![PALACIO_still_05 © O Palácio de Cidadãos.jpg]()
O Palácio de Cidadãos
Pertinente será talvez referir a possível e equívoca caracterização deste documentário. Em vésperas de mais umas eleições legislativas — provocadas entre uma moção de confiança chumbada e a “persistência” de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) —, com os portugueses a questionarem o seu próprio ato democrático, chega agora às salas de cinema “O Palácio de Cidadãos”, um documentário que capta o último ano da chamada "geringonça".
Contudo, não se limita a uma representação meramente temporal: o realizador Rui Pires, sob a influência das lições de Frederick Wiseman, percorreu os corredores do Palácio de São Bento, captando os alicerces da democracia, o vínculo, por vezes instável, entre cidadãos e políticos, e a arte da política na representação de uma instituição, “pavoneando”, atento, os corredores, como um verdadeiro observador. É um documentário filmado em estâncias canónicas, mas que é, simultaneamente, político na sua forma de estar, como, aliás, é o caso de quase toda a obra de Wiseman.
A invocação do documentarista, aliás, cineasta norte-americano não é casual: a conversa entre Rui Pires e o Cinematograficamente Falando … passou inevitavelmente por algumas paragens obrigatórias na carreira de Wiseman, tanto como influenciador, como enquanto modelo de abordagem documental. Mas houve espaço para tudo: do politizado ao pavão que passeia livremente pelo Palácio e no cartaz, como também as intenções e a montagem, o que fazer dela e dessa “espada”?
“O Palácio de Cidadãos” estreou num momento em que a política amplifica a natureza dos próprios espectadores: há quem veja o filme como um ato de ativismo, outros como uma expressão de conformismo. Para nós, é sobretudo um ato profundamente cinematográfico.
Depois da estreia no Doclisboa de 2024, o filme finalmente estreia em sessões comerciais …
Posso dizer que entretanto continuamos a trabalhar na montagem do filme, o qual acabou por ter uma pequena redução. Já não tem 2 horas e 12 minutos, e sim 2 horas concretas.
Ou seja, a versão vista no Doclisboa era uma versão “alargada”. Já agora, onde aconteceu essa redução?
Não foi nada de especial. Retirámos algumas cenas que nos pareceram ter pouca relevância. Vendo em retrospectiva, ao pensar que o filme ia estrear nas salas, queríamos que ele pudesse chegar ao máximo número de pessoas. Sentimos — e também nos diziam — que havia umas partes mais "chatas". Cada pessoa tem a sua opinião, mas consegui perceber que, ao tirar alguns elementos, o filme ficaria mais acessível. Até porque, dramaticamente, algumas cenas repetiam ideias: diferentes, mas próximas. Não queria que o público sentisse saturação. Preferia que pudessem ver o filme “bem”, essa acessibilidade era importante. E, aliás, foi uma concessão que aceitei perfeitamente.
Esta decisão de cortar o filme foi, de alguma forma, influenciada pelo prémio que ganhou no Doclisboa [Prémio Max - Para Melhor Filme da Competição Portuguesa]?
Não, sinceramente, o prémio foi um bocadinho irrelevante. Nem me lembrava que havia prémios. No dia, estávamos lá, foi completamente inesperado. Achávamos que havia tantos filmes bons no festival... Nunca imaginámos que houvesse interesse pelo nosso, mas depois disseram-nos que a decisão foi unânime. Foi uma surpresa!
Acho que o júri reconheceu o trabalho de tornar um tema tão árido, que diz respeito a toda a gente, mesmo sem se aperceberem, em algo com dimensão dramática. Nós não estávamos à espera. Fazer um documentário é um trabalho muito duro. Este filme foi muito trabalhado narrativamente e foi um processo laborioso. Houve cenas que demoraram semanas a montar: começavam com três horas de material, depois para meia hora, depois para 15 minutos, 11 minutos e meio... até ficar pelos 6 minutos e meio, por exemplo. Todo o processo de montagem durou quatro anos. Pode não parecer, porque o filme tem um fluxo contínuo, mas isso é fruto de um trabalho muito preciso de montagem, para tornar o esforço imperceptível. Narrativamente, sinto que conseguimos isso.
Achávamos que o filme não era assim tão "impactante", talvez também por saturação do próprio processo. Porque, de facto, é exaustivo trabalhar tanto tempo num projeto. Mas fiquei muito satisfeito pelo filme ter ficado acessível, e a estreia mundial no Cinema São Jorge foi extraordinariamente gratificante para mim. Poder sentir a reação das pessoas é fundamental. Quando fazes um filme — sobretudo no meu caso, em projetos mais profissionais ligados à montagem — queres que aquilo tenha um impacto nas pessoas. Não é pô-las a chorar, nem forçar emoções, mas sim transportá-las. E senti isso de uma forma incrível.
