Comitiva polaca
Andrzej Zulawski, Andrzej Wajda, Agnieska Holland, Roman Polanski, Ryszard Bugajski e Krzysztof Kieslowski no Festival de Cannes de 1990
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Andrzej Zulawski, Andrzej Wajda, Agnieska Holland, Roman Polanski, Ryszard Bugajski e Krzysztof Kieslowski no Festival de Cannes de 1990
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Foto.: Mafalda Martins
Bastou um pé dentro do espaço para ser recebido por um sorriso. “Boa tarde, Hugo. Hoje temos a apresentação deste livro.” João Coimbra Oliveira, livreiro de profissão, cinéfilo por paixão, aponta para uma pequena edição de capa mole exposta na recepção, trata-se de “Contos das Histórias, Estórias dos Contos”, de António Haddad.
“Vamos ter a apresentação dele hoje.” Acrescenta a informação, para de seguida puxar de baixo do balcão um volume de tamanho generoso. “Mas penso que este te vai interessar: ‘Jean-Luc Godard’, numa edição de Serralves.” Por uns minutos pavoneei o livro na mão e, com entusiasmo, fiz-lhe um gesto de quem quer pedir algo. “Preciso de ti por uns momentos. Dá para irmos lá fora?”
Naquele preciso instante, dois clientes exploram os cantos e recantos do espaço — não muito grande, é certo, 30 metros quadrados para sermos exactos, mas com uma voluntária desorganização no centro da livraria: pilhas de livros, revistas e outros coleccionáveis, raridades que só aqui parecem existir. “Este é uma jóia! Para ti, faço um desconto.” João exibe-me “Os Meninos de Ouro”, de Agustina Bessa-Luís, um livro claramente em segunda mão, de uma tiragem há muito extinta. “Se este livro falasse, que histórias teria me para contar sobre os seus antigos donos.” pensei eu.
Seguimos para o pátio que une a Linha de Sombra ao bar 39 Degraus, no primeiro andar da Cinemateca de Lisboa. Por entre a algazarra dos que apenas anseiam petiscar ou matar a sede, há toda uma parede enfeitada por edições de fazer inveja — cartazes e outras curiosidades, uma verdadeira máquina do tempo, de um passado que muitos ali, de passagem, não viveram. João faz um gesto a uma das empregadas do bar: dois cafés e uma garrafa de água de um litro. “Isto fica por minha conta”, apressa-se a dizer. Nesse momento, atravessando o pátio, somos interpolados por Samuel Andrade, um dos projecionista da Cinemateca, a meio do trajecto diário até ao seu “estúdio”, os bastidores onde a 'magia acontece' no Museu de Cinema. “Como vai, João?”, acena. “Estou bem, obrigado. E contigo?” responde, fazendo-se acompanhar por um vigoroso polegar para cima.
Inaugurada a 5 de Janeiro de 2015 e com dez anos recentemente cumpridos, a Livraria Linha de Sombra “surgiu numa oportunidade e num momento de inspiração, o desejo de criar uma boa livraria de cinema na Cinemateca Portuguesa, que é uma excelente editora. Fazia todo o sentido que esses livros estivessem disponíveis, e acreditar no espaço era natural”, refere João Coimbra Oliveira, após um rápido sorvo no café.
Foto.: Mafalda Martins
"Louis, I think this is the beginning of a beautiful friendship"
Essas jóias, as edições próprias da Instituição, muitas já descontinuadas, continuam a ser motivo de peregrinação da cinefilia lusófona e não só. “Esses livros são hoje considerados edições de coleccionador. É muito raro encontrá-los, porque, normalmente, os cinéfilos não se desfazem deles — são núcleos de biblioteca que passam de geração em geração.”
João destaca o trabalho incansável da Cinemateca na área editorial: só no último ano, em 2024, foram 20 publicações, incluindo os próprios filmes actualmente a ser digitalizados no ANIM [Arquivo Nacional de Imagens em Movimento]. “Há também vários projectos em curso. E esta minha tentativa aqui, que é mais do que um projecto pessoal, começou com uma ideia apoiada desde o início pelo então director José Manuel Costa, pela Antónia Fonseca e por toda a equipa de programação. Desde o primeiro momento ajudaram, ofereceram livros e tornaram-se até clientes.”
João Coimbra Oliveira é hoje visto como uma figura querida dentro das quatro paredes da Cinemateca. Todos os departamentos o conhecem, tratam-no como um vizinho a quem de vez em quando pedem "emprestado o sal". O seu trabalho hercúleo em preservar uma ligação afectiva com a Cinemateca e com o público habitual revela-o como mais do que um mero livreiro, dir-se-ia mesmo, um curador. “Quer dizer, acabo por sentir que estou a prestar um serviço à comunidade. Tanto para os cinéfilos como, até, para a própria Cinemateca. Juntos fomos construindo uma livraria bastante original, que começa a reunir bastantes títulos, inclusive de outros centros.”
"A minha abordagem à fileira do cinema é um bocadinho idêntica à fileira do livro. Vem desde a criação à produção, da exibição à leitura e à distribuição."
Foto.: Mafalda Martins
"Tu n’as rien vu à Hiroshima."
Do interior da livraria é possível ouvir Thomas Newman, a banda sonora do oscarizado filme de Sam Mendes, “American Beauty”. Uma cadência atípica, reconhecível, que se mistura com a algazarra do bar: o tilintar de copos e talheres, conversas alheias, e até a máquina de café a lançar os seus sonoros vapores - mais uma chávena para a mesa 56. Enquanto isso, é a música oriunda da Linha de Sombra que nos encaminha para outra realidade. Ou melhor, para várias. Todas elas impressas naquelas páginas e páginas de livros e folhetins.
“É, aqui na livraria está sempre a passar bandas sonoras. É a música que me faz companhia… e também as pessoas gostam. Perguntam de que filme é, comentam… e cria-se ali uma dose, assim, um bocado de... de comunidade a acontecer”, esclarece, apercebendo-se da minha atenção à sonoridade do espaço. “Porque creio que todos os cinéfilos — pelo menos na minha realidade pessoal, na minha experiência de vida — têm uma certa dose de misantropia. Em certos momentos preferem estar sós. E aqui, na livraria, acho que os livros são nossos amigos.”
“Antes da sessão de cinema, a pessoa pode vir ao espaço do 39° e tomar um copo, comer qualquer coisa, ou vir ver as novidades. É muito comum… mesmo… os clientes habituais, os amigos da Cinemateca, ou estudantes da Escola Superior de Teatro e Cinema, aparecerem e perguntarem logo: ‘Quais são as novidades?’”
“Criámos o site, e tem sido uma ótima plataforma, até para distribuição a nível nacional e internacional. Temos recebido encomendas de todo o mundo: Indonésia, Brasil… os brasileiros estão sempre muito atentos ao que se vai produzindo cá em Portugal ... mas também de França, dos Estados Unidos… e o catálogo está todo lá, disponível.”
