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Tom Skerritt e Veronica Cartwright nas suas pausas durante a rodagem de "Alien" (Ridley Scott, 1979)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
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As inevitáveis comparações com Ken Loach fazem-se sentir quando "On Falling" manifesta a sua estética academizada, alinhando-se com uma vertente de realismo proto-dardenneano - a protagonista, uma trabalhadora precária, soma ainda a condição de imigrante portuguesa a fazer-se como pode (e como lhe é permitido) em Edimburgo, Escócia - e num quadro sociopolítico que, à primeira vista, parece reiterar a tradição do cinema de denúncia social. Porém, essas assunções soam, por vezes, preguiçosas, não apenas por circunscrever toda uma geografia cinematográfica, mas também por se fecharem no aparente, na forma como abordam o tema.
Enquanto Ken Loach, fiel à sua tradição, observa os sistemas de trabalho e insere-os numa narrativa iluminada pelo ativismo político-cinematográfico, Laura Carreira [na sua primeira longa-metragem] espelha, por outro lado, uma abordagem mais passiva perante o sistema laboral. O que lhe interessa não é o trabalho em si, mas a forma como ele se manifesta nos trabalhadores — e é aí que encontra Joana Santos (“Vadio”). A atriz tem aqui um palco todo seu para demonstrar a sua capacidade de empatia, servindo-se como cobaia desta experiência corrosiva.
"On Falling" é a anatomia de uma queda, mas uma queda identitária no contexto neoliberal, refletindo sobre como os novos modelos de trabalho e as mentalidades nessa relação entre patrono-empregado conduzem a uma estandardização do "colaborador". Vemos isso repetidamente na interação da personagem de Santos com os colegas, com o exterior, com a sua própria nacionalidade (a conferir no jantar, cujo prato de guisado polaco a remete às memórias gastronómicas do sue país) e, mais incisivamente, com a sua própria intimidade. Mas o momento crucial dessa câmara de eco — que é a sua personalidade — surge numa sequência de entrevista de emprego, quando simplesmente a entrevistadora lhe pergunta: "O que gosta de fazer nos seus tempos livres?". O estrangulamento com que a protagonista lida com esta questão reflete tudo o que perdeu até então: o seu ócio, os seus gostos, a sua individualidade. São estes sistemas que moldam trabalhadores iguais entre si, presos a turnos intermináveis, paradigma de uma organização laboral reminiscente do taylorismo industrial.
Há uma falsa preocupação com a saúde e o bem-estar do trabalhador por esses ambientes, envolta numa hipocrisia visada, na realidade, em preservar a estrutura classista detida e perpetuada nestes empregos. Quanto menos individual é o indivíduo, mais uniforme se torna a massa — contrariando, ironicamente, até mesmo a ideia de corporativismo e de um sentido de luta coletiva sob um prisma comunista. Por isso, diante do seu próprio vazio, Santos chora não pelo que perdeu, mas pelo que nunca chegou a ganhar. Transforma-se noutro tipo de farrapo humano: sem sonhos, sem ambição, sem algo que a torne verdadeiramente única.
Assim sendo, "On Falling" é mais do que o esperado tratado político. É um filme de humanidades em tempos modernos.
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Partindo de "Rocío" (1980), o primeiro filme capturado pela censura espanhola e ainda hoje proibido de exibição no seu território (conta-se uma sessão envolto de polémica na primeira edição do Festival de Sevilha), o cineasta Fernando Ruiz Vergara foi impedido de concretizar qualquer outro projeto que tinha em mente. Movendo-se de um lado para o outro, entre Portugal e Espanha, o ibérico deixou-nos em 2011 com ideias soltas e material inacabado. Concha Barquero Artés e Alejandro Alvarado Jódar esgueiraram-se pelo seu espólio, abrindo caixa a caixa, contemplando essas projeções e transformando antigos desejos em esboços de filmes. Este documentário interage com o ato de recriação e com a veia documental ao dissecar a pergunta que nos trouxe até aqui: quem é Fernando Ruiz Vergara?
