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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cães de Palha!

Hugo Gomes, 29.04.25

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Sob os ecos de esclavagismo, como fora pintado por grande parte da imprensa brasileira (e não é por menos, tendo em conta a História do país), o pernambucano "Propriedade", de Daniel Bandeira, parece servir de alegoria para o processo abolitivo da escravatura e consequentemente, o destino dos escravos emancipados nas trasladações rumo à liberdade (deixá-los mal amparados?). Contudo, há igualmente um deleite neste filme a partir de uma perspectiva histórica portuguesa. 

Neste suposto filme de cerco, com rézinhas e secreções aos elementos reconhecíveis do género de terror, guia-se para além da recente historiografia lusitana (já lá vou!), embate nas várias constelações da cinematografia europeia. Mas antes de tudo, escutemos o grito dos aflitos, aqui, com um casal de classe elitista, partindo rumo à sua propriedade para escapar aos traumas e inquietações que os atormentam. Acreditando estar “livre” da criadagem, dos serviçais que, por gerações, assumiram o papel de bem servir a família latifundiária, são surpreendidos à chegada com uma pilhagem e uma agressividade para com os seus “mestres”. Entende-se que a venda do espaço a uma rede de hotelaria atira esse grupo para o “deus-dará”, uma revolta “popular”, que “ocupa” o território e persegue-os até às últimas consequências. A mulher do casa (Malu Galli) barrica-se no interior do seu carro blindado e de última tecnologia, enquanto desesperados, os “servos” planeiam tudo e mais alguma ‘coisa’ para a conseguir expulsar da sua fortaleza ambulante. 

Perante esse caldeirão de classes sociais em choque, invoca-se uma memória colectiva bem à portuguesa: “Torre Bela”, herdade, essa, captada por Thomas Harlan (1977) e imortalizada no nosso imaginário. As imagens expuseram um balão de ensaio da “apropriação de propriedade privada”, ou, no lema de quem a prega, “devolver a terra a quem a trabalha”,  e, por outro lado, registaram a desilusão perante o sonho comunista. Claro que estes “fantasmas” abrem fraturas, muitas delas delirantes, na sociedade brasileira: algures entre uma direita que sonha com comunistas em cada canto e uma esquerda que emprega ideais socialistas num só recanto. Este jogo de maniqueísmos, constantemente equilibrado no trapézio, torna "Propriedade" num objecto encantatório de pertinência, fiel aos seus recursos e limitações, sem nunca se vender por barato.

Seguindo essa tais “constelação europeísta”, é certo que não se desgruda da secura violenta de Sam Peckinpah — "Straw Dogs" (1971), efectivamente [uma produção do Reino Unido] — nesse sentimento de posse que desencadeia a martirológica ruptura,  nem do iconoclasta Luis Buñuel, que ao tratar a pobreza sem branqueamentos morais no seu controverso "Viridiana" (1961), ostenta os desesperados proclamado a sua bondade e o bem praticado em prol de um “mal necessário”. São leituras e devidas releituras, propícias ao facto de "Propriedade" ser na sua essência, aquilo que se espera do terror: manifestação política. E é também suficientemente ousado para não ceder aos moralismos quase doutrinadores. Invoca assombrações por todo o canto, para além da sua capa de enérgico thriller de focinheira pronta (por vezes perdoando os ‘rodriguinhos’ e o exagero oportunista), é uma armadilha político-social, aberta a múltiplas exegeses, sem jamais evadir o seu cinzentismo temático.

Maia IFF 2025 promete cinema para tudo e todos para não se ficar "à mercê de blockbusters semelhantes"

Hugo Gomes, 29.04.25

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"Moon" (Kurdwin Ayub, 2024): exibido no dia 1 de Maio, pelas 18h30

A cidade da Maia acolhe, pelo segundo ano consecutivo, o seu festival de cinema internacional, provando que a sétima arte pode chegar aos mais diversos cantos, fora da tradicional centralização Lisboa-Porto. É com esta segunda edição que a resistência se faz sentir com mais força, não apenas no formato, mas também na própria presença do evento. Perante uma programação selectiva e diversificada, sem medos de exibir cinema português, com masterclasses, tertúlias e debates, o Maia IFF promete “fincar pé" nesse lugar cultural ainda por explorar.

O Cinematograficamente Falando... desafiou Gustavo dos Santos, director do festival e também realizador ("Zulmiro de Carvalho", "Percepção Delicada de um Raio de Luz"), a desvendar o evento, as novidades e os statements que marcam a sua razão de ser.

Maia International Film Festival arranca amanhã (30/04), no Forum da Maia. A programação poderá ser consultada aqui.

A segunda edição do Maia International Film Festival apresenta uma curadoria ambiciosa e cosmopolita. Num mundo saturado de festivais, o que é que distingue, para si, este festival da Maia enquanto espaço de resistência ou celebração artística?

O cinema (ou a sala de cinema) trava uma luta muito grande com os serviços de streaming. Nunca como dantes as pessoas preferiram tanto o conforto de sua casa ao (des)conforto do cinema. Os festivais devem-se distinguir exactamente como eventos sociais e espaços de visualização de filmes que não poderão ser vistos em casa.

O nosso festival não se pretende diferenciar de outros festivais de nenhuma maneira específica. O nosso objectivo é apenas oferecer uma programação de qualidade e exclusiva (a maioria dos nossos filmes são estreia nacional), e que faça com que o público se reaproxime da sala de cinema. Toda a gente que trabalha com cinema menos comercial depara-se sempre com dificuldades de público, mas se toda a gente desistir, ficaremos exclusivamente à mercê de blockbusters semelhantes!

A presença de realizadores como Margarida Cardoso [Portugal - Moçambique] e Algimantas Puipa [Lituânia] acena a uma ponte entre geografias e memórias distintas. Que tipo de diálogo espera que surja entre o público português e estas cinematografias menos "globalizadas"?

O cinema como arte deve ou deverá sempre despertar curiosidade. Uma pessoa que esteja menos habituada a este tipo de cinema poderá ter mais questões ou questões diferentes em relação a alguém cuja bagagem cinematográfica seja bastante maior. Na minha opinião, isso deverá dar azo a discussões interessantes entre realizadores e o público.

Com uma programação ecléctica e de múltiplo-públicos, como se equilibra o festival da sua vertente formativa com a curadoria para um público já cinéfilo?

Imagino que existam sempre pessoas mais elitistas, cujo conteúdo de alguns filmes não interesse. Mas como elitista eu próprio, acho que de vez em quando também faz bem uma comédia descontraída ou um filme mais "light". De qualquer maneira, mesmo este tipo de filmes, foram escolhidos com critério, são filmes que também têm a sua profundidade.

A escolha do júri é quase um manifesto estético e político: de João Nuno Pinto a Manuela Pimentel. Há aqui uma intenção deliberada em misturar sensibilidades e disciplinas artísticas? Como se cruzam essas vozes na hora de avaliar cinema?

Foi nosso objetivo desde o início ter um júri multidisciplinar. Nunca poderá haver 1 júri sem alguém do cinema, mas há muitas pessoas de outras disciplinas que adoram e entendem de cinema. Essa diferença de sensibilidade é o que nos interessa. Queremos olhos diferentes com visões diferentes. Desta maneira, penso que conseguiremos determinar vencedores de uma maneira mais equilibrada.

- "A Woman and Her Four Men" (Algimantas Puipa, 1983): 1 de Maio, 21h30, seguido por uma masterclasse com o realizador

- "The Hyperboreans" (Cristóbal León & Joaquín Cociña, 2024): 2 de Maio, 18h30

- "Banzo" (Margarida Cardoso, 2024): 3 de Maio, 21h30

Tendo no seu percurso uma forte ligação ao documentário e à videoarte, sente que essas linguagens encontraram já o seu lugar natural nos festivais portugueses, ou continuam, de certa forma, relegadas para as “secções alternativas”?

A minha área de formação é cinema. Sempre estive muito ligado à ficção e ao documentário, a Videoarte é uma paixão recente! A pergunta é pertinente e real e a resposta curta é (e penso que será sempre) afirmativa. Há festivais dedicados exclusivamente a cinema documental onde o documentário é o principal, mas em termos gerais o documentário é "empurrado" para uma secção própria por ser difícil de comparar e julgar em relação à ficção. São dois formatos com características muito diferentes, tempos diferentes, orçamentos diferentes. Numa competição, será difícil um documentário ganhar se estiver a competir contra uma ficção. Em relação a videoarte é pior ainda. Muitas vezes a videoarte não tem uma narrativa, e se tiver, não deverá ser uma narrativa literal ou de palavra. Eu vejo a videoarte como algo muito mais sensorial. Outra coisa são os tempos. A videoarte pode ter 5 minutos ou 24 horas, como comparar isso a um filme tradicional?

O seu próximo documentário aborda o artista Flávio Rodrigues. Como é que a experiência pessoal enquanto criador e programador interfere (ou ilumina) a construção de um festival como este, que parece querer desafiar tanto quanto acolher?

A minha visão como criador é diferente do que como programador. Cada um tende sempre a "puxar a sua sardinha para a sua brasa", e como programador, o objectivo não é agradar apenas a mim, mas a um conjunto de pessoas. Neste momento o júri de pré selecção são quatro pessoas, sendo a programação a visão de quatro pessoas e não apenas minha. Em conjunto, tentamos sempre ter critérios que nos levem a agradar o público, e obviamente que há um público alvo que é o público cinéfilo. Mas queremos que o festival seja para todos. Como criador, a minha visão de artista ajuda sempre a elevar o nível dos filmes que apresentamos no festival. Aquilo que exijo a mim, o critério, irei exigir o mesmo dos outros!

Como poderemos definir o MaiaIFF no futuro? Ambição para as próximas edições?

O nosso objectivo para o futuro é poder alargar o festival em termos de dias e poder termos mais convidados com filmes e mais masterclasses. Como já referi antes, o festival deve criar interacções humanas. Se tivermos mais realizadores, mais actores, mais equipas técnicas, poderemos ter muito mais conversas e muito mais aprendizagem.

Pretendemos também o alargamento de parcerias estratégicas, como instituições culturais locais e internacionais, universidades e colectivos.

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KULTURfest 2025: o 'K' que une cultura e cinema. Começa a segunda edição!

Hugo Gomes, 26.04.25

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"Solo Sunny" ( Konrad Wolf, 1980): exibido no dia 29 de abril, pelas 21h00, na Casa Comum | Universidade do Porto

Contemos cultura com “K”, à boa moda alemã, conectando também com a palavra “Kino”, cinema no linguajar germânico. A KULTURfest chega à sua segunda edição, partindo da cidade Invicta até à capital, com a missão de difundir essa cultura, atravessando as mais diversas artes. O cinema é apenas um dos ramos … e até um dos mais políticos.

O KULTURfest – Festival de Culturas de Expressão Alemã arranca já amanhã (27/04) no Porto, no dia 21 em Lisboa, e prossegue depois para outras cidades portuguesas. Toda a programação poderá ser consultada aqui. Entretanto, Teresa Althen e Jana Binder, programadoras do evento, responderam ao desafio do Cinematograficamente Falando…

Depois da primeira edição em 2024, que desafios encontrou na programação desta segunda edição do KULTURfest? Houve necessidade de limar algumas arestas ou repensar direções? 

