridão, entre passado e futuro. E esse momento permite aquele plano que eu gosto muito: o do comboio a passar.
Esse plano é mesmo daquele lugar. Não fazia sentido ir buscá-lo a um outro lado. É uma das coisas de que gosto naquele cemitério: a relação com o rio, com o Vale de Chelas, aquele espaço onde se vê o comboio a atravessar a paisagem. Para mim, esse comboio rima com o outro, onde eles se despedem. E tem também esse lado cinéfilo com os filmes do Ozu, por exemplo … e claro, o tema do partir, da viagem, o movimento dele para um outro lugar.
Ao longo desta conversa o João tem me dado algumas pistas e irei questionar directamente: quanto de João Rosas tem no Francisco?
Enfim, tem um bocadinho dos dois. Não é algo dê propriamente para quantificar, não na medida a conta-gotas. Há um bocadinho de mim em todas as personagens, tal como há um bocadinho das pessoas que as interpretam e o processo todo, aquilo que me interessa, é esse jogo. Um jogo que tem um lado lúdico, de brincadeira, mas que detém um processo de trabalho que me auxilia a chegar a esse realismo o qual procuro. É uma maneira de me relacionar com as próprias pessoas. Para mim é crucial no ato de fazer cinema. Mesmo no “A Vida Luminosa”, isso está evidente: a riqueza do filme está nas pessoas que conheci através dele, a fazer este filme, e que fizeram o filme comigo. Como o cinema, o acto de filmar, foi também uma forma de me relacionar com aquelas pessoas, naquele contexto específico.
Aqui, apesar da diferença substancial de contexto, esse continua a ser o ponto de partida. Tal como as referências cinéfilas, ou o facto de ter uma relação com o cemitério, com a Cinemateca, com a papelaria — seja com o que for — isso, para mim, não é importante para a leitura do filme. Faz parte do processo de trabalho. Este trabalho com o Francisco também é muito claro nesse sentido, porque já temos uma relação com muitos anos, conhecemo-nos muito bem.
Desde o “Maria do Mar” (2015) — ou até desde o “Entrecampos”, mas sobretudo a partir da curta a seguir — há muito do Nicolau que vêm dele. No “Maria do Mar” foram os truques de magia, que ele estava a aprender na altura e que descobrimos na casa onde estávamos a filmar, como tal, integrei isso na narrativa. Depois, em “Catavento”, ele começou a aprender guitarra.
E assim formou uma banda?
Exatamente. Tem mesmo uma banda [“Quase Nicolau”]! Vai dar um concerto amanhã — aproveito para te convidar — no Musicbox. É o lançamento do álbum. O famoso álbum vai ser lançado amanhã [risos].
Portanto, todo o processo de escrita é um diálogo entre mim e as pessoas que interpretam. Claro que o poder de decisão está do meu lado. Sou eu que fixo o texto, que escolho as cenas. Mas esse mesmo texto, antes de ser fixado, é ouvido, lido, cantado, muitas vezes até musicado. Escrevo uma primeira versão, as pessoas leem, altero com base nas expressões delas, integro coisas que trazem para a personagem.
Tal como com a cidade, que é construída a partir da minha cidade e da cidade que os outros trazem, também as personagens são isso: a minha voz a encontrar a voz do outro. E desse diálogo construímos este universo luminoso.
Um termo que sempre referi a este seu projeto foi “um ‘Boyhood’ às fatias”. Praticamente só o comparo com o Linklater, devido a este progressivo acompanhamento de um realizador para com o seu actor / personagem / tempo. Nesse sentido faço-te já aquela pergunta da praxe dos “novos projectos”, mas desta forma: vamos voltar a seguir o Nicolau?
Não sei. Como te disse, isto não foi um movimento premeditado. E não sei muito bem... isto depende sempre das ideias que tenho, do que a cidade me dá, das pessoas que vou conhecendo. Por um lado, tenho vontade de sair um bocado deste universo e filmar outras personagens, outras idades — sobretudo. Por outro lado, claro que quando estou com o Francisco, dá-me sempre vontade de continuar a trabalhar com ele. Basta ele começar a falar da sua própria vida para começar também a efabular a partir daí. O próximo filme que vou fazer, posso já garantir, não será com ele. Mas isso não quer dizer que mais tarde não volte.
Quem sabe, ele pode casar. [risos]
[risos] Tem muitas peripécias pela frente.
A bandamusical Quase Nicolau
Quanto à cena da papelaria, ou melhor, a livraria Tigre de Papel: há ali um trio de personagens que aparece …
Grandes atores [risos, pelo facto de uma dessas personagens ser interpretada pelo próprio João Rosas].
[risos] … ou seja, de certa forma, nos seus filmes — já no “Maria do Mar” havia aquela personagem que andava dentro de um fato de boneco — criou quase um universo expandido, em que essas personagens podiam protagonizar os seus próprios filmes. Ou até pertencer a géneros completamente diferentes.
Senti que, especialmente em “A Vida Luminosa”, apesar do foco estar no Nicolau, as personagens à sua volta são muito ricas. O filme é sobre as peripécias do protagonista, sobre o que ele vai fazer com a vida, mas não tanto sobre um conflito interior muito definido. Aliás, tenho de dizer: esta é uma personagem profundamente passiva. É uma dúvida existencial, não é? E isso vai contra muitos modelos contemporâneos de protagonistas ativos, pró-ativos. Mas voltando à criação: com esse universo, a possibilidade de ir para outros filmes?
Sim, sem dúvida. Há ali muitos filmes em potência e o que demonstra a riqueza das pessoas que estão no filme. Por um lado, ambicionava ter esse leque de grandes personagens; por outro, era também uma forma de, narrativamente, abordar esta complexidade … e apresentá-la em hora e meia.
Quanto a esta passividade do Nicolau — essa característica de estar num lugar de escuta, de fala, de absorção do outro? Ele é alguém que ouve, que se interessa pelos outros. E isso é um ponto de partida, não só para os meus filmes, mas para o cinema que me fascina: o cinema da curiosidade pelo outro.
Parece-me que isso é particularmente importante hoje, politicamente até (essa abertura, essa escuta, deixar o outro falar). E ao contrário de tantos “machos alfa” que por aí andam, temos aqui um rapaz rodeado de mulheres, e ele está ali para as ouvir, não para fazer discursos sobre elas. Esse leque de personagens era também uma forma de colocar essas figuras a falar sobre o estado em que o Nicolau se encontra. Todas estão em fases de transição, a falar de relações, de sentimentos.
Depois, gosto muito da ideia de um filme coral. Filmes como os do Robert Altman, ou como “La Règle du Jeu” (1939) de Jean Renoir — talvez o exemplo mais perfeito — ou os filmes argentinos contemporâneos, da Mariana Llinás, como “La Flor” (2018), ou do “Rodrigo Moreno” (“Los Delincuentes”, 2023), todos eles exploram esse lado coral. Era uma coisa que me interessava continuar a explorar e levar mais longe e fico contente que digas isso, porque realmente queria que essas personagens não fossem apenas "cromos".
Queria que esse trabalho sobre a linguagem e, sobretudo, sobre o casting, lhes desse espessura. Que fossem como as grandes personagens secundárias dos bons filmes americanos, no cinema clássico, no Ford, por exemplo, em que possuem corpo, têm profundidade. E isso, muitas vezes, tem mais a ver com a presença, com a verdade da pessoa, do que apenas com o texto.
Portanto, sim, esse é um esforço que realizo e fico contente por ter resultado. Fico com vontade de continuar a filmar estas pessoas.
Há um termo que usei quando escrevi sobre “A Vida Luminosa” e espero que não seja considerado ofensivo para si, mas chamei-lhe um “filme de amigos” …
Não é ofensivo, é religioso.
