Após ter sido vencido pelo seu instinto animalesco, Armand (Achille Reggiani), perante o corpo da sua ‘companheira’ de “one night stand” - uma trágica noite para dizer a verdade - planeia livrar-se das provas carnais do seu violento crime. Enrola-a em saco de plástico, limpa os vestígios de sangue espalhados pelo aposento e parte para o próximo e, mais complicado, passo: o de a “expulsar” do prédio sem ser-se notado. O método encontrado é o contentor de lixo situado abaixo da janela comum do corredor do seu piso, cuja ligação faz-se via por um longo duto de entulho. Armand despeja o corpo pelo funil, e enquanto este desliza, a câmara mantém-se estável no orifício, imprimindo a escuridão e os deslizes de luz que se movimentam no interior do túnel, criando uma sensação de movimento através dessas tonalidades.
É um plano sem importância para a queda do storytelling, aquela economia que muitos desejam executar para o “bem do espectador”, contudo, é através deste mesmo plano, a sua fixação, fascínio e visão em encaixá-lo na narrativa, que confirma a cineasta que é Patricia Mazuy. Uma cineasta de ambientes, de sugestões, de belezas questionáveis, de uma violência que entende-se desconstrutiva, como eficazmente dolorosa. “Bowling Saturne” é essa confirmação … e que forte dose essa mesma confirmação se revelou! É preciso dizê-lo de forma clara: este é um thriller sombrio sobre a masculinidade tóxica e o patriarcado que a sustenta, mas acima de tudo, é um retrato da violência, que aqui se mostra como uma viscosidade penetrante, uma doença, não venérea, só que hereditária.
Mazuy propõe esta visão ao representar uma pista de bowling, a herança de um caçador respeitado ao seu filho Guillaume (Arieh Worthalter, “Le Procès Goldman”), um polícia em ascensão na sua carreira. Contudo, essa vida enquanto agente da autoridade o remete a uma constante solidão e, porventura, desgaste, apagando nele qualquer traço social, muito menos motivador em lidar com o público em geral. Portanto, a solução encontrada foi entregar o estabelecimento ao seu meio-irmão, o tal Armand, um ex-segurança consumido pela raiva e por uma frustração quase animalesca. É precisamente a partir dele que o filme arranca, e desde os primeiros instantes, com o seu comportamento errático, o espectador é prontamente alertado para o que está por vir.
Voltando à pista, após alguma resistência inicial, Armand acaba por aceitar a tarefa de gerir o espaço de orgulho do pai falecido. Aqui, o bowling une-se como um misto de santuário para as angústias de homem falhado e de repositório de memórias viris, dos quais, por exemplo, um grupo de caçadores, no seu restrito clube de primitivismo sanguinário, alugam o local, exibindo vídeos das suas caçadas africanas e recordando, através de rituais que só entre eles reconhecidos, dos feitos másculos, e da fúria depravada de uma “espécