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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Charlie Shackleton: "Diria que 90% da crítica escrita não é particularmente interessante."

Hugo Gomes, 09.05.25

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O tipo da ‘tinta a secar’”, foi com estes termos que muitos reagiram à notícia da presença de Charlie Shackleton no 22º IndieLisboa, onde veio presentear os espectadores com a sua obra, incluindo as (in)fames dez horas de “Paint Drying”, o seu “filme-protesto” no qual forçou os censores britânicos a vê-lo esse tempo equivalente a “tinta a secar” na íntegra. A notícia desse feito corria entre nós em 2016 e, embora hoje esse trabalho seja tratado como um fenómeno viral, Shackleton é muito mais do que esse cognome: é um crítico tornado ensaísta e, por sua vez, um cineasta com uma personalidade singular, neste mundo em plena desconstrução e reflexão canónica.

Lida com as frustrações das obras inconclusas através de interiorizações sobre a indústria e a fórmula, essa “sopa quente” para espectadores passivos, uma ferramenta que o próprio realizador assume até apreciar, nem que seja para pensar nas suas próprias matrizes. Num encontro na Cinemateca de Lisboa, horas antes da abertura do ciclo que teria a honra de inaugurar com as jornadas do true crime em “Zodiac Killer Project” (2025), o Cinematograficamente Falando … conversou com o jovem das mil e um empenhos sobre o mais recente trabalho, outros projectos e, igualmente, sobre crítica de cinema e cânone… onde o colocar? Ah, e sem esquecer o fantasma godardiano dos “não-filmes”.

Para primeiro tópico desta conversa gostaria de tocar no “elefante na sala”: o ‘Paint Drying’. Vi várias entrevistas contigo em que referes este filme como a tua maldição, porque tudo o que fizeres a seguir não adianta, serás sempre relembrado como o “tipo que fez o ‘Paint Drying’”. O que no fundo é um filme de protesto, certo?

Sim, exatamente. Quando digo que é uma “maldição”, é com algum carinho. Porque foi um projeto que significou muito para mim. Foi pensado como um protesto contra o British Board of Film Classification (BBFC), o organismo de classificação britânico. A primeira vaga de atenção mediática, em 2016, esteve obviamente ligada a isso — ao que o protesto pretendia denunciar, e fiquei muito contente por ter tido tanta cobertura da imprensa na altura.

Pois, ouvi falar do filme ainda em 2016!

Ah, ouviste falar ainda nessa altura?

Sim, e queria por aí  mesmo... a tua visão sobre os mecanismos de censura no Reino Unido. Para ti, a entidade britânica BBFC é uma continuação dessa lógica censória?

Sim, acho que sim. A entidade britânica mudou de nome em 1984 — passou de British Board of Film Censors para British Board of Film Classification. Fizeram essa mudança de nome, mas, na minha opinião, o modo de funcionamento continua a ser o mesmo. Eles continuam a ter a palavra final sobre o que pode ou não ser exibido. É obrigatório passar por eles.

E tens de pagar por isso?

Exatamente, tens de pagar! E o impacto mais direto é para os realizadores independentes que querem exibir os seus filmes sem distribuidor. Nessas situações, são os próprios realizadores que têm de arcar com os custos, e muitas vezes esse dinheiro simplesmente não existe. Se quiser exibir um filme em três salas, posso nem conseguir recuperar o suficiente para pagar o certificado necessário. Sempre tive uma relação de confronto com essa entidade, mas mesmo assim, mesmo na altura em que o filme teve muita atenção mediática, nunca imaginei que as pessoas ainda falariam dele dez anos depois — e por tantas razões diferentes. Hoje em dia, o principal legado do filme é este fenómeno no Letterboxd, que na verdade nem tem a ver com o projeto em si. É só um acaso histórico: as pessoas escolheram aquela página para comentar tudo aquilo.

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"Paint Drying" (2016)

Mas depois desse protesto, o filme foi distribuído normalmente?

Não. Esta será apenas a segunda vez que o filme será exibido publicamente. Foi mostrado pela primeira vez há alguns anos, na Austrália, como parte de uma exposição. Aqui, conto como a segunda exibição. Até então, ninguém o tinha visto além dos censores.

O teu filme vai ser exibido na Sala Rank do Cinema São Jorge ... Bem, não numa sala qualquer, mas sim a que era usada para os censores durante o Estado Novo?

Sim, era mesmo a sala deles, não era? O que é incrível.

Ou seja, continua-se a manter o mesmo simbolismo da tua primeira acção de protesto, certo?

Exato. É o cenário perfeito. Nem consegui acreditar que estava disponível. E tem sido interessante, por causa daquele fenómeno no Letterboxd, que se tornou tão grande, as pessoas começaram a descobrir o projeto em si. E isso reacendeu o gesto de protesto, o que aprecio muito.

Vou confessar, ainda não vi o “Paint Drying”...

Ninguém viu. Não te preocupes. [risos]

Sobre o seu mais recente projeto, premiado no último Sundance, “Zodiac Killer Project”, o qual fez-me lembrar um conceito de Godard — os não-filmes. Filmes que só existem na mente do criador e que, por vezes, são melhores do que o próprio projeto materializado. Li sobre isso numa conversa que ele teve com a Marguerite Duras. Ele dava o exemplo do “Last Emperor” do Bertolucci, afirmava com “todos os dentes” que o filme imaginado pelo realizador, o não-filme, era um filme, e que o se concretizou deixou de ser um filme no momento em que se fez acontecer. É uma teoria arriscada, mas pertinente. E, no teu caso, senti que o teu projeto também começou como um não-filme, com a sua impossibilidade de adaptar aquele livro (“The Zodiac Killer Cover-Up: The Silenced Badge” de Lyndon E. Lafferty). E por isso acabaste por fazer uma desconstrução, usando essa tendência atual dos “true crime shows”, quase como um filme hipotético. Refiro isto, porque diversas vezes vejo este conceito dos não-filmes presente noutros trabalhos seus.

Sim, completamente. Acho que quase todos os realizadores têm vários não-filmes ao longo da carreira. Na verdade, é mais comum não conseguir fazer um filme do que conseguir, e eu nunca consegui aceitar totalmente essa frustração. No passado, peguei em ideias de projetos que não avançaram e transformei-as noutras coisas, ou usei a investigação que já tinha feito para criar algo diferente. Mas este foi o primeiro caso em que a inexistência do filme se tornou o próprio tema.

Obrigado por referires a Duras e o Godard, durante o processo vi “Le Camion” (1977) e “King Lear” (1987), ambos ótimos exemplos de filmes sobre não-filmes. Para mim, isso é uma extensão do desejo de fazer filmes que incorporam o seu próprio processo criativo dentro do próprio filme. Acredito que tudo o que fiz até agora, possui esse elemento.

Antes de fazer filmes, era crítico de cinema...

Queria mesmo ir por aí!

Pois, exatamente! [risos] Considero que tudo o que faço como realizador ainda mantém esse lado crítico, essa meta-textualidade.

É bom mencionar o teu passado como crítico, porque ao fazeres os teus ensaios audiovisuais, aliás curtas, são, de certa forma, uma nova forma de crítica. Queria perguntar algo isto de uma forma algo abstracta: sentes-te mais crítico ou realizador?

Acho que agora... Bem, para ser sincero, nunca fui um grande crítico de cinema. [risos] Durante algum tempo, quando comecei a realizar, continuei a escrever crítica em paralelo. Mas sempre achei a crítica escrita um pouco... difícil.

Penso que sou muito melhor a expressar ideias críticas através do audiovisual do que pela escrita. Hoje, já nem sei qual das duas categorias escolheria, porque para mim são quase impossíveis de separar. Não consigo imaginar fazer um filme que não seja, de algum modo, também um ensaio ou uma forma de crítica.