Porque neste universo que criou com estas personagens, ou melhor, com as pessoas que as interpretam, representam todo um biótipo da Lisboa cultural. Qualquer pessoa que vive nesse meio reconhece quem são aquelas pessoas. E depois é quase anedótico e satírico para com muitas destas pessoas: o Nuno Lisboa, por exemplo, faz uma personagem que é quase um pseudo-crítico.
Sim, sim, sim.
Ou seja, há ali um certo tom de brincadeira e o que torna quase um “filme de amigos”.
Sim. Ou seja, espero que não seja um filme para amigos, mas é, sim, um filme de amigos.
Gostava de pegar nisso: a amizade, as relações …
Não o fiz para os meus amigos, mas fiz com amigos e através do qual fiz amigos. Tenho-me apercebido disso ao longo do percurso. Não foi uma coisa planeada, nem uma nota de intenções inicial. Mas quando penso nestes quatro filmes, ou quando tenho de me referir a eles, acho que os podemos descrever como uma tetralogia da amizade. Não digo “do Nicolau”, porque a Mariana também é protagonista no primeiro filme. São filmes sobre a amizade e a amizade é algo que me interessa imenso.
A Vida Luminosa (2025)
Gostava até de explorá-la mais, filosoficamente. Há toda uma tradição filosófica sobre a amizade. Mas é um tipo de relação que valorizo muito, também na minha vida pessoal. Muitas vezes, até mais do que a família, ou pelo menos, os amigos tornam-se uma família e com quem se tem um tipo de relação muito particular.
É algo que é rico, narrativamente, e, mais uma vez, politicamente, parece-me importante: essa ideia de encontro com o outro, de relação horizontal. A cidade como espaço de encontro e de relação. E o cinema também. Porque através dos filmes nascem amizades. Tal como na sala de cinema, onde se encontram desconhecidos que partilham uma experiência. Gosto de pensar que os filmes são feitos nesse espírito, não só as histórias, mas o próprio processo. As grandes relações são as de amizade e são os amigos que, muitas vezes, nos levam por caminhos inesperados.
Eu próprio fui estudar cinema por causa de um amigo. Nunca tinha pensado nisso como possibilidade.
A amizade como parte fílmica...
E em termos de encontros... O lado fílmico é também político, ou seja… Trago muitos amigos para os filmes, e gosto de partilhar, com os outros, o que gosto neles. Tal como com a cidade, escolho lugares de que gosto, aos quais associo emoções, e quero mostrá-los.
Lembro-me de uma aula do José Mário Grilo, em que ele dizia: “O cineasta, mais do que aquele que quer ver, é aquele que quer dar a ver.” Identifico-me muito com isso. É esse desejo de partilha — de certos lugares, de pessoas — que são, no fundo, aquilo que torna a vida luminosa.
O Orson Welles dizia que preferia trabalhar com um amigo do que com o melhor ator do mundo.
Sim, também concordo. Aliás, apesar de já ter trabalhado com alguns atores profissionais (e eles entram nos filmes para papeis muito específicos), desde que fiz o “Entrecampos”, e comecei a trabalhar com crianças, percebi logo que queria trabalhar com não-atores. Na altura, não havia “crianças-atores”, ou melhor, havia aquelas crianças prodígio que não me interessavam. Fui-me habituando a esse trabalho com não-atores. Tudo o que eles trazem ao filme … essa riqueza humana, essa entrega... dão uma parte de si próprios.
Por vezes, o ator está treinado para dar só o que é pedido, de forma muito controlada e técnica.
E acreditas que os não-atores trazem autenticidade aos papeis? Pergunto isto porque numa entrevista com a Denise Fernandes, sobre o seu “Hanami”, ela disse que trabalhou com não-atores precisamente por causa dessa captação da autenticidade.
Sim, acho que sim. Trazem esse realismo que procuro. Não vi o filme dela, mas percebo perfeitamente o que quer dizer. Seja a palavra “autenticidade”, “realismo” ou outra coisa...
No fundo, é essa verdade que a pessoa traz, por não estar formatada para representar. Não está “a fazer de”, está a ser.