Quando as pessoas se riem durante um filme, mesmo que este não seja uma comédia, é porque conseguiram envolver-se. Isso é muito difícil de alcançar e foi muito estimulante para mim. Não se trata de contentar o público, mas de os conseguir transportar emocionalmente.
Para mim, isso é o que o trabalho de montagem procura: criar impacto. Seja ansiedade, seja desconforto, seja alegria, o que for. Nas sessões de teste que fizemos, até aqui na Casa do Comum, já intuía alguma coisa. Convidávamos pessoas que não conhecíamos, para termos feedback real. Mas numa sala cheia, com público desconhecido, essa reação coletiva torna-se muito evidente. E percebes porque é tão importante ver filmes em sala. Porque é contagiante. Isso é uma das experiências mais motivadoras para quem faz cinema.
![202409_RuiPiresporAlineMacedo-7-640x360.jpg]()
Rui Pires
Aliás, falando nisso: o filme parece ter como uma "corrente de ar" a atravessar os corredores do Palácio de S. Bento- ele flui muito bem - há essa energia interior com graças da montagem. Gostava também de perguntar o seguinte: muitos montadores dizem que têm muita dificuldade em “largar” o filme durante o processo de montagem, que é duro, demorado e, muitas vezes, insatisfatório. Houve algum momento em que foi necessário um produtor chegar ao pé de si e dizer: "Acabou, não mexes mais"? Ou possui uma disciplina interior que te guia?
Há sempre alguma pressão da produção, mas ela nunca foi determinante para tirar o filme das minhas mãos. Senti uma obrigação pessoal, especialmente para com as pessoas que aceitaram ser filmadas, de fazer o melhor filme possível.
Acho que isso é muito importante.
Sim. Quando fazes um filme com pessoas reais, sentes essa responsabilidade, sobretudo em documentário isso é permanentemente. Na ficção pode ser diferente, embora também haja um respeito pelo trabalho dos atores. No documentário, essa responsabilidade é ainda mais sensível.
Não é só uma questão de "dar voz" às pessoas ou fazer propaganda do que elas dizem. É mais que isso: as pessoas entregaram algo de si mesmas ao filme, confiaram em nós. Então, é meu dever representar isso de forma coerente com o filme. Não estou a dizer que é para agradar “a gregos e a troianos” — lembro-me perfeitamente de, na estreia no Doclisboa, um deputado me ter dito que não gostou do filme. Talvez porque aparecesse pouco, ou por outras razões. Mas o filme não pretende ser propaganda, nem uma representação dos partidos. É o que está publicado, e, sobretudo, dá a ver muitas “vozes” que são invisibilizadas no Parlamento.
Não sei se respondi totalmente à tua pergunta sobre largar ou não largar o filme... Mas, para mim, a sensação era constante: "Tenho de conseguir fazer o melhor filme possível." Sabia que isso exigia tempo.
Muitas vezes, o que sinto — por experiência — é que não há tempo suficiente para terminar um filme, por razões económicas: não há dinheiro para fazer filmes em Portugal, ou quase todo o orçamento vai para a rodagem, que é onde há mais despesa. Mesmo assim, neste projeto, feito com poucos meios e poucas pessoas , tanto a Monomito Argumentistas como a Terratreme Filmes conseguiram montar uma estrutura de produção que permitiu dar ao filme o tempo necessário para ganhar a sua forma certa.
Sim, e a montagem é uma questão essencial neste tipo de documentário, mas queria também perguntar sobre o contexto do filme: pelo que li, foi filmado durante um ano, certo? No último ano da chamada "geringonça"?
Sim, foi durante a quarta sessão legislativa. Normalmente, as legislaturas têm quatro sessões. Filmámos no último ano da "geringonça", daquele Parlamento, daquela configuração de forças na Assembleia.
Exatamente. Gostava de perguntar, a nível de género: de onde surgiu a ideia, ou o plano, de filmar dentro da Assembleia da República?
Que tipo de filme tinha em mente?
Não estou a insinuar que houvesse uma intenção de propaganda, não é isso. Mas acredito que tudo é político: mesmo quando as coisas não parecem políticas, são. Queria saber se essa dimensão política o acompanhou também na montagem do filme?
Talvez... talvez consiga chegar à ideia que estás a colocar. Se a política também está na montagem? Sim, de certo modo.
E a ideia política que tinha para o filme — conseguiu concretizá-la na montagem?
São coisas diferentes. Podemos ser pessoas politicamente ativas, sem exercer "política" no sentido tradicional. A política também é a nossa atitude perante a vida, a sociedade, onde estamos, o que fazemos, a nossa presença.