É engraçado... Hoje em dia, a única situação em que escolho um termo ou outro é em candidaturas a financiamento, e depende do que acho que a entidade quer ouvir. Se for um fundo que nunca financiaria um ensaio audiovisual, então escrevo “documentário” ou “longa-metragem” ou o que achar que vai resultar. Mas os termos, para mim, estão totalmente entrelaçados.

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Zodiac Killer Project (2025)

Porque o filme, ou o ensaio audiovisual, como preferires chamar, é seguro. Aqui dizemos que o audiovisual é "seguro", no sentido literal. Mas muitos críticos de cinema usam o próprio cinema como uma forma de expandir a crítica, como se o cinema também pudesse ser a linguagem da crítica. Só que, nos últimos tempos, surge sempre aquela dúvida: estamos ainda perante um filme ou apenas perante uma extensão dessa mesma crítica?

Sim, percebo o que dizes. É curioso que o ensaio audiovisual, tal como a crítica escrita, à medida que se tornou mais popular e dominante, acabou também muito monopolizado por trabalhos que, para mim, não são assim tão interessantes. Esse estilo didático dos vídeos no YouTubemea culpa também — que te dizem com certeza o que algo significa ou como funciona, não me atrai muito. Não explora aquilo que o formato pode realmente oferecer.

Mas isso é tão verdade para a crítica escrita como para o ensaio. Diria que 90% da crítica escrita também não é particularmente interessante. É nos restantes 10% que encontramos algo estimulante, aqueles críticos que têm uma forma especial de interpretar e compreender a arte.

Para mim, quando a crítica é boa, seja no formato que for, percebe-se logo. O meio usado, se é texto, vídeo, som, torna-se secundário.

Quero continuar por essa via da crítica, até porque és crítico e, ao mesmo tempo, muito crítico da própria crítica. Mas agora quero tocar noutro ponto. Só que antes disso … o teu nome é Charlie Shackleton, mas vários filmes teus estão assinados como Charlie Lyne.

Pois, é verdade. Cresci como Charlie Shackleton, mas por razões familiares complicadas comecei a usar o nome do meu pai, Lyne, durante os meus finais de adolescência e início dos 20 anos. Foi nessa altura que alguns dos meus filmes saíram com esse nome. Mais tarde voltei a usar o apelido da minha mãe, Shackleton. Portanto, essa diferença nos créditos é só isso, nomes de família, nada de alter-egos. Sou sempre eu, o mesmo autor.

Infelizmente, mesmo que quisesse, não posso renegá-los! Fiz aqueles filmes, goste ou não deles hoje.

Então há algum desses ensaios que hoje preferias não estar associado? Um com o qual já não te identificas?

Tenho uma relação complicada com todos os filmes mais antigos, como acontece com muita gente. Alguns têm mais de 10 anos e sou uma pessoa muito diferente da que era com 22 anos. Ver esses trabalhos hoje é um misto estranho de emoções. É como olhar para fotografias antigas da adolescência, reconheces a pessoa, tens carinho, mas também um certo desconforto.

Como as fotos do secundário? [Risos]

Exactamente! [Risos] E, ironicamente, um desses filmes é sobre filmes teen, o que intensifica essa sensação de proximidade e distância ao mesmo tempo.

Sim, o “Beyond Clueless" (2014). Em entrevistas sobre esse filme, o Charlie falou de "fórmulas" e como elas criam conforto no espectador. Porque quem vê sente-se seguro, sabe o que esperar, e no seu trabalho, mesmo quando identificadas essas fórmulas, parece que as destroi simultaneamente. Como se dissesses: “Sim, isto é uma fórmula, mas vamos olhar para ela de outro modo”. É isso?

Sim. Muito do que fiz acaba, de forma quase acidental, por ser sobre isso: como funcionam os géneros, as fórmulas do cinema. Para mim, o mais interessante é mesmo esse movimento de avanço e recuo — dar ao espectador algo familiar, para depois o surpreender ou desafiar com uma torção dessa familiaridade.

Dou-te um exemplo: no “Zodiac Killer Project”, o formato é bastante pouco convencional, é muito estático, não há grande coisa a acontecer visualmente, é apenas eu a falar de forma contínua. Pode ser alienante. Mas o que fiz foi usar as fórmulas dos true crime para criar uma falsa sensação de conforto. O espectador pensa que sabe o que está a ver, até perceber que está a ser conduzido por um caminho bem diferente.

Essa tensão é uma ferramenta poderosa. Porque todos nós, quer queiramos quer não, estamos sujeitos a essas fórmulas narrativas o tempo todo.

Penso muitas vezes sobre fórmulas, especialmente nos últimos dias, tenho pensado naquela fórmula dos filmes da Marvel, por exemplo. Vi recentemente o “Thunderbolt*”, e o que vi foi a mesma coisa, repetidamente. Muitas pessoas se sentem seguras com isso, e por vezes o formulaico gera consensos. Mas fico curioso sobre o “Zodiac Killer Project”, parece-me que é uma jornada para construir um filme, um filme de não-resistência na tua mente. Mas de certa forma, há críticas sobre essa tendência, sobre o próprio true crime, que continua a ser um subgénero muito confortável. E que cresceu, pode muito ser mais grotesco na temática, mas mantém-se como confortável para a maioria das pessoas.

Sim, acho que as pessoas realmente encontram conforto nisso. Em parte por causa daquele fascínio estranho pelo macabro, como também porque, se você viu um desses programas, já viu todos. Penso que parte do apelo de se fazer esse tipo de conteúdo para os grandes serviços de streaming, por exemplo, o qual exige muito pouca atenção. Você pode deixá-lo a “rolar” ao fundo, sair, voltar, e ainda assim saber exatamente o que está a acontecer. Não se vai perder o fio da narrativa, o que é uma maneira curiosa de pensar sobre entretenimento de conforto, quando, como disseste, é algo tão sombrio na maioria das vezes. Só que é uma história muito formatada, e dá para encaixar qualquer crime real nela, seguir os mesmos pontos narrativos com fiabilidade. Se observar... a maioria dos streamers disponibiliza guias ou livros de estrutura narrativa que dizem literalmente a uma produtora como estruturar uma história sem sequer saber qual é a história. Se for sobre um assassinato, está lá como dividir em cinco episódios, e claro que a realidade não devia encaixar-se num molde tão pré-definido, mas pode ser forçada a isso.

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Beyond Clueless (2014)

É como os biopics! As pessoas são diferentes, mas sentimos que as vidas são iguais.

Certo, exatamente. Haverá sempre algo que parece suficientemente próximo.

Mas és bastante crítico ao mundo do streaming. Mesmo em “Frames and Containers” (2017), fizeste uma desconstrução sobre o filme do Xavier Dolan, “Mommy”, e quando este foi parar à Netflix, em que eles cortaram a questão do enquadramento, que funciona naquele caso como uma elemento associadamente narrativo. Mas o próprio streaming parece não pensar para além das fórmulas, até nas produções exclusivas da Netflix, sentimos esse modelo construído com um só propósito, ser entendido da maneira mais leviana e sem distrações. Podemos ir à casa de banho, lavar a louça, e ainda assim não perdemos o fio do filme. 

É engraçado, pensar que quando fiz “Frames and Containers”, já parece que foi há mil anos que a Netflix adquiriu “Mommy” e colocou-o no serviço. Isso parece muito mais interessante agora do que a maioria do que se encontra lá. Houve um momento, certamente nos documentários, lembro-me em festivais de cinema por volta de 2017, 2018, quando a Netflix começou a investir a sério em documentários: o consenso era que eram os únicos dispostos a apostar em coisas fora da fórmula. Queriam ser ousados e diferentes, e ganhar prémios, então apostavam em coisas arriscadas. Tal desapareceu muito rapidamente. Como o próprio filme. Tornou-se tudo muito direto. Entenderam que podiam ganhar prémios com “My Octopus Teacher” em vez disso, e teriam muito mais audiência com algo assim. Não sou contra o streaming, em teoria, vejo muitos mais filmes em casa do que no cinema. Mas em termos do modelo de streaming dos últimos anos, o que tem sido favorecido é o trabalho replicável, baseado em fórmulas.

O que pensas sobre o algoritmo?

Sobre o algoritmo? É engraçado. Não sinto que saiba o suficiente sobre como ele funciona atualmente. As pessoas falam sempre de como estes algoritmos são super ajustados e sabem tudo sobre nós. Mas sempre que abro o Netflix, vejo exatamente as mesmas coisas que toda a gente. Não me parece... Suponho que, enquanto fazia o “Zodiac Killer Project”, vi tanto true crime que agora o Netflix só me mostra isso. Então, provavelmente, sou um espectador muito aborrecido para o Netflix. Tenho um interesse, e mostram-me aquilo repetidamente. Mas não sei. Já não parece haver conteúdo suficiente lá para ser hiper-específico.

E voltando à crítica, tens outra curta antiga intitulada de “Criticism in the TikTok Age” (2019). Também achei muito interessante porque usaste a estética do TikTok para fazer uma autocrítica ao TikTok.

Sim. Usei a forma dele. Aquilo já me parece tão desatualizado, obviamente, porque foi feito no mês em que ouvi falar do TikTok, que acho que já existia há algum tempo, mas só ouvi falar em 2019. Então pensei: “Ah, aqui está esta coisa nova, vou tentar entendê-la.” E agora o TikTok é este fenómeno inescapável. Tenho a certeza de que muitas das observações que fiz naquele filme já não são relevantes para o que acontece atualmente na plataforma. Eu nem tenho TikTok, então não sei bem. Mas lembro-me de ter achado fascinante que fosse essencialmente uma app de criação de vídeo, apesar de ser uma rede social. Foi isso que me levou a fazer o vídeo no formato vertical como do ecrã do telemóvel. Ainda assim acho isso fascinante. Não sei se todos os jovens no TikTok estão a criar vídeos ou se a maioria está só a assistir. Porque não entendo como funciona como rede social.

Como eles se comunicam entre si?

Estou completamente por fora agora. Tive uma janela breve em que percebia o que era, mas agora já não sei. [Risos]

Conheço pessoas muito jovens que fazem crítica de cinema no TikTok. Mais “reviews” do que ensaios. Do tipo sair de uma sessão e dizer “esse filme é assim ou assado”. Mas como isso funciona? Os vídeos são tão curtos.

Sabes uma coisa … quando a Letterboxd entrevistou-me sobre “Paint Drying”, e colocaram o vídeo no TikTok e Instagram, esse mesmo foi mais visto do que qualquer outro filme que fiz. Ou qualquer outra coisa em que estive envolvido. Já fui reconhecido por causa desse vídeo em apps de namoro, na rua... Nem sei quem é esse público, mas é enorme. É loucura. Tipo, 5 milhões de pessoas viram esse vídeo. Nenhuma delas sabe quem eu sou.

Honestamente, o número de pessoas que me disseram que viram esse vídeo por aí é surreal. Alguém está a ver.

Posso adiantar que vi esse vídeo! [Risos] Mas voltando à fórmula, tens outro filme que gostaria de falar: “Copycat”. Usas alguém [Rolfe Kanefsky] que fez um filme contra as fórmulas dos filmes de terror [“There 's Nothing Out There”, 1991] e depois volta, como espectador, a esse lugar seguro da fórmula. Porém, a história por detrás desse filme parece uma história digna de uma teoria da conspiração. E até tem direito a plot twist.

Sim, é engraçado. Porque o Rolfe sente que foi plagiado pelo Wes Craven [em “Scream”]. O que me interessava nisso é que é um sentimento muito reconhecível. Ter uma ideia e alguém aparecer com a mesma ideia, mas executá-la de um modo que tu não consegues. Acho que todos nós já sentimos isso de alguma forma. Especialmente, como disse, quando envolve algo que tantas pessoas conhecem — os tropos de um género — há mais probabilidade de várias pessoas terem a mesma ideia. Por isso é que tantos filmes de terror se parecem uns com os outros. Uma coisa de que me arrependo um pouco nesse curta é que, como era novo no cinema e ainda não tinha apurado o meu estilo, acho que o filme acaba por parecer uma defesa da tese do Rolf e um ataque a Wes Craven. O que não era realmente o que pretendia fazer. Estava muito mais interessado no impulso emocional do que em descobrir quem copiou quem.

Se fizesse hoje, acho que focaria mais nesse sentimento do que na questão factual.

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There 's Nothing Out There (Rolfe Kanefsky, 1991)

Mas é um filme muito interessante porque de alguma maneira nos faz refletir sobre “Scream” e o seu papel no cânone do género. Mas foi como disse, é um mundo pequeno. Todos estão a ser influenciados por todos. Hoje em dia já não acredito muito em plágios, mas é curiosa a ideia dele — de que o Wes Craven “roubou-lhe” o filme.

É um sentimento irresistível.

Sim, é um sentimento irresistível. Confesso que detenho uma espécie de sedução pelas teorias da conspiração em si. Não somente porque as acho maioritariamente engraçadas, mas porque é um tratado psico-sociológico o facto das pessoas acreditarem mesmo nelas. Não estou a dizer que metade do que ele diz [Rolfe] é verdade ou mentira, é tão obviamente falso ou verdadeiro — e mesmo assim é delicioso.

Sim, acho que é mais... Até porque o Rolfe conta essa história há 20 anos. Provavelmente já nem sabe quanto acredita nela, porque, para ser justo, ele não esconde essa incerteza: “Não sei se foi mesmo plágio ou se foi coincidência.” Mesmo assim, persiste em contá-la. Acho que agora ele está mais a repetir a história do que a sentir de novo, e isso é uma característica presente em muitas teorias da conspiração também. Decoramos a história, repetimo-la, e muitas vezes nem lembramos como nos sentimos da primeira vez. Só se tornou um refrão.

Vejo nesse filme um sintoma gradualmente presente hoje em dia, principalmente na crítica ou até nos meios acadêmicos, o de tentar recontar a história do cinema, o cânone e as devidas influências. Esse teu filme trabalha como se estivéssemos a refletir sobre essa reconstrução.

Não sei se tenho esse sentimento sobre recontar a história do cinema, para dizer a verdade.

Qual é o teu sentimento em relação ao cânone?

Na verdade, é exatamente isso que Rolfe estava a fazer: tentar inserir o seu filme no cânone. E, de certa forma, ajudei-o a fazer isso. Ainda não é canónico, mas está mais perto do que antes. Tenho muito interesse nisso: como os cânones se formam, e, em geral, sou bastante desconfiado deles. Comecei a aproveitar muito mais o cinema e a cinefilia quando deixei de lado essa ideia de “ver os 100 filmes obrigatórios”, ou “ver todos os filmes de um realizador”. Hoje tenho uma relação mais estimulante com o cinema porque aceito que é algo pessoal e idiossincrático. Vamos sempre ter lacunas. Todos morremos sem ver vários “clássicos”. Portanto, hoje em dia, aproveito muito mais tendo deixado esse sentimento de cânone para trás.

E quanto a novos projetos? O “Zodiac Killer Project” vai gerar outro projeto?