Há uma coisa que o Bresson dizia, que concordo e de que maneira: “De manhã vês o Brad Pitt a fazer de rei em Tróia, à tarde está a fazer de cowboy, à noite está num talk show...” É sempre o mesmo tipo, a fazer de outra coisa. O que me interessa é o contrário. É o Francisco a fazer de Nicolau e o Nicolau é sempre o Francisco. Para mim, é inseparável.
Não dá para fazer de outro e é isso que me interessa.
Pickpocket (Robert Bresson, 1959)
Antes de caminhar pela questão política. Visto que existe um lado político no seu filme, que é bastante subtil, e tendo em conta os tempos que vivemos. Mas com base no que disse gostaria de lançar aqui um pequeno desafio: nos seus futuros projetos, nem que seja hipotéticamente, o Nicolau poderá estar ligado ao cinema?
Não sei... Não me parece que seja o perfil dele, mas... não sei.
Ele está a explorar agora a Cinemateca… [risos]
Pode ser que o encaminhe! Sim, sim... Mas sair de lá cabisbaixo... Aquilo foi uma… Não sei o que poderá vir a ser do Nicolau. Continuará a existir, mas há ali qualquer coisa por inventar.
Sobre a questão política, como referiu há pouco, como sabe, estamos em tempos um pouco... tenebrosos. Fala-se cada vez mais da direita e da esquerda como duas tribos sem possibilidade de trégua. O seu filme, de certa forma — tendo em conta algumas leituras recentes, e até algumas feitas por amigos meus — foi colocado como "filme de esquerda".
Ah, ok. Não sei se... Bem, sim, quer dizer… Uma das grandes questões políticas hoje em dia é mesmo essa: o que é a esquerda? O que é que a esquerda pode ser? E se o filme é “de esquerda”, por um lado também é um filme bastante burguês. É um filme de classe média. Não há uma questão social muito marcada, é um meio específico, privilegiado. São problemas de primeiro mundo. Problemas do Nicolau.
Mas fico contente. Para mim, o que há de esquerda no filme é isso: um certo desapego material, e o valor da amizade. Portanto, é um filme de esquerda por ser um filme humanista.
Humanista, exatamente. Esta pergunta não foi ao acaso, ultimamente tenho presenciado diversas críticas a diferentes filmes colocando-os nas devidas caixas “direita” e “esquerda”. Parece que regressamos aos anos 70 [risos], a questão é que isto tudo soa a espuma dos dias?
Acho que é uma coisa um bocadinho maniqueísta. Quer dizer, conheço pessoas de direita que gostaram do filme. O Pedro Mexia, por exemplo, escreveu um texto sobre o filme — e ele é de direita, é um intelectual à direita — mas realça coisas que outras pessoas não realçam, e vice-versa. Acho que é mais uma questão de chave de leitura, que muda de pessoa para pessoa, e que não se resume à esquerda e à direita. Tem a ver com o contexto social, com o olhar de cada um.
Pergunta pertinente: o humanismo é apenas propriedade da esquerda?
Também pode haver humanismo à direita, claro. Há alguns... poucos. Mas a questão é que a direita parece ter enterrado o humanismo.
Ou a empatia.
Sim.
Deixar a empatia de lado. É quase apanágio das entrevistas sobre cinema português falar sobre a própria condição do cinema português. Recentemente aconteceu os Encontros de Cinema em Português, promovidos pela NOS, sempre com um debate em prol da “americanização” do cinema português ou de tornar o cinema português mais “apelativo ao grande público”. Tendo em conta que o teu filme é tudo menos ‘americanizado’ nesses termos básicos, como vês esta questão de fazer cinema em Portugal? Como é que o cinema português pode chegar ao público? E como se define, afinal, “o público português”?
Isso é um bocado... Não diria que é uma falsa questão, mas… como é que o cinema pode chegar ao público? Bem, fazendo bons filmes.
Mas a questão é muito mais complexa. O “público português” é algo muito vago, muito variado. As pessoas não vão ver filmes portugueses por artes mágicas. Isso tem a ver com questões muito mais profundas, com o papel da cultura, da educação, da arte e da política na sociedade portuguesa, e com a forma como tudo isso é transmitido.