O KULTURfest 2024 foi um projeto piloto para descobrir se um festival interdisciplinar, direcionado a diferentes públicos, poderia ter sucesso. No final da primeira edição fizemos uma avaliação do projeto e ficámos surpreendidos com o quão bem funcionou em Lisboa, o que nos encorajou não só a planear uma segunda edição, mas também a expandir o programa para outros locais, tentando sempre ir ao encontro das necessidades do público e das questões pertinentes da atualidade que ampliem o intercâmbio cultural. Este ano, o Porto dá início ao festival com um programa desenvolvido em colaboração com a Universidade do Porto – Casa Comum, onde terão lugar a maioria dos eventos. Já em Lisboa, o festival volta a dinamizar as instalações do Goethe-Institut em Lisboa. Mantêm-se, é claro, as parcerias, e os eventos fora de portas, quando as necessidades técnicas dos espetáculos assim o ditem.  

O KULTURfest propõe um cruzamento ambicioso entre cinema, performance, gastronomia e música. A intenção é construir um retrato abrangente da cultura germânica ou criar antes uma experiência sensorial que ultrapassa o plano meramente didático? 

A diversidade da cultura é mostrada através da junção de vários tipos de artes e ofertas culturais, abrangendo um público mais lato. Acreditamos que as duas coisas não se excluem mutuamente: o intuito não é a didatização, mas sim fazer parte da experiência de imersão cultural que propomos.  

Ao criar a programação do KULTURfest 2025, tivemos em mente diversos aspetos, dando prioridade à representatividade e ao diálogo intercultural. Em primeiro lugar, procurámos o que se destacou na produção artística na Alemanha no último ano e meio nas áreas da música, do cinema, da performance, das exposições. Depois, identificámos aniversários marcantes que nos permitem olhar mais de perto para uma determinada personalidade ou acontecimento histórico e que pudessem ser relevantes nos dias atuais. Também procurámos propostas que pudessem interessar não só a um público que já teve contacto com a cultura de língua alemã, mas aos públicos que o fazem agora pela primeira vez. E, finalmente, tentámos integrar propostas não só da Alemanha, mas também de outros países de expressão alemã: Áustria, Luxemburgo e Suíça

A partir destes conceitos, em 2025, desenvolveram-se diálogos entre as várias propostas culturais que incluímos tanto na programação do Porto, como na de Lisboa, sempre tendo em conta o que os diversos espaços onde o festival vai ter lugar têm para oferecer.  

Com tantas entidades envolvidas e um programa que se estende por várias cidades, como é que se assegura uma identidade coesa ao festival? O que impede o KULTURfest de se tornar apenas um mosaico de eventos isolados?

Um projeto feito a várias mãos é sempre um desafio, e a colaboração com muitos parceiros torna o processo mais complicado de gerir, porque é necessário dar resposta a necessidades e públicos muito diferentes. Mas sabemos que um bom trabalho cultural consiste em misturar o invulgar e pôr em contacto diferentes públicos. Isto pode levar a experiências emocionantes. As temáticas abordadas no KULTURfest 2025 - reunificação/divisão da Alemanha e da sua sociedade; migração; papel das mulheres - mantêm-se. Já a forma como abordamos os temas nas diferentes cidades varia. Em cada cidade por onde o KULTURfest 2025 vai passar, a oferta é diferente e adaptada aos parceiros locais, aos espaços que nos acolhem, que têm as suas especificidades e constrangimentos. O programa do KULTURfest não é, por isso, só um. É um programa adaptado a cada cidade e a cada realidade, e onde os elementos funcionam tanto em conjunto, como também de forma isolada.

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“Zwei zu Eins” (Natja Brunckhorst, 2024): exibido no 28 de abril, pelas 21h30, na Casa Comum | Universidade do Porto

Num momento em que a Europa volta a confrontar-se com temas como fronteiras, migração e identidade, de que forma o KULTURfest aborda estas questões, nomeadamente a (e)migração, sem cair em leituras simplistas ou mensagens unidimensionais? 

Estes são temas que nunca deixam de ser atuais e que são recorrentes no trabalho do Goethe-Institut por todo o mundo. Acreditamos que o intuito do festival é trazer à tona discussões aprofundadas sobre este e outros temas de interesse contemporâneo, construindo senso crítico e dando voz a diferentes experiências e concepções.   

A partir destes conceitos, em 2025, desenvolveram-se diálogos entre as várias ofertas do festival. Um programa de filmes e debates tenta abordar por que razão as duas Alemanhas ainda não se uniram completamente, mesmo 35 anos após a reunificação, o que levou a que uma parte da Alemanha hoje apoie um partido com fortes tendências antidemocráticas. O programa de exposições e debates foca-se no tema da migração, tanto no passado quanto no presente. Também temos propostas que convidam o público a discutir temas que há 100 anos também eram muito presentes, como é o caso da conversa sobre o autor Thomas Mann, onde se reflete sobre a resistência artística no passado e no presente. Isto, no entanto, sem esquecer que o KULTURfest continua a ser um festival cultural na sua essência. 

Na seleção cinematográfica nota-se uma forte presença de comédias e sátiras. Esta escolha reflete uma tendência no cinema germânico contemporâneo de lidar com a realidade através do humor, ou é também uma forma deliberada de provocar reflexão sem recorrer ao dramatismo? 

O cinema de expressão alemã não é conhecido por lidar com a realidade de forma humorística e leve. Durante o KULTURfest, foi importante podermos mostrar que existe uma maior variedade no cinema de expressão alemã, provar que existem ofertas para todos os gostos, o que contraria um pouco o estigma mais “pesado”. Os filmes que escolhemos para esta edição apresentam diversas formas de abordar a realidade (e a história), como é o caso do filme de abertura no Porto e em Lisboa, “Dois por um” (“Zwei zu Eins”), uma comédia mais “feel good”, mas ao mesmo tempo honesta sobre a reunificação alemã, e que junta um elenco de luxo, onde se destaca Sandra Hüller (“Anatomie d'une chute”). Já o filme de encerramento no Porto, “Veni vidi vici” (Daniel Hoesl e Julia Niemann, 2024) é uma sátira política austríaca bastante forte. Pode-se observar de facto um “talento especial” para este género no cinema austríaco, com realizadores como Ulrich Seidl (que produziu o filme em questão), e um humor bastante sarcástico e ácido, que é usado para refletir sobre questões pesadas da nossa sociedade.

O KULTURfest surge no rescaldo do desaparecimento do KINO – Festival de Cinema de Expressão Alemã. Este novo festival procura ocupar esse espaço ou representa uma evolução com um escopo mais alargado e interdisciplinar? 

O KULTURfest tem origem não só na mostra de cinema KINO, mas também no festival de jazz europeu JIGG – Jazz im Goethe-Garten. Devido aos graves cortes orçamentais no setor cultural alemão, ambos os festivais deixaram, infelizmente, de existir. A dimensão de ambos os festivais também significava que dificilmente conseguíamos não só explorar outros géneros, mas também levar estes festivais a outras cidades, dado que ambos os festivais se realizavam principalmente em Lisboa. O KULTURfest é, por isso, uma oportunidade de explorar algo novo – tanto em termos de formato e de temas, como de locais.  

Ambições para a terceira edição ou futuras? 

As nossas ambições são sempre muito elevadas, claro. Temos muitas ideias, muitos artistas e projetos que gostaríamos de trazer até Portugal, colaborações e conversas que gostaríamos de incentivar. Mas vamos primeiro avaliar como corre esta edição, e depois refletir sobre o mesmo. Também caberá aos nossos parceiros e patrocinadores fazerem a mesma avaliação e decidir se estão interessados em apoiar-nos no futuro. 

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"A política também é a nossa atitude perante a vida, a sociedade, onde estamos, o que fazemos, a nossa presença": conversa com Rui Pires, o realizador de "O Palácio de Cidadãos"

Hugo Gomes, 25.04.25

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O Palácio de Cidadãos

Pertinente será talvez referir a possível e equívoca caracterização deste documentário. Em vésperas de mais umas eleições legislativas — provocadas entre uma moção de confiança chumbada e a “persistência” de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) —, com os portugueses a questionarem o seu próprio ato democrático, chega agora às salas de cinema “O Palácio de Cidadãos”, um documentário que capta o último ano da chamada "geringonça".

Contudo, não se limita a uma representação meramente temporal: o realizador Rui Pires, sob a influência das lições de Frederick Wiseman, percorreu os corredores do Palácio de São Bento, captando os alicerces da democracia, o vínculo, por vezes instável, entre cidadãos e políticos, e a arte da política na representação de uma instituição, “pavoneando”, atento, os corredores, como um verdadeiro observador. É um documentário filmado em estâncias canónicas, mas que é, simultaneamente, político na sua forma de estar, como, aliás, é o caso de quase toda a obra de Wiseman.

A invocação do documentarista, aliás, cineasta norte-americano não é casual: a conversa entre Rui Pires e o Cinematograficamente Falando … passou inevitavelmente por algumas paragens obrigatórias na carreira de Wiseman, tanto como influenciador, como enquanto modelo de abordagem documental. Mas houve espaço para tudo: do politizado ao pavão que passeia livremente pelo Palácio e no cartaz, como também as intenções e a montagem, o que fazer dela e dessa “espada”?

O Palácio de Cidadãos” estreou num momento em que a política amplifica a natureza dos próprios espectadores: há quem veja o filme como um ato de ativismo, outros como uma expressão de conformismo. Para nós, é sobretudo um ato profundamente cinematográfico.

Depois da estreia no Doclisboa de 2024, o filme finalmente estreia em sessões comerciais …

Posso dizer que entretanto continuamos a trabalhar na montagem do filme, o qual acabou por ter uma pequena redução. Já não tem 2 horas e 12 minutos, e sim 2 horas concretas.

Ou seja, a versão vista no Doclisboa era uma versão “alargada”. Já agora, onde aconteceu essa redução?

Não foi nada de especial. Retirámos algumas cenas que nos pareceram ter pouca relevância. Vendo em retrospectiva, ao pensar que o filme ia estrear nas salas, queríamos que ele pudesse chegar ao máximo número de pessoas. Sentimos — e também nos diziam — que havia umas partes mais "chatas". Cada pessoa tem a sua opinião, mas consegui perceber que, ao tirar alguns elementos, o filme ficaria mais acessível. Até porque, dramaticamente, algumas cenas repetiam ideias: diferentes, mas próximas. Não queria que o público sentisse saturação. Preferia que pudessem ver o filme “bem”, essa acessibilidade era importante. E, aliás, foi uma concessão que aceitei perfeitamente.

Esta decisão de cortar o filme foi, de alguma forma, influenciada pelo prémio que ganhou no Doclisboa [Prémio Max - Para Melhor Filme da Competição Portuguesa]?

Não, sinceramente, o prémio foi um bocadinho irrelevante. Nem me lembrava que havia prémios. No dia, estávamos lá, foi completamente inesperado. Achávamos que havia tantos filmes bons no festival... Nunca imaginámos que houvesse interesse pelo nosso, mas depois disseram-nos que a decisão foi unânime. Foi uma surpresa!

Acho que o júri reconheceu o trabalho de tornar um tema tão árido, que diz respeito a toda a gente, mesmo sem se aperceberem, em algo com dimensão dramática. Nós não estávamos à espera. Fazer um documentário é um trabalho muito duro. Este filme foi muito trabalhado narrativamente e foi um processo laborioso. Houve cenas que demoraram semanas a montar: começavam com três horas de material, depois para meia hora, depois para 15 minutos, 11 minutos e meio... até ficar pelos 6 minutos e meio, por exemplo. Todo o processo de montagem durou quatro anos. Pode não parecer, porque o filme tem um fluxo contínuo, mas isso é fruto de um trabalho muito preciso de montagem, para tornar o esforço imperceptível. Narrativamente, sinto que conseguimos isso.

Achávamos que o filme não era assim tão "impactante", talvez também por saturação do próprio processo. Porque, de facto, é exaustivo trabalhar tanto tempo num projeto. Mas fiquei muito satisfeito pelo filme ter ficado acessível, e a estreia mundial no Cinema São Jorge foi extraordinariamente gratificante para mim. Poder sentir a reação das pessoas é fundamental. Quando fazes um filme — sobretudo no meu caso, em projetos mais profissionais ligados à montagem — queres que aquilo tenha um impacto nas pessoas. Não é pô-las a chorar, nem forçar emoções, mas sim transportá-las. E senti isso de uma forma incrível.

Quando as pessoas se riem durante um filme, mesmo que este não seja uma comédia, é porque conseguiram envolver-se. Isso é muito difícil de alcançar e foi muito estimulante para mim. Não se trata de contentar o público, mas de os conseguir transportar emocionalmente.

Para mim, isso é o que o trabalho de montagem procura: criar impacto. Seja ansiedade, seja desconforto, seja alegria, o que for. Nas sessões de teste que fizemos, até aqui na Casa do Comum, já intuía alguma coisa. Convidávamos pessoas que não conhecíamos, para termos feedback real. Mas numa sala cheia, com público desconhecido, essa reação coletiva torna-se muito evidente. E percebes porque é tão importante ver filmes em sala. Porque é contagiante. Isso é uma das experiências mais motivadoras para quem faz cinema.

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Rui Pires

Aliás, falando nisso: o filme parece ter como uma "corrente de ar" a atravessar os corredores do Palácio de S. Bento- ele flui muito bem - há essa energia interior com graças da montagem. Gostava também de perguntar o seguinte: muitos montadores dizem que têm muita dificuldade em “largar” o filme durante o processo de montagem, que é duro, demorado e, muitas vezes, insatisfatório. Houve algum momento em que foi necessário um produtor chegar ao pé de si e dizer: "Acabou, não mexes mais"? Ou possui uma disciplina interior que te guia?

Há sempre alguma pressão da produção, mas ela nunca foi determinante para tirar o filme das minhas mãos. Senti uma obrigação pessoal, especialmente para com as pessoas que aceitaram ser filmadas, de fazer o melhor filme possível.

Acho que isso é muito importante.

Sim. Quando fazes um filme com pessoas reais, sentes essa responsabilidade, sobretudo em documentário isso é permanentemente. Na ficção pode ser diferente, embora também haja um respeito pelo trabalho dos atores. No documentário, essa responsabilidade é ainda mais sensível.

Não é só uma questão de "dar voz" às pessoas ou fazer propaganda do que elas dizem. É mais que isso: as pessoas entregaram algo de si mesmas ao filme, confiaram em nós. Então, é meu dever representar isso de forma coerente com o filme. Não estou a dizer que é para agradar “a gregos e a troianos” — lembro-me perfeitamente de, na estreia no Doclisboa, um deputado me ter dito que não gostou do filme. Talvez porque aparecesse pouco, ou por outras razões. Mas o filme não pretende ser propaganda, nem uma representação dos partidos. É o que está publicado, e, sobretudo, dá a ver muitas “vozes” que são invisibilizadas no Parlamento.

Não sei se respondi totalmente à tua pergunta sobre largar ou não largar o filme... Mas, para mim, a sensação era constante: "Tenho de conseguir fazer o melhor filme possível." Sabia que isso exigia tempo.

Muitas vezes, o que sinto — por experiência — é que não há tempo suficiente para terminar um filme, por razões económicas: não há dinheiro para fazer filmes em Portugal, ou quase todo o orçamento vai para a rodagem, que é onde há mais despesa. Mesmo assim, neste projeto, feito com poucos meios e poucas pessoas , tanto a Monomito Argumentistas como a Terratreme Filmes conseguiram montar uma estrutura de produção que permitiu dar ao filme o tempo necessário para ganhar a sua forma certa.

Sim, e a montagem é uma questão essencial neste tipo de documentário, mas queria também perguntar sobre o contexto do filme: pelo que li, foi filmado durante um ano, certo? No último ano da chamada "geringonça"?

Sim, foi durante a quarta sessão legislativa. Normalmente, as legislaturas têm quatro sessões. Filmámos no último ano da "geringonça", daquele Parlamento, daquela configuração de forças na Assembleia.

Exatamente. Gostava de perguntar, a nível de género: de onde surgiu a ideia, ou o plano, de filmar dentro da Assembleia da República?

Que tipo de filme tinha em mente?

Não estou a insinuar que houvesse uma intenção de propaganda, não é isso. Mas acredito que tudo é político: mesmo quando as coisas não parecem políticas, são. Queria saber se essa dimensão política o acompanhou também na montagem do filme?

Talvez... talvez consiga chegar à ideia que estás a colocar. Se a política também está na montagem? Sim, de certo modo.

E a ideia política que tinha para o filme — conseguiu concretizá-la na montagem?

São coisas diferentes. Podemos ser pessoas politicamente ativas, sem exercer "política" no sentido tradicional. A política também é a nossa atitude perante a vida, a sociedade, onde estamos, o que fazemos, a nossa presença.

O filme começou há muito tempo. Se chegarmos a Maio deste ano [2025], fará dez anos desde que o processo começou. Na verdade, a ideia começou ainda no período da Troika, porque havia muitas manifestações, e eu, como muitas outras pessoas, participava. Essas manifestações acabavam quase sempre nas escadarias da Assembleia e contestavam o Governo. Percebi aí que talvez houvesse uma confusão: parecia que se protestava contra o Parlamento, mas era contra o Governo.

Achei, talvez ingenuamente, que muitas pessoas não compreendiam bem o funcionamento da democracia. Hoje vejo de forma diferente: as pessoas sabiam que a Assembleia é também um espaço de poder. O Parlamento representa efetivamente a sociedade através dos partidos. A partir daí, pensei: seria interessante mostrar o que acontece realmente dentro da Assembleia, desmistificando certas ideias, mostrar que existe um poder efectivo exercido ali, e isso já era uma ideia política.

Depois, quando fazemos cinema, procuramos outra coisa: o encontro com o outro, ver através dos olhos do outro, ou pelo menos reconhecer que há outros pontos de vista e empatizar com eles. Isto é comum ao cinema, tanto na ficção como no documentário: criar empatia. Claro que também podemos observar à distância, mas o que me interessa é criar ligação, proximidade. Foi mais ou menos conseguido no filme. Era uma intenção desde o início, mas também um desafio enorme: como chegar a estas pessoas dentro da Assembleia.

Então, a partir de 2015, começámos a fazer contactos, entretanto, houve eleições, o governo de Passos Coelho, sem maioria, caiu ao fim de duas semanas, e foi formada a solução política da "geringonça". Mas, para mim, a existência da "geringonça" era indiferente: o filme teria sido feito qualquer que fosse a configuração parlamentar. Começámos a contactar os grupos parlamentares, queríamos comunicar a todos que o projeto era para mostrar o Parlamento como um todo, e não apenas um lado político.

Inspirámo-nos na experiência do Frederick Wiseman: a ideia de fazer um filme coletivo, sobre uma instituição. Na altura talvez fosse ingénuo da minha parte, mas esse era o objectivo. Demorámos cerca de dois anos e meio a conseguir as autorizações de todos os partidos … houve muitas reticências, especialmente à direita. Até o Presidente da Assembleia, Eduardo Ferro Rodrigues, acabou por intervir publicamente, apelando à abertura da "Casa da Democracia" à sociedade civil. O filme não pretendia mostrar o lado "voyeurista" do Parlamento, nem o que se passa em segredo.

A matéria do filme é o trabalho público dos deputados: como representam pessoas, mesmo com opiniões divergentes. O núcleo é isto: como se debate, como se negoceia, como se chega a acordos. Parece, à partida, uma matéria super aborrecida e o desafio era torná-la cinematográfica e dramática.

Sim, exatamente! Há aquela ideia que associa o canal Parlamento ao aborrecimento televisivo...

E no entanto, há transmissões com dezenas de milhares de espectadores, por vezes até centenas de milhares.

Especialmente nos debates do Orçamento de Estado.

Sim, mas esses não me interessavam tanto. Há também comissões de inquérito, mas são temas muito específicos, muito datados. O que me interessava era algo que falasse a todos, que tivesse impacto na vida das pessoas. Claro que o Orçamento é central — filmámos isso extensivamente — mas acabou por não entrar no filme, porque não se adequava à narrativa que queríamos construir.

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O Palácio de Cidadãos

E quanto aos entraves? Falou há pouco da resistência de alguns partidos de direita. Que outras dificuldades surgiram na rodagem? Imagino que não pudessem filmar tudo livremente...

Sim, claro! Desde o início que respeitávamos as pessoas: pedíamos sempre autorização. Por exemplo, cidadãos comuns que iam a audições parlamentares: perguntávamos se podíamos filmá-los, e ninguém nos disse que não. Só uma senhora pediu para não aparecer e, obviamente, respeitámos isso. Também, por vezes, havia reuniões privadas entre grupos parlamentares e cidadãos.

Alguns partidos — especialmente à direita — só autorizavam captar imagens iniciais, como a imprensa faz, e depois pediam-nos para sair. Nesses casos, agradecíamos, mas optávamos por não filmar: não nos interessava imagens superficiais. Havia regras de transparência na Assembleia: reuniões com cidadãos são públicas, agendas são fixadas. Procurávamos sempre respeitar tudo isso. Não vejo essas limitações como verdadeiros "entraves", respeitar as pessoas fazia parte do projeto. Claro que, ao não termos acesso a certos partidos, isso sente-se no filme: há ausências visíveis.

Para quem vê o filme, essa diferença é notável...

O filme foi feito com quem quis participar.

O facto de estarmos a ter esta conversa é sinal de que vi o filme, como também referi anteriormente, mas quem ainda não teve contacto com “Os Palácios dos Cidadãos” poderá pensar que se tratará de uma parada dos partidos com representação parlamentar …

Obviamente.

Mas o filme foge dessa questão. Tenho comparado este trabalho com muitos do Frederick Wiseman — aquela abordagem às instituições, às entreposições, às zonas intermédias, às espiadas. E ele não intervém, e ao mesmo tempo, intervém, nem que seja pela sua subtil montagem. O filme não tem narração, é cru, é como, buscado novamente a ideia, uma corrente de ar.

Narrativo, como os filmes do Wiseman.

Já estou aqui a puxar uma ponta... O Wiseman foi uma influência para este filme?

O Wiseman é, provavelmente, a maior influência de todas as pessoas que fazem documentário, embora não precise generalizar, para mim é mesmo uma referência. Muitos filmes dele são referências. Um exemplo paradigmático é o “Belfast, Maine” (1999), um filme de quatro horas sobre uma cidade, feito também num período de viragem. Há outros, como o “Near Death” (1989), sobre pessoas nos cuidados intensivos — de seis horas cuja premissa é: devemos ou não prolongar a vida sem qualidade? Há cenas com 20 minutos. É absolutamente extraordinário!

O Wiseman é, para mim, quem melhor concretizou esta abordagem. Ele é um montador exímio. Outros exemplos: “Domestic Violence” (2001) e “Domestic Violence 2” (2002), que, embora diferentes na forma, se complementam. Um tem duas horas e quarenta, o outro quase três horas, e vejo-os com total entusiasmo. Ele continua a fazer filmes sobre instituições, que nos obrigam a repensar constantemente o seu próprio método. Quando comecei a pensar neste filme, estava muito próximo do “National Gallery” (2014), que foi também uma referência. Havia muitas visitas guiadas na Assembleia que filmámos e que poderiam remeter para o método dele, parece que houve uma colagem, mas foi um caminho natural. Estava a aprender com ele, sem dúvida.

Durante a filmagem e principalmente na montagem, percebi ainda melhor a profundidade do trabalho do Wiseman.

Julgo que o último filme dele até à data seja “Menus-Plaisirs, les Troisgros” (2023) — sobre a cozinha de um restaurante de luxo.

Exatamente. São quatro horas, divididas em segmentos de uma hora. Vi-o em Lisboa, há dois anos, numa sessão da DocLisboa, e fiquei absolutamente maravilhado. Não dei pelo tempo a passar. Para mim, o Wiseman é um dos maiores realizadores, pela forma como molda o material que recolhe e trabalha essa questão temporal. O “Menus-Plaisirs” é um exemplo de subtileza na maneira como ele filma. Vai absorvendo e aproveitando o que o material lhe dá. Claro que ele criou um certo cânone próprio, mas para mim é a referência principal.

Trabalhei também com o Fernand Melgar, na Suíça, por volta de 2010. Fiquei muito impressionado com o filme dele “Vol spécial” (2011), sobre um centro de detenção e deportação em Frambois. Um filme fortíssimo, e que está disponível no YouTube com legendas.

Depois, em 2013, fui viver para a Suíça e trabalhei como assistente de montagem com ele e a Karine Sudan (que monta quase todos os filmes dele). Trabalhámos num filme que foi selecionado para Locarno - uma experiência incrível [“L'abri”, 2014] - com cerca de 180 horas de material, organizando-o por blocos, procurando momentos especiais. A obra tinha imensas línguas diferentes.

Estar perto da Karine e do Fernand, que também é ótimo montador, fez-me perceber que sim, é possível fazer estes filmes que parecem impossíveis. Tu alimentas-te do próprio material. Não sei se há apoios para fazer filmes assim … acho que é um problema estrutural, não só apenas português, mas de quem financia e subvenciona este tipo de trabalho.

Mas o Wiseman consegue sempre trabalhar.

Com dificuldades, mas consegue. Ele tinha uma relação de confiança com a PBS [Public Broadcasting Service], nos EUA, que lhe dava uma certa liberdade. Por vezes pediam-lhe apenas para dividir filmes de quatro horas em dois blocos para a emissão, mas basicamente confiavam nele.

Já que falamos no Wiseman: ele estabeleceu praticamente o "cânone". Parece que criou as regras que todos seguiram depois.

Não concordo totalmente com isso. Ele surgiu fora do sistema, no final dos anos 60. Trabalhou como produtor da Shirley Clarke, que vinha da dança e passou a fazer cinema. O Wiseman estava imbuído daquele espírito vibrante das artes, como o Cassavetes, por exemplo. Ele também estudou Direito, esteve destacado na guerra, penso que tinha um forte sentido social. Não fazia ativismo declarado, mas interessava-se por examinar a sociedade americana, especialmente as instituições.

Começou a filmar com o que tinha — preto e branco, uma equipa mínima: um cameraman, um assistente para os gravadores e ele próprio fazia o som. Era tudo muito primário. Se virmos filmes como o "Juvenile Court” (1973), percebemos que não era grave se ouvisse o operador de som no plano. O importante era captar o que estava a acontecer à frente da câmara.

O “Welfare” (1975) foi outro que me surgia na mente enquanto montava o meu próprio filme. Um exemplo paradigmático de como construir dramaticamente algo apenas a partir da realidade, sem sair de um espaço. Para mim, é exemplar, não conheço outro realizador que tenha levado o trabalho de montagem documental a este nível. Nem falo só em documentários … falo mesmo em filmes, no geral.

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Welfare (Frederick Wiseman, 1975)

Mas se considerarmos o seu filme como um exemplar wisemaniano, é encarado como um elogio para si?

Se quiseres... Mas o Wiseman é o Wiseman, sou o imitador da sua arte, provavelmente. Este é o meu primeiro filme. Uso exemplos como referência, acho que toda a gente que está a começar os faz. Embora tenha 44 anos, nós aprendemos uns com os outros, roubamos as coisas uns dos outros. É assim também que fazemos a arte evoluir. Tenho uma bagagem talvez mais focada no argumento, então é algo que me interessa trabalhar. É óbvio que vou tentar aplicar os meus conhecimentos a moldar o material que recolhi.

Para contrastar com o Wiseman, há um filme para mim absolutamente incrível, “super” bem escrito, que é o “Erin Brockovich” (2000), realizado pelo Steven Soderbergh. É sobre a luta de uma mulher, a Erin [interpretado pela Julia Roberts], que quer combater uma injustiça que acabou de encontrar. Ela vive numa situação precária, sem trabalho, e de repente torna-se uma força gigantesca. Tenho pensado muito neste filme, porque sempre que o apanho na televisão, fico a vê-lo até ao fim. Para mim é absolutamente incrível. Nos últimos 2 a 3 anos, devo tê-lo visto umas, digamos, 10 vezes. Consigo apreciá-lo de diversas maneiras.

Era só para te dar um exemplo desestabilizador. O Wiseman é, sim, uma referência. Mas há outras. Se falarmos dos filmes do [Peter] Greenaway - foi quando comecei a adorar cinema -, parecem que não são uma referência, mas para mim foram muito importantes quando comecei. 

O lado simétrico de Greenaway é uma referência para o seu filme!?

Não sei se ele é muito simétrico...

Ele teve uma fase bastante simetria e obsessiva com o enquadramento, aponto até o final dos anos 80, com “The Belly of an Architect” (1987)  e “The Cook, the Thief, His Wife & Her Lover” (1989). Depois, nos anos 90, com “Prospero’s Books” (1991), tornando-se até muito mais plástico.

É um conceito bem da pintura. Ele passou a explorar o plano-sequência, misturando coreografia e efeitos de luz. Tinha um diretor de fotografia incrível, o Sacha Vierny, que vinha da velha guarda e tirava o máximo partido disso, como por exemplo o “The Baby of Mâcon” (1993). Depois, no “Prospero’s Books”, já era o fervilhar da televisão, do cinema, do visual, dos livros... era algo absolutamente extasiante. São influências, mas não me interessa copiá-las. Consigo apreciá-las, até ir lá beber, mas não me faz sentido aplicar essas formas diretamente a este filme. Há muitas outras referências. Podia falar também do David Lynch, pelo efeito de estranheza. Sempre que há espaço para captar isso, tento usá-lo como elemento narrativo. Há muitas oportunidades.

Sobre o seu filme: estreia no dia 24. Há alguma razão simbólica para estrear perto do 25 de Abril? Que mensagem quer trazer com esta estreia?

A ideia de fazer o filme tem a ver com colocar esta instituição - a Assembleia - em questão. Não fizemos isto apenas para "mexer" as coisas, mas é uma espécie de agitação própria, de manifestação, de colocar as pessoas em alvoroço. Isto porque sempre acreditei que a força da sociedade vem dos movimentos sociais. Isso está um bocado no filme, mas está sobretudo na voz das pessoas a quem damos espaço. Não é necessariamente na forma do filme, mas está lá, na narrativa que criámos.

É óbvio que tem a ver com a conjugação dos elementos que filmámos e com a sua coerência interna. A força narrativa do filme vem das vozes cá fora que se fazem ouvir lá dentro, quando são ouvidas. O filme é muito alimentado por isso.

Isto tem a ver, em coerência dramática, com o papel da representação dos deputados e das deputadas. É muito evidente em algumas figuras, menos noutras. O filme coloca isto em questão, é provocatório até, porque usa isso como material dramático. A instituição encerra a pergunta: "o que é isto da representação política?" Desde o início pensei que devíamos redefinir o que é política. Política não são apenas políticos a falar entre si; para mim, política é a população com ideias, que quer apresentá-las. É muito mais uma democracia participativa, feita de escuta ativa. A questão é, de que forma as propostas das pessoas cá fora ecoam, ou não, nas pessoas que estão lá dentro e têm poder? Há um contraste evidente entre quem está cá fora e quem está lá dentro.

A arquitetura da Assembleia também traduz isto. As escadarias monumentais foram construídas, segundo me disse um amigo arquiteto, numa lógica de repressão da contestação — escadarias fascistas. São fáceis de controlar manifestações, e curiosamente, hoje ainda se usa o mesmo método para reprimir protestos à frente da Assembleia.

Algumas mudanças simbólicas existiram, como a remoção da barreira no final da escadaria pelo atual Presidente da Assembleia, [José Pedro] Aguiar Branco. Mas para mim é pouco. O importante seria fomentar a participação ativa e a escuta ativa das vozes de fora. É essa a mensagem que queria passar com este filme.

De certa forma, esse ato do Aguiar Branco — vou usar só esse gesto dele — para buscar uma representação muito próxima à presença constante do pavão no seu filme … os cartazes fazem uso desse animal. Não sei se é um símbolo despropositado, mas o pavão, o que nós conhecemos dessa ave, ela abre a cauda e exibe um leque hipnotizante para com o fêmea, com o intuito de acasalar com ela, ou seja, é uma forma de atração. E aqui o que falamos é política vistosa, política chamariz, ou seja, o que você está a querer dizer é que os alicerces de poder ainda se mantêm, mesmo com as barreiras fora da escadaria? Tudo não passou de uma manobra da cauda do pavão!

As pessoas constantemente estão a colocá-las em causa, e nós estávamos a testemunhar isso. Era muito óbvio, todos os dias, quando estávamos lá. Sempre que havia pessoas que vinham reunir-se com partidos, elas estavam a colocar em causa e confrontavam os deputados e as deputadas com as suas posições. Isto é uma evidência. Projetam para fora uma outra coisa, mas as pessoas não estão muito contentes quando contactam com eles. Se calhar, à primeira vista, são cordiais e simpáticos, mas assim que percebem que as ‘coisas’ não estão a ser bem acolhidas, ou quando os políticos, basicamente, nunca dizem que não, mas tal nunca é desenvolvido, nunca vai a lado nenhum, isto leva a descontentamento. Nós sentimos isso constantemente.

Por isso, à medida que íamos filmando, e de repente já tinham passado três, quatro meses, nós começávamos a ver que havia pessoas que tínhamos começado a encontrar antes de começarmos a filmar, que só agora, passados cinco ou seis meses, é que estavam a ter a petição discutida, é que estavam a reunir com os grupos parlamentares. Acho que isto também faz parte da narrativa do filme. Ela está lá, subtilmente, porque é cinema, nós não gostamos de ter pessoas a dizer isto diretamente, mas ela está lá nos olhares, nas trocas de olhares, e até na própria presença.

Como acontece sempre nas portas abertas do 25 de Abril, naquele evento que é o Parlamento de Portas Abertas, realizado sempre na tarde desse dia, as pessoas entram ou com alegria, cheias de curiosidade para conhecer o espaço, ou então vêm quase como que para confirmar as suspeitas que já têm. É muito forte isso. Se olharmos com atenção — e era isso mesmo que me propunha a fazer naquele dia, tal como já tinha testemunhado no ano anterior —, percebemos que é exatamente assim: há filas de milhares de pessoas à porta da Assembleia, o que quase faz lembrar as primeiras eleições de 1976, que foram as mais participadas de sempre, com 98% de participação.

E isto é incrível, porque demonstra que não há esse distanciamento ou desinteresse das pessoas pela política. Pelo contrário, elas estão muito, muito interessadas. Este fenómeno é um reflexo do seu interesse, e também da vontade que têm de fazer ouvir a sua voz dentro da Assembleia, e isso deveria ser considerado seriamente para se melhorar o funcionamento da própria Assembleia. O que aconteceu, no entanto, foi exatamente o contrário.

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O Palácio de Cidadãos

Depois de terminarmos o filme, na legislatura seguinte, os deputados alteraram a Lei da Petição, mas no sentido contrário ao desejado: aumentaram o número de assinaturas necessárias para que uma petição pudesse ser discutida em plenário — passou de 4.000 para 8.000 assinaturas. Os partidos podem juntar projetos de lei a uma petição, mas isso não muda nada. Uma petição serve para que os deputados a debatam e eventualmente apresentem projetos de lei que possam ir ao encontro do que a petição propõe, ou não. É a partir desses projetos que pode surgir legislação. Mas, como disse, aumentaram o número de assinaturas exigidas.

O Presidente Marcelo [Rebelo de Sousa] vetou essa alteração e devolveu a lei à Assembleia, alertando que esta mudança era errada e que as pessoas não iam aceitá-la bem. Não foram exatamente estas as palavras que ele usou, mas a intenção era clara, e está público, no site da Presidência. Toda a gente a pode ler. Mesmo assim, o que fizeram foi apenas reduzir ligeiramente: em vez de 8.000 assinaturas, ficaram 7.500. Mas, ainda assim, passou de 4.000 para 7.500.

Isto demonstra uma enorme dificuldade em lidar com o assunto, porque há muitas, mesmo muitas petições — centenas! — para serem discutidas, e não se encontrar espaço para que isso aconteça é, a meu ver, um problema grave. Não estou a dizer que todas as petições tenham o mesmo peso, mas todas têm valor, e não deviam ser simplesmente ignoradas ou tratadas como meras questões "de património". Têm de ser levadas em consideração.

Entendendo agora que, com o seu filme pronto, com o seu filme mostrado… e revisitando essas imagens daquele parlamento. O que mudou desde a altura em que filmou para agora?

Penso que não mudou nada. Mas também estou um bocado afastado. Passei muito tempo, antes de começarmos a filmar, a ver o canal do Parlamento, a seguir imensas coisas, a ir à Assembleia e passar lá um dia inteiro a ver trabalhos de comissão, assistir a plenários que duram pelo menos duas horas, duas horas e meia, três, ou cinco, seis ou sete, por exemplo. Então passei muito tempo imbuído a tentar perceber o que é que ali acontece.

Hoje em dia tenho mais distância, só para me salvaguardar, porque foi um processo muito intenso. Também porque o de montagem demorou quatro anos, e já me confundi com estas imagens. Para mim, não existe diferença nenhuma entre o que era o Parlamento antes e o que é agora, porque a instituição em si está lá. Não vou fazer comentários sobre os partidos, conforme como estão ou não estão, porque é uma coisa que não me interessa. O que me interessa é ver se, de facto, existe repercussão. Portanto, não sinto que exista uma grande diferença de antes para cinco anos atrás. Quando estava a trabalhar na montagem do filme — como precisamos, recebemos o material que temos —, para mim é muito óbvio que este é um filme não sobre um tempo localizado. Não é sobre aquele período da "geringonça", que era o que estava a acontecer … por acaso era aquele, mas podia ser outro, podia ser o governo do Passos Coelho, e acho que teríamos um material muito parecido. Diferente, igual, seria outro, mas os assuntos estariam lá também, porque eles são sempre batidos, é sempre um ciclo.

E isto é muito fácil de verificar, porque os assuntos voltam: a violência doméstica volta outra vez, por exemplo, a habitação volta sempre, mesmo que de maneira diferente voltam sempre. De repente, tiraram uma lei, mas a sociedade adaptou-se ou já não está a conseguir responder ao problema, e de repente têm que intervir outra vez. As leis laborais estão constantemente a ser atualizadas, mudadas, provavelmente para se adaptarem às mudanças na sociedade. Provavelmente elas não são garantistas, porque às vezes parece que regredimos. O filme também mostra isso.

Isto é muito importante que as pessoas consigam perceber, porque são os partidos que tomam a iniciativa de colocar isto e sabem perfeitamente qual é o efeito que tem. A quantidade, o volume de informação que passa na Assembleia da República é impossível de seguir para quem está fora.

Por exemplo, recordo, na altura de antes começarmos a filmar, de que se geravam mais de 60 … ou até centenas de horas de comissão só numa semana. Porque há muitas comissões a acontecer, há muitos plenários também, muita coisa a acontecer e há mesmo alturas em que uma comissão de inquérito, cada reunião, por exemplo, tinha cinco a seis horas. Só essa reunião já fazia as outras todas somadas chegarem às centenas de horas.

É impossível alguém, que tenha um trabalho fora, conseguir acompanhar tudo isto. Não sinto que exista grande diferença no que é fundamental: de que forma é que a Assembleia responde aos anseios e não regride nos direitos das pessoas, porque é isso que permite que a sociedade funcione. Isso talvez seja também eu a pensar enquanto cidadão, mas tenho expectativas muito maiores desta instituição. As pessoas às vezes me dizem: "Vai agora ver o que está a acontecer para teres noção de como mudou", mas… consigo ter essa noção, mas não tenho interesse porque o sinto repetitivo.

E é muito curioso, para mim, que tenha esta perspetiva — dediquei imenso tempo a tentar perceber como isto funciona —, que os deputados mudam, mas acho que seria mais útil se tivessem todas as gravações e os novos deputados revissem tudo o que já foi discutido, porque a matéria não é muito diferente. Os assuntos são cíclicos, às vezes de quatro anos, às vezes mais, às vezes menos, e posso dar o exemplo da Helena Roseta, que tem 50 anos de dedicação à vida ativa política e social, e ela tem de facto um conhecimento, podemos dizer enciclopédico, sobre o que é a habitação. Ela conhece porque ouviu, porque está interessada, porque leu, porque procurou, e acho que é das pessoas que consegue falar imediatamente sobre habitação e dizer: "Estas foram as respostas naquela situação, para isto, para aquilo." Acho que se calhar não existe o tempo ou o interesse para ouvir essas pessoas que sabem.

PALACIO_still_11 © O Palácio de Cidadãos.jpg

O Palácio de Cidadãos

E quanto a novos projetos, já tem alguma coisa em mente?

Já há algum tempo que estou a trabalhar em investigação. Ao mesmo tempo que estava a fazer a montagem do filme, precisava de me divertir com outras coisas e fui encontrando outras matérias, e é nelas que estou a trabalhar agora. É ficção, têm a ver com a condição feminina. É um filme sobre mulheres e o papel da mulher na sociedade. Não se restringe à sociedade portuguesa, mas esse é o meu interesse. 

Este projeto tem a ver com o papel, ao longo dos tempos, da Mulher. Parece muito genérico, mas estou deliberadamente a dizê-lo assim, porque não queria dizer claramente o que é, porque acho que... a mim estraga-me o efeito. Mas sim, é um projeto de ficção para desenvolver.

O projeto pode ser alterado ao longo...

...do processo, não é?

Sim.

Estamos sempre à procura, é uma das mais-valias de quem trabalha nas artes, o de conseguir ser permeável a tudo o que aparece e conseguir abarcar. Obviamente que está encapsulado numa ideia, não é? Mas a ideia de conseguirmos estar abertos a coisas que nos surgem, sem acharmos que são descabidas. E isso também foi um processo de aprendizagem neste filme. Porque, se conseguimos aceitar o que as pessoas nos estão a dar, conseguimos transformar aquilo em algo único, efetivo, icónico, podendo mesmo marcar a vida das pessoas, por mais pequenas que sejam essas coisas. Acho que é quase uma aprendizagem: não é preciso ser uma ‘coisa’ bombástica. É preciso apenas perceber que algo tem impacto, se calhar, para aquela pessoa. 

De repente, conseguimos ver isso e perceber a abrangência dessas pequenas coisas. Considero que são esses pequenos momentos que nos são mais gratificantes de perceber. Não é preciso, de facto, ir atrás das bombas a explodir. Espero que as pessoas consigam ver isso neste filme, porque parece que é um filme institucional sobre a Assembleia… Espero que consigam dissipar isso do pensamento. Nós estamos a fazer um esforço para comunicar que isto não é um filme que vai enaltecer a Assembleia. Não. Mas também não é um filme contra a Assembleia. É óbvio que partimos deste conceito, porque de facto é sobre isso, mas acho que fala muito mais. É um retrato da sociedade portuguesa, mas feito a partir de um ponto de vista diferente — de lá de dentro. 

E é muito interessante porque o filme está agora a começar a entrar em festivais e vai passar no dia 26 de abril na Alemanha. É um pequeno festival em Hamburgo, já com 22 anos, o Dokumentarfilmwoche Hamburg. Eles fazem uma seleção muito criteriosa dos filmes que passam. Nem é por submissão, são eles próprios que escolhem. Eles fizeram uma sinopse bastante curiosa: descreveram “O Palácio dos Cidadãos” como: "O filme começa com uma ocupação do Parlamento. Mas estas não são imagens ameaçadoras, são pessoas ávidas de democracia."

Para mim, isto quer dizer que eles perceberam a essência do filme, ou seja, o filme comunica universalmente e eles conseguem entender a sua força, mesmo parecendo falar de uma realidade portuguesa. E o contexto cultural na Alemanha é muito diferente. O sistema parlamentar, quem são os personagens... eles não precisam de saber isso para que o filme tenha eco lá. Fascinante! O filme também vai começar agora um percurso na América do Sul.

É muito interessante, porque, se o filme de facto consegue comunicar universalmente, quer dizer que daqui a 20 ou 50 anos ele continua a ter validade, não é apenas num período determinado no tempo.

Paulo Carneiro: "precisamos estar juntos, e isso também serve para os cineastas". Uma luta por Covas do Barroso e pelo cinema.

Hugo Gomes, 23.04.25

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Rezam lendas e histórias de aura autoral, que é ao terceiro filme que um realizador se afirma no tipo de cineasta que pretende ser. Para Paulo Carneiro, porém, a questão é mais profunda do que simplesmente ser cineasta e de que tipo, colocando antes a interrogação essencial: o que é um cineasta? Sobretudo nos tempos que correm, em que a aceleração do nosso mundo se faz sentir em todas as esferas. Contra os malefícios dessas mudanças repentinas, resta o activismo, a luta, a câmara — como arma, como poder, mas também como aliada. Em Covas do Barroso, a poucos quilómetros de Bostofrio, onde Carneiro e as suas memórias inscreveram a sua primeira longa-metragem, encontrou uma população disposta ao combate contra um inimigo poderoso e multinacional: a Savanna Resources Inc., empresa britânica com intenções de explorar o lítio naquele território. Paulo Carneiro uniu-se a este povo, a esta aldeia, ergueu a bandeira do companheirismo e registou o seu duelo ao pôr-do-sol.

A Savana e a Montanha”, depois de uma passagem pela Quinzena dos Realizadores no ano passado, chega às vésperas do 25 de Abril — sem coincidências… O Cinematograficamente Falando… conversou com o realizador sobre o filme, sobre a resistência do cinema e, voltando ao ponto de partida, sobre o que é ser cineasta com “sangue na guelra”.

Começo por recordar que, na nossa última conversa, referiste que este filme surgiu a partir de outro projecto no qual trabalhaste durante três anos, mas cujo resultado final não te agradou, levando-te a regressar a Covas do Barroso e a desenvolver este “A Savana e a Montanha”. Que filme era esse? O que procuravas inicialmente nessa obra para, ainda assim, sentires que não estavas satisfeito com o que tinhas alcançado?

Um pouco dos outros filmes, mas com um engenho novo, um efeito especial. É complicado explicar agora, mas havia uma novidade na forma — nova no sentido do que vinha antes. Acho isso importante. Já não queria filmar da mesma maneira. Obviamente, nunca se colocou a hipótese de, do ponto de vista formal, filmar algo académico. Isso não interessa, não é desafiante, não acrescenta nada, e acho que, quando nos divorciamos da forma e trabalhamos apenas o tema, a história, parece-me que é menos cinema. É quase uma batota. Percebi rapidamente que o caminho não era esse … a que tinha proposto inicialmente.

Porque sentia que, no filme, o olhar da câmara, o gesto cinematográfico, não captava a força das pessoas. Era preciso encontrar um dispositivo para que essa força fosse sentida. Essa ideia do épico, que vem deles também, dessa ironia do Carnaval, ajudou. A mise-en-scène dialogada, tudo coreografado, permitiu que a câmara se posicionasse de forma a que as pessoas estivessem em relação a ela como queria que os espectadores as vissem.

Recordo que referiste também que o teu montador de som apelidou esta tua obra de “western social” … Portanto, quando foste atrás do olhar destas pessoas, optaste pelo género western para poderes, vou usar a expressão, injetar no teu filme as idiossincrasias do género. Aliás, faço a questão de outra maneira: o porquê do western? Ou é o género que mais se identifica com a questão do ativismo que queres trazer para o teu filme?

Não, e sabes porquê? Como havia dito, ia acontecer este desfile de Carnaval, e o que acontece é que observo os preparativos e depois a cerimónia dou-me de caras com todo aquele festim de cowboys e índios. Aliás, gosto do western, mas não sou um obcecado, não tenho essa coisa do cinema de género, nem do género drama, se quiseres, ou o género documental. Não tenho isso. Gosto de cinema, isso é o que me importa. Foi então que percebi isso, que ia haver este desfile, e peguei no tema e trouxe-o ao expoente máximo, no sentido de que a própria forma como a câmara se desloca, a ideia dos duelos, etc. Fazer um pouco esse jogo com o género, e, ao mesmo tempo, perceber que, com esta coisa do género, há uma relação muito próxima — não, muito longínqua — das pessoas com o que é fazer cinema em Portugal. Ponto.

Nos anos 80 e 90, na televisão, os filmes que as pessoas viam eram sobretudo westerns, muitos filmes norte-americanos, aquele cinema que ainda não era o dos planos de dois segundos, e, automaticamente, usando as ferramentas desse género, eles sentiam que estavam a fazer cinema. Havia também um lado social no próprio ato de fazer o filme, como o ativismo de luta.

O próprio filme, a própria ideia de rodagem, de feitura do filme, conseguia, de certa forma, abstrair-nos daquilo que se estava a passar. Então, o filme tem esse lado social. Era quase como se estivéssemos a fazer um filme e a ouvir-nos, ao invés de irmos ao principal e filmarmos diretamente. Não queria tanto exagerar, e a coisa do género, esta coisa inteira, divertia as pessoas. Era uma maneira de conseguirmos trazer as pessoas para o coração do filme. No sentido de estarem a participarem nele, de ser também um filme deles.

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Paulo Carneiro

É uma forma de trazer o filme, não apenas para estas pessoas, mas para o público e igualmente direcioná-los para esta causa?

Gostava, mas é muito difícil saber isso. Mas era bom que fosse. Daí também a questão do musical, este surgiu porque percebemos - quer dizer, basta olhar para a história - que houve momentos-chave, como na madrugada de Abril, com músicas, cenas … Toda essa carga histórica mostra que, através do entretenimento, da música, também se pode fazer política.

Sim, sim. Aliás, o Rui Simões diz algo como: “Todo o cinema é político, e o cinema de entretenimento também é político

Pois, não sei se concordo totalmente, talvez daqui a 30 anos, quem sabe.

Mas sobre esse ativismo, esse lado de luta… há um certo zeitgeist no filme. Primeiro, porque estreia um dia antes do 25 de Abril. Foi uma data escolhida por ti?

Sim, havia outras datas possíveis, mas acho que a simbologia da data tem a ver com a proposta do filme. Fica ali bem, faz sentido.

Também senti isso. No “Via Norte”, no último plano em frente ao quartel da Pontinha, já havia uma porta aberta para toda essa simbologia. E por outro lado, o filme surge num bom timing — hoje fala-se imenso sobre as tarifas, a comercialização, a mineração na Europa e na América, especialmente com todo aquele clima político nos Estados Unidos. Questões ambientais, e o teu filme mexe com essa nova água.

Sim. Acho que é um filme que, como disse outro dia, quer tirar-nos da impotência política. Mas acima de tudo, não é um filme de números, de dados, nem sequer explicita qual é a dimensão das ambições da empresa. Isso foi intencional. O que me importava era esta ideia de que, sozinhos, não contamos. Se não houver um sentido de grupo, de comunidade, não se tem força. Estamos sempre a lutar contra algo invisível. Se formos só indivíduos, ainda somos mais transparentes. A ideia de comunidade pode tirar-nos dessa transparência. Porque, além disso, estamos sempre a lutar contra inimigos invisíveis.

Sim, é um pouco essa questão do ativismo nos dias de hoje.

Claro. Mas o filme quer mesmo passar essa mensagem: a importância da união. Acho que esse é o ativismo essencial e nem sei se tem de ser sempre uma luta ecológica.

Era isso que queria perguntar: se a luta destas pessoas é pela ecologia ou, antes, pela preservação do seu estilo de vida e do lugar onde vivem?

Acho que é pelas duas coisas. O filme tenta inspirar várias leituras. Também há uma luta pelo cinema. Em certos momentos, queria mesmo passar isso. Como naquele último plano, com o trevo e o som — pensar na relação entre o som diegético e não diegético, e como o fora de campo pode acrescentar significado. Isso acompanhado por um gesto muito austero. O plano dura uns três minutos... queria que o filme dissesse: “Isto também pode ser cinema.” Uma imposição de uma forma de filmar. Que não tenhamos de estar todos formatados. É também uma luta pelo cinema, pela sala de cinema, pela sua forma. Não quero afastar o público de ver filmes na televisão, claro, mas faço filmes para passarem no cinema. E o filme também quer ser uma arma de luta nesse sentido.

Mas voltando, sim, é uma luta ecológica, na medida em que se tenta defender um estilo de vida. Aquele estilo de vida, naquele lugar. Mas é também uma luta pelo cinema, e acho que isso pode inspirar outras lutas. Mostrei o filme noutros contextos, a pessoas confrontadas com projetos que, embora diferentes, também tocam questões ambientais — como a poluição sonora, por exemplo. O que quero dizer é: sozinhos, contamos pouco. E o filme repete isso muitas vezes: “Estávamos sozinhos, apanharam-nos pelas costas...” Temos de nos organizar. Como aquela cena em que se vêem as carrinhas e o tipo lá em cima desce e forma-se a aldeia: as pessoas começam a falar, a organizar-se. É essa ideia de que precisamos estar juntos, e isso também serve para os cineastas.

Estamos cada vez mais sozinhos, e parece que, em vez de nos ajudarmos uns aos outros, andamos a puxar uns para baixo.

Sobre essa questão do “inimigo invisível”, até porque recusas filmar o “inimigo”, digamos assim, deste povoado. Temos aquela carrinha branca, obviamente… mas não passa disso. Porquê esta decisão?

Não estava interessado nele, apenas nas pessoas que o ‘combatiam’, como também queria transmitir algo, por exemplo, podes estar descontente com certas políticas culturais, mas tu nunca chegas ao Ministro da Cultura.

Exato. Ou seja, há uma sensação de impotência.

Exatamente, uma impotência real. Estamos constantemente a ser confrontados com essa impotência, com a impossibilidade de ver, de tocar o inimigo. “Inimigo” no sentido das pessoas que estão sempre a impor decisões. Não são auto-imposições, são imposições externas. É essa impotência constante que acho que o filme quer mostrar. Muita gente não entende isso. Ficam frustrados por não “verem” o vilão. Mas essa é precisamente a proposta do filme. Poderia filmar a Savannah, claro. O Frederico, por exemplo, não filma os tipos a abrir buracos. Eu também não filmo isso. Não me interessa. O que me interessava era mostrar como é que as pessoas vivem com isso.

Para referência, estás a falar do Frederico Lobo?

Sim, mas atenção, o filme dele [“Quando a Terra Foge”] é outra coisa. 

Voltando à questão da impotência — e agora passando também para o cinema como tema — deixa-me perguntar-te isto, só para esclarecer: este teu filme não foi apoiado pelo ICA?

Não, não.

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Era só isso que queria confirmar. Porque falas disto também como sendo um filme sobre cinema e quando trazes à luz estes temas da impotência, isso não é também uma impotência enquanto cineasta?

Epá, tem sido. Tem sido muito difícil. Não sei bem o que dizer mais... mas tem sido mesmo difícil. Não sei se é inglório, mas sim, difícil. É um problema geral em Portugal. Quer dizer, são três filmes estreados em sala [dia 24 estreia em sala além de “Savana e a Montanha”, “O Palácio de Cidadãos” de Rui Pires e “Camarada Cunhal” de Sérgio Graciano], um percurso longo, muitos projetos cuidados… Mas no fundo, não há muito mais que possa fazer. Só posso continuar a fazer filmes.

E falando nisso, do “só posso continuar a fazer filmes”, como vai esse projeto de detectives em Cabo Verde?

Está quase pronto... ou mais ou menos pronto. Considera-se.

A minha parte está feita, agora é tentar perceber como é que vai ser. É tentar perceber onde é que o filme pode estrear... sei lá, seguir o processo normal. Mas as coisas estão cada vez mais difíceis. Em tudo. O cinema está a transformar-se noutra coisa. Quando em 1993 … foi aí que passou o “Vale Abraão” [de Manoel de Oliveira], não foi?

Sim, correcto, em ‘93.

Naquela altura, as pessoas iam ao “Vale Abrãao” e achavam aquilo uma obra tremenda. Hoje em dia, ninguém aguenta mais um plano acima dos 15 segundos. É complicado. Ou seja, já não estás a trabalhar numa coisa complexa. Está mesmo difícil. Concordo que o cinema se democratize — mas não é essa a questão. É cada vez mais difícil porque vivemos nesta cultura digital, de toque, de estímulo rápido, dos 5 segundos. Claro que também temos de nos adaptar. Hoje em dia, as redes sociais influenciam muito a produção dos filmes, e nós acabamos por nos adaptar. Mas esta cultura digital, em que estamos constantemente a ser bombardeados com imagens, com som, com essa facilidade toda, está a fazer com que os jovens, que ainda são um dos grandes públicos do cinema, tenham cada vez menos interesse em ir à sala. Quando fazes cinema para sala, começas a perceber que tudo se está a afunilar.

Tenho notado isso cada vez mais. Até estudantes de cinema me dizem que já não vão ao cinema.

Pois. Tens pessoal que anda aí em cursos de cinema e que não põe os pés numa sala. Como é que é possível? Mas o problema é deles. Eles é que perdem. Porque ver um filme assim, numa sala, é completamente diferente. É outra coisa. 

Para trazermos aquele tema recorrente das nossas conversas: o “cinema de rua”. Como disseste uma vez, o cinema com “sangue na guelra”. Porque quando se fala de “cinema de rua”, pensa-se logo numa abordagem estética muito concreta — o cinema espontâneo, do momento, uma coisa quase documental, quase crua. Mas como disseste e bem, ninguém hoje aguenta um plano de sete minutos, e ao ver os teus filmes, especialmente este, algo que me saltou à vista no visionamento foi: “ele sabe onde pôr o tripé”. Ele sabe quando e onde deve estabilizar uma câmara. Ou seja, há uma certa escola, uma certa “old school” na tua forma de filmar — de pensar as imagens — mas, ao mesmo tempo, consegues ser moderno, encaixar nesta vaga do cinema mais espontâneo e realista, talvez muito marcado pelo digital.

Foi bonito ter lido a entrevista entre o André Gil Mata e o Vasco Câmara — e ele [Gil Mata] tem toda a razão quando diz: talvez se não fosse o Oliveira, nós não estivéssemos aqui a fazer filmes para cinema. Há uma herança portuguesa, mas não só, também uma certa seriedade no ato de fazer cinema. E é essa seriedade que respeito muito — na ideia de filmar, no olhar para o ato de filmar. Isso também passa para a forma como filmo.

Mas ao mesmo tempo, o filme se liberta disso. Não porque queira necessariamente libertar-se, mas porque acompanha a minha forma de estar, a minha maneira de trabalhar com as pessoas. Essa forma precisava desse lado mais ... espontâneo. Não no sentido de “documentário”, mas espontâneo no sentido de leveza, de mobilidade da câmara, de poder adaptar-se às circunstâncias. Porque muitas das pessoas tinham o tempo contado e quando há pouco tempo, tens de inventar vários planos dentro de um único plano, e aí, a câmara tem de ser mais “enxuta”, no sentido de se poder mover, de acompanhar mais ações dentro do mesmo enquadramento.

Sim, e acho que o filme distingue-se nesse aspeto dos teus anteriores, precisamente por esse movimento — e também por ir mais para o lado da ficção.

Sim, e por trabalhar com animais, por exemplo, que não se controlam. Isso também foi importante para mim. Sabia que podia usar zooms, criar vários enquadramentos, mas desta vez usei mais o movimento da própria câmara.

E isso ajuda, porque os animais não se coreografam. Nós não tínhamos treinadores, nem me interessava ter. Não é isso que procuro. A câmara, nesse processo, acaba por se libertar de uma certa “muleta”, que é filmar tudo muito fixo. Claro que ainda há planos fixos, muitos até, mas há também esse movimento. É um desafio.

É isso que me leva a fazer filmes — desafiar-me. Não só na narrativa, mas também na forma e nas fórmulas. Tento sair daquilo que tenho vindo a fazer. Cada filme é um desafio e cada território obriga a encontrar uma nova fórmula para filmar. Porque os filmes são sobre os territórios.

Sobre os territórios, exatamente. Parece-me uma ideia muito Raul Ruiz.

Sim, os filmes são todos sobre o lugar. Há uma ligação muito forte ao território. Isso, para mim, é fundamental. A câmara também tem de respeitar isso. Tem de se adaptar.

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E agora, à terceira longa-metragem... já te consegues ver enquanto cineasta? Que tipo de cineasta és tu?

Não sei se isso quer dizer muito. “Que tipo de cineasta”? Sou um tipo com duas pernas. [risos] Sei lá, faço os meus filmes. É para isso que estou aqui.

O que é que é “ser cineasta”? Gostei dessa pergunta.

Será que interessa esse título? Ser cineasta? Não sei... É tudo tão frágil. Continua a ser frágil. É difícil. É como tu, que escreves — sentes isso na pele também. Tudo é tão precário e pensar nessa ideia de cineasta enquanto figura... 

O mais importante é continuar a trabalhar. Fazer filmes. Porque aquela ideia da “obra do artista” está a desaparecer, pelo menos em Portugal. Acho que estamos a ir por esse caminho. Cada vez mais. O artista já não é o “autor”, é um fazedor. Alguém que tenta dominar os meios, que são sempre escassos.

É esse cinema que tem sobrevivido: o da reinvenção. Procurar outras formas, outras portas, mesmo que ‘pequeninas’ e mais arcaicas. Se se quer filmar com frequência, já nem interessa tanto filmar “bem” — interessa filmar com urgência. Com sentido. Ter algo a dizer. Não andar à procura de histórias para contar, mas sim ter mesmo algo para dizer.

Quando o "pai é meu" vira filme emancipado!

Hugo Gomes, 22.04.25

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"Primeiro a Vida, Depois o Cinema". Francesca Comencini refuta os ensinamentos do pai, o cineasta Luigi Comencini, vigorando uma releitura da sua vida numa espécie de "Cinema Paraíso" dos privilegiados, e talvez seja assim que "Il Tempo Che Ci Vuole" se revela tão sonhador, fabulista e repleto de amor-próprio quanto atravessado por uma vaidade inerente às egotrips dessa autoficção. Uma juventude conturbada, de uma realizadora que, ao tentar desprender-se da sombra paterna, parece apenas alimentar-se desse mesmo vulto.

Há sempre um certo grau de miopia com que Francesca entra em cena enquanto Francesca. O pai (maravilhosamente representado por Fabrizio Gifuni) manifesta-se como maestro da arte popular, em contraste com a cineasta das vanguardas, da autognose transformada em dor cinematográfica. É um duelo sem sangue o que opõe estas duas gerações: o primeiro, alicerçado no mundo e no seu afecto pela humanidade; a segunda, ancorada numa visão mais ensimesmada do cinema. Luigi é mais ternurento para com a grande tela. Vê os filmes como janelas — escapes — uma fuga da realidade sombria e do tempo que, parafraseando Gaspar Noé, "destrói tudo". Já Francesca (Romana Maggiora Vergano, uma das atrizes em destaque no sucesso “C'è ancora domani”), ao falar de si própria e ao repescar as memórias como matéria fílmica, faz do cinema um divã, uma psicanálise, uma terapia. Um palco onde se fala de si como uma escritora que transforma a câmara na pena da sua criatividade.

"Il Tempo Che Ci Vuole" é mais precioso enquanto homenagem ao pai do que como retrato da realizadora. E daí, surgem questões em torno da sua própria seriedade e do intuito de coleccionar e bracejar por entre essas recordações. Onde estão as restantes irmãs — Paola, Eleonore e Cristina? E a mãe? Porquê a sua ausência? É mesmo necessário um filme para mostrar um pai a demonstrar orgulho pela filha. “Estás num bom caminho!”? Há, talvez, um certo sentimento de oportunismo nesta história e na maneira como é contada. Por que fazer desta biografia, escanzelada na reflexão dos seus medos, uma alegoria onde a baleia de Pinóquio — evocada recorrentemente — surge como medo materializado, como pseudo-epifania, longe de se comportar no confronto da pequenez humana que Béla Tarr incitou no seu "Werckmeister Harmonies"?

Será este filme verdadeiramente verdadeiro — no sentido das suas intenções — para que possamos acolher o seu gesto com credibilidade? "Il Tempo Che Ci Vuole" percorre o tempo, sim, mas com algumas e evidentes malhas.

Paul Harrill: "a espiritualidade que mais me atrai é aquela que está enraizada na simplicidade."

Hugo Gomes, 20.04.25

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Paul Harrill / Foto.: Fundação Luso-Americana

Paul Harrill já se encontrava há alguns dias em Lisboa, ministrara uma masterclass sobre “cinema regional” e apresentara uma sessão de um dos seus filmes na breve retrospectiva do festival “Outsiders”. Tínhamos combinado esta breve entrevista, e foi no Cinema São Jorge, ao abrigo da chuva, que nos introduzimos por iniciativa própria “Prazer, Hugo” … “Paul”, seguido por um aperto de mão. Enquanto aguardávamos pelo responsável do evento, na esperança de nos ser atribuído… quem sabe, um espaço mais “sossegado”, que pudéssemos conversar … deu-se um breve chat de tempo (e que temporal!).

Percorremos verbalmente pela precariedade do cinema. De um lado, Paul referiu que, não fossem as aulas que leciona, não conseguiria viver apenas do seu cinema e a partir daí, mergulhamos numa discussão hipotética: de qual seria o mais resiliente dos cinemas, o independente americano ou o português? O nosso venceu de “forma magnífica” o debate, mas é em relação à cinematografia portuguesa que o realizador americano se acende no que conhece — Pedro Costa. A conversa se alongaria mais, até que, por fim, alguém, aliás “o ‘alguém’ que aguardávamos”, se aproxima de nós, acena e aponta para o piso de cima. Decidimos então levar este diálogo para a cafeteria-bar do São Jorge.

Não achas que está muito barulho aqui?”, pergunta Paul, algo alarmado. “Garanto-te que já fiz entrevistas em sítios bem mais barulhentos. Este não é, certamente, o primeiro nem será o último. Mas confio no meu gravador.” Instalámo-nos na mesa mais afastada do balcão e da esplanada — inactiva pela precipitação — e carrego no play do captador de voz. Arranca assim a breve conversa com e sobre Paul Harrill, os seus filmes, o seu cinema regional e, mais do que isso, o cinema adulto!

Queria começar pela masterclass. Não te vou pedir um resumo completo, mas gostava que falasses um pouco sobre o que foi a assunto nela, as tuas intenções com ela. E já agora, que também me desses uma definição de cinema regional. O que é, para ti, o verdadeiro “cinema regional”?

Na forma mais simples possível, diria que o “cinema regional" são filmes feitos por realizadores que vivem fora de Nova Iorque e Los Angeles, e em que a história é moldada por um forte sentido de lugar. E os realizadores, por viverem nesses locais, têm uma relação íntima com o sítio, e isso influencia diretamente a forma como contam a história, portanto, é uma espécie de cinema “de fora”.

Nos Estados Unidos, este tipo de cinema é muitas vezes difícil de produzir, por várias razões, e uma delas é que os realizadores, por não estarem ligados diretamente à indústria, têm mais obstáculos. Esta seria uma definição curta, e é disso que falei na masterclass — desse percurso no cinema americano, referir alguns nomes importantes e falar sobre os desafios que enfrentamos ao tentar fazer filmes fora do sistema, especialmente fora o domínio nova-iorquino e L.A. No fim, partilho também algumas notas e reflexões pessoais sobre trabalhar desta maneira.

Queria pegar que havias afirmado numa noutra entrevista — o Carlos [Nogueira, programador da Outsiders] mencionou isso na tua biografia. Disseste que fazes cinema “para adultos”, mas que não recorres a elementos normalmente associados a esse rótulo, como a violência, o sexo ou a nudez. Queria voltar a essa ideia: o que é, para ti, cinema verdadeiramente adulto?

Bem, acho que isso começou com uma entrevista que me fizeram — penso que foi o C. Mason Wells, numa conversa para a Film Comment. Acho que foi ele que disse que eu fazia filmes para adultos. Não sei se alguma vez disse isso assim, diretamente, mas entendo o que ele quis dizer.