Há um filme que tenho tentado fazer há algum tempo, mas que pus em pausa enquanto fazia o projeto do “Zodíaco”. É um filme sobre a força policial britânica da obscenidade — que era uma divisão da polícia metropolitana de Londres chamada Obscene Publications Squad [também conhecido como Dirty Squad]. Basicamente, eles aplicavam a lei da obscenidade no Reino Unido. No filme proponho uma reflexão sobre isso, sendo o que é ou não obsceno como algo muito subjetivo, e o facto dos tipos de casos com que lidavam foram mudando ao longo das décadas.

Vai ser curta ou longa-metragem?

Será uma longa, sim. Ainda estou a trabalhar nisso, mas é um projeto que tenho vindo a desenvolver há vários anos e que continuo com muita vontade de concretizar.

Gostas dessa ideia de desconstrução, aliás é uma característica bastante presente na tua obra?

Sim. Tem bastante a ver com... até com o projeto “Paint Drying”, obviamente, que também tratava de temas semelhantes. Sinto que este projeto já se vem a formar há muito tempo. Mas, por agora, continua a ser um não-filme.

Um não-filme! O Jean-Luc Godard ia gostar disso.

Esperemos que, um dia, se torne num filme verdadeiro. [Risos]

Denise Fraga: "quando reflectimos sobre a morte, no fundo, estamos sempre a reflectir sobre a vida."

Hugo Gomes, 07.05.25

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Sonhar com Leões (Paolo Marinou-Blanco, 2024)

"Terra à vista!" Do outro lado do Atlântico, a atriz brasileira Denise Fraga parece ter encontrado novos palcos onde se preencher enquanto atriz e artista. Pisou Portugal pela primeira vez como alguém entre os portugueses — e não como turista — com o filme "Índia", a emancipação de Telmo Churro no território da longa-metragem, onde interpretava uma visitante estrangeira com outras intenções para além de conhecer monumentos, datas históricas de uma cidade e um guia em plena crise existencial.

Contudo, não ficou por aqui. Fraga desenvolveu um gosto pela nossa cinematografia e, com um segundo chamariz, regressa a Lisboa com "Sonhar com Leões", o marcado regresso de Paolo Marinou-Blanco, uma comédia absurda e negra sobre a morte, a eutanásia e o que significa estar vivo numa sociedade que impõe uma felicidade consumida e para consumir. A atriz interpreta Gilda, mulher com desejo de morrer sem dor, assim lhe prometeram, que se inscreve numa empresa de aconselhamento de suicídio. No percurso, conhece Amadeu (João Nunes Monteiro), jovem empregador de uma agência funerária, marcado por um crónico medo de ser feliz.

A atriz falou com o Cinematograficamente Falando… numa conversa que atravessa, inevitavelmente, a morte, o tabu e a arte, talvez a de viver com dignidade. 

Isto será uma pequena conversa, muito centrada no filme Sonhar com Leões, mas queria começar com uma pergunta mais sobre a "génese". Ou seja, pelo que percebi, ultimamente tem tido uma ligação forte com Portugal - começou com o filme “Índia”, do Telmo Churro, e numa pesquisa rápida vi também que filmou em Aveiro um outro projeto, “Livros Restantes”, da Márcia Paraíso, que também parece ser uma coprodução luso-brasileira. Tendo em conta esse percurso, queria lhe perguntar: o que é que atrai agora Portugal?

Isso foi uma coisa curiosa que aconteceu. O convite do Telmo [Churro], do Luís Urbano, da produtora O Som e a Fúria, chegou em 2021, em plena pandemia. Achei curioso eles me encontrarem, porque no filme do Telmo eu era a única brasileira, ou seja precisava de uma atriz brasileira, portanto houve essa busca. Acredito que algumas atrizes foram indicadas, e o que realmente fez diferença foi um programa que criei no YouTube durante a pandemia, chamado “Horas em Casa”.

O meu marido também é cineasta [Luiz Villaça], meu filho também [Pedro Fraga Villaça], e nós os três estávamos trancados em casa. Temos um grupo de argumentistas com quem trabalhamos, e decidimos criar esses episódios curtos, escritos e gravados em casa, durante aquele momento tão angustiante. Esse programa acabou por ser o diferencial que levou o Telmo a escolher-me, e, curiosamente, quando o convite do Paolo [Marinou-Blanco] chegou em 2023, pensei logo que um tivesse indicado o outro … mas não, não houve essa ponte directa. Só que ambos chegaram até mim pelo mesmo caminho: o “Horas em Casa”.

O filme do Paolo já tinha uma coprodução com o Brasil e também com a Espanha, e o facto da Gilda ser brasileira não exigia, necessariamente, uma atriz brasileira - poderia ser de qualquer nacionalidade. Fiquei muito feliz por ter sido a escolhida, ainda mais porque tenho Portugal no sangue: minha família é toda portuguesa.

Fui criada numa casa com sotaque português, acho que mais para Norte: minha avó era de Matosinhos, meu tio casou com uma mulher de Trás-os-Montes, meu avô nasceu em Vila Nova de Gaia... então cresci ouvindo muito esse português. Até hoje uso expressões como "vou lá ter com vocês", que muitos brasileiros nem entendem [risos].

Na infância, passava o dia na casa da minha avó, porque minha mãe trabalhava. O meu tio era taxista, e muitas vezes me levava com ele pelo Rio de Janeiro, dizendo que ia levar a sobrinha ao dentista, mas que afinal era só um passeio. Então, quando vim filmar o “Índia” e fiquei dois meses em Portugal, tive uma sensação muito forte de "estar em casa". Já tinha visitado o país antes, mas sempre como turista e essa foi a primeira vez que estive mesmo entre portugueses.

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Índia (Telmo Churro, 2022)

Durante as filmagens do “Índia”, a Márcia Paraíso, que mora em Florianópolis (onde há uma forte influência açoriana, até com um certo "sotaque aportuguesado") me contactou para o seu novo projeto que estava a preparar. Curiosamente, era sobre uma brasileira que “larga tudo” para viver em Portugal, convidada para uma residência artística em Aveiro. O mais curioso é que ela nem sabia que eu estava em Portugal! É incrível como Portugal foi surgindo na minha vida. Hoje sinto uma conexão muito forte com o país, não só pela herança familiar, mas também pela comida, pelos sotaques, pelas experiências. Esses convites aqueceram meu coração.

Queria voltar também ao “Índia”, porque a sua personagem é, à primeira vista, uma turista brasileira, mas ao longo do filme percebemos que não é bem isso .. ela vem a Portugal para se aproximar da morte, do luto pelo marido, e em “Sonhar com Leões”, temos uma outra mulher que quer morrer, que procura o fim com dignidade. Apesar das diferenças entre as personagens, ambas se relacionam de forma muito intensa com a morte. Antes delas, a webserie "Horas em Casa", em que lida com um constante clima de incerteza, e de inevitável morte ao redor, visto tratar-se em tempos de pandemia. Queria falar sobre isso, e se vê esse fio condutor. E também ... quando leu o guião de “Sonhar com Leões”, se não pensou: “Isto é muito ousado”?

É verdade. Existe aí um fio comum. Até comentava isso noutra entrevista: os personagens não aparecem por acaso. Acredito mesmo nisso. Eles chegam em momentos em que temos algo a aprender, ou que nos ajudam a processar vivências que estamos a atravessar, ou então vêm como um aviso, uma preparação. A Gilda, por exemplo, apareceu numa altura em que precisava de força para lidar com a decadência física da minha mãe, que faleceu agora em janeiro. A minha mãe era extremamente lúcida, adorava viver, mas o corpo foi-se tornando uma prisão e isso tem muito a ver com a Gilda, uma mulher intensa, criativa na forma como vive. Para ela, não fazia sentido viver sem liberdade, sem prazer. A minha mãe também era assim.