O filme começou há muito tempo. Se chegarmos a Maio deste ano [2025], fará dez anos desde que o processo começou. Na verdade, a ideia começou ainda no período da Troika, porque havia muitas manifestações, e eu, como muitas outras pessoas, participava. Essas manifestações acabavam quase sempre nas escadarias da Assembleia e contestavam o Governo. Percebi aí que talvez houvesse uma confusão: parecia que se protestava contra o Parlamento, mas era contra o Governo.
Achei, talvez ingenuamente, que muitas pessoas não compreendiam bem o funcionamento da democracia. Hoje vejo de forma diferente: as pessoas sabiam que a Assembleia é também um espaço de poder. O Parlamento representa efetivamente a sociedade através dos partidos. A partir daí, pensei: seria interessante mostrar o que acontece realmente dentro da Assembleia, desmistificando certas ideias, mostrar que existe um poder efectivo exercido ali, e isso já era uma ideia política.
Depois, quando fazemos cinema, procuramos outra coisa: o encontro com o outro, ver através dos olhos do outro, ou pelo menos reconhecer que há outros pontos de vista e empatizar com eles. Isto é comum ao cinema, tanto na ficção como no documentário: criar empatia. Claro que também podemos observar à distância, mas o que me interessa é criar ligação, proximidade. Foi mais ou menos conseguido no filme. Era uma intenção desde o início, mas também um desafio enorme: como chegar a estas pessoas dentro da Assembleia.
Então, a partir de 2015, começámos a fazer contactos, entretanto, houve eleições, o governo de Passos Coelho, sem maioria, caiu ao fim de duas semanas, e foi formada a solução política da "geringonça". Mas, para mim, a existência da "geringonça" era indiferente: o filme teria sido feito qualquer que fosse a configuração parlamentar. Começámos a contactar os grupos parlamentares, queríamos comunicar a todos que o projeto era para mostrar o Parlamento como um todo, e não apenas um lado político.
Inspirámo-nos na experiência do Frederick Wiseman: a ideia de fazer um filme coletivo, sobre uma instituição. Na altura talvez fosse ingénuo da minha parte, mas esse era o objectivo. Demorámos cerca de dois anos e meio a conseguir as autorizações de todos os partidos … houve muitas reticências, especialmente à direita. Até o Presidente da Assembleia, Eduardo Ferro Rodrigues, acabou por intervir publicamente, apelando à abertura da "Casa da Democracia" à sociedade civil. O filme não pretendia mostrar o lado "voyeurista" do Parlamento, nem o que se passa em segredo.
A matéria do filme é o trabalho público dos deputados: como representam pessoas, mesmo com opiniões divergentes. O núcleo é isto: como se debate, como se negoceia, como se chega a acordos. Parece, à partida, uma matéria super aborrecida e o desafio era torná-la cinematográfica e dramática.
Sim, exatamente! Há aquela ideia que associa o canal Parlamento ao aborrecimento televisivo...
E no entanto, há transmissões com dezenas de milhares de espectadores, por vezes até centenas de milhares.
Especialmente nos debates do Orçamento de Estado.
Sim, mas esses não me interessavam tanto. Há também comissões de inquérito, mas são temas muito específicos, muito datados. O que me interessava era algo que falasse a todos, que tivesse impacto na vida das pessoas. Claro que o Orçamento é central — filmámos isso extensivamente — mas acabou por não entrar no filme, porque não se adequava à narrativa que queríamos construir.
![Palacio_Temp_3.jpg]()
O Palácio de Cidadãos
E quanto aos entraves? Falou há pouco da resistência de alguns partidos de direita. Que outras dificuldades surgiram na rodagem? Imagino que não pudessem filmar tudo livremente...
Sim, claro! Desde o início que respeitávamos as pessoas: pedíamos sempre autorização. Por exemplo, cidadãos comuns que iam a audições parlamentares: perguntávamos se podíamos filmá-los, e ninguém nos disse que não. Só uma senhora pediu para não aparecer e, obviamente, respeitámos isso. Também, por vezes, havia reuniões privadas entre grupos parlamentares e cidadãos.
Alguns partidos — especialmente à direita — só autorizavam captar imagens iniciais, como a imprensa faz, e depois pediam-nos para sair. Nesses casos, agradecíamos, mas optávamos por não filmar: não nos interessava imagens superficiais. Havia regras de transparência na Assembleia: reuniões com cidadãos são públicas, agendas são fixadas. Procurávamos sempre respeitar tudo isso. Não vejo essas limitações como verdadeiros "entraves", respeitar as pessoas fazia parte do projeto. Claro que, ao não termos acesso a certos partidos, isso sente-se no filme: há ausências visíveis.
Para quem vê o filme, essa diferença é notável...
