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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Uma ex-máquina!

Hugo Gomes, 30.01.25

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Para Iris (Sophie Thatcher, “Heretic”), Josh (Jack Quaid) é o seu e único mundo. Apaixonou-se por ele, segundo recorda, numa ida ao supermercado, quando o desajeitado rapaz fez estremecer a bancada de laranjas, o riso veio de seguida, o amor à primeira vista deu-se no inaugural cruzar de olhares. Memória vivida, ao que parece! Só que não. Tal nunca aconteceu, até porque, tecnicamente, Iris não existe. Quer dizer, tem fisicalidade, uma presença, digamos assim, mas não uma existência. Não é humana, é uma robô na linha dos "autómatos amorosos". O amor incondicional é um artifício.

Companion”, de Drew Hancock, insere-se no thriller da expansão da IA e do seu constante debate, piscando o olho a conceitos há muito aprovados por Isaac Asimov e Philip K. Dick, inevitavelmente, até certo ponto, reagindo a essa modernidade com algum arrojo, trazendo um efeito de Turing invertido, em que Josh precisa de convencer Iris de que é uma máquina, enquanto ela nega, agarrada ao que acredita ser a sua vida e consequentemente às suas (fabricadas) memórias. Nada de desconhecido ou ambíguo para o espectador, que desde o início o sabe: Iris é uma máquina, sapiente e talvez, consciente. Não há segredo, nem twist que valha que ofusque essa informação previamente estabelecida.

Nesse jogo, há um lampejo de “Ex Machina”, mas o desejo é passageiro, muito passageiro. Os traços de terror começam a sobrepor-se e “Companion" perde a astúcia para se render ao entretenimento casual, mimetizando a fórmula de Wes Craven sem nunca reproduzir as suas, por vezes brilhantes, encriptadas sociopolíticas. Mas, enfim, a indústria manda-nos modelos destes, rápidos de consumir, sem grande maçada para a nossa massa cinzenta. Mesmo assim, Thatcher convence-nos de que é um produto à distância de uma encomenda.

"Mestres Japoneses Desconhecidos IV": rebeldias para com o passado em mais uma trilogia nipónica

Hugo Gomes, 30.01.25

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À quarta vira tradição! A The Stone and Plot avança na quadrilogia dos Mestres Japoneses Desconhecidos, hoje uma janela aberta para tesouros escondidos na História do cinema nipónico. No lugar do X, uma pequena "batotinha": um repetente. Hiroshi Shimizu, que encantou as audiências portuguesas com encontros e desencontros nas montanhas em “O Som do Nevoeiro” (“The Sound in the Mist”), retoma a batuta e contradiz o aforismo tão em voga: "Mãe há só uma!". Esplendoroso exercício dramatúrgico, tudo no sítio, exposição do classicismo japonês, brindado pela sensibilidade a que este realizador, que aos poucos descobrimos, nos habitua como gesto evidente.

“A Imagem da Mãe” (“Haha no omokage”) poderá ser esse diamante bruto nesta nova "caixinha de bombons" cinéfila – quem sabe, a porta de entrada para um futuro ciclo da sua fase tardia, essa que tanto deslumbra. As outras duas obras, experiências de sentidos e de sociedade, marcam um tempo em mudança. Juventudes inconstantes, ora rebeldes, ora oprimidas, ora inconsequentes, ora desprevenidas, a ver e a serem vistas.

Festejemos 2025 com mais um gole de saké, pois Mestres Japoneses Desconhecidos IV é prenúncio de uma nova temporada cinematográfica. Que venham esses três obras a (re)descobrir!

 

Image of a Mother / Haha no omokage  (Hiroshi Shimizu, 1956)

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O último filme de Hiroshi Shimizu é uma despedida emotiva, extraída da unificação de um novo seio familiar. Sadao (Jun Negami) e Sonoko (Chikage Awashima), ambos viúvos, são subjugados a arranjos matrimoniais. Conhecem-se finalmente e decidem, em bom português, "juntar os trapinhos", mas cada um traz consigo os seus "penduras": filhos menores, cuja respetiva aprovação se torna um passo crucial para a saúde da relação. A filha de Sonoko chama Sadao de "pai" com naturalidade, já o oposto revela resistência. Michio (Michihiro Môri), rapaz ainda comprometido com a memória da falecida mãe, dialoga diariamente com o seu retrato, posicionado carinhosamente na estante e cuida do seu pombo-correio, vindo da sua antiga progenitora como apreço pela sua presença fantasmagórica. Apesar da pressão familiar, a designação "mãe" transforma-se aqui numa verdadeira batalha, e o poder dessa palavra adquire a força de uma aceitação, uma cedência a um futuro por vir.

Shimizu, conhecido pelos seus filmes de crianças, revela mais uma vez a sua sensibilidade, aqui, sem nunca desviar-se da trama e dos dramas dos adultos, mas envolvido numa comovente compaixão pela causa deste menino que teima em não largar o passado. Há algo de subtextual nessa saudade em conflito – como se Michio espelhasse um Japão vencido, dividido entre novas jornadas e o peso da sua história, um saudosismo compreendido no olhar.

A câmara, suave, desliza em travellings deliciosos, fundamentais para mapear o quarteirão que envolve a narrativa central, e o rosto daquela mãe a converter-se no que nunca foi – a tão familiar ao universo de Ozu, Awashima - de olhos tristes, rosto ferido mesmo quando soa-nos glacial. As emoções estão acima da flor-da-pele, transpassam-se com bravura de uma universalidade mesmo que tudo aquilo nos pareça exotico perante o nosso ocidentalismo.

Um filme belo? Não. Belíssimo!

 

Nothing But Bone / Hone-made shaburu (Tai Katô, 1966)

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Kinu (Hiroko Sakuramachi), como tantas raparigas presas à pobreza, é vendida para um bordel aos 18 anos, no início do século XX. Lá, depara-se com uma fortaleza labiríntica e contrai uma dívida impossível de saldar. A liberdade torna-se ilusão, sussurrada pelos corredores ou nos recantos secretos dos quartos das colegas prostitutas. Um desejo que adquire forma – talvez, quem sabe, na promessa redentora do Exército de Salvação, com os seus valores cristãos e a sua puritanidade pregada como única fuga possível.

Mais um exemplar a juntar ao grande ciclo de filmes de bordel, aqui sob a sombra de Mizoguchi e o seu pleno “Rua da Vergonha” (“Street of Shame”, 1956), estandarte incontornável (recorde-se que a primeira edição dos Mestres Japoneses Desconhecidos já contava com um, bem arquitetado, “Ginza no onna”, de Kozaburo Yoshimura). “Roída até ao Osso” (“Nothing But Bone”) não ousa em amargurar aquele cenário como Mizoguchi o fizera, nem se rende ao fascínio do ambiente. A crítica move-se entre um verniz elegante e o feroz embate contra o tradicionalismo opressivo que essa sociedade ultra-masculina expõe.

Talvez pelos calos acumulados nos subgéneros de espadas e yakuzas, o realizador Tai Katô integra um caos latente, por vezes silenciado, que remata numa desconstrução irrequieta do seu espaço. Uma barafunda respondida, ou melhor, apaziguada num final assertivo – na fé cristã. Uma conversão que, talvez, moralize essa vicissitude amoral.

 

 Pretty Devil Yoko / Hikô shôjo Yôko (Yasuo Furuhata, 1966)

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Acredita-se que o argumento deste filme tenha sido inspirado num artigo da revista Life, embora os autores Fumio Kōnami (“Female Prisoner Scorpion: #701”) e Ryūnosuke Ono (“The Bullet Train”) surjam creditados como responsáveis de um guião original. O professor David Pinho Barros o havia salientado numa das ante-projeções comerciais, portanto, não percamos essa ligação.

Primeiro trabalho de Yasuo Furuhata, realizador que viria a construir uma carreira extensa no refúgio do meramente comercial, aventura-se aqui na febre e exaltação hippie, apontando uma lente crítica ao fenómeno da futen zoku (a tribo dos vagabundos), contracultura onde se insere a nossa Yoko (Mako Midori, “Blind Beast”), jovem que abandona o campo em busca de oportunidades na cidade, acabando por se perder no vício dos produtos ilícitos, do jazz, da errância e das festas tardias. Juventude sem causas, sem beiras sequer.

Apesar de irregular, a obra não deixa de ser esteticamente intrigante. Furuhata infunde, ocasionalmente, um impressionismo vincado nestas personagens, sobretudo sob o efeito daquelas drogas, da qual babam-se por mais. A estrutura narrativa é também uma delinquência, desfeita num sonho ferido e transcrito como fuga a uma realidade insuportável. Veja-se o desejo febril da protagonista de visitar as praias de Saint-Tropez, França, após vislumbrar as suas imagens num filme à francesa durante uma das suas fugas ao cinema. Assim, há aqui um sopro de nouvelle vague, uma vontade de a requisitar para desapegar-se de modelos classicistas, como também deparamos com um retrato de um Japão cada vez mais ocidentalizado, globalizado, desenraizado das suas tradições milenares. 