Através de uma abordagem arquivo-performista, o filme ecoa a personalidade do cineasta, do seu derrame profissional ao seu intimismo, com o fantasma de "Rocío", esse seu filme de denúncia e munidos de ferroadas políticas, a perpetuar-se e a sobrevoar todas as lógicas narrativas experimentadas em cada hipotético projeto falhado. "Caixa de Resistência" manuseia o lado politizado do seu vulto, extraindo dessa insuflação de atos incumpridos uma própria encenação política. Nada é deixado ao acaso: o ativismo do cineasta transfere-se para os dois realizadores e investigadores, que, por sua vez, encenam a sua politiquice sob outra perspetiva. Os filmes aqui imaginados nunca serão os mesmos que Vergara idealizou, isso é certo, mas a sua dimensão política também se altera na transladação — e é aí que entramos nas questões mais pertinentes.
Com um filme completo, Fernando Ruiz Vergara é um cineasta ou apenas a sugestão de um, consoante a expectativa de cada interveniente? Ou, virando a pergunta de lado: pode considerar-se cineasta aquele que não tem obra concluída? Será o ibérico, montado por fantasmagorias e fantasmas, um cineasta de um cinema não físico, não espectral, não evidente?
"Caixa de Resistência" não responde a nenhuma destas questões, mas alimenta o debate sobre o que é ser cineasta. Mesmo que, por vezes, se perca entre o filmado, a autoria de Vergara e as possibilidades trazidas pelas nossas anotações e trechos que os outros “criadores” executam em ordens de vidência. Sonhos mal paridos ou pesadelos infalíveis — como se verá um cineasta no calor da sua resistência?
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Ainda a recordar os seus tempos áureos com desconhecidos num lago — ponto de encontro para aquilo que se tornaria a marca distintiva de Alain Guiraudie, o seu homoerotismo bestial —, encontramos traços desse mesmo espírito em "Miséricorde". Comecemos assim: não vemos aqui o que distingue a estética dita queer ou o conteúdo quase utópico do cinema LGBT, a universalidade sexual em Guiraudie está na sua fealdade, na forma como os corpos se dispõem ao prazer sem se tornarem produtos de prazer. Por outras palavras, não há "deuses gregos", mas sim decadência física, despojamento e, sobretudo, a banalidade dos corpos — das banhas, da pelagem ou da disformidade anti-padrão. "Miséricorde" resgata essa pureza guiraudiana, mas quem espera um filme nos moldes de "L'inconnu du lac" ou do seu antecessor "Rester Vertical", engana-se. Não é um filme gay à luz desses ensaios, aqui, a sugestão é a arma principal, e a perversão entra pela porta da frente.
As relações estreitam-se após a morte de um dos habitantes da aldeia de Saint-Martial - um pai de família, padeiro da localidade, cujo funeral recebe uma visita (in)esperada: um amigo de infância do filho do defunto, Jérémie (Félix Kysyl), vindo da cidade de Toulouse. Hospedado na casa da viúva para prestar devida homenagem, este homem, de vida desfeita, deslumbra-se com fotografias do falecido em fato de banho, sempre sob a vigilância quase-maternal da mulher solitária que um dia o teve nos braços (Catherine Frot). Contudo, o estranho da aldeia dinamita todas as relações envolventes: desde um vizinho deslumbrado e encavacado com o seu retorno, recordando momentos ao sabor de pastis, ao filho do morto, dominado por um ciúme descontrolado, passando ainda pelo padre da paróquia (Jacques Develay), envolvido em amores sacrílegos. Tudo culmina numa belíssima sequência de confissão, quase um decalque de "I Confess", de Hitchcock.
I Confess (Alfred Hitchcock, 1953) / Miséricorde (2024)
"Miséricorde" não suplica perdão pelos seus pecados, mas, no fundo, atravessa um campo minado apenas para chegar a uma outra mina: toda aquela comunidade converte-se num ensaio sobre a humanidade, o seu humanismo bacoco e as suas perversidades, enquanto combustão para testar o espectador. Já Agustina Bessa-Luís dizia, na sua dicotomia celestial: "O mal é prazer e todo o prazer é satírico." A austeridade pode, portanto, ser vista como a benfeitora do trilho para outras fronteiras e recompensas divinas, mas "Miséricorde", apesar do título, faz-se de parvo perante essas moralidades e revela a sua verdadeira natureza num diálogo crucial entre o pároco lascivo e Jérémie, engolido pela culpa do seu ato, um determinismo trágico alicerçado num niilismo existencial absoluto manifestado como epifania precoce, dando lugar a um absurdismo corrosivo a esses estandartes de "bom moço samaritano".