O filme foi feito com quem quis participar.
O facto de estarmos a ter esta conversa é sinal de que vi o filme, como também referi anteriormente, mas quem ainda não teve contacto com “Os Palácios dos Cidadãos” poderá pensar que se tratará de uma parada dos partidos com representação parlamentar …
Obviamente.
Mas o filme foge dessa questão. Tenho comparado este trabalho com muitos do Frederick Wiseman — aquela abordagem às instituições, às entreposições, às zonas intermédias, às espiadas. E ele não intervém, e ao mesmo tempo, intervém, nem que seja pela sua subtil montagem. O filme não tem narração, é cru, é como, buscado novamente a ideia, uma corrente de ar.
Narrativo, como os filmes do Wiseman.
Já estou aqui a puxar uma ponta... O Wiseman foi uma influência para este filme?
O Wiseman é, provavelmente, a maior influência de todas as pessoas que fazem documentário, embora não precise generalizar, para mim é mesmo uma referência. Muitos filmes dele são referências. Um exemplo paradigmático é o “Belfast, Maine” (1999), um filme de quatro horas sobre uma cidade, feito também num período de viragem. Há outros, como o “Near Death” (1989), sobre pessoas nos cuidados intensivos — de seis horas cuja premissa é: devemos ou não prolongar a vida sem qualidade? Há cenas com 20 minutos. É absolutamente extraordinário!
O Wiseman é, para mim, quem melhor concretizou esta abordagem. Ele é um montador exímio. Outros exemplos: “Domestic Violence” (2001) e “Domestic Violence 2” (2002), que, embora diferentes na forma, se complementam. Um tem duas horas e quarenta, o outro quase três horas, e vejo-os com total entusiasmo. Ele continua a fazer filmes sobre instituições, que nos obrigam a repensar constantemente o seu próprio método. Quando comecei a pensar neste filme, estava muito próximo do “National Gallery” (2014), que foi também uma referência. Havia muitas visitas guiadas na Assembleia que filmámos e que poderiam remeter para o método dele, parece que houve uma colagem, mas foi um caminho natural. Estava a aprender com ele, sem dúvida.
Durante a filmagem e principalmente na montagem, percebi ainda melhor a profundidade do trabalho do Wiseman.
Julgo que o último filme dele até à data seja “Menus-Plaisirs, les Troisgros” (2023) — sobre a cozinha de um restaurante de luxo.
Exatamente. São quatro horas, divididas em segmentos de uma hora. Vi-o em Lisboa, há dois anos, numa sessão da DocLisboa, e fiquei absolutamente maravilhado. Não dei pelo tempo a passar. Para mim, o Wiseman é um dos maiores realizadores, pela forma como molda o material que recolhe e trabalha essa questão temporal. O “Menus-Plaisirs” é um exemplo de subtileza na maneira como ele filma. Vai absorvendo e aproveitando o que o material lhe dá. Claro que ele criou um certo cânone próprio, mas para mim é a referência principal.
Trabalhei também com o Fernand Melgar, na Suíça, por volta de 2010. Fiquei muito impressionado com o filme dele “Vol spécial” (2011), sobre um centro de detenção e deportação em Frambois. Um filme fortíssimo, e que está disponível no YouTube com legendas.
Depois, em 2013, fui viver para a Suíça e trabalhei como assistente de montagem com ele e a Karine Sudan (que monta quase todos os filmes dele). Trabalhámos num filme que foi selecionado para Locarno - uma experiência incrível [“L'abri”, 2014] - com cerca de 180 horas de material, organizando-o por blocos, procurando momentos especiais. A obra tinha imensas línguas diferentes.
Estar perto da Karine e do Fernand, que também é ótimo montador, fez-me perceber que sim, é possível fazer estes filmes que parecem impossíveis. Tu alimentas-te do próprio material. Não sei se há apoios para fazer filmes assim … acho que é um problema estrutural, não só apenas português, mas de quem financia e subvenciona este tipo de trabalho.
Mas o Wiseman consegue sempre trabalhar.
Com dificuldades, mas consegue. Ele tinha uma relação de confiança com a PBS [Public Broadcasting Service], nos EUA, que lhe dava uma certa liberdade. Por vezes pediam-lhe apenas para dividir filmes de quatro horas em dois blocos para a emissão, mas basicamente confiavam nele.
Já que falamos no Wiseman: ele estabeleceu praticamente o "cânone". Parece que criou as regras que todos seguiram depois.
Não concordo totalmente com isso. Ele surgiu fora do sistema, no final dos anos 60. Trabalhou como produtor da Shirley Clarke, que vinha da dança e passou a fazer cinema. O Wiseman estava imbuído daquele espírito vibrante das artes, como o Cassavetes, por exemplo. Ele também estudou Direito, esteve destacado na guerra, penso que tinha um forte sentido social. Não fazia ativismo declarado, mas interessava-se por examinar a sociedade americana, especialmente as instituições.
Começou a filmar com o que tinha — preto e branco, uma equipa mínima: um cameraman, um assistente para os gravadores e ele próprio fazia o som. Era tudo muito primário. Se virmos filmes como o "Juvenile Court” (1973), percebemos que não era grave se ouvisse o operador de som no plano. O importante era captar o que estava a acontecer à frente da câmara.
O “Welfare” (1975) foi outro que me surgia na mente enquanto montava o meu próprio filme. Um exemplo paradigmático de como construir dramaticamente algo apenas a partir da realidade, sem sair de um espaço. Para mim, é exemplar, não conheço outro realizador que tenha levado o trabalho de montagem documental a este nível. Nem falo só em documentários … falo mesmo em filmes, no geral.
![Untitled-design-5.jpg-5.jpg]()
Welfare (Frederick Wiseman, 1975)
Mas se considerarmos o seu filme como um exemplar wisemaniano, é encarado como um elogio para si?
Se quiseres... Mas o Wiseman é o Wiseman, sou o imitador da sua arte, provavelmente. Este é o meu primeiro filme. Uso exemplos como referência, acho que toda a gente que está a começar os faz. Embora tenha 44 anos, nós aprendemos uns com os outros, roubamos as coisas uns dos outros. É assim também que fazemos a arte evoluir. Tenho uma bagagem talvez mais focada no argumento, então é algo que me interessa trabalhar. É óbvio que vou tentar aplicar os meus conhecimentos a moldar o material que recolhi.
Para contrastar com o Wiseman, há um filme para mim absolutamente incrível, “super” bem escrito, que é o “Erin Brockovich” (2000), realizado pelo Steven Soderbergh. É sobre a luta de uma mulher, a Erin [interpretado pela Julia Roberts], que quer combater uma injustiça que acabou de encontrar. Ela vive numa situação precária, sem trabalho, e de repente torna-se uma força gigantesca. Tenho pensado muito neste filme, porque sempre que o apanho na televisão, fico a vê-lo até ao fim. Para mim é absolutamente incrível. Nos últimos 2 a 3 anos, devo tê-lo visto umas, digamos, 10 vezes. Consigo apreciá-lo de diversas maneiras.
Era só para te dar um exemplo desestabilizador. O Wiseman é, sim, uma referência. Mas há outras. Se falarmos dos filmes do [Peter] Greenaway - foi quando comecei a adorar cinema -, parecem que não são uma referência, mas para mim foram muito importantes quando comecei.
O lado simétrico de Greenaway é uma referência para o seu filme!?
Não sei se ele é muito simétrico...
Ele teve uma fase bastante simetria e obsessiva com o enquadramento, aponto até o final dos anos 80, com “The Belly of an Architect” (1987) e “The Cook, the Thief, His Wife & Her Lover” (1989). Depois, nos anos 90, com “Prospero’s Books” (1991), tornando-se até muito mais plástico.
É um conceito bem da pintura. Ele passou a explorar o plano-sequência, misturando coreografia e efeitos de luz. Tinha um diretor de fotografia incrível, o Sacha Vierny, que vinha da velha guarda e tirava o máximo partido disso, como por exemplo o “The Baby of Mâcon” (1993). Depois, no “Prospero’s Books”, já era o fervilhar da televisão, do cinema, do visual, dos livros... era algo absolutamente extasiante. São influências, mas não me interessa copiá-las. Consigo apreciá-las, até ir lá beber, mas não me faz sentido aplicar essas formas diretamente a este filme. Há muitas outras referências. Podia falar também do David Lynch, pelo efeito de estranheza. Sempre que há espaço para captar isso, tento usá-lo como elemento narrativo. Há muitas oportunidades.
Sobre o seu filme: estreia no dia 24. Há alguma razão simbólica para estrear perto do 25 de Abril? Que mensagem quer trazer com esta estreia?
A ideia de fazer o filme tem a ver com colocar esta instituição - a Assembleia - em questão. Não fizemos isto apenas para "mexer" as coisas, mas é uma espécie de agitação própria, de manifestação, de colocar as pessoas em alvoroço. Isto porque sempre acreditei que a força da sociedade vem dos movimentos sociais. Isso está um bocado no filme, mas está sobretudo na voz das pessoas a quem damos espaço. Não é necessariamente na forma do filme, mas está lá, na narrativa que criámos.
É óbvio que tem a ver com a conjugação dos elementos que filmámos e com a sua coerência interna. A força narrativa do filme vem das vozes cá fora que se fazem ouvir lá dentro, quando são ouvidas. O filme é muito alimentado por isso.