Recheado com algumas aparições reconhecidas do universo nipónico, como o ator Shūji Sano (visto em trabalhos de Ozu e de Tanaka), Eiji Okada (que o cinéfilo o reconhecerá de Hiroshima Mon Amour) e o poeta e realizador Shūji Terayama (“Throw Away Your Books, Rally in the Streets”, “Pastoral: To Die in the Country”).

Rebeldia com Yoko – e não sabem o bem que fazia.

Quem quer vendar os cineastas de intervenção?

Hugo Gomes, 29.01.25

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Mohammad Rasoulof, O cineasta político iraniano? Hipocrisia, tendo em conta que o Irão fervilha nessa corrente de cineastas em inversão aos interesses do Estado. São vozes, maioritariamente silenciadas, que, para contornar a censura e as consequências agravosas, estabelecem pacto com a alegoria e a subtextualidade. Contudo, cada vez mais assertivos na mensagem. O Ocidente alimenta-se dessa fúria, emoldurando-os numa vaga de cinema iraniano difundido por festivais e escolas. Rasoulof lidera, sempre a pisar nos calos do sistema, essa provocação, esse ativismo urgente de punho mais do que cerrado e peito aberto às balas, conduzindo um cinema que não mata, mas, parafraseando o saudoso Raul Solnado, desmoraliza e muito a escadaria do Poder.

Talvez o crescente interesse sobre o realizador e a sua ascensão nesse estatuto de cineasta de intervenção se deva sobretudo ao anterior invicto Jafar Panahi, agora encostado ao meio rural, saboreando as suas parábolas de reinante obscuridade (“3 Faces”, “No Bears”). Porém, nessa linha, devemos salientar o nome de Ali Ahmadzadeh — cujo "Critical Zone" abocanhou o prémio principal de Locarno em 2023 —, e já apontado como um avançado na quebra de tabus estabelecidos.

Entre os filmes do momento, absorvido pela atenção ocidental, "The Seed of the Sacred Fig" insere-se na sua alegoria familiar. Laureado com o Prémio Especial do Júri em Cannes, enraíza-se no terreno fértil da indignação coletiva, solo nutrido pelos protestos desencadeados após a trágica morte de Mahsa Amini, em 2022 — jovem arrancada à vida pelas mãos da Polícia dos Costumes, numa punição que refletia o peso insuportável das normas do "hijab". Imagens amadoras e clandestinas dessa indignação intercalam a narrativa, induzindo um senso de zeitgeist que arrasta tanto espectadores como personagens para a atuação do contexto político-social.

Enquanto isso, no seio de uma família — não uma qualquer, mas a de um juiz do Tribunal Revolucionário de Teerão, recentemente promovido —, Iman (Misagh Zare) vê-se encurralado por um acontecimento “banal” e perturbador: o desaparecimento da sua arma — símbolo inequívoco do poder estatal — dentro de casa. Essa ausência, sombra corrosiva, ameaça não apenas a reputação profissional, mas também a estabilidade do lar. Na tentativa de resgatar o objeto perdido, Iman torna-se uma figura inquisidora, tensionando a relação com a esposa (Soheila Golestani) e as filhas (Mahsa Rostami e Setareh Maleki), estas últimas profundamente envolvidas no turbilhão das revoltas.

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É na pele da esposa que o filme adquire intenção. Não persuadir uma verdade, mas usar o seu estatuto de cônjuge, mãe e doméstica como ponto de partida para a alegoria, equiparável à Caverna de Platão. O primeiro choque com a realidade humana dá-se na sua descrença, plena confiança nos meios comunicacionais — a televisão, aqui instrumento propagandista estatal, alterador da verdade — e na função do marido, que vindo dele apenas e somente a “verdade inquestionável”. Neste papel de estabilizadora doméstica, insurge-se contra verdades e mentiras: manter a paz dentro das quatro paredes, mas a que custo? O filme avança através desse questionamento, dessa resistência, culminando na entrega e combate à Ordem estabelecida. Iman converte-se no catalisador bruto da ordem e da tradição opressora, e a arma, o macguffin simbólico, concentra o peso de um Poder destituído e a procura da sua restituição, num conflito silencioso desembocado num último ato de completa anarquia familiar. Mulheres unidas para derrotar a essência de uma ordem patriarcal encarnada num pai que se revela tirânico.

