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When Lightning Flashes Over the Sea (2025)
Nos nossos sonhos somos livres – o nosso escapismo, o atalho inconsciente para a cruel entidade denominada “realidade”. Odessa, cidade imortalizada no cinema graças a “O Couraçado de Potemkin” … ai, aquela escadaria! … continua a ser sonhada, mesmo quando o cenário prenuncia um conflito interminável. A realizadora ucraniana Eva Neymann regressa a este porto-não-seguro em busca de sonhadores: desde a criança que contempla o mar como possibilidade infinita até àqueles que encaram a outra margem como morada da liberdade, e ainda aos que, diante de uma tragédia de insuportável dimensão, se dirigem ao confessionário prontos a responder ao inquérito das suas almas – enquanto as sirenes anunciam refúgio nos abrigos: “Os russos vêm aí!!”. Todos se recolhem; excepto os gatos, esses ficam, e nesse instante transformam a temporária “cidade-fantasma” no seu livre estadantarte.
“When Lightning Flashes Over the Sea” assume, através das mãos desta cineasta, a forma de um documento que se contrapõe aos demais oriundos da Ucrânia, onde a dignidade se revela no ponto de encontro entre o filme e os seus sonhadores.
Apresentado na secção Forum da Berlinale, o Cinematograficamente Falando … teve o prazer de manter uma breve conversa com a realizadora.
Para começar esta conversa, gostaria de adentrar no universo que capta no seu filme, portanto a minha primeira pergunta é: é possível continuar a sonhar, mesmo neste mundo, em Odessa?
Acredito que seja essencial conseguir sonhar, independentemente de onde estejas. Para te manteres, tens de ter a capacidade de sonhar – de ver algo para além do que chamamos de realidade. Para mim, por exemplo, fazer cinema é uma forma de sonhar.
É por isso que tenta captar, escutar e partilhar os sonhos de outras pessoas neste filme.
Se essa é a questão, posso tentar responder no que toca aos sonhos …
Nos seus filmes anteriores – lembro que, em “God 's Way” (um dos seus primeiros trabalhos) – retratou Odessa como um lugar onde a esperança parecia distante, mas mesmo assim permaneceu em Odessa. Em “When Lightning Flashes Over the Sea”, inicia com uma criança que partilha os seus sonhos, de querer viajar pelo mar, sair dali [Odessa]. O filme conecta-se com uma certa esperança. Mas como bem sabemos a realidade é “velhaca”, e tendo em conta que “God 's Way” foi realizado em 2006 e este filme surge num estado diferente, emergente, digamos, num outro cenário, mesmo que a cidade seja a mesma…
Pelo que entendo, vê uma ligação entre a Odessa de 2006 e a Odessa de hoje?
Hoje, recorrendo aos seus filmes e ao seu método… Sim, é por causa dos meus métodos; Odessa continua a ser uma cidade dos seus sonhos.
Na verdade, não sou de Odessa, e sim de Zaporozhye. Escolhi Odessa porque é uma fonte de inspiração. Sinto que lá encontro raízes que me nutrem, e que continua a ser a cidade dos meus sonhos. Peço desculpa por mencionar 'sonhos' com tanta frequência, mas é verdade – a cidade ajuda-me a sustentar a minha abordagem ao fazer cinema.
Honestamente, creio que, apesar de fazer filmes muito diferentes sobre diversos temas, no final estes assuntos servem para expressar algo constante. Tenho uma ideia na minha mente que quero transmitir, e o faço através de temas diversos, de pessoas diferentes e de variados elementos. O cinema é o meio de expressão. A língua que falo.
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Eva Neymann no Festival de Berlim
Ou seja, tenta encontrar um traço comum entre essas pessoas. É como se fosse a sua assinatura – mesmo nas suas obras de ficção, procura esse mesmo padrão subjacente.
Não é que procure conscientemente uma ligação; é simplesmente que não consigo evitar. É a minha assinatura, como disse e bem. É a forma como vejo o mundo e como faço cinema. Claro que estou sempre ansiosa por procurar esperança, especialmente entre as pessoas que se encontram em situações difíceis ou tempos complicados. E, mesmo nos momentos bons, tento elevar algo – por exemplo, ajudar uma criança de rua a manter a sua dignidade, os seus sonhos de infância e tudo aquilo que uma criança deve, e deveria, ter. É muito importante. Penso que o principal ponto a realçar é que as pessoas não são meros produtos das suas circunstâncias. Há, confesso, uma tentação artística de se esconder por detrás de uma situação impressionante, afinal, às vezes é mais fácil, no cinema, mostrar a dor, as lágrimas e o sangue. Mas vejo a minha missão de forma diferente. Existe uma tentação perigosa de retratar as pessoas unicamente como vítimas, como produtos das circunstâncias. Ao invés disso, gostaria de usar o poder da arte para lhes dar validade, de modo a que continuem a ser dignos do nosso interesse, e marcantes também, mesmo nos momentos em que não estão a chorar ou a manifestar um luto ostensivo.
Também é interessante, mesmo que não haja sangue, mesmo que não haja lágrima, para que essas pessoas sejam impressionantes, é preciso reconhecer que é algo muito desafiante. Considero isso o meu objetivo.