Isto tem a ver, em coerência dramática, com o papel da representação dos deputados e das deputadas. É muito evidente em algumas figuras, menos noutras. O filme coloca isto em questão, é provocatório até, porque usa isso como material dramático. A instituição encerra a pergunta: "o que é isto da representação política?" Desde o início pensei que devíamos redefinir o que é política. Política não são apenas políticos a falar entre si; para mim, política é a população com ideias, que quer apresentá-las. É muito mais uma democracia participativa, feita de escuta ativa. A questão é, de que forma as propostas das pessoas cá fora ecoam, ou não, nas pessoas que estão lá dentro e têm poder? Há um contraste evidente entre quem está cá fora e quem está lá dentro.
A arquitetura da Assembleia também traduz isto. As escadarias monumentais foram construídas, segundo me disse um amigo arquiteto, numa lógica de repressão da contestação — escadarias fascistas. São fáceis de controlar manifestações, e curiosamente, hoje ainda se usa o mesmo método para reprimir protestos à frente da Assembleia.
Algumas mudanças simbólicas existiram, como a remoção da barreira no final da escadaria pelo atual Presidente da Assembleia, [José Pedro] Aguiar Branco. Mas para mim é pouco. O importante seria fomentar a participação ativa e a escuta ativa das vozes de fora. É essa a mensagem que queria passar com este filme.
De certa forma, esse ato do Aguiar Branco — vou usar só esse gesto dele — para buscar uma representação muito próxima à presença constante do pavão no seu filme … os cartazes fazem uso desse animal. Não sei se é um símbolo despropositado, mas o pavão, o que nós conhecemos dessa ave, ela abre a cauda e exibe um leque hipnotizante para com o fêmea, com o intuito de acasalar com ela, ou seja, é uma forma de atração. E aqui o que falamos é política vistosa, política chamariz, ou seja, o que você está a querer dizer é que os alicerces de poder ainda se mantêm, mesmo com as barreiras fora da escadaria? Tudo não passou de uma manobra da cauda do pavão!
As pessoas constantemente estão a colocá-las em causa, e nós estávamos a testemunhar isso. Era muito óbvio, todos os dias, quando estávamos lá. Sempre que havia pessoas que vinham reunir-se com partidos, elas estavam a colocar em causa e confrontavam os deputados e as deputadas com as suas posições. Isto é uma evidência. Projetam para fora uma outra coisa, mas as pessoas não estão muito contentes quando contactam com eles. Se calhar, à primeira vista, são cordiais e simpáticos, mas assim que percebem que as ‘coisas’ não estão a ser bem acolhidas, ou quando os políticos, basicamente, nunca dizem que não, mas tal nunca é desenvolvido, nunca vai a lado nenhum, isto leva a descontentamento. Nós sentimos isso constantemente.
Por isso, à medida que íamos filmando, e de repente já tinham passado três, quatro meses, nós começávamos a ver que havia pessoas que tínhamos começado a encontrar antes de começarmos a filmar, que só agora, passados cinco ou seis meses, é que estavam a ter a petição discutida, é que estavam a reunir com os grupos parlamentares. Acho que isto também faz parte da narrativa do filme. Ela está lá, subtilmente, porque é cinema, nós não gostamos de ter pessoas a dizer isto diretamente, mas ela está lá nos olhares, nas trocas de olhares, e até na própria presença.
Como acontece sempre nas portas abertas do 25 de Abril, naquele evento que é o Parlamento de Portas Abertas, realizado sempre na tarde desse dia, as pessoas entram ou com alegria, cheias de curiosidade para conhecer o espaço, ou então vêm quase como que para confirmar as suspeitas que já têm. É muito forte isso. Se olharmos com atenção — e era isso mesmo que me propunha a fazer naquele dia, tal como já tinha testemunhado no ano anterior —, percebemos que é exatamente assim: há filas de milhares de pessoas à porta da Assembleia, o que quase faz lembrar as primeiras eleições de 1976, que foram as mais participadas de sempre, com 98% de participação.
E isto é incrível, porque demonstra que não há esse distanciamento ou desinteresse das pessoas pela política. Pelo contrário, elas estão muito, muito interessadas. Este fenómeno é um reflexo do seu interesse, e também da vontade que têm de fazer ouvir a sua voz dentro da Assembleia, e isso deveria ser considerado seriamente para se melhorar o funcionamento da própria Assembleia. O que aconteceu, no entanto, foi exatamente o contrário.