Aquilo que tento é fazer filmes para pessoas que procuram uma experiência emocional, mas que também sejam levadas a pensar sobre o objeto-fílmico depois de o verem. Isso até pode parecer uma ideia simples, mas hoje em dia talvez já não seja assim tão comum, acima de tudo, pretendo que o espectador pense na sua própria vida depois do visionamento, em relação à história que acabou de acompanhar. Talvez até tenha uma experiência mais contemplativa … sei que essa palavra assusta algumas pessoas [risos] … mas é exatamente isso que procuro. E, não apenas sobre pensamento e reflexão, mas preciso que as pessoas tenham uma reação emocional ao que veem.

Quanto à ideia de “ser para adultos”, não acho que tenha necessariamente a ver com a idade, talvez sim, com um certo espírito que nos remete para uma geração anterior de cinema. Nos Estados Unidos, as obras da década de 70 — tu sabes, aqueles que abordavam temas mais maduros — sempre me marcaram muito. Tal como muitos filmes internacionais também me inspiram nessa jornada de “cinema adulto”.

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"Something, Anything" (2014)

Faço esta pergunta porque tenho uma certa fascinação e, ao mesmo tempo, alguma preocupação com o chamado “público adulto”. O que é, afinal, o “público adulto”? Há uns meses, estive a ler um artigo na “The Economist”...

No “The Economist”?

Sim. O artigo dizia que a nossa geração — os novos adultos — são, no fundo, muito infantis, porque estão e sempre estiveram “contaminados” por vários elementos que os impediram de “crescer” emocionalmente. E um desses elementos, segundo o artigo, é a dominância da cultura pop. Dizem que estas pessoas já não conseguem ver um filme “adulto” — no sentido em que tu falavas há pouco — porque simplesmente não se ligam a esse tipo de histórias, necessitam de outros estímulos e escapismos. A nostalgia é um desses factores que os aprisiona, por exemplo. Fico muito curioso: o que é, hoje em dia, o tal público adulto?

Essa é mesmo uma boa pergunta! Tenho alguma hesitação em fazer generalizações sobre diferentes faixas etárias: sobre se estão mais ou menos desenvolvidas, ou não. Não acho justo fazer generalizações sobre uma geração inteira, apenas que é possível que as gerações mais novas tenham tido, por vários motivos, menos experiências “adultas”. Algumas dessas razões são culturais. Outras têm a ver, por exemplo, com o facto de terem chegado à idade adulta durante a pandemia, ou com questões económicas — como não conseguirem comprar uma casa, ou até pagar uma renda, e por isso viverem mais tempo em casa dos pais. 

Há vários factores que moldam isto, e não acho justo culpar os jovens por não terem alcançado certos “marcos” daquilo que tradicionalmente se entende como vida adulta. Falo por mim: quando era miúdo, adorava os filmes do “Star Wars”, mas, com o tempo, à medida que comecei a fazer cinema e a ver mais filmes, comecei a interessar-me por outros tipos de histórias. É quase como aquela frase da Bíblia, em que São Paulo diz: “Quando era criança, falava como criança, mas depois deixei as coisas de criança.” Fui perdendo o interesse pelo “Star Wars”, embora continue a ter um carinho especial pelos primeiros filmes — porque foram eles que me despertaram o entusiasmo pelo cinema. Cresci com eles.

O que sei é que as histórias que conto provavelmente já são, à partida, para um público mais pequeno.

Queria agora ir aos teus dois filmes, mas com mais foco no “Something, Anything” (2014), porque a questão económica é um elemento muito importante no percurso da Peggy (Ashley Shelton).

Sim, claramente …

Ela embarca numa jornada existencial à procura de respostas - o filme não as dá, o que é uma coisa boa - mas a primeira decisão que toma é deixar de depender do factor económico. Ou seja, escolhe por trabalhar numa biblioteca. Queria começar por aí porque, apesar de não ser uma experiência “radical”, é uma decisão muito classe média e acho que um dos temas de que o cinema adulto deveria abordar é, precisamente, sobre as classes sociais.

Concordo!

Podemos considerar os teus dois filmes como políticos, de certa forma?

Sim e devemos. O “Something, Anything” é, nesse sentido, mais explícito do que o “Light from Light”, mas penso que os dois abordam temas políticos. 

No caso das questões económicas em “Something, Anything”, vemos essa transformação da Peggy — que passa a chamar-se Margaret — e que entende que, para viver de forma ética, tem de mudar a sua forma de viver, economicamente falando. Há uma ligação clara entre dinheiro e ética, e isso é, sem dúvida, um tema muito adulto. Quando começas a trabalhar, tens ideais... e esses acabam por ser postos à prova, ou comprometidos, ou então nem tens mais ideais e acabas por despertar para eles quase de forma epifânica. Acho que é mais isso que acontece com a Peggy: ela percebe que, para seguir a jornada espiritual em que se encontra, tem de simplificar a vida — a nível económico — e proteger-se de certos compromissos que o capitalismo, sobretudo, nos pressiona a aceitar.

Sim, respondeste — e levantaste ainda mais curiosidade [risos]. Porque usaste a palavra capitalismo ligada ao espiritual … aquilo que nos chega da América é precisamente essa ideia de que o capitalismo e a espiritualidade estão, de certa forma, “casados”. Claro que não é só nos Estados Unidos, mas a América é quase sempre o ponto de partida dessas tendências que depois se espalham pelo mundo e o que vemos é que a jornada espiritual acaba muitas vezes por ser comprometida por lógicas capitalistas — com esses coaches motivacionais, cursos espirituais pagos, até religiões que entram nesse jogo político-capitalista.

Sim… mas confesso que tenho alguma hesitação em falar sobre esse tema, porque sinto que é algo que preferi explorar através dos filmes. Consigo expressar essas ideias melhor em cinema do que em palavras, porque o que sinto em relação a isso é demasiado complexo para uma frase feita ou uma posição clara. E sim, são temas muito presentes nos filmes. O que posso dizer é que, pessoalmente, a espiritualidade que mais me atrai é aquela que está enraizada na simplicidade.

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"Something, Anything" (2014)

E quando falaste há pouco em cinema internacional, gosto mesmo dessa expressão. Prefiro dizer “cinema” do que “filmes”, sabes? E mesmo no “Something, Anything”, quando entramos naquele espaço religioso - o mosteiro - Senti algo ali... pode ser coisa minha, mas pareceu-me que havia uma espiritualidade muito próxima dos filmes do Robert Bresson.

Sim, é impossível falar de cinema espiritual sem, a certa altura, falar do Bresson [risos]. Ele é um mestre e é um dos meus realizadores preferidos de sempre. Mas, nesse mesmo espírito, diria também que adoro o trabalho do Carl Dreyer e do Roberto Rossellini. Há muitos cineastas internacionais que, não querendo comparar-me a eles, me inspiram.

Não é aquela inspiração direta, como, por exemplo, o Paul Schrader que vai buscar referências ao “Pickpocket” vezes sem conta nos seus filmes, mas é uma inspiração no sentido de que são realizadores que viam o cinema como um espaço para explorar estas questões e foi ao descobrir esses autores, quando comecei a fazer filmes, que senti que também podia explorar esses caminhos.

Falando em Schrader, já leste o livro …

Sim, o “Transcendental Style”…

Exatamente. Bresson, Dreyer e Ozu …

Adoro o Ozu também. É incrível.

Agora queria mudar um pouco de espírito e falar sobre o “Light from Light” (2019).

Quero começar com uma piada que te contei antes desta conversa — alguém recomendou-me o filme dizendo que era uma história de fantasmas.

Fui vê-lo e… era algo completamente diferente do que estava à espera, mas, para mim, acabou por ser uma experiência — adoro quando um filme trai as minhas expectativas e me leva para um outro caminho. Por isso pergunto-te diretamente: como surgiu a ideia para o “Light from Light" e a utilização desses elementos sobrenaturais? Porque, ao mesmo tempo, é um filme muito seco, diria até, muito terreno.

Terreno … gosto dessa expressão! Olha, para mim, a inspiração para um filme nunca vem de um único lugar. Vem de vários sítios. Já usei esta metáfora antes: é como um pássaro a construir o ninho. Vai juntando raminhos de vários lados e isso acaba por formar a ideia.

No meu caso, estava a passar por um período de luto e perda pessoal e, nessa altura, ouvi uma entrevista na rádio. Numa estação AM daquelas de baixa frequência nos EUA. Aquelas em que só se ouve talk radio ou coisas muito locais, quase universitárias ou amadoras…

Uma “rádio pirata”?

Não tanto, era oficial, mas com um alcance muito limitado.

Então uma rádio regional.

Exatamente! Rádio regional, é isso mesmo. Vês não só o cinema que tem direito de ser regional. [risos]

Estava a conduzir numa autoestrada numa zona rural da Virgínia e, durante uns cinco minutos em que apanhei sinal, ouvi uma mulher a falar sobre o seu trabalho como investigadora paranormal. Fiquei mesmo intrigado com aquilo. Gostei da ideia de fazer um filme muito… como é que disseste?

Terreno?

Sim! Muito terreno. Ou melhor, muito enraizado na realidade. Mas gosto da tua palavra também.

Então pensei: “E se contássemos uma história muito assente na realidade, mas com personagens que estão a lidar com algo que pode ou não ser um fenómeno sobrenatural?” Sem partir do princípio que os fantasmas existem ou não existem. Simplesmente explorar as personagens através dessa possibilidade. E, na verdade, muitas das nossas perguntas sobre fantasmas podem funcionar como metáforas para perguntas mais profundas, espirituais. E isso me interessava bastante.

Outra surpresa  no filme, foi a maneira como apresentas a investigadora paranormal (interpretada por Marin Ireland). Completamente diferente do retrato habitual do arquétipo preferido pelos grandes estúdios. Vou fazer uma comparação tola… mas por exemplo, para com os filmes do “The Conjuring”.

[Risos] Sim…

Light from Light (2019)

Porque nesses filmes, a investigadora paranormal é toda ela certezas. Ela pode não ter as respostas, mas acredita que elas existem. Em “Light from Light”, a tua personagem investiga, mas está sempre a duvidar — até de si própria. Ela duvida, mesmo quando faz perguntas, e isso liga com o “Something, Anything”, porque nenhum deles possui uma resposta definitiva de algo que seja, nem da própria crença dos protagonistas. Tu colocas os temas no terreno do espectador.

Exactamente. Isso liga-se muito bem com a ideia de cinema adulto — um cinema que levanta questões e confia no espectador para encontrar as suas próprias respostas. Claro que também tenho as minhas ideias e opiniões sobre estes temas, mas não quero impô-las.

Há uma certa arrogância nisso, e evito a todo o custo. Prefiro confiar que o público se vai encontrar a meio caminho com o filme.

E gostei da tua comparação com o “Conjuring”, porque  gosto desse franchise, mas queria contar uma história diferente. Aliás, um amigo meu, também realizador e fã de filmes de terror, leu o argumento do “Light from Light" e ligou-me furioso. Disse-me: “Tu desperdiçaste todas as oportunidades para fazer disto um filme de terror!” E eu respondi: “Ótimo. Era mesmo isso que realmente queria.

[Risos] Isto está a tornar-se uma ótima conversa, mas estão a acenar-me ali do lado porque tens outra entrevista à espera. Mas quando estavas a falar, lembrei-me de uma frase famosa do Bresson, julgo que já a ouviste ou leste-a: “Primeiro, sente-se um filme. Depois, compreende-se.

Sim… adoro essa citação. É mesmo isso.

Bem, até uma próxima talvez …

Absolutamente, gostaria de continuar esta conversa numa outra ocasião …

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