Esse jogo de tensões, elástico prestes a romper, culmina numa extraordinária potência imagética. As imagens, meticulosamente arquitetadas, transcendem o literal, insuflando um imaginário revolucionário que ecoa muito além da tela. A arma, a poeira, a mão hirta do defunto / derrotado — assim dito para evitar revelações excessivas — constroem uma gramática visual que é, simultaneamente, um statement e um grito abafado, e igualmente libertador. Uma observação de um regime sustentado não apenas pelos pilares do patriarcado, mas pelos véus densos de um fundamentalismo que tudo encobre.

No fim de contas, um thriller sem suavizações politizadas, um megafone que brada bem alto a sua mensagem, com direção ao Mundo, aproveitando a sua globalidade enquanto ainda pode, e nessa linguagem, como digamos universal, o cinema, as imagens, a suas causas-efeitos. O Ocidente aplaude, premeia, Rasoulof arriscou o pescoço... mais uma vez, no seu gesto mais gritante desde o clandestino "Manuscript Don’t Burn" (por cá, apenas exibido no encerramento de uma edição do Doclisboa). A sua estirpe como realizador da revolução ainda está por vir, mas, por agora (e ainda), é apenas um fazedor de cinema como ato de resistência.

Mel Gibson Airlines

Hugo Gomes, 24.01.25

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Mel Gibson baixou a garupa e aceitou um thriller de pacotilha para, talvez (teoria minha), ajudar a financiar a sua antecipada sequela de “The Passion of the Christ”. Assim sendo, e em defesa deste projeto desprovido de vida própria, não encontramos aqui nem a personalidade de Gibson enquanto realizador, nem a sua ambição, por vezes sufocante (ainda que “Apocalypto” seja uma obra a merecer uma nova revisão), nem o seu apelo popular que, ocasionalmente, cede a um oportunismo político (“Hacksaw Ridge”, um dos bélicos mais antiéticos dos últimos anos).

Neste caso, temos também Mark Wahlberg a assumir a sua canastrice – e, surpreendam-se, como tão bem lhe assenta este papel há muito praticado (mas nunca legitimado pela indústria). Aqui, ele interpreta um psicopata (hilariantemente, com problemas de calvice) no sentido mais exagerado do termo, com um plano maquiavélico para assassinar um criminoso (Topher Grace) pronto a testemunhar contra o seu mafioso "patrão", acompanhado por uma marshall incompetente (Michelle Dockery), durante uma viagem num jato privado que parte de um ponto remoto no Alasca em direção à civilização – e, consequentemente, ao “julgamento do século” (que estes filmes nos vendem como motor centrifugo do enredo).

Noventa por cento da ação decorre dentro de uma avioneta algures sobre montanhas cobertas de neve e costas desoladas, com uma narrativa que gira em torno de telefonemas e reviravoltas dependentes destes, enquanto isso, o assassino interpretado por Wahlberg permanece no aparelho com a sua falsa-astúcia e agressividade não tão eficaz (mais patético que ameaçador). Fica-se na dúvida se tudo isto é deliberadamente cómico e despreocupado ou se a pretensão se perdeu por cantos desastrados. Só que, de Mel Gibson, espera-se sempre o pesado. Aqui, num produto de série B, damos de caras com uma espécie de filme “do meio” – um formato hoje rarefeito na indústria americana, oscilando entre o cinema independente de baixo orçamento e os grandiloquentes arrasa-quarteirões.

Zombeteiro e exagerado quanto baste, mas de manque firme na turbulência da sua canastrice. Tem um qualquer aroma de videoclube. Velhos tempos!

Em defesa do olhar branco nos Tropicolonialismos ...

Hugo Gomes, 23.01.25

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... e antes que as pedras comecem a cair sobre mim, devo alertar-vo: um pouco de ambiguidade em temas polarizadores, como o colonialismo ou a forma como abordamos o passado, nunca fez mal a ninguém. Porque – colocando as coisas desta maneira – o olhar [“gaze”] aqui presente é de um branco, e igualmente oriundo de um branco, mas nem por isso resolve ser uma apologia a essa mesma colonização do olhar e da sua História. Até porque, à época, a inconsciência da dimensão temporal fazia o colonialismo ser entendido apenas na sua função de mercado, discutivelmente os primórdios e a expansão do capitalismo global. A sub-humanização provém de outra vertente, talvez hoje ampliada pelas lentes modernas.