Num festival na Arábia Saudita [Red Sea], onde exibimos o filme, um rapaz me disse: “Nunca torci tanto para que uma personagem que gostei morresse.” E isso diz muito sobre a Gilda. Ela tem um carisma tão grande que faz da morte uma vitória, é quase um pensamento paradoxal.

Então sim, acho que “Horas em Casa”, o filme do Telmo, “Sonhar com Leões”, a morte da minha mãe, o contexto da pandemia … aliás nós não vivemos a pandemia, nós vivemos a pandemia no Brasil, sob Bolsonaro... tudo isso se cruzou. Foi, talvez, a época mais reflexiva da minha vida profissional. Sempre fui uma pessoa inquieta, muito voltada para essas questões da existência — uma “filósofa de boteco” [risos], digamos assim. Gosto de conversar sobre a complexidade da vida e esses trabalhos vieram mesmo intensificar essa busca.

A Gilda foi uma das personagens mais ricas que já interpretei: ensinarem-me algo, de irem além da simples atuação. Ela tem um autoconhecimento muito grande, uma clareza sobre o que quer e o que não quer. E quando refletimos sobre a morte, no fundo, estamos sempre a refletir sobre a vida.

Sobre esse aspecto que acabou-me por contar sobre o festival na Arábia Saudita, curiosamente, aconteceu-me o mesmo. “Espero mesmo que a Gilda morra. Que consiga cumprir o seu desejo.”, pensei eu, pedindo para que o filme não enveredasse por um caminho mais moralista… No fundo, estamos a referir um tema muito delicado, e o humor do filme ajuda, não a branqueia-lo, mas suavizar o peso da questão. A eutanásia, aliás, ainda hoje … não sei como está no Brasil, mas creio que a situação é ainda mais complicada do que em Portugal … é um tema que continua a ser muito fracturante.

Não sei se houve algum momento, durante o filme, em que o argumento apontava para um desvio, um "rebound", nesse desejo mórbido da Gilda. Mas não … Adorei o argumento. Quando o li, a minha reação foi: “Quem é esse cara? Quem escreveu isso?” Quis logo conversar com o Paolo, e a primeira coisa que lhe perguntei foi: “Por que é que você escreveu isso?”. Sou muito curiosa sobre as motivações das pessoas, e é interessante a forma como ele resolveu abordar este tema.

Acho que é um filme único. Não existe outro igual. É difícil até de o encaixar numa categoria. Ele tem uma especificidade muito própria, de alguém que teve uma ideia original para tratar um assunto extremamente delicado, não só complexo, mas também tabu. É um tema sobre o qual, geralmente, as pessoas não conseguem aprofundar a conversa como deveriam, justamente por ser difícil.

Aconteceu uma coisa curiosa comigo. Durante todo o tempo em que estive envolvida com o filme, li muito sobre eutanásia, e tornei-me uma pessoa muito a favor do seu direito. Acho que todos deveríamos ter o direito de morrer. Ou melhor: o direito de viver dignamente … é mais por aí. Essa é a verdadeira questão. Porque o “direito de morrer” é, claro, um conceito relativo, ma medicina, hoje, permite-nos tantas formas de prolongar a vida que precisamos, sim, de refletir sobre o que significa estar vivo, diante de tantas possibilidades de continuar vivo... sem, de facto, viver.

A maneira como o Paolo decidiu abordar o tema, usando o humor, foi muito feliz. Porque, em nenhum momento, o espectador deixa de sentir a dor. Falávamos muito disso durante o processo. Acho que a morte continua a ser um tabu, talvez não tanto pelo nosso próprio fim, mas pelo fim das pessoas que amamos. É essa a grande dor — a perda. E nós evitamos de falar sobre o assunto porque não queremos encarar essa dor. É aquela velha história: é pior para quem fica. Porque, para quem vai, muitas vezes, a pessoa já está pronta.

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A webserie "Horas em Casa" (2020)

A minha mãe, por exemplo, falava com muita clareza sobre a morte. Dizia: “Estou cansada. Já deu. Aproveitei.” Ela parecia a Gilda. “Eu aproveitei. Eu vivi, minha filha. Fiz tudo o que quis. Mesmo casada com o teu pai, fiz tudo o que quis.” Essa consciência... é algo muito forte e foi muito claro que, para ela, quando o corpo virou uma prisão para tanta vida, para tanta pulsão e desejo, ela já estava pronta. Mas não tinha acesso à eutanásia, e penso que, se tivesse, teria ido antes, com dignidade.

Isso fez-me pensar muito, porque mesmo depois de ter vivido a Gilda, de ter feito esse papel, tudo o que vivi com a minha mãe nessa “sobrevida” que a eutanásia teria evitado... trouxe-me questões e inquietações. Será que, se ela tivesse esse direito, teria mesmo optado por ir mais cedo? E, se tivesse, será que teria feito disso um ritual? Uma celebração? O que todo esse processo me ensinou foi que a trajetória do fim — quando, por exemplo, a Gilda decide partir e começa a ver que aquilo está, de facto, a acontecer — desperta nela uma felicidade. É muito louco. Ela não desiste da ideia, mas, ao mesmo tempo, quando chega a Maiorca, encontra aquela beleza... e está a viver uma paixão. Algo surpreendente, até para ela.

É como se a vida invadisse aquele momento. Acho que isso também faz parte. Essa percepção aumentada do viver. Essa consciência do tempo e da existência. Isso também faz parte do fim. Pude ver isso com a minha mãe. Vivi momentos de uma intensidade muito bonita com ela nesses últimos tempos. Acho que, se tivéssemos um pouco mais de consciência de que todos vamos morrer, viveríamos melhor.

É muito difícil viver como se fôssemos morrer — porque não queremos pensar nisso, mas, se conseguíssemos viver com um pouco dessa consciência, daríamos mais valor às pequenas coisas. A vida é curta, e, muitas vezes, deixamos o essencial de lado por causa da correria, dos boletos, do trabalho… e, nessa demanda diária, esquecemos de viver plenamente. De saborear a vida como ela merece!

Se nós, seres humanos, soubéssemos exatamente o dia em que iríamos morrer, aproveitaríamos mais a vida do que nesta incógnita da existência?

Definitivamente! Pessoalmente, sinto que tenho uma certa tranquilidade em relação à morte.

Há pessoas que não gostam de falar sobre o tema, que o negam. Cada vez que se fala em morte, respondem logo: “Ai, para com isso, Deus me livre!” — e rejeitam o assunto. Mas acho que, se compreendêssemos melhor o ciclo da vida, se tivéssemos essa consciência... Não sei se seria preciso saber a hora exata, porque isso dá um nervoso danado. [risos]

Tem uma música do Gilberto Gil em que ele canta: "Eu não tenho medo da morte, tenho medo de morrer." Essa distinção é muito significativa. O momento da passagem — esse lugar misterioso — como no solilóquio do Hamlet: "To die, to sleep... To sleep, perchance to dream..." — ninguém nunca voltou para contar como é. E é aí que mora o medo. O medo não é só da morte, mas de não sabermos como é morrer.

Toda a gente deseja morrer dormindo. Então, sim, o momento da morte é uma grande interrogação. A Gilda, por exemplo, tem essa aflição: ela quer morrer sem dor, quer esse direito. E, mesmo assim, ela não consegue se atirar. É difícil atravessar esse limiar.

Mas se nós compreendêssemos melhor o ciclo da vida - que vamos morrer - talvez vivêssemos de outra forma. Cada aniversário que faço, penso: “Ai, meu Deus, não vai dar tempo...” Sabe aquela “síndrome da livraria”? Eu tenho isso. Sempre que entro numa livraria, fico angustiada. É tanto livro! “Não vou conseguir ler tudo. Não vou conseguir ver todos os filmes. Não vou conseguir rever todos os amigos.” E talvez o nosso medo da morte, ou mesmo a recusa em falar sobre ela, venha dessa angústia diante do tempo.