De que adianta um crime e a martirologia que o acompanha se o genocídio é a palavra de ordem no mundo? Um padre que desafia as doutrinas do seu Deus, questionando a sua onipresença e onisciência. Herege? Talvez. Mas o filme brinca com estas questões, tal como Camus e o seu “O Estrangeiro” brincavam com a consciência da moralidade e a sua resposta fracassada perante os padrões socialmente aceites. Alain Guiraudie faz uma reflexão em forma de filme — um misto bressoniano e pialatiano —, o seu "Sous le soleil de Satan", mas com desejos perturbadores pelos corpos de outrem, e numa ofensiva aos concreto muros desses valores sagrados. Não basta ter misericórdia por esta obra; é preciso coragem para encontrar nela, não respostas para o mundo, mas direções para pensar sobre ele. O que é a moral?
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Abram alas para um novo incitador político pelas ruas de Teerão. O multifacetado Ali Ahmadzadeh (“Atomic Heart Mother”) fez de "Critical Zone" a promessa de uma nova etapa no cinema iraniano politizador, sem recorrer a metáforas ou reconstituições como se pode, mas antes à montra provocateur que se manifesta num filme sobre dealers que tem como consequência um dos pontos sagrados do seu cinema, agora despejado num comboio de heresias e sacrilégios.
A viatura — e tudo o que se pode fazer no seu interior — é uma marca ininterrupta da cinematografia persa. “Ninguém filma um interior de carro como um iraniano”, ouvi anos a fio nas discussões sobre como mimetizar tal genialidade, sem me aperceber de que é nesse espaço entre quatro rodas que encontramos o confronto e a liberdade fingida numa sociedade repressiva. Perante essas possibilidades, Ahmadzadeh instala um teatro de vulgaridades, daquelas que, para olhos ocidentais, são o “pão de cada dia” … nada de novo, é verdade, mas no seu contexto sociopolítico, cai o Carmo e a Trindade: consome-se droga, há uma masturbação feminina, um grito de revolta com o arrancar do hijab (não há censura que aguente).
"Critical Zone" é o anti-”Taxi Driver”, porque no seu protagonista, condutor em noites longas de ponto a ponto, entregando o seu produto e distribuindo conselhos valiosos, encontramos a sujidade que um dia Travis Bickle quis “limpar” da berma da estrada. Só que aqui, ele é o nosso herói, o marginal convicto de quem, sem percebermos, necessitamos. O “amigo” desta solidão tramada que regimes deste género enfeitam surdamente e emudecido. Fazer de Ahmadzadeh um novo cineasta político iraniano já não é um capricho da nossa confortabilidade, mas a cedência a uma possível nova legião — mais ferozes, menos floreados, soturnos e terrivelmente combativos. Uma criação incisiva de retaliação.
Vencedor do Leopardo de Ouro do Festival de Locarno 2023
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Com a série "Adolescence" a berrar por aí fora e a preocupar pais com essa glutona, mas silenciosa, cultura incel, podemos acrescentar à conversa a estreia de "Diamant brut", um primo afastado, mas igualmente mergulhado na imperatividade estética e sociológica das redes sociais. Nesta medida imposta pelos padrões de beleza e pela regência do reality show — esse poplixo que persiste nas audiências televisivas —, a primeira longa-metragem de Agathe Riedinger segue uma alucinada jovem, Liane (Malou Khebizi), cuja existência medíocre a leva a ambicionar tornar-se estrela de um programa do género. Desencantada com as suas potencialidades, mas sem querer franzir os olhos como quem mede superioridades, é alimentada por essas iguarias digitais, cosméticas e quase transhumanas.