Talvez por esse prisma – o de um protagonista branco e de uma realizadora branca, ainda que nascida em Moçambique [Margarida Cardoso] –, "Banzo" tenha escapado dos principais festivais de cinema, segundo a própria (numa entrevista a ser publicada brevemente). A imperatividade de outras “vozes” (frequentemente tratada de forma cínica nestas festividades cinematográficas) terá relegado um dos filmes mais importantes da nossa cinematografia recente para uma estreia mundial no IndieLisboa. Mas isso são outros tostões.

Banzo”, termo que designa uma tristeza profunda e quase patológica atribuída como causa de morte a milhões de escravos arrancados das suas terras, alude aqui ao vazio cultural de São Tomé – uma ilha preenchida por pessoas vindas de diferentes partes do continente africano, sem nada de genuinamente originário. O filme estrutura-se na sua subtileza e atmosferas evocativas de tormentos profundos – tormentos que os visuais, por si só, não seriam capazes de transmitir. Daí termos um dos maiores ensaios sensoriais do cinema português, sem se recorrer ao experimentalismo, à transgressão imagética nem nada do que valha.

Aliás, o filme inicia-se sob toques melvillianos (o escritor, não o cineasta), no inicio do século XX, com Carloto Cotta, aqui um “turista” acidental, no papel de Afonso, um médico que, depois de uma passagem pelo Congo, é chamado à ilha são-tomense para investigar uma enchente de mortes súbitas num carregamento “fresco” de escravos de uma plantação (ponto importante: a escravatura estava praticamente abolida em todas as partes do Mundo, portanto, tecnicamente neste contexto histórico, escravos não seriam designados como tais). À chegada ao porto, é recebido por Ismael (Rúben Simões, “Vadio), cuja brancura das suas vestes – e a gradual perda das mesmas ao longo da narrativa – condiz com a selvajaria que o irá contaminar. Num gesto aparentemente insignificante para fins narrativos, a personagem de Cotta Involuntariamente deixa cair um punhado de moedas belgas com a efígie de Leopoldo II que causam um tremor de horror nos africanos ao redor. Não há qualquer dispositivo explicativo nesta determinada cena, nem sobre tais reações ou sobre o rosto estampado naquelas moedas. É aqui que reside um ponto a favor de Margarida Cardoso: o de nunca tratar o espectador como parvo ou submetê-lo à condescendência. Três vivas, avancemos.

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Depois de ultrapassado o “Moby Dick”, a estadia naquela engenho aproxima-se de uma experiência conradiana: um cenário de espectros e incompreensões, de desumanidade e indiferença, de homens bons guiados por doutrinas e homens vis conduzidos pela ambição, todos fundidos numa selva onde espíritos e sofrimento resultam em paisagem. O abstracto reina como um paganismo cultivado num silêncio caótico. Há loucura nos homens e nas mulheres. Há uma liberdade – libertina e, paradoxalmente, pertinente – nos negros livres, como Alphonse (Hoji Fortuna), o fotógrafo cuja perspetiva não dominará o filme, mas funcionará como uma passagem de testemunho sobre o visto e apenas o visto. Nas suas fotografias, surge um efeito de humanização sobre o desumanizado, embora os “sub-humanos” – os escravos – percam as suas propriedades individuais: descaracterizados, uniformizados. Tornam-se carcaças vazias e espancadas, uma imagem esquemática que evoca as fotografias coloniais provenientes de relatórios, listas de encargos museológicos ou propaganda. A distância entre o olhar e o objeto captado é evidente, mesmo com a personagem de Alphonse apresentada como uma espécie de mediador entre dois mundos antípodas.

Como a artista plástica Sasha Huber, perante um repertório de imagens humanamente descaracterizadas, Alphonse parece embarcar numa jornada para devolver dignidade – quase "primoleaviana" – a esses corpos desapropriados da sua carne. Distorcer a imagem de um colonialismo, talvez, para que este não se repita, a artista, por sua vez, pela modernidade que acarreta, incute um revanchismo aos traumas memorialistas que aquelas fotos emanam.