Porque, se tivéssemos total consciência do tempo, talvez vivêssemos angustiados com a sua finitude. A vida é múltipla demais, e vamos seguir o ritmo da música, na corrente do rio. Mas se soubéssemos exatamente quanto tempo temos, haveria quem agendasse tudo — os metódicos fariam um projeto de vida, um organograma do que fazer em cada ano...

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Denise Fraga e Paolo Marinou-Blanco durante a rodagem de "Sonhar com Leões"

E, nesse sentido, talvez o próprio medo da morte nos poupe de uma relação demasiado pragmática com a vida. Se falássemos mais sobre a morte, se compreendêssemos a vida como uma jornada, uma viagem que nos foi dada … uma oportunidade de experimentar, de aprender, de desfrutar tudo o que ela tem para nos oferecer … tentaríamos vivê-la da melhor forma possível.

Muito mais do que se estivéssemos distraídos, sem saber por que estamos aqui, sem querer pensar no fim. A verdade é que estar vivo é um privilégio. Esse bilhete que recebemos para esta viagem é algo precioso, e, sim, acredito que essa consciência nos faria viver melhor.

Sobre o filme, quero referir arrojo — especialmente para a nossa cinematografia, a portuguesa — que a tua relação, no filme, com o jovem Amadeu (João Nunes Monteiro). Esse relacionamento que se constrói no filme é bastante rara para o cinema português, porque pouco, ou quase nunca, lidamos com esses romances ou sexo como afronta ao “idadismo”.

Pois é. A diferença de idades não é tema do filme. O filme não trata disso e nunca se fala diretamente sobre o assunto. Até cheguei a dizer que queria tocar nesse ponto, mas o Paolo respondeu: “Não precisa, não é o tema.

E isso é muito interessante, porque, em qualquer outro lugar, isso se tornaria central, mas a coisa mais bonita do mundo é ver essas duas pessoas, que à partida, segundo o olhar preconceituoso que a sociedade ainda tem, não seriam “apaixonáveis” uma pela outra, a apaixonarem-se. É tão bonito ver a intimidade e a cumplicidade entre eles crescendo!

E vai crescendo... e tu nem sabes bem se eles vão mesmo tornar-se um casal ou não. Até que há um beijo, e aí percebemos que o amor entre as pessoas, e a paixão propriamente dita, está muito além daquilo que nós, culturalmente, definimos como “par romântico”, seja na dramaturgia ou na vida. As pessoas apaixonam-se umas pelas outras independentemente de género, de idade, e a vida mostra isso a toda a hora, nas experiências reais, mas continuamos a insistir em ver isso como um tabu.

Diz-se: “Ah, mas ele não se apaixonaria por ela.” Mas a paixão é surpreendente. Ela ultrapassa os desejos primários, os corpos até. Por vezes estás a conversar com alguém por quem, num primeiro momento, não sentes nenhuma atração, nenhum desejo sexual,  mas essa pessoa começa a dizer coisas que te tocam, e, de repente, aquilo desperta um “tesão danado” [risos]. É curioso como colocamos a paixão fora do lugar onde, de facto, ela pode acontecer.

Gosto muito disso no filme: ver o quanto eles vão criando cumplicidade — esse casal improvável — e, quando essa cumplicidade floresce, ela é ainda mais forte. Porque é fruto do impossível. Do absurdo.

Sim, e gostaria também de perguntar sobre algo que me fascinou no filme: toda a imagética da empresa de aconselhamento de suicídio, a Joy Transition International., que invoca — até pela parte de ser num armazém — das igrejas pentecostais, especialmente aqui em Portugal, as evangélicas e tudo isso… Mais a propagação dos movimentos de coaching, e outros palcos motivacionais.

Sim, sim. Nunca falámos diretamente sobre isso no filme. O Paolo escreveu e criou toda uma forma plástica muito singular. A direção de arte do filme nesse aspecto é preciosa. Os figurinos da Maria [Barbalho] são incríveis nesse aspeto, porque eles criam uma ambiguidade - nem sabemos ao certo o que aquilo é. É uma mistura de empresa, de culto, de algo meio místico… Mas depois há aquela mão imensa no armazém, que parece mesmo uma mão de marionete sobre as pessoas. E aquele sorriso... aquela máscara com o sorriso forçado … O Paolo está a falar de algo que vai para além das igrejas pentecostais ou de qualquer outra coisa definida. Ele fala da nossa era coach, dessa era que exige de nós uma felicidade histérica.

Hoje em dia, as leituras mais oferecidas são de autoajuda. Reparo nisso nas livrarias de aeroporto — como viajo muito, passo por muitas — e fico sempre a pensar: “Gente, isso é desleal!” O sujeito está cansado, estressado do trabalho, de andar a voar de um lado para o outro… e quando entra na livraria está tudo a gritar com ele: “Tire sua vida do rascunho”, “O Poder do Agora”…

Aí no vosso país também tem um que é “A arte de dizer o foda-se”?

Tem, tem sim.

O Poder do Hábito”, “Ganhe dinheiro agora”... São títulos de salvação e a verdade é que nós queremos uma salvação. Só que temos de ter cuidado com essa ideia de salvação.

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Sonhar com Leões

A Gilda, quando pega aquele panfleto que diz “Como morrer sem dor”, é óbvio que quer saber o que aquilo significa, e ela vai, mesmo desconfiando o tempo todo, mas depois o filme vai criando aquele teatro do absurdo maravilhoso.

Aquelas pessoas a dizerem aquelas coisas, aquela comédia que roça o absurdo — e os atores que são geniais … a Sandra [Faleiro], a Joana [Ribeiro] e o Alex [Tuji Nam]. Adoro todas as partes da Joy Transition. São quase como um spin-off dentro do filme…

Quando fazia o “trabalho de casa”, dei de “caras” com um podcast chamado Ribalta Podcast, em que Denise foi convidada para um dos episódios, e na altura da apresentação, há algo que diz, que gostaria de explorar um pouco consigo. Quando lhe pedem para se definir, para se apresentar, a Denise diz que é uma atriz, mas também se define como uma artista. Gostava de terminar com esta pergunta: Uma atriz não pode ser uma artista?

Pode, sim. Claro que pode. O que acontece é que nem todo ator aproveita toda a sua condição de artista. Um ator é um artista. Mas o que acontece, muitas vezes, é que — com os meios da industrialização da arte, com a força da televisão aqui no Brasil, e até mesmo no cinema — muitos atores acabam por se privar das suas potencialidades criativas. Privam-se da sua capacidade de dizer algo, da sua vontade de expressar através do trabalho. Privam-se da sua condição autoral.

Sempre que faço um filme, o “Sonhar com Leões” do Paolo é um exemplo claro disso, tento sempre imbuir-me do espírito do criador. Neste caso, a primeira pergunta que lhe fiz foi: “Por que você escreveu isto? O que você quer dizer com isto?” Isto porque o que mais quero, quando estou num projeto, é fazer aquele cineasta feliz. E para o fazer, não posso ser só uma marioneta morta nas mãos dele, tenho de estar cheia de vida, da alma, da razão que levou aquela história a ser contada.

Então, quando me aproprio, ou melhor, quando pego emprestada a alma do cineasta, tudo aquilo que ele quer dizer, tento compreender profundamente, para poder dizer junto com ele, da forma mais plena possível. Quando digo que agora já me considero uma artista, e não apenas uma atriz, refiro que no meu trabalho tenho procurado, cada vez mais, esse potencial de expressar, de dizer algo através daquilo que faço como atriz, da minha performance e da minha presença. Mesmo quando o projeto não é meu, arranjo uma forma de dizer algo com ele. E quando o projeto é meu — que geralmente é no teatro — escolho as peças que faço porque quero dizer algo com elas.