![Palacio_Temp_4.jpg]()
O Palácio de Cidadãos
Depois de terminarmos o filme, na legislatura seguinte, os deputados alteraram a Lei da Petição, mas no sentido contrário ao desejado: aumentaram o número de assinaturas necessárias para que uma petição pudesse ser discutida em plenário — passou de 4.000 para 8.000 assinaturas. Os partidos podem juntar projetos de lei a uma petição, mas isso não muda nada. Uma petição serve para que os deputados a debatam e eventualmente apresentem projetos de lei que possam ir ao encontro do que a petição propõe, ou não. É a partir desses projetos que pode surgir legislação. Mas, como disse, aumentaram o número de assinaturas exigidas.
O Presidente Marcelo [Rebelo de Sousa] vetou essa alteração e devolveu a lei à Assembleia, alertando que esta mudança era errada e que as pessoas não iam aceitá-la bem. Não foram exatamente estas as palavras que ele usou, mas a intenção era clara, e está público, no site da Presidência. Toda a gente a pode ler. Mesmo assim, o que fizeram foi apenas reduzir ligeiramente: em vez de 8.000 assinaturas, ficaram 7.500. Mas, ainda assim, passou de 4.000 para 7.500.
Isto demonstra uma enorme dificuldade em lidar com o assunto, porque há muitas, mesmo muitas petições — centenas! — para serem discutidas, e não se encontrar espaço para que isso aconteça é, a meu ver, um problema grave. Não estou a dizer que todas as petições tenham o mesmo peso, mas todas têm valor, e não deviam ser simplesmente ignoradas ou tratadas como meras questões "de património". Têm de ser levadas em consideração.
Entendendo agora que, com o seu filme pronto, com o seu filme mostrado… e revisitando essas imagens daquele parlamento. O que mudou desde a altura em que filmou para agora?
Penso que não mudou nada. Mas também estou um bocado afastado. Passei muito tempo, antes de começarmos a filmar, a ver o canal do Parlamento, a seguir imensas coisas, a ir à Assembleia e passar lá um dia inteiro a ver trabalhos de comissão, assistir a plenários que duram pelo menos duas horas, duas horas e meia, três, ou cinco, seis ou sete, por exemplo. Então passei muito tempo imbuído a tentar perceber o que é que ali acontece.
Hoje em dia tenho mais distância, só para me salvaguardar, porque foi um processo muito intenso. Também porque o de montagem demorou quatro anos, e já me confundi com estas imagens. Para mim, não existe diferença nenhuma entre o que era o Parlamento antes e o que é agora, porque a instituição em si está lá. Não vou fazer comentários sobre os partidos, conforme como estão ou não estão, porque é uma coisa que não me interessa. O que me interessa é ver se, de facto, existe repercussão. Portanto, não sinto que exista uma grande diferença de antes para cinco anos atrás. Quando estava a trabalhar na montagem do filme — como precisamos, recebemos o material que temos —, para mim é muito óbvio que este é um filme não sobre um tempo localizado. Não é sobre aquele período da "geringonça", que era o que estava a acontecer … por acaso era aquele, mas podia ser outro, podia ser o governo do Passos Coelho, e acho que teríamos um material muito parecido. Diferente, igual, seria outro, mas os assuntos estariam lá também, porque eles são sempre batidos, é sempre um ciclo.
E isto é muito fácil de verificar, porque os assuntos voltam: a violência doméstica volta outra vez, por exemplo, a habitação volta sempre, mesmo que de maneira diferente voltam sempre. De repente, tiraram uma lei, mas a sociedade adaptou-se ou já não está a conseguir responder ao problema, e de repente têm que intervir outra vez. As leis laborais estão constantemente a ser atualizadas, mudadas, provavelmente para se adaptarem às mudanças na sociedade. Provavelmente elas não são garantistas, porque às vezes parece que regredimos. O filme também mostra isso.
Isto é muito importante que as pessoas consigam perceber, porque são os partidos que tomam a iniciativa de colocar isto e sabem perfeitamente qual é o efeito que tem. A quantidade, o volume de informação que passa na Assembleia da República é impossível de seguir para quem está fora.
Por exemplo, recordo, na altura de antes começarmos a filmar, de que se geravam mais de 60 … ou até centenas de horas de comissão só numa semana. Porque há muitas comissões a acontecer, há muitos plenários também, muita coisa a acontecer e há mesmo alturas em que uma comissão de inquérito, cada reunião, por exemplo, tinha cinco a seis horas. Só essa reunião já fazia as outras todas somadas chegarem às centenas de horas.
É impossível alguém, que tenha um trabalho fora, conseguir acompanhar tudo isto. Não sinto que exista grande diferença no que é fundamental: de que forma é que a Assembleia responde aos anseios e não regride nos direitos das pessoas, porque é isso que permite que a sociedade funcione. Isso talvez seja também eu a pensar enquanto cidadão, mas tenho expectativas muito maiores desta instituição. As pessoas às vezes me dizem: "Vai agora ver o que está a acontecer para teres noção de como mudou", mas… consigo ter essa noção, mas não tenho interesse porque o sinto repetitivo.