É essa juventude presa à fama fácil, pensando unilateralmente na ascensão (leia-se, o holofote televisivo danado), mas há nela uma outra questão: os conformes do corpo idealizado pela luz do algoritmo, das plásticas como prática, da roupa espampanante e das cores berrantes que gritam tendência, uma ave canora sem voz em época de acasalamento. Mas não denegrimos a protagonista desta maneira — não estamos aqui para o bullying —, ainda que a empatia para com ela seja difícil. A fantasia que a envolve torna-a cega, mesmo quando a realidade decide dar-lhe um banho.
"Diamant brut" fala-nos da brutalidade do mundo para lá da fabulística idealização, transformando Liane (Malou Khebizi) na vítima perfeita, submetida a humilhação atrás de humilhação. Só que a sua carapaça dura — e artificial também —, esse narcisismo efémero pontuado nestas sociedades reféns dos conteúdos e a sua auto-produção, fá-la persistir numa resiliência sem par. O filme parece adquirir essa moralidade, se não fosse aquele final a fazer conchinha na "menina", oferecendo ao espectador o álibi perfeito para perpetuar as suas fantasias mais medíocres.
Poderia ser um "Adolescence", desses que todos comentam com convicção, mas preferiu ser “O Feiticeiro de Oz" desta geração… é só seguir estrada fora, aquela de tijolo amarelo em direção à cidade esmeralda.
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Talvez estejamos a assistir ao nascimento de uma nova vaga / dupla ou formato: David Ayer e Jason Statham nas implicações ao “homem sem passado”, resignado à profissão do momento e que, em tempos de apelo, distribuir pancada e justiça de mãos feitas. Recorda-me Charles Bronson em lugar cativo nos anos 80, pós-"Death Wish" lhe apresentar o estilo que o faria perdurar até ao fim da carreira, só que mais “mexido”, menos soturno e nocturno. Mas deixem-me repetir a ideia mais uma vez: encontro em Statham, esse traquinas à moda de Guy Ritchie redescoberto na ação pós-2000 e agora, no estado de amadurecimento, uma bravura digna de se sentar nessa cadeira bronsiana. Sim, é o nosso herdeiro de Bronson — estoico, pragmático, direto no justicialismo — e nada contra isso.
Quanto a Ayer, apoia-se nesta estrela de ação, como já havia acontecido em "Beekeeper", onde resgatou Kurt Wimmer e a sua atitude anti-establishment. Aqui, “A Working Man”, com a curiosa produção e caneta de Sylvester Stallone (seria um filme destinado para ele há uns anos), volta à fórmula aparentemente esgotada, num manifesto à la "Taken" com ecos de "Nobody" e, inevitavelmente, os pós de "John Wick". Contudo, a ação, mesmo longe da surpresa e refém da decupagem clássica, não se dá por vencida perante um enredo que coloca russos e a sua oligarquia na rota do mal. Como veremos os filmes de Statham nesta transição geopolítica, ou até regionalmente política, que os EUA atravessam? Uma boa questão para sustentar essa ação passageira na memória bronsiana, com acenos saudosistas ao videoclubismo perdido.
Sentimos com isso, ultimamente, a nostalgia dessa indústria. Ou será o cansaço das mega-produções a conduzir-nos a estes filmes médios e de estímulos básicos, a falar mais alto? Statham dá porrada … e é isso que importa para o destino da Nação.
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As causas! Há sempre um apuramento de causas quando se fala do cinema português e das suas bilheteiras. Normalmente, como já vi nos enésimos Encontros promovidos pela NOS (aqueles debates após a corrente de pitchings são para mim traumas de guerra), a culpa recai sempre sobre os filmes. Os espectadores, esses, passam incólumes pelos pingos da chuva, mesmo quando carregam o preconceito ao colo disfarçado de "exigência". Enquanto isso, gastam alegremente os seus euros para assistir a algumas das maiores 'porcarias' saídas de Hollywood.