A escolha do texto já é, por si só, um discurso. A história que escolho contar já carrega em si o meu posicionamento no mundo. Acredito muito que os discursos, na maioria das vezes, servem mais a quem os profere do que a quem os ouve. Inclusive os livros de autoajuda, muitas vezes você só consegue mesmo transmitir aquilo que precisa quando conta uma história. Acho que as histórias dizem muito mais do que os discursos.

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Sonhar com Leões

E nós estamos a viver uma época em que estamos a levar um grande olé, como dizemos aqui … um embuste. Porque a internet está cheia de discurso e cheia de opinião… mas com muito pouca história, pouca vivência e pouca experiência real. E é pela experiência vivida de alguém que você chora, que você se emociona, já com a opinião, não. Você até pode absorver uma opinião, mas se ela não vier sustentada por uma vivência, corre o risco de ser uma opinião emprestada. Uma ideia que pousa num terreno frágil, sem a experiência necessária para a sustentar.

Até é generoso quando alguém escolhe dizer o que tem para dizer através de uma história, e é isso que tenho procurado fazer no meu trabalho. Talvez seja por isso que agora me defina também como artista.

O Natal é quando a Roménia quiser!

Hugo Gomes, 06.05.25

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O Natal chegou mais cedo para a Roménia, e mais tarde para Bogdan Mureșanu. O realizador romeno, na sua primeira longa-metragem [“The New Year That Never Came”], expande um dos conceitos da sua anterior curta, "The Christmas Gift" (2018), remexendo novamente na história crucial do seu país: a Revolução de Timișoara para sermos mais exactos, os tumultos em protesto contra o regime de Nicolae Ceaușescu, que levaram à sua queda, execução, e com ele  o fim do comunismo de punho de ferro exercido há mais de 42 anos (1947 - 1989).

É novamente o complexo Titanic, onde a “catástrofe” ou a potência do evento histórico condiciona todo o enredo e a respetiva sua dramaturgia. Desde cedo é perceptível o rumo para onde o filme nos conduz, fechando-se em copas perante a cortina vermelha do The End, com a graça de uma entrada a pés juntos na modernidade (o restante imagina-se como o projeto-futuro de uma Roménia que nunca aconteceu). Mas, para quem desconhece o facto impulsor desta narrativa entrelaçada de personagens frustradas com a sua contemporaneidade (ficções fervorosas de um povo que ainda guarda a memória congelada do regime do “Tio Nick”), o filme nunca se faz maior do que é. Nunca esmaga o espectador com a sua própria ignorância, e, nisso, pode ser visto sem um pingo de consciência, ainda que o final transluz a essência de uma percepção tardia.

Talvez estejamos perante outra queda - a do movimento do realismo romeno - que fincou e fomentou todo um conjunto de cineastas: Cristian Mungiu, Cristi Puiu, Corneliu Porumboiu e até Radu Muntean (ainda que Radu Jude, outro nome fulcral desta cinematografia, seja de um movimento à parte, talvez mais próprio, mais experimentalista e menos formalista.) Mureșanu parece reconhecer essa decadência estilística, mesmo que erguendo-a por fios como um piñata a aguardar pela sua surra, para que coincida com o seu propósito.

Por exemplo, numa das intrigas, visto que as diferentes narrativas assumem-se como gags prolongadas e humanamente desenvolvidas, a estação de televisão pública apercebe-se de que o seu programa de Natal está comprometido com a dissertação da sua estrela. O realizador e os seus técnicos, perante o ultimato do diretor da estação, procuram uma solução para as filmagens. Ao longo desta projecção, as piadas e os desdéns aos tremeliques da câmara são orientados como um reparo que vai além da ficção, a toda uma estética vejamos. Até porque "The New Year That Never Came" parece beneficiar dessa câmara desestabilizada, quase guerrilheira, simultaneamente desafiando a sua própria compreensão, como se fosse um artifício forçado, necessário ao percurso.

Num tempo em que a Roménia cede à extrema-direita, podemos questionar se o anterior movimento romeno se adequa às novas orientações, persiste num cinema de guerra e afronta ou interioriza-se como ultrapassado? Bogdan Mureșanu não nos dá resposta alguma, mas faz deste Natal da Revolução um distorcido macguffin para a sua arte — cometendo ficção com a História Moderna, numa perspectiva não revanchista, mas vingativa.

Anti-Heróis, Asteriscos e Canseiras

Hugo Gomes, 05.05.25

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Lá vamos nós, a resistir e a resistir, à Marvel Studios / Disney e ao seu plano de resiliência para contrariar as teorias da fadiga do subgénero, até porque há um universo partilhado por explorar, mesmo quando a confusão instalada é mais do que evidente. Contudo, voltemos aos carris, desta vez, sob promessas de mal-comportamento e até de saúde mental envolvida, “Thunderbolts*” (o asterisco é uma revelação dentro da narrativa, nada de surpreendente além de uma vitamina para fãs) persiste na barra dos anti-heróis sem escolha, forçados, dadas as circunstâncias, a salvar o mundo … ou melhor, aquele cantinho que se dá pelo nome de Estados Unidos da América.

Mesmo na sombra da coincidência do timing (as madeixas de Julia Louis-Dreyfus têm tanto de Tulsi Gabbard, a eleita Diretora de Inteligência Nacional por Trump) … o argumento, no fundo, é desinspirado, recorrendo aos óleos habituais para soar flexível e fluido. Joga-se a cartilha da “saúde mental” à moda disnesca, a nova exploração emocional para captar a familiaridade de milhões e, voilà, o mesmo espectáculo de sempre. Para uns, será o irresistível, a fórmula que funciona e prospera; para outros, o regresso do estúdio e da sua narrativa aos eixos. 

Mas onde “Thunderbolts*” vinga é na artimanha das personagens, nos actores sem star system que os emancipe verdadeiramente … o funcional dentro desta história de sempre, mais antiga do que Kevin Feige. Não há nada de esplendoroso, por muito que se deseje pintar ou vender pelos “pseudo-críticos” ao serviço de uma métrica. É tudo Florence Pugh show; o resto cumpre os requisitos, para que no fim nos sintamos satisfeitos com um espectáculo sem consequências nem inquietação.

Mas vejamos… para o bem da saúde mental! Que canseira.

"Provocar, no cinema, é condição para que permaneça vivo e interventivo": ENCONTROS, Festival de Cinema de Viana do Castelo avança para a sua 25ª edição

Hugo Gomes, 03.05.25

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Descrito, e orgulhosamente apresentado, como o festival de cinema mais antigo do país, no âmbito da pedagogia e formação, o ENCONTROS chega à sua 25ª edição com Viana do Castelo, novamente, o território dessa caminhada. Consolidando como um espaço vivo onde escola e cinema se cruzam com prática artística, investigação e comunidade, a cidade volta a acolher um programa extenso (de 5 a 14 de Maio), que vai do pré-escolar ao ensino universitário, e que aposta numa verdadeira imersão audiovisual: ciclos de curtas, oficinas, exposições, masterclasses, fóruns e conferências, tudo pensado para reforçar a literacia fílmica e promover o cinema enquanto ferramenta de pensamento.

Num ano em que Viana do Castelo é Capital da Cultura do Eixo Atlântico, os ENCONTROS reforçam também os seus laços com a Galiza e com dezenas de escolas internacionais, abrindo espaço ao diálogo entre culturas, métodos e visões do cinema. Com o tema “Tempos Cruzados, Inteligência Artificial em reflexão”, esta edição aposta numa abordagem crítica e atual, propondo pensar o cinema como um lugar de criação, como também de consciência.