Para além da venda de livros, DVDs e outros acessórios cinéfilos, a Linha de Sombra é também vista como um espaço privilegiado para apresentações de obras, eventos e alguns beberetes, obviamente, com os livros e o cinema como pano de fundo e contexto social.
Contam-se entre dois a três por semana, albergando convidados ilustres como Pedro Mexia, Carlos Vaz Marques, Daniel Ribas, Regina Guimarães, Catarina Mourão, Rui Simões, entre outros: críticos, realizadores, poetas, professores, escritores e filósofos. Toda uma gama de personalidades que contribuem para enriquecer a comunidade criada e envolvente da livraria. No decorrer da conversa, atrás de nós, uma mesa já estava preparada para o evento daquela tarde. João não resistiu a lançar-me outro convite: “Tens que ficar, vai ser espectacular.”
“É essa a poesia do quotidiano. Ao mesmo tempo, temos consciência de que este trabalho é também fruto das próprias exigências da actividade editorial e dos amigos, autores e criadores que nos procuram.”
Foto.: Mafalda Martins
”When the truth becomes legend, print the legend.”
Prometi-lhe o último tópico, e, por sua vez, um dos mais sensíveis para o João: a sua própria editora Linha de Sombra. Lançada em 2017 com a publicação de “O Cinema Não Morreu”, um colectivo de textos do site À Pala de Walsh, popular plataforma de crítica cinematográfica surgida da blogosfera e alimentada por cinéfilos atentos.
“Eram pessoas por quem tinha - e continuo a ter - imenso respeito intelectual e humano. Na altura, a livraria tinha cumprido os objectivos traçados desde o início: não ter dívidas e não prejudicar ninguém. Os objectivos foram atingidos. E então pensei logo que a melhor maneira de retribuir todo o apoio que os cinéfilos me tinham dado até então seria publicar um livro.”
“Havia toda uma geração que, naquele momento, estava a terminar os seus percursos… em mestrados, em doutoramentos… E, em muitos casos, dos vinte e tal autores que publicámos, muitos desses textos eram primeiras obras impressas. Eu sei que vale o que vale, mas a academia é muito receptiva às publicações. Foi a minha maneira de fazer uma pontuação simbólica - sem qualquer objectivo financeiro ou económico - junto das pessoas que me apoiaram desde o princípio: por virem à livraria, por visitarem a livraria, por falarem da livraria.”
Depois desse livro inaugural, seguiram-se mais dois títulos lançados nos últimos meses. Primeiro, “O Desembarque das Ondas: Uma Antologia de Ingmar Bergman”, organizado por Raquel Nobre Guerra, poeta por quem João nutre grande estima: “É um objecto perfeito. Ela é das melhores poetas da sua geração.”. E, por fim, um segundo volume do colectivo À Pala de Walsh, “O Cinema das Palavras” — uma colectânea de entrevistas a realizadores e outras figuras do cinema.
“Na Feira do Livro de Lisboa, os editores brasileiros brincavam: ‘É só ao terceiro livro que uma pessoa se torna realmente editora.’ O primeiro livro é movido pelo entusiasmo, seja do próprio editor, seja do público. Ou seja, tem tudo para correr bem, para ser um sucesso. O segundo… já não. Não tem aquele efeito de novidade. É um trabalho de continuidade. E o terceiro… pronto, é o momento da verdade. Ou a pessoa está mesmo para editar, ou não está. Foi com o terceiro livro que lançámos que eu me apercebi: mais do que editor, sou livreiro.”
Foto.: Mafalda Martins
"Well ...Nobody's perfect"
Um dos clientes que resistia no interior chega ao balcão com uma pequena pilha de livros na mão — a deixa perfeita para encerrar a conversa. “Bem, o dever chama-me.” João levanta-se, sai da mesa e regressa à livraria, atravessando para o outro lado da recepção. De novo na pele de livreiro, conversa com o cliente, sugere outros livros, aponta sessões futuras na Cinemateca. No final da compra, brinda-o com um postal. “Uma pequena lembrança.”
É a minha vez de regressar à livraria. Faço-lhe um gesto de gratidão e uma promessa: “Guarda-me a Bessa-Luís. Da próxima levo.” Com um sorriso de satisfação, o livreiro pisca-me o olho e despede-se, deixando no ar o compromisso selado. Pequeno espaço no coração de Lisboa, raro, sobretudo numa cidade cada vez mais despida culturalmente (mas isso são outros cinco tostões). Enquanto houver Linha de Sombra — nome inspirado numa das obras preferidas de João, o homónimo livro de Joseph Conrad — estamos garantidos.
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Jia Zhangke reforçando-se como Jia Zhangke, bofetada “autoral” e fidelidade a um estilo que a China pavoneia diante de uma América cada vez mais submetida às pressões políticas ou ao entretenimento de massas enquanto nova colonização “cultural”. Poderia ser a justiça oriental frente ao Ocidente em decomposição … poderia … mas não o é. Zhangke é um dos raros autores ainda em plena atividade no seu próprio panorama. O restante, essa cinematografia chinesa, divide-se entre marginais que encenam uma espécie de realismo desencantado ou "cinema de guerrilha", e o "megamasso" a mimetizar vaidades à la Hollywood … muitas delas, pasme-se(!), apresentando-se como propaganda ideológica pouco subtil.
Mas falemos do nosso chinês em questão, e com ele de “Caught by the Tides”, filme que reafirma essas marcas, essa dentição cujo contacto nos leva a exclamar bem alto: “claramente, é Jia Zhangke!”. Se essa questão autoral nos remete a um reconhecimento estético, conceptual ou temático, com esta obra a tese prolonga-se com um devido ponto de interrogação: o que acontece às sociedades onde a política do trabalho acelera na sua própria mutação, com os trabalhadores a não conseguir acompanhar a reformulação dos mesmos?
A questão levanta-se como a persistência de um autor em plena observação das modificações do seu mundo, e como folha de papel vegetal, tracejar as similaridades e as referidas diferenças, para nos encantar com o óbvio, mas não fácil, retrato sociopolítico. Caminhamos para uma nova Humanidade, talvez mais distante, ou, na urgência de persistir nos seus traços, desafiar a ordem do progresso. Mas já lá vamos! Novamente requisitada, a atriz Zhao Tao guia-nos, sob a narrativa de três atos temporais, por uma mulher que opta pelo silêncio como forma de enfrentamento da realidade inconstante. Iniciarmo-nos neste “mundo” pela propaganda ao coletivo, enquanto país de uma só voz e direção, e terminarmos com o mesmo coletivo enquanto esperança libertária, curiosamente ecoando, ainda assim, numa só voz (e a voz enquanto brilharete narrativo a fazer-se ouvir).