Como Botelho dizia num livro da autoria de João Mário Grilo ("O Cinema da Não-Ilusão"), e tal ficou-me — "patetice por patetice, mais vale os americanos, que são patetas grandes". Há uns dias, um colega meu, ao ter conhecimento que fui o único a ver e a escrever sobre "Os Infanticidas", de Manuel Pureza, alertou-me para a “bilheteira miserável” que o filme tinha angariado. Fui confirmar nos dados do ICA e até à data, sublinha-se, apenas 70 espectadores viram-no numa sala de cinema. Este desabafo não é sobre qualidade ou quantidade, mas sobre a estratégia, principalmente da NOS em "promover" o cinema nacional que distribui que desde os tempos de COVID naquele infame comboio de estreias a despachar, não resulta e torna-se altamente desrespeitoso para com a obra em si. E sobre os seus artesãos, convencidos de que grandes distribuições os irão alavancar ... apenas puro engodo.
Deixo, portanto, um conselho direto (mas em vão, sou um simples crítico contra uma máquina oleado e conformistas) a produtores, realizadores e outros profissionais para procurar outras e mais pequenas distribuidoras, muitas vezes compromentem-se com um trabalho de promoção e de boca-a-boca bem mais eficaz, e talvez direcionem os vossos projetos para públicos que fogem ao banalíssimo na sua sua fronte de vida enquanto espectador de Cinema, e manifestam maior proximidade com o projeto. Fica a dica para quem não a quer; produtores, realizadores e outros, procurem outros parceiros ... já que o público e as suas certezas são mais difíceis de mudar.
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A proximidade com que o espectador ocidental se envolve nesta história de hormônios e crushs faz com que “Girls Will Be Girls”, a primeira longa-metragem de ficção de Shuchi Talati, seja vista como mais um típico coming-of-age proustiano de uma jovem de 16 anos, aluna exemplar, que cede às tentações do seu corpo, disciplinado por um sistema educacional e familiar que o corpo, disciplinado pelo sistema, seja educacional ou familiar o dispõe, responde. Os estímulos estão lá, desde os beijos praticados nas costas da mão, seja nos estudos atentos aos órgãos reprodutores ilustrados em manuais ou outras ‘didactices’ de forma a explorar as possibilidades desse vasto universo da sexualidade, ou pelas escapadelas longe dos olhares alheios.
"Girls will be Girls" anseia por ser um produto bem-comportado, rígido na sua própria doutrinação, mas nas entrelinhas deparamos, tal como a protagonista, num filme com desejo de romper as suas amarras, da assertividade da sua aprendizagem enquanto "promissora jovem", e da repreensão sexual. É no fundo um foge-e-esconde amoroso, com secretismos românticos, ou sexo entre a descoberta e a clandestinidade, sobre uma figura reflexiva da sua sociedade ultra-controlador e disciplinar numa gradual emancipação, e para essa via requer-se uma cumplice, aliás a anterior antagonista, a mãe (Kani Kusruti, "All we Imaginas as Light"), enfiada acidentalmente numa espécie de triangulo amoroso imaginário, ou quem sabe, o desejo de um Lolita inversa como pílula de uma juventude igualmente negada.
Distanciadas por gerações, interligadas pela sua oposição criada por essa linha que as descompõe enquanto mulheres exemplares, encontramos, sim, em "Girls will be Girls" um filme feminista, no sentido em que elas despertam da sua sonolência social e entendem que para progredir frente às adversidades prometedoramente incólumes a união [sororidade] é a solução, mas até lá é uma dança pelo crescimento, pela revelação dos corpos, sentimentos, da lasciva condição o qual nos mantêm humanos. E por essa sensibilidade, o filme desliga de qualquer indicio de panfletarismo, daqueles hoje injectados no proclamado "cinema feminista", detendo nem um esforço de subtilidade.
A urgência dos tempos, quase distópicos de retrocesso, talvez comprometa a mais ensaios desse tipo, denúncias de imediatismo e de clarividências fáceis, mas no cinema, ler para além do óbvio é também um exercício necessário para o espectador. Para que este não se torne um mero exemplar binário e polarizado, e sim o espectador crítico. "Girls will be Girls" triunfa pela sua disposição de ser codificado e de ser sentido como uma experiência coletiva e por vezes longínqua do nosso ser.
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