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Sasha Huber - Tailoring Freedom

Em “Banzo”, fora da lente de Alphonse, a personagem de Cotta é, também ele, um corpo desapegado das suas propriedades. Um “avatar” através do qual um espectador ocidentalizado pode testemunhar essa subversão do que é ser humano com algum conforto (e por sua uma injecção caridosa de “culpa”, sem ser devidamente intrusiva ou de apelos a “superioridades virtuosas”). Neste caso, de forma subtil, o “banzo” – a tal patologia do melancolismo – parte do pressuposto de que estes indivíduos estão conscientes da sua própria mortalidade, cedendo ao seu estatuto diminuidor, são subtilmente exibidos como humanos, porque só eles, os únicos animais a pisar esta Terra, são capazes de reconhecer e aceitar a morte com graças de Deus ou como reprovação ao Diabo. 

Banzo”, sem pernoitar em propagandismos ou tendências oportunistas, fala-nos de períodos negros na distância do debate. Já agora, havia-vos dito que estamos perante um grande filme?

"Never dumb down the audience"; James Mangold haveria dito, ombro-a-ombro com Bob Dylan

Hugo Gomes, 22.01.25

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Quando me refiro a James Mangold como um “bom tarefeiro”, não estou, de forma alguma, a reduzi-lo a uma espécie de “faz o que basta” ou a alguém incapaz de se apresentar como um cineasta de pleno direito. Não, não o coloco nessa posição depreciativa, até porque Hollywood foi habitada por décadas de grandes tarefeiros. Basta lembrar que, em Fevereiro, a Cinemateca irá dedicar-se a Michael Curtiz, um exemplo paradigmático de um tarefeiro que participa no debate da autoralidade.

Quanto a Mangold, especificamente, atribuo-lhe essa designação por uma razão concreta: ele é o “o homem perfeito para trabalhos” que os estúdios querem impor, sem nenhuma estrutura egocêntrica que o impeça, os efetua acima da mera eficiência, “A Complete Unknown”, o esperado biopic (a award season tresanda a esse subgênero) sobre Bob Dylan, é um exemplo disso mesmo.

No filme, Timothée Chalamet - que, ainda que ultrapasse a sua habitual postura de desapego Gen Z, nunca nos convence totalmente ser o Dylan na mimetizada forma – mas, enfim, o cinema não está aqui para se colar à realidade e o verdadeiro aprovou o desempenho, por isso quem somos nós para o contrariar - interpreta o cantor enquanto este transita de um desconhecido errante para o cantautor (e poeta, para agradar à decisão do Nobel) que conhecemos tão “bem”. Um dos momentos altos do filme decorre no Newport Folk Festival. Após Johnny Cash (interpretado por Boyd Holbrook, “Logan) ter dominado o palco, Dylan apresenta-se de seguida diante de uma multidão tradicionalmente ligada ao género folk. Na plateia, a sua, digamos, “namorada”, interpretada por Elle Fanning, encoraja-o de longe apenas com o olhar, espera ver o seu “graúdozinho” a brilhar.

É então que, de guitarra em riste e com a harmónica suspensa ao nível do seu beiço, Dylan começa a cantarolar “The Times They Are A-Changin’”. Primeiro, há o silêncio da estranheza – uma canção nova, um lirismo esperançoso -, e por fim, o público, rendido, entra ao rubro. Nasce aqui o momento de glória de Dylan: um artista, uma estrela, no sentido mais vulgar do termo. A câmara corta então para o rosto de Elle Fanning e se aproxima lentamente. Os seus olhos, entre o deslumbramento e a tristeza, encharcam-se com as lágrimas que eventualmente irão lhe escorrer pela face. Nesse preciso instante, ela sabe: Bob Dylan já não lhe pertence. O ‘vagabundo’ que acolhera meses antes, com quem imaginara partilhar o quotidiano, é agora do Mundo.

Mangold transmite tudo isto apenas com imagens (e, claro, a música, perfeitamente alinhada com o efeito pretendido). Nada é explicado de forma redundante, como o próprio realizador mencionou recentemente num podcast [The Director 's Cut. A DGA Podcast”], evita ao máximo os “dumb downs” para o espectador, criticando os estúdios por tratarem as audiências como se fossem cada vez mais “parvas” – e estas, numa espécie de Síndrome de Estocolmo, cedem sem resistência.

Isto, sim, é ser um “bom tarefeiro”: o realizador das fragilidades (talvez seja esse o ponto em comum entre as suas obras), nunca condescende perante o espectador. O oposto, diria, do tarefeiro-mor (aqui, sim, em sentido pejorativo): Ridley Scott.

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