Mencionou agora uma palavra que iluminou esta conversa - Dignidade -, porque, neste filme, procura encontrar acima de tudo essa mesma dignidade nestas pessoas. Convidou-as a partilharem as suas tristes e trágicas histórias, dos tempos de Guerra, sobre a perda de um familiar, até de famílias inteiras, dos filhos e tudo o mais, só que não vemos uma única lágrima; não os retrata, como disse e muito bem, como vítimas da situação – pelo contrário, confere-lhes a oportunidade de serem algo mais. O de não serem meros elementos de miserabilismo.
Para mim, é fundamental, por um lado, fazer com que as pessoas abram o seu coração, a sua alma e se coloquem em frente da câmara. E, por outro, desejo respeitá-las – a elas, a mim e também o público – sem explorar indevidamente a situação. Se aquilo se revela sem câmara, porque o deveria fazer com a câmara?
Um dos elementos mais chamativos do seu filme foi a tão livre abordagem que adotou – refiro-me aos gatos. Não dedicou um tempo excessivo a eles, mas reservou bastante a esses felinos que parecem viver com uma liberdade absoluta, os verdadeiros espíritos livres de uma Odessa constantemente oprimida. Os gatos, tornam-se, de algum modo, um refúgio daquela realidade, pois não são apenas animais de estimação – são também um escapismo face ao estado do mundo. Adoramos ver gatos na internet, por exemplo; muitas vezes paramos tudo só para os ver. Por isso, porque é a decisão deste olhar atento para com os gatos neste documentário – ou neste comentário, como se queira chamar, embora prefira o termo 'filme'?
Necessito destes animais para simbolizarem, de alguma forma, um espírito livre. Fiz um documentário sobre o tempo, o lugar e os gatos em Odessa. Não concebi esses elementos como algo engraçado, tudo foi feito com grande seriedade. Toda a população de Odessa mudou desde a minha infância, mas o que se mantém imutável são os gatos.
Os gatos assumiram completamente o controlo de Odessa, e até disputam o protagonismo, quer na cidade, quer no filme. É quase como se fossem animais sagrados, um símbolo acarinhado por todos. E essa convivência entre pessoas e gatos é algo que não vi em nenhum outro sítio, não sei se vocês em Portugal têm essa admiração, não sei… Estive apenas uma vez em Lisboa, só que não me recordo bem, mas o nosso carinho pelos gatos nota-se – estes animais parecem tão seguros, são alimentados e desfrutam da vida. Estão, de certa forma, muito afastados da realidade dos humanos. É precisamente por isso que representam uma parte importante da vida na cidade, proporcionando um sentimento de alegria e vitalidade a muitas pessoas.
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When Lightning Flashes Over the Sea (2025)
O seu penúltimo filme, “Pryvoz” (2021), sobre um dos maiores e mais antigos mercados da Europa, na Odessa, é claro, era um filme na linha documental, mas também recordo que já realizou ficção (“Song of Songs”, por exemplo). No entanto, dado o peso do mundo de hoje, pergunto se ainda há espaço em ti para a ficção, para a dita narrativa ficcional?
Sim, claro que sim!
Mas é realmente possível filmar ficção na Ucrânia neste momento?
Não, não é. E, sabe, gostaria muito de realizar também um longa-metragem de ficção lá – tenho esse plano. Só espero que o cinema ucraniano signifique não só filmes sobre a guerra ou sobre as situações terríveis que se vivenciam. Desejo que os festivais deixem de ser festivais de luto e se transformem em festivais de arte.
Sim, e atualmente o cinema ucraniano – especialmente o documental – está a tirar partido desta situação, o que é, ao mesmo tempo, bom e triste. Espero que seja também possível fazer filmes que não sejam apenas sobre lágrimas e toda esta dor sangrenta, sangue e luto.
É verdade, nos últimos anos, surgiram muitos documentários sobre a situação na Ucrânia. São – digamos – muito cruentos, factuais, até fatais. É difícil afastar-se desta realidade, pelo que recorrem a estes documentos como forma de protesto ou, melhor, como uma janela para o mundo ver o que realmente se passa.
Mas isso não é cinema. O cinema não é jornalismo; não se trata de um jornal, nem de um artigo, nem de uma reportagem qualquer. Trata-se de arte, e seria triste se a arte se limitasse à tristeza. É, sem dúvida, muito importante mostrar ao mundo o que se passa e expressar essa dor que todos sentimos – é assim que somos feitos. Mas também existem momentos de felicidade.
Certa vez, fiz um documentário sobre a minha tia judia muito idosa, que sobreviveu à Segunda Guerra Mundial, e perguntei-lhe – com as câmaras – sobre a sua trajetória em 1945. Ela contou-me coisas, algumas horríveis, mas no fim acabou por dizer: “Tinha 17 anos e era feliz.” Ou seja, a vida não se resume à morte e a tragédia, há alegrias, vida a ser comemorada, e como tal isso deve ser realçado.
Como cinéfilo, não posso deixar de referir que, no cinema, Odessa é sempre recordada pelo clássico “Battleship Potemkin” (Sergei Eisenstein, 1925), o que nos projeta uma imagem de um campo de batalha eterno, uma cidade em permanente conflito.
Não diria assim. Acho que temos percepções diferentes. Nessa cidade há tantos festivais. Há tanta alegria, e as mulheres são tão bonitas. Há festas, há a orla marítima, há restaurantes, há teatros, e assim por diante. É tão alegre, sabes, e essa ideia de um campo de batalha eterno… simplesmente não concordo. Em Odessa ainda se pode sonhar.