O Cinematograficamente Falando... desafiou Carlos Eduardo Viana, da direção do festival e um dos fundadores da associação AO NORTE – Associação de Produção e Animação Audiovisual, não apenas para comentar sobre a programação que este festival nos brinda, mas para nos envolver no espírito dos ENCONTROS, dessa pedagogia, desse cinema e sobretudo, dessa "arte da provocação".

Depois de 25 anos a convocar olhares e inquietações em Viana, sente que o festival encontrou o seu lugar ou continua em busca, como um filme inacabado?

Um festival é sempre uma encruzilhada de onde partem múltiplos caminhos e propostas. O seu objetivo central permanece o mesmo, os caminhos vão-se ajustando, por vezes abrem-se novos.  Muito mais do que uma simples exibição de filmes, os ENCONTROS/Festival de Cinema de Viana são um espaço de encontros, descobertas e transformações. Como uma encruzilhada simbólica, oferecem múltiplos sentidos para quem os percorre. Cada edição traz novas propostas, debates e formas de ver e pensar o cinema. 

Com a secção “Olhares Frontais” a apostarem na dúvida como princípio e na experimentação como linguagem, segundo a nota de intenção do realizador Pedro Sena Nunes, que riscos corre um programador quando escolhe provocar em vez de confortar?

Provocar, no cinema, é condição para que permaneça vivo e interventivo. É abrir portas para diálogos urgentes e formas inéditas de ver o mundo. Como disse Jean-Luc Godard"O cinema não é uma arte que filma a vida, é uma arte entre a vida e a morte." Programar sob esse princípio exige risco e é uma ferramenta poderosa para reflexão, mudança e evolução. Conforto gera passividade; provocação gera diálogo, um dos pontos fortes dos “Olhares”.

A Norwegian Film School vem partilhar curtas e metodologias, há algo na pedagogia deles que considera que falta nas nossas escolas de cinema? Ou será mais uma questão de olhar do que de ensinar?

Não sentimos que falte algo nas nossas escolas de cinema. A Norwegian Film School está integrada noutra cultura com abordagens e práticas diferentes, que podem levar a outras metodologias, mas não há melhor ou pior, ou a constatação de que, por cá, falte algo. São diferentes perspetivas. O cinema, pela sua própria natureza, é plural – não existe uma única maneira certa de aprendê-lo ou ensiná-lo. O que alguns podem entender como "carência" pode ser, na verdade, uma diferença moldada por contextos culturais, recursos disponíveis e objetivos pedagógicos distintos.

- “O Manuscrito Perdido” (José Barahona, 2010), dia 10 de maio, pelas 21h00.

- “Cartas Telepáticas“  (Edgar Pêra, 2024), dia 9 de maio, pelas 21h15, com presença do realizador

 

Com a cidade contaminada de cinema por 10 dias, sente que o festival é um espelho da realidade local ou uma lente que a distorce para revelar outras verdades possíveis?

Como disse Andrei Tarkovsky"O cinema não deve copiar a vida, mas competir com ela". O espelho, talvez contrapor com prisma. Essa abordagem permitirá que o cinema fracture a realidade, a multiplique e a reinvente. E desassossegue, para revelar outras verdades possíveis. Nos “Encontros de Cinema” isso é visível, por exemplo, na seleção de filmes para visionamento e debate em sala de cinema, ou nas múltiplas oficinas e masterclasses que abrem caminhos e apontam direções.

A secção “PrimeirOlhar” nasceu para dar palco aos filmes que ainda estão a aprender a falar. O que é que mais o surpreende no cinema feito por estudantes: é a ousadia, a ingenuidade ou a forma como nos dizem o óbvio de outra maneira?

Por não estar totalmente domesticado pela indústria ou pelo mercado, o cinema feito por estudantes é um território de descobertas. E é nesse território cheio de energia, atravessado por tentativas e acidentes de percurso que, por vezes, surgem novos caminhos. Enquanto laboratório de possibilidades, é um espaço onde as regras ainda não são rígidas e os erros podem levar a novas experimentações. Longe das pressões da economia, esse cinema é um território de liberdade, o que o torna por vezes surpreendente.

Com um público tão diverso - de miúdos do pré-escolar a cineclubistas veteranos – como se programa um festival que fale várias “línguas” sem perder a sua voz?

Programar um festival que fale para diferentes públicos é um desafio complexo, mas desafiante, desde que a curadoria seja pensada como uma rede de estradas, onde cada via tem o seu objetivo, mas todas levam ao mesmo lugar. O nome escolhido para o festival é revelador: ENCONTROS, no plural. Encontro com a investigação e a academia (Conferência Internacional de Cinema e atividades paralelas), encontro com a literacia fílmica (formação de docentes e jovens, Fórum Cinema e Escola), encontro dos jovens com o cinema em sala (Escola no Cinema), encontro e cruzamento de estudantes de cinema e público em geral com realizadores consagrados (Olhares Frontais), encontro e debate sobre o cinema (Encontro Luso-Galaico de Cineclubes)

A imagem ainda tem poder para representar o que nos rodeia, como dizem no manifesto do festival, ou o que nos rodeia está cada vez mais fora do alcance da câmara?

O mundo contemporâneo desafia diariamente a capacidade da imagem representar a realidade, mas como o seu poder não reside na fidelidade, mas na capacidade de traduzir, distorcer e reinventar o real, e sabendo que o cinema nunca foi um espelho passivo da realidade, apetece dizer como Chris Marker"O verdadeiro filme está na mente do espectador".

No cruzamento entre cinema e educação, onde acaba a pedagogia e começa a arte? Ou será que, neste festival, são a mesma coisa com nomes diferentes?

O festival procura valorizar o cinema enquanto arte, junto das escolas e respectivas comunidades educativas. Diríamos que o objetivo final dos Encontros estará alcançado quando pedagogia e arte se confundirem. 

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A programação poderá ser consultada aqui.

Entre javalis e javardos ...

Hugo Gomes, 02.05.25

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Como transformar a revolução num gesto vazio? Na sua primeira longa-metragem, a artista Elsa Brès parece ter a resposta com o seu “Les Sanglières”, ou “javalis” na tradução à letra, fazendo dos suínos silvestres a imagem do caos, do inimigo “desconhecido”, inteiramente saído das sombras para atormentar culturas e (agri)culturas (se bem me entendem!).

Faz disso pelo seu próprio prazer e presunção (com água benta) para aliciar-se numa mensagem. Talvez, ou talvez não. Comecemos com a logística feudal, num “faz-de-conta” de outras eras para depressa pontapear até à nossa modernidade. Aí, na esperança de algo acontecer, somos restringidos nas imagens de diferentes fontes, seja do imediatismo, seja no fabricado, no documental, o do “cinema do real”, deixemo-nos dormir perante a panóplia delas, nada de wisemaniano, nada de bennigiano. Simplesmente por lá estar, por lá ficar, por covardemente não se aventurar. É o nada em forma de filme, vendido, por via de curadorias com mensagens bonitas para lá permanecer estampado num festival.

Agora, o filme ofende-me? Não. O filme mexe com a minha consciência? Não. O filme ataca o meu privilégio? Não. Então porque raio este filme existe? Apenas pelo ato de existir!? Entre javalis e javardos, sinopses que macaquizam manifestos sobre corpos femininos ou feminismo como “luta armada”, entenda-se, o vazio gera filmes e por vezes filmes geram o vazio. Como se desprender disso? Não sei …

Filme visualizado no âmbito do 22º Indielisboa: Festival Internacional de Cinema

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