A ideia de que o cinema português pode criar uma indústria ou copiar outros modelos é, para mim, absurda. Porque, apesar de tudo, o cinema português — para a escala do país, e para a quantidade de filmes produzidos — consegue ter uma variedade grande de olhares originais, interessantes, que têm projeção internacional, que circulam e que são reconhecidos. Claro que isso também tem o seu lado negativo: às vezes, “cinema português” corresponde a uma espécie de gaveta, em certos festivais. Se não tiver ruralidade, ou senhores vestidos de preto, já não entra. Tal como nós consumimos cinema iraniano com uma imagem muito específica, para nós, “cinema iraniano” é isto ou aquilo.
Com essas chaves identitárias.
Exato. O processo que está em curso atravessa toda a sociedade. E, confesso, não estou mais preocupado com o cinema do que com o resto das áreas do país. Esta mercantilização, esta financeirização de tudo, num país onde as estruturas sociais estão frágeis: hospitais, escolas, cultura ... tem consequências. É aí que a direita se esquece do humanismo: quando tudo é um produto financeiro, os resultados são desastrosos. No cinema estamos a ver isso acontecer. Quando o cinema é usado para atrair investimento estrangeiro, para promover uma imagem turística do país, para valorizar o património como marca, está-se a desvirtuar o próprio cinema. Essa é a função das agências de turismo, ou de quem trabalha na promoção institucional. A função do cinema não é vender o país, nem atrair capital. E pronto... esta inexistência real do Ministério da Cultura não augura nada de bom.
"A Morte de uma Cidade" (2022)
Já no programa anterior de governo, esse processo estava em curso. Agora, acho que só vai ser mais acelerado. Vamos tentar combater e resistir. Ainda há espaço para fazer cinema, não só produtos uniformizados, anónimos, iguais aos que são feitos noutros países, com 3 ou 4 elementos nacionais apenas para dar o folclore ou a cor local. Filmes que, no fundo, são produtos indiferenciados, e que, ainda por cima, nunca vão ser tão bem feitos como os de lá fora.
Sempre que um filme português tenta ser um bocadinho mais comercial... é, pá... aquilo é sempre terrível. [risos]
Já que falámos do João Mário Grilo, esta conversa lembra-me muitas vezes um capítulo do seu livro “O Cinema da Não Ilusão” (Livros Horizonte). É um diálogo entre o Pedro Costa, o João Botelho e o próprio João Mário Grilo, e às tantas, o Botelho fala desta tendência de alguns filmes portugueses tentarem parecer produções americanas mas sem os mesmos recursos: “patetice por patetice preferem os americanos, que são patetas grandes.” Gosto tanto dessa frase que a uso muitas vezes, quando se fala da ‘americanização’ do cinema.
Mas esta pergunta era só para fechar, porque... enfim, a questão dos Ministérios agora — com o Ministério da Cultura fundido com a Juventude e o Desporto — não sei o que aquilo vai dar e tendo em conta que, mesmo dentro da Cultura, o cinema português já estava lá bem em baixo … o último da fila.
Enfim… mas, como digo, os tempos estão tão sombrios que... confesso, não diria que é a menor das minhas preocupações, mas também não está no topo.
Vamos esperar que a vida futura seja luminosa.
Cá estaremos para tentar que o cinema continue a dar esse lugar de encontros luminosos.
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Ainda sobre Enzo G. Castellari, e em particular o seu “Keoma”, o western spaghetti apocalíptico, podem ouvir este episódio especial do podcast V.H.S (Vilões, Herois e Sarrabulho) em que discuto a minha experiência com cineasta ao lado dos anfitriões Daniel Louro e Paulo Fajardo. Há um excerto da minha entrevista (desculpas antecipadas acerca do meu “inglês empírico”) e os Encontros de Cinema do Fundão no coração. Um muito obrigado pelo convite e pela oportunidade.
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