E é muito curioso, para mim, que tenha esta perspetiva — dediquei imenso tempo a tentar perceber como isto funciona —, que os deputados mudam, mas acho que seria mais útil se tivessem todas as gravações e os novos deputados revissem tudo o que já foi discutido, porque a matéria não é muito diferente. Os assuntos são cíclicos, às vezes de quatro anos, às vezes mais, às vezes menos, e posso dar o exemplo da Helena Roseta, que tem 50 anos de dedicação à vida ativa política e social, e ela tem de facto um conhecimento, podemos dizer enciclopédico, sobre o que é a habitação. Ela conhece porque ouviu, porque está interessada, porque leu, porque procurou, e acho que é das pessoas que consegue falar imediatamente sobre habitação e dizer: "Estas foram as respostas naquela situação, para isto, para aquilo." Acho que se calhar não existe o tempo ou o interesse para ouvir essas pessoas que sabem.
![PALACIO_still_11 © O Palácio de Cidadãos.jpg]()
O Palácio de Cidadãos
E quanto a novos projetos, já tem alguma coisa em mente?
Já há algum tempo que estou a trabalhar em investigação. Ao mesmo tempo que estava a fazer a montagem do filme, precisava de me divertir com outras coisas e fui encontrando outras matérias, e é nelas que estou a trabalhar agora. É ficção, têm a ver com a condição feminina. É um filme sobre mulheres e o papel da mulher na sociedade. Não se restringe à sociedade portuguesa, mas esse é o meu interesse.
Este projeto tem a ver com o papel, ao longo dos tempos, da Mulher. Parece muito genérico, mas estou deliberadamente a dizê-lo assim, porque não queria dizer claramente o que é, porque acho que... a mim estraga-me o efeito. Mas sim, é um projeto de ficção para desenvolver.
O projeto pode ser alterado ao longo...
...do processo, não é?
Sim.
Estamos sempre à procura, é uma das mais-valias de quem trabalha nas artes, o de conseguir ser permeável a tudo o que aparece e conseguir abarcar. Obviamente que está encapsulado numa ideia, não é? Mas a ideia de conseguirmos estar abertos a coisas que nos surgem, sem acharmos que são descabidas. E isso também foi um processo de aprendizagem neste filme. Porque, se conseguimos aceitar o que as pessoas nos estão a dar, conseguimos transformar aquilo em algo único, efetivo, icónico, podendo mesmo marcar a vida das pessoas, por mais pequenas que sejam essas coisas. Acho que é quase uma aprendizagem: não é preciso ser uma ‘coisa’ bombástica. É preciso apenas perceber que algo tem impacto, se calhar, para aquela pessoa.
De repente, conseguimos ver isso e perceber a abrangência dessas pequenas coisas. Considero que são esses pequenos momentos que nos são mais gratificantes de perceber. Não é preciso, de facto, ir atrás das bombas a explodir. Espero que as pessoas consigam ver isso neste filme, porque parece que é um filme institucional sobre a Assembleia… Espero que consigam dissipar isso do pensamento. Nós estamos a fazer um esforço para comunicar que isto não é um filme que vai enaltecer a Assembleia. Não. Mas também não é um filme contra a Assembleia. É óbvio que partimos deste conceito, porque de facto é sobre isso, mas acho que fala muito mais. É um retrato da sociedade portuguesa, mas feito a partir de um ponto de vista diferente — de lá de dentro.
E é muito interessante porque o filme está agora a começar a entrar em festivais e vai passar no dia 26 de abril na Alemanha. É um pequeno festival em Hamburgo, já com 22 anos, o Dokumentarfilmwoche Hamburg. Eles fazem uma seleção muito criteriosa dos filmes que passam. Nem é por submissão, são eles próprios que escolhem. Eles fizeram uma sinopse bastante curiosa: descreveram “O Palácio dos Cidadãos” como: "O filme começa com uma ocupação do Parlamento. Mas estas não são imagens ameaçadoras, são pessoas ávidas de democracia."
Para mim, isto quer dizer que eles perceberam a essência do filme, ou seja, o filme comunica universalmente e eles conseguem entender a sua força, mesmo parecendo falar de uma realidade portuguesa. E o contexto cultural na Alemanha é muito diferente. O sistema parlamentar, quem são os personagens... eles não precisam de saber isso para que o filme tenha eco lá. Fascinante! O filme também vai começar agora um percurso na América do Sul.
É muito interessante, porque, se o filme de facto consegue comunicar universalmente, quer dizer que daqui a 20 ou 50 anos ele continua a ter validade, não é apenas num período determinado no tempo.