Mas até lá dá-se um desaparecimento. Os anos passam, e é o rio Yangtzé que conduz a protagonista, em busca do marido em parte incerta, até ao inesperado - e, por sua vez, previsível - o fado da sua classe. A voz, ou melhor, a ausência dela, não constitui problema: Zhao Tao comunica como bem sabe, pela orgânica dos seus movimentos, pelos olhos afogados em desilusão infestosa e pelos escassos deslumbramentos ao contacto com o tecnológico: essa promessa de um futuro onde as máquinas, substituindo de forma determinante a mão-de-obra, libertariam a Humanidade da sua condição proletária e precária.
Já no último ato - num futuro ali ao virar da esquina, facilmente identificável - o trabalho e o respectivo estatuto social são substituídos por novas formas de empreendedorismo. Os “velhos do Restelo” nem sabem como se comportar perante a influência das redes sociais e os seus congéneres, enquanto a nossa trágica heroína encontra conforto em estranhos sintéticos. No final, as dores conjugam-se de maneira improvável. Jia Zhangke é um exímio pintor de natureza morta e de distopias descalcificadas, nisso não há duvidar, o seu toque mantém-se vivaz. Como tem sido na sua presença recente, os moldes resultam dessa escolha de embater o passado contra uma ideia de futuro, levando o espectador a refletir sobre onde mudou, ou a sentir-se para além da compreensão, diante da diluição temporal. E, à sua maneira, é político: cinema que sussurra ao ouvido os seus manifestos.
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“Reparei no que fazes com as laranjas. Se eu trouxer uma vaca… tiras-lhe o leite?” — Lembram-se deste anúncio? A de um biscoito convertido em cereal de pequeno-almoço, cujo slogan, vindo de uma figurinha a condizer com a estética do alimento, dirige-se a um espremedor de laranjas e, em jeito gingão, solicita o leite necessário para a sua refeição? Tanto faz, o que interessa é que a publicidade passou nas televisões portuguesas por volta dos anos 2000, e hoje em dia, a frase é pronunciada como uma lembrança ‘espremida’ a várias leituras, um meme oral até! Contudo, apropriámo-nos da tirada, pois nela encontramos a alegoria perfeita e simplificada do conceito de “franchise” cinematográfico: espremer laranjas como quem ordenha vacas, até ao tutano.
O filme em questão é uma espécie de spin-off de um universo que outros entenderam como filão a explorar: “Karate Kid” (1984), resposta mais juvenil ao fenómeno “Rocky”, com o pugilismo substituído por karatecas. O realizador? Exatamente o mesmo: John G. Avildsen. Sucesso de público, culto alimentado por gerações seguintes, imitado até à exaustão, no qual se eternizou o ator Pat Morita (1932–2005) como um arquétipo e, diga-se, também uma caricatura exótica — do sensei oriental com o intuito de transformar moços ocidentais em máquinas de artes marciais. Conta-se duas sequelas (1986 e 1989)… espera… três! … Ah, mas a da Hilary Swank, julgo que é consensual esquecer [“The Next Karate Kid”, 1994]. Houve ainda um reboot (2010), com Jackie Chan e o filho do Will Smith (Jaden Smith), e, após a popularização de uma piada numa sitcom (“How I Met Your Mother”) surge um revival em forma de websérie, intitulada “Cobra Kai”, focada no bully do protagonista original. A Netflix aproveitou o sucesso e importou-o para a sua plataforma.
Agora, sob o tilintar da máquina registadora, chega-nos “Karate Kid: Legends”: cruzar narrativas, atar pontas soltas, expandir o universo … se é que esta tendência ainda tem fôlego. Jackie Chan de regresso, cada vez mais cansado em ser Jackie Chan, e Ralph Macchio — o tal, o genuíno “Karate Kid” — a marcar presença para o que chamam de legado. Aliás, “sequela de legado”, fiquemo-nos por esse termo. Mas também o espectador sai cansado disto tudo … isto, claro, se ainda não tiver sido domesticado pelas fórmulas, algoritmos e por todo o jargão televisivo que a série implicou, aqui transladado para o grande ecrã (nota: o realizador, Jonathan Entwistle, é um experiente do pequeno ecrã.)
A história é mais que sabida, nota-se a léguas. E o ingrediente principal? A falta de gravitas, de consequência, de verdadeiro conflito. Tudo feito para não aleijar, para nunca, pateticamente, transgredir o conforto do espectador passivo. Nem como “filme de artes marciais” serve … demasiado corriqueiro, adolescente, e até pouco fascinado com a sua própria matéria. Está mais interessado em ser um produto da Big Apple, como os “Sexo e a Cidade” desta vida, do que em ser qualquer outra coisa (até os atores estão nos seus mínimos … vá, não os julgamos.)
Até o crítico sai cansado, anda-se há muito nisto, a lidar com demasiadas vacas leiteiras prontissímas a serem exploradas. Só que também exausto deve estar Pat Morita (que descanse em paz onde estiver), ao ser constantemente o fantasma invocado contra a sua própria vontade. Deixem o seu legado persistir sem atropelamentos!
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Pat Morita e os Cobra Kais nos bastidores de "Karate Kid " (John G. Avildsen, 1984)
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O António Araújo desafiou-me a falar sobre director's cuts ou outras versões alternativas de um mesmo filme. Pelos vistos, impressionei-o ao sugerir “Hellraiser: Bloodline”, o quarto capítulo de um franchise malparido à custa da ingenuidade de Clive Barker ao entrar na indústria. Neste filme, a vilania e o sadismo de Pinhead são “atirados” para o espaço, mas não sem antes atravessar duas outras camadas temporais. Tem o cunho de Harvey Weinstein e um realizador que, no fim, preferiu não assinar o produto final mantendo-o sob a “autoria” de Alan Smithee. Para ouvir (ou ver) no Segundo Take. Grato pelo convite.
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Keoma (Enzo G. Castellari, 1976)
O Fundão quer-se cinéfilo!! Anotem nas vossas agendas: os 15º Encontros de Cinema do Fundão arrancam já no próximo dia 28 de maio, deixando para trás Agosto (o “querido mês” que acolheu as edições anteriores) e olhando para o verão de 2025 nos seus primeiros passos, para nos transmitir uma mensagem clara. À medida que o mundo muda a olhos vistos, e se pressentem períodos sombrios, o Cinema manter-se-á uma certeza.
Até 1 de Junho, A Moagem – Cidade do Engenho e das Artes (com apoio do Cineclube da Gardunha) estenderá a sua passadeira vermelha, recebendo convidados ilustres como Enzo G. Castellari e o madrileno Pablo García Canga, não apenas cabeças de cartaz, mas orientadores para a temática destes Encontros. Porque do grindhouse ao western, da poesia rural ao cinema a conservar e assimilar, da crítica à cinefilia das paixões — algo velado, pessoal — refletido fora das grandes cidades e dos centros culturais habituais.
Como já vem sendo tradição neste espaço, o Cinematograficamente Falando… desafiou José Oliveira, realizador e crítico, cinéfilo irrequieto, mas sobretudo programador, para desvendar o que se poderá antever desta nova jornada … deste Encontro ou (Re)Encontro.
Prosseguindo nas perguntas da anterior edição e tendo foco essa mesma, que desafios encontraram para os Encontros de Cinema do Fundão de 2025, em comparação com os de 2024?
Os desafios da programação são para nós iguais aos desafios da vida: tem de ser uma aventura. E tem de ser divertido, mesmo que seja bem duro. Não nos deixarmos ofuscar pelos brilhos do contemporâneo, mas sim escavar na história, tentar fazer um pouco de justiça, resgatar preciosas constelações há muito soterradas pelo imediatismo do espetáculo e do jornalismo (anti-jornalismo!) básico que nada tem a ver com a crítica nobre nem com qualquer tipo de paixão. O resto, como arranjar financiamentos e quem acredite, aparecerá. O que tem de ser (porque está certo) continua a ter muita força.
Enzo G. Castellari é um dos três realizadores convidados e à mercê de uma retrospectiva-homenagem. Pegando na estética do realizador: como é que o seu universo punk e barroco ressoa num espaço como o Fundão, onde a ruralidade e a memória histórica se entrelaçam? Há aqui uma espécie de fusão entre o grindhouse italiano e a melancolia beirã?
Obras-primas como o “Keoma” (1976) ou o “Johnny Hamlet” [“Quella sporca storia nel west”, 1968] poderiam ter sido feitas neste território, claro. Meios naturais gigantescos e omnívoros combinados com estruturas poeirentas e obsoletas existem a rodos. Talvez haja acordes, harmonias, sensações secretas e correspondências subterrâneas entre territórios e memórias. Talvez os montes e vales de Almeria ou de Abruzzo falem com estes, estejam ligados internamente ou espiritualmente. E sem dúvida que muitas das contendas políticas e puramente humanas são as mesmas… Mas a razão é que descobrimos, de repente, e como uma revelação óbvia e epifánica, que um dos maiores cineastas que alguma vez mexeu a câmara, uniu planos e deu significado às histórias e à História através dos puros e exclusivos meios cinematográficos, está aí para as curvas e gostou da nossa abordagem.
Também é o grande representante vivo e a síntese de um cinema italiano inesquecível, operático, cheio de ação, risco, carregado de dramaturgia e de tragédia, de vitalidade e constante surpresa, onde pontificaram Sergio Leone, Sergio Sollima, Sergio Corbucci ou Lucio Fulci. E como esquecer o seu trabalho com Franco Nero, Woody Strode, Fabio Testi, Henry Silva, Fred Williamson… os amadores e os duplos… Stefania Girolami, Ennio Girolami…
A retrospectiva de Pedro Ruivo levanta uma questão rara no cinema português: por que é que a ficção científica continua a ser tratada como um corpo estranho? “A Força do Atrito” (1993) será uma anomalia ou um prenúncio ignorado? Terá lugar nesta atual vertente de reavaliação do nosso património cinematográfico?
“A Força do Atrito” é tanto uma anomalia - no sentido dos grandes filmes portugueses únicos, desalinhados, protótipos e acabados em si mesmos - como um risco sem cálculo, visto que o realizador quis fazer tanto um comentário sobre os tempos da altura como um conto romântico da juventude eternamente à deriva. Um filme tão frágil como belo no sentido do cinema do Nicholas Ray – tem de ser frágil porque tudo dentro dele o é, desde o ambiente até à dimensão temporal, passando pelos seres planantes, e assim é belo pela sua verdade despida de subterfúgios. Na altura foi tratado como lixo por toda a gente, mas isto continua a ser o pão nosso de cada dia – quem não faz os contactos certos nem fala (e como deve ser) com as pessoas certas, quem não vai às festas nem pratica os lobbys oficiais, não vai aos “grandes” festivais nem tem a papinha da crítica toda feita. O que descobrimos na entrevista ao Pedro Ruivo é que é um homem e um cineasta honesto.
A Força do Atrito (Pedro M. Ruivo, 1993)
Pablo García Canga propõe uma poética do silêncio e da palavra contida. Como é que o seu olhar dialoga com o legado de Ozu, especialmente num tempo em que o ruído parece ser o novo realismo dominante?
Creio que essa será uma boa questão para colocar ao Pablo García Canga no Fundão. Mas julgo que parte da resposta, pelo menos, está no seu magnífico livro "Ozu, Multitudes", que será apresentado no dia 1 de junho, na livraria Livros Tintos. É um dos mais belos e apaixonantes livros dedicados a um cineasta, onde os fotogramas dos filmes de Ozu são como cartas de tarot, permitindo efabulações, tergiversações, histórias, sobre a ilusão, a felicidade, as contradições, os segredos, a amizade, o cómico, a espera, o tempo que passa sem fazer ruído, etc., como se estivéssemos a ler (ou a ver através das palavras) um autêntico vade-mécum para a vida de todos nós. E às vezes o drama contido nos pequenos gestos e movimentos, como a lata que cai da escadaria em “Uma Galinha no Vento” (“A Hen in the Wind”, 1948) e que conta toda uma história. Como disse o Mário Fernandes, “se imaginarmos um Montaigne cinéfilo estaremos próximos deste maravilhoso e original livro de Pablo García Canga”.
Estes encontros celebram também a cinefilia enquanto gesto coletivo. Que papel ainda pode ter um cineclube, como o Gardunha, num país onde a política cultural parece esquecer o interior?
Não temos pensamentos de inferioridade, programamos com toda a lógica e coração: como não temos cinema comercial no Fundão, tanto tentamos dar uma imagem do panorama actual, como estar atentos às injustiças, para que filmes como “A Força do Atrito” ou “O Movimento das Coisas” não precisem de esperar trinta anos para serem vistos como devem ser. Nos últimos anos tanto tivemos no Fundão o Víctor Erice como o Raul Domingues, o Pedro Costa como o Diogo Costa, tratando-os como iguais. Claro que as políticas desta cidade foram cruciais, mas temos de tentar fazer o melhor trabalho possível na recepção de cada cineasta e de cada obra, de cada músico ou convidado de outra área: desde a produção de textos, entrevistas, diálogos, espetáculos; sentindo que o tempo e o ar do interior propícia a delicadeza e a pulsão necessária para tudo isto. Mostrar o filme certo da maneira certa é uma questão grave.
Os concertos que evocam Castellari trazem uma performatividade sonora que ultrapassa a sala de cinema. Esta aproximação entre imagem e som pode ser vista como um novo tipo de crítica? Uma crítica que se faz com guitarras e distorção?
É uma boa imagem essa, obrigado. Será com certeza uma grande descarga sónica de emoções e de considerandos. Um novo tipo de crítica, com certeza. Tal como uma outra maneira de transmitir as sensações de algo que foi marcante. A Marta Ramos interpretará o tema-mãe de “Keoma”, que é um filme fascinante e obsessivo para ela tanto em termos dramatúrgicos como musicais, que no caso são inseparáveis. Ao longo dos anos ouvimos esse tema a reverberar na sua voz. E outros do Dylan, que obcecaram também o Castellari na montagem dos seus filmes. E assim, tal como o grande historiador Tag Gallagher disse recentemente na Cinemateca que deixou de escrever quando descobriu que conseguia mostrar com um plano o que muitas vezes necessitava de dizer em dez páginas, produzindo agora vídeos críticos e poéticos ao invés de textos, também a música parece um tipo de crítica muito mais forte do que a que lemos diariamente nos jornais ou na net.
Com “Há uma Sombra”, do realizador e poeta radicado no Fundão, Alejandro Pereyra, continua-se a explora a cinematografia que despoleta na região. Existe esforços, e se há frutos colhidos, sobre esse constante sublinhar do cinema fundanense?
Não creio que haja um "cinema fundanense". O que tem acontecido no Fundão nos últimos anos, felizmente, é uma concentração de cineastas muitos diversos e de diferentes gerações, que aqui residem ou que aqui têm produzido algumas das suas obras, muitas delas marcantes. Cineastas tão diferentes como Nelson Fernandes, João Dias, Rodolfo Pimenta, Joana Torgal, Manuel Mozos, Mário Fernandes, Marta Ramos, Alejandro Pereyra (poeta, músico e também realizador do agora programado “Há uma Sombra”), Aurélie Pernet, Raul Domingues, Manuel Melo, Leonor Noivo, Margaux Dauby, Gonçalo Mota, Mariana Neves, Hugo Pereira, Ana Pio, Fernando Carrolo, entre muitos outros. Creio que os Encontros de Cinema do Fundão também têm desempenhado um papel de relevo na atracção e descoberta da região por vários destes cineastas, uns mais conhecidos, outros mais invisíveis que importa revelar. É realmente uma sorte, ou talvez não seja uma questão de sorte, se olharmos para a história cinematográfica do concelho do Fundão.
La nuit d’avant (Pablo García Canga, 2019)
Recordemos, a título de exemplo, que há registos de projecções de filmes no Fundão desde 1903; que o cartoonista, escritor e pintor José Vilhena realizou aqui o seu único filme, “O 5º Pecado” (1959), antecipando nalguns aspectos o que viria a ser o cinema novo; que o Jornal do Fundão teve quase desde o início crítica de cinema (um dos primeiros jornais portugueses a defender realizadores tão diferentes como Manoel de Oliveira ou Sam Peckinpah, quando estavam longe de ser consensuais); que o “Jaime” do António Reis teve a sua primeira exibição pública no Cineteatro Gardunha do Fundão, em Janeiro de 1974, com a presença do próprio António Reis, mas também de Fernando Lopes, Margarida Cordeiro, Carlos Paredes, Eugénio de Andrade, José Cardoso Pires, Lagoa Henriques, Óscar Lopes, Alice Vieira, etc; que à época, por iniciativa da equipa do IMAGO - Festival Internacional de Cinema, o Fundão teve um dos primeiros festivais do país dedicados exclusivamente ao cinema documental - o Festival Dok. Portanto, diria que o filme do Alejandro Pereyra é um dos frutos colhidos de uma árvore imensa com diversas ramificações.
Voltando a uma questão recorrente, mas quem sabe: há planos de expansão, de alguma forma, do Encontros de Cinema do Fundão em edições futuras?
Existe todos os anos uma extensão na Cinemateca Portuguesa, e este ano não fugirá à regra. De resto, não há planos para aumentar ou diminuir os Encontros, mas apenas, reforço, embarcar sempre numa aventura, rio ou montanha acima ou abaixo, para que depois o público possa participar em eventuais perigos ou maravilhas.
Toda a programação poderá ser consultada aqui
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A constelação de divas que uma visão proporcionou fez do entretenimento algo mais do que uma simples passagem ou um instantâneo escapismo. Digamos, é na fantasia — essa que se esconde para não ser rastreada pelos julgamentos da praça pública — que reside numa forma de liberdade, individual e, consequentemente, sexual
Riccardo Schicchi foi um desses impulsionadores. Fundador da Diva Futura, produtora de filmes pornográficos dos anos 80, estendeu uma passadeira vermelha de estrelas numa Itália ainda em conturbação com os seus desejos. Moana, Cicciolina, Eva Henger, entre outras, corpos entregues ao manifesto, preenchendo o libido dos espectadores, os sonhos mais íntimos e húmidos dos seus fãs. Porém, é nessa ligação com Schicchi que a maldição se desenrola. À imagem de todos os ciclos, existe um fim … mas antes disso, uma decadência: começa pela moral, segue-se a estética e, rapidamente, proclama-se como a mais corrosiva das quedas.
Não se falou apenas de uma agência. Falou-se de um golpe num movimento livre, transgressor e antipuritano. Como lidar com o choque?
“Diva Futura” assume-se parcialmente como uma biopic de Schicchi, concentrando-se na sua “pegada” (ou, diríamos melhor, no seu legado) e na órbita de beldades que ambicionavam sair das suas poses de simples pin-up. O filme, estreado no Festival de Veneza e com direito a encerrar a Festa do Cinema Italiano, chega agora às salas comerciais portuguesas com a promessa de libertar as mentes dos aprisionados, ou... conduzi-las a imagens desta envergadura.
O Cinematograficamente Falando … conversou com a realizadora Giulia Louise Steigerwalt sobre divas, pornografia, olhares, desejos e Schicchi como o herói traído pela perversão que acidentalmente criou.
Pergunta simples e, acredito, já bastante repetida: porquê este filme, e porquê Riccardo Schicchi?
Essa pergunta pode parecer repetitiva, mas para mim não é. Tudo começou quando li o romance da Deborah Attanasio [“Non dite alla mamma che faccio la segretaria”], e o que encontrei ali foi completamente diferente do que esperava daquele mundo. Depois tive a oportunidade de conhecer algumas das personagens reais e de aprofundar os acontecimentos, e devo dizer que continuei a ser surpreendida. Tudo foi muito inesperado!
Dentro daquele universo, descobri uma história profundamente comovente e, até certo ponto, romântica. Além disso, tratava-se de um recorte muito interessante dos costumes italianos, algo que ainda não tinha sido contado, mas com um lado muito encantatório. E mais: havia temas que continuam extremamente atuais. A narrativa cobre desde os anos 70 até os 90, estendendo-se até 2012, com a morte do próprio Schicchi, e mesmo assim, continua a dialogar com questões muito presentes nos dias de hoje: o que significa, afinal, ser uma família? Para além das definições rígidas, eles eram realmente uma grande família.
No plano pessoal, o Schicchi criou uma família muito bonita. Também havia a questão do amor: o que significa amar alguém e, ao mesmo tempo, deixá-lo ser livre? E qual a importância do consentimento quando falamos de sexualidade? Essa ideia estava na base da filosofia de Schicchi. Tudo isso me levou a querer contar esta história, que embora pertença ao passado, senti que ainda era incrivelmente viva e atual — sobretudo se contada do ponto de vista de uma mulher de hoje.
Sobre o elenco: como chegou a Pietro Castellitto para interpretar Riccardo Schicchi? E, sobretudo, como foi o processo de seleção das atrizes que interpretam as estrelas porno retratadas no filme? Refiro-me, claro, a figuras como Moana Pozzi e Cicciolina. Houve uma preocupação em reproduzir fielmente a sua imagética, os seus corpos?
Em relação ao Pietro Castellitto, ele foi o primeiro nome que me surgiu. Desde o início, queria muito trabalhar com ele. Tinha um grande apreço pelo seu trabalho e achava mesmo que era a pessoa mais adequada para dar vida ao Schicchi. É um ator extremamente talentoso e, embora já tivesse expectativas altas, ele conseguiu surpreender-me ainda mais. O Pietro tem aquela mistura que procurava: um olhar sonhador, uma certa ingenuidade, mas também uma faísca, uma energia quase mágica, algo quase de duende, diria [risos]. Fiquei muito feliz com o resultado, e trabalhar com ele foi verdadeiramente um prazer.
Quanto à escolha das atrizes para interpretar figuras tão icónicas como Moana Pozzi, Cicciolina ou Eva Henger, confesso que me preocupava bastante. São mulheres que fazem parte do imaginário coletivo italiano, ícones reais, e claro que havia a questão da semelhança física, da presença, dos corpos... mas, para mim, o mais importante era a capacidade interpretativa. Queria atrizes que conseguissem transmitir emoção, empatia, que fossem capazes de nos transportar verdadeiramente para dentro da história. Todas as que escolhemos são atrizes muito talentosas, muito preparadas, e sim, também são todas bonitas, mas o critério principal foi mesmo o talento.
No fim, aquilo que inicialmente me parecia um grande desafio — este processo de casting — acabou por se tornar algo mais simples, graças à qualidade das atrizes. O foco foi sempre na força emocional do filme, e creio que conseguimos manter isso como prioridade.
Pietro Castellitto, Giulia Louise Steigerwalt e Barbara Ronchi no Festival de Veneza
O seu filme apresenta Riccardo Schicchi quase como uma figura beatificada, um visionário ingénuo e incompreendido. Não teme que esta abordagem, pouco crítica e algo adocicada, acabe por desresponsabilizá-lo das dinâmicas de poder e exploração que marcaram o universo pornográfico da época?
Compreendo essa leitura, mas para mim não se trata de uma abordagem acrítica. Antes de mais, é importante sublinhar que Schicchi não tinha qualquer atitude agressiva em relação às mulheres. Ele foi o primeiro a trazer a pornografia para Itália, e mais tarde arrependeu-se do que isso se tornou. Há uma clara distinção entre a visão inicial que ele tinha e o rumo que a indústria acabou por seguir.
Se olharmos para os filmes que ele realizava, conseguimos perceber um certo olhar artístico, há uma dimensão quase de conto de fadas, são trabalhos encantados, lúdicos, nunca agressivos. Há, aliás, uma intenção artística visível. Todas as pessoas que o conheceram, mesmo aquelas que hoje fazem parte de mundos completamente diferentes, dizem-me: “Finalmente alguém fez justiça à imagem dele.” Muitos deles viam-no como realizador e fotógrafo, mais do que como produtor, e não esperavam que a pessoa que trouxe a pornografia para Itália fosse tão... humana.
O que me interessou, precisamente, foi esse contraste: uma personagem quase infantil, ingénua, com uma visão muito própria sobre a sexualidade. Schicchi sempre se posicionou contra qualquer forma de encenação de violência nos filmes pornográficos. Ele não conseguia aceitar a associação entre sexualidade e violência: especialmente violência contra a mulher. Dizia: “Porque é que temos de ensinar às pessoas que podem excitar-se com a agressão a uma mulher?”
Hoje, infelizmente, 95% da pornografia mainstream é violenta e isso exige que o espectador (muitas vezes muito jovem, estamos a falar de crianças de 12 anos a acederem a esse conteúdo) se identifique com essa violência. Há um momento catártico em qualquer narrativa, e a pornografia acaba por pedir ao espectador que se identifique com atos violentos. É assustador!
Neste contexto, a abordagem de Schicchi pareceu-me quase feminista. Mesmo sendo ele quem iniciou a exploração do corpo feminino na pornografia, havia nele um profundo respeito e uma consciência ética, e, mais tarde, um arrependimento verdadeiro. Ele percebeu que, uma vez aberta a “caixa de Pandora”, não se podia controlar o que os outros fariam com essa liberdade. Por isso, não encaro a minha abordagem como acrítica. Vejo-a como fiel ao que recolhi em tantos testemunhos. Esta figura contraditória — criador e crítico, idealista e arrependido — é precisamente o que me fascinou. É por isso que acredito que a sua história, e o debate em torno dela, continuam tão atuais.
“Não achas que também contribuímos para isto tudo?”, pergunta Debora Attanasio (interpretada por Barbara Ronchi) num momento do filme que marca a transição para uma pornografia mais violenta e misógina — em contraste com a fantasia idealizada por Riccardo Schicchi. Como vê a evolução da pornografia até aos dias de hoje? O que mudou? E o trabalho de Schicchi tinha mesmo esse valor fantasioso, ou, no fundo, era apenas a mesma coisa, mas com outra estética?
Essa questão é muito importante. A verdade é que, a partir de certo momento, a pornografia começou a associar-se, de forma estrutural, à violência e isso tem consequências profundas, sobretudo hoje, com a disseminação massiva de conteúdo pela internet. O acesso é praticamente ilimitado, transversal, e começa muito cedo: as estatísticas indicam que muitos jovens têm o primeiro contacto com pornografia aos 12 anos.
O problema é que, em muitos casos, a pornografia tornou-se uma espécie de “educação sexual silenciosa”, feita fora de qualquer contexto crítico ou afetivo. Isso molda o imaginário das novas gerações de forma altamente manipuladora, e quando 95% dos conteúdos pornográficos são violentos — especialmente para com as mulheres — estamos perante um problema cultural gravíssimo.
No passado, muitas culturas representaram o erotismo ou o desejo, mas não necessariamente com essa carga de violência. Isso é algo específico da nossa época. No caso do Schicchi, o seu trabalho tinha, de facto, uma abordagem diferente. Encontrámos mais de 300 storyboards desenhados à mão por ele, alguns até foram usados no filme. Ele pensava visualmente, como um artista. Havia ali uma tentativa, talvez ingénua, de fazer algo com valor estético. Uma espécie de fantasia, sim … mas com respeito.
Desde muito jovem, ainda criança, Schicchi tinha uma enorme curiosidade pelo corpo feminino. Era algo quase sem pudor, mas não no sentido agressivo: ele olhava com fascínio, com uma curiosidade quase clássica, como a dos gregos antigos. Não havia violência no seu olhar, havia apenas desejo e admiração. No entanto, mesmo com essa abordagem, ele acabou por contribuir — involuntariamente — para a mercantilização do corpo da mulher. O que começou como um movimento de amor livre, herdeiro da contracultura dos anos 70, acabou por alimentar uma cultura de exploração que se tornou dominante.
Schicchi e Cicciolina foram, à sua maneira, revolucionários. Chegaram até ao Parlamento, quebraram tabus, enfrentaram o conservadorismo com provocações políticas e estéticas. Mas, ao mesmo tempo, abriram uma porta que não conseguiram fechar, e ele sabia disso. No final da sua vida, confessou a várias pessoas que se arrependia, não da pornografia em si, mas daquilo que, sem querer, acabou por desencadear.
Há uma sequência do filme de que gosto particularmente — ao som de “Break My Body” de Hanne Hukkelberg — em que Eva Henger (interpretada por Tesa Litvan, com quem já trabalhou em “Settembre”) reentra na indústria pornográfica, num estúdio em Budapeste, e percebe a sua decadência. O filme sugere que essa decadência é resultado da sobreprodução pornográfica. Acha que essa "sobrepornografia", tão presente nos dias digitais de hoje, contribui não só para a banalização da pornografia, mas também para a vulgarização da fantasia?
Essa sequência foi realmente importante para mim. Mostra o momento em que Eva entra num circuito completamente diferente daquele que conhecia — um ambiente frio, impessoal, onde as mulheres são tratadas com enorme desrespeito. Ela percebe ali a brutalidade daquela nova realidade, marcada por um tipo de pornografia que já não tem qualquer preocupação estética ou emocional.
Concordo que há um fenómeno de sobreprodução, sim — uma quantidade absurda de conteúdos produzidos em série, sem cuidado, sem ética, quase sem humanidade. Mas, mais do que a quantidade, o que me preocupa é o tipo de abordagem que se tornou dominante: uma abordagem muitas vezes violenta, desrespeitosa e completamente alheia ao consentimento. As mulheres são frequentemente tratadas como objetos descartáveis. Muitas das atrizes com quem falámos durante a pesquisa relataram experiências profundamente traumáticas e é importante dizer: só porque uma mulher escolhe ser atriz pornográfica, isso não significa que o seu consentimento está garantido em todas as situações. Isso precisa de ser respeitado a cada momento, em cada cena.
E é aqui que, para mim, Riccardo Schicchi se destaca. Ele tinha uma sensibilidade diferente. Muitas vezes acolheu atrizes que vinham de experiências traumáticas noutros contextos e ofereceu-lhes alternativas: punha-as a trabalhar noutros setores, fora das filmagens, dava-lhes tempo, ou mesmo sugeria que parassem se percebia que estavam mal. Ele não compreendia como era possível filmar com alguém que estava em sofrimento. Para ele, isso era impensável.
Portanto, mais do que a quantidade de pornografia, o verdadeiro problema está na forma como se olha para a mulher, e como se trata a atriz que está ali, a desempenhar um papel. O respeito, o cuidado, o consentimento: são esses os pilares que se perderam ao longo do tempo. E é isso que a sequência em Budapeste tenta mostrar com tanta força.
Muito se discute hoje sobre o male gaze, o “olhar masculino”, e segundo muitos teóricos, aquilo que não faltava na indústria pornográfica dos anos 70 e 80 era precisamente essa glamourização do olhar masculino. Tenho curiosidade em saber: ao olhar para esse universo, sentiu a necessidade de mimetizar esse olhar ou tentou desconstruí-lo?
Foi uma questão que me coloquei desde o início. Contar uma história que nasce dentro da indústria pornográfica inevitavelmente obriga-nos a pensar sobre o olhar, e sobre como representar o corpo feminino. Sabia que teria de lidar com a nudez, com o erotismo, com a exposição do corpo. Mas como fazê-lo sem replicar o male gaze?
A resposta que encontrei foi seguir a emotividade das personagens. Não quis fazer disso um manifesto explícito nem uma desconstrução forçada. O que fiz foi colocar o meu próprio olhar: um olhar profundamente empático, natural, e, acima de tudo, feminino. Para as personagens retratadas, o corpo nu era algo natural, desprovido de escândalo. Quis respeitar isso.
Por isso, não me preocupei em mimetizar o olhar masculino, nem em desconstruí-lo sistematicamente. Simplesmente adotei o meu. Um olhar que procura estar com as personagens, sentir com elas. Por exemplo, naquela sequência da Eva Henger ao som de “Break My Body”, o meu instinto foi ficar com ela, com a sua dor, com a sua experiência naquele set pornográfico moderno, frio e desumanizado. Todo o resto (o cenário, os outros, a ação à volta) está desfocado, quase fora de campo. Porque o foco, para mim, era a sua vivência interior, a sua desilusão, a sua vulnerabilidade.
Esse é o meu cinema. É aí que está o meu olhar.
No final do filme, fica-se com a sensação de que a Itália vive um ambiente puritano-moralista, quase castrador das fantasias — tanto masculinas como femininas. No seu entender, Riccardo Schicchi pode ser visto como um visionário dessa transgressão, que talvez não tenha conseguido levar até ao fim? Ou será antes um cúmplice da própria ambiência moral e política que se vive hoje?
A Itália é um país cheio de contradições. O peso da Igreja é uma presença constante e isto não é uma crítica à Igreja, mas sim uma constatação de um facto cultural: há uma forma muito italiana de lidar com o que é considerado “pecado”. Ou seja, tudo o que permanece escondido, silencioso, quase subterrâneo, é tolerado. Mas quando alguém tenta trazer isso à luz do dia, torna-se alvo de julgamento e moralismo. Riccardo Schicchi foi, nesse sentido, um verdadeiro anticonformista. Ele quis fazer uma revolução de costumes e, de certa forma, conseguiu. Mas não conseguiu completá-la. O seu objetivo era tornar tudo isto mainstream, visível, legítimo aos olhos da sociedade. E foi precisamente por isso que foi silenciado.
Curiosamente, aqueles que continuaram a explorar a sexualidade nas sombras (em clubes noturnos, em contextos marginais) nunca foram tão atacados quanto ele. Com Schicchi houve uma espécie de “perseguição” porque ele queria essa revolução à luz do sol. Na cultura italiana, ainda hoje, isso é algo dificilmente aceite. Portanto, não o vejo como culpado. Vejo-o como alguém que tentou desafiar uma estrutura profundamente moralista, mas que acabou tragado pelas contradições do próprio país. No fundo, essa é também a contradição central da história italiana: a convivência entre um desejo de liberdade e uma estrutura cultural que permanentemente a limita.
Hoje em dia, tanto Moana Pozzi como Cicciolina são vistas mais como figuras icónicas do que como atrizes pornográficas no sentido estrito. Em Portugal, por exemplo, praticamente toda a gente sabe quem é Cicciolina — mesmo que muitos nunca tenham visto um único filme protagonizado por ela. Podemos então considerar figuras como elas ao nível de uma popstar ou rockstar? Ou talvez algo mais?
Sem dúvida, Moana e Cicciolina foram verdadeiras divas do universo pornográfico, mas mais do que isso. Tornaram-se ícones culturais de uma época e é importante dizer que esse tipo de fenómeno, tal como aconteceu com elas, seria impossível de repetir hoje.
Naqueles anos, elas não eram apenas figuras do cinema adulto. Estavam em todo o lado. Participavam regularmente nos programas de televisão mais populares, integravam o imaginário coletivo. No filme, incluí até algumas dessas participações. Eva Henger, por exemplo, apresentou o “Paperissima”, um programa de grande audiência, e bateu recordes de telespectadores. Moana e Cicciolina chegaram até ao Parlamento italiano, eleitas. Isso hoje seria impensável. Elas simbolizavam uma verdadeira revolução dos costumes. Por isso, sim … eram como popstars. Tornaram-se parte integrante da cultura pop, do debate cultural e político do seu tempo. Cicciolina, por exemplo, é conhecida em todo o mundo não apenas pelos filmes, mas por ter casado com Jeff Koons e por ter sido parte da sua obra artística. Ela transcendeu completamente o rótulo de atriz porno.
Moana, por sua vez, tinha a ambição de se reinventar, de reformular a sua imagem. O filme fala disso. Queria explorar outros papéis, mas foi-lhe negado esse direito. A sociedade não permitiu. Em vida, foi constantemente reduzida à sua identidade pornográfica. Só depois da sua morte foi reconhecida como uma mulher elegante, inteligente e uma figura de culto.
O que aconteceu com elas foi um fenómeno muito particular. Foram desejadas e idolatradas... mas também condenadas. A sociedade queria-as, mas simultaneamente empurrava-as para a margem. E isso, mais uma vez, revela aquela velha contradição italiana de que falávamos antes: um país entre o desejo de liberdade e um moralismo persistente.
Uma das resistências mais marcantes de Moana — e isso está bem retratado em “Diva Futura” — é a sua vontade de se emancipar do universo que a consagrou. Mas, infelizmente, parece nunca ter conseguido vingar noutros espaços. Em várias entrevistas, que o filme reproduz, Moana afirma que ser atriz pornográfica é uma espécie de maldição — uma vez dentro, nunca se sai. Concorda com essa visão?
Sim, na verdade, essa pergunta liga-se diretamente à anterior. Moana — como muitas outras — escolheu entrar na pornografia porque, naquele momento, não sentia estar a fazer algo “errado”. Havia uma naturalidade na relação com o corpo, com o desejo. Mas também havia o sonho de usar aquele caminho como trampolim para algo maior, para o estrelato, para o cinema convencional. Ela queria, de facto, ser atriz. Fez testes, tentou entrar noutros circuitos. Mas, como ela própria dizia, uma vez atriz pornográfica, para sempre atriz pornográfica. É como uma marca que nunca desaparece. Uma espécie de letra escarlate que a sociedade impõe.
E o mais paradoxal nisto tudo é que essa mesma sociedade que a condena... é também a que mais a deseja. É essa duplicidade que o filme tenta expor: a hipocrisia em que se consome com entusiasmo, mas se rejeita com moralismo. Eva Henger diz isso muito bem numa entrevista: elas não tinham as ferramentas para compreender completamente o que estavam a fazer, especialmente se tinham sonhos além da pornografia. A ilusão era de que podiam sair quando quisessem. Mas não podiam.
E mais ainda: há um duplo padrão muito claro. Os homens raramente são julgados com a mesma severidade. As atrizes são mais estigmatizadas, mais silenciadas. Foi algo que quis iluminar: essa diferença de tratamento, essa injustiça profundamente enraizada.
Com "Diva Futura", teve alguma reação dos familiares de Schicchi — refiro-me aos filhos, a Eva Henger, ou até mesmo à Cicciolina?
Sim. Recebi algumas reações dos familiares de Schicchi, como os filhos, a própria Eva Henger, e o atual marido dela, Massimiliano, além da Débora, do marido de Moana, Antonio, e muitas outras pessoas que colaboraram na agência naquele tempo. Eles participaram bastante, contaram muitas histórias e ajudaram-me a construir o filme.
Quanto à Cicciolina, infelizmente não conseguimos estabelecer contacto com ela, também pelo desenvolvimento do filme. A reação dos que participaram foi muito positiva. Por exemplo, todos eles estiveram na estreia do filme no Festival de Veneza, no ano passado, e ficaram muito felizes e emocionados.
A Eva disse que, em muitos momentos, voltou a sentir o Ricardo ali, e o Pietro Castellitto, fez um trabalho impressionante estudando os vídeos, a forma de falar e os gestos do Riccardo [Schicchi], para capturar também a parte emotiva da personagem. Os filhos, a Eva, o Massimiliano, demonstraram-se muito emocionados e satisfeitos com o resultado. A Débora contou que, ao rever o filme, sentiu que estava a reviver aqueles anos, que foram alguns dos mais divertidos das suas vidas.
A cena no mar, no final do filme, é uma memória real, e eles se reconheceram completamente naquele retrato. Para mim, isso foi o mais importante: que eles sentissem que a história escolhida respeitou e refletiu realmente quem eles são e o que viveram.
E para finalizar, quanto a novos projetos?
Em relação a novos projetos, estou a tentar perceber o que fazer. Não quero parecer misteriosa, mas ainda estou a explorar possibilidades, por isso, e por enquanto, não tenho nada de concreto para partilhar.
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Wim Wenders e o fotógrafo Sebastião Salgado (1944 - 2025) / Foto.: Donata Wenders
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Menção no jornal da Cinemateca Portuguesa! Contudo, há que frisar que "Quorum", a curta-metragem de Rafael Fonseca, vai estrear no Museu do Cinema no dia 27 de junho.
Poderia estar aqui a escrever uma ou duas frases 'bonitas' sobre o filme para vos aguçar a curiosidade, mas basta ler o cujo texto [ler aqui]. Está lá tudo, e o que falta podem encontrá-lo no "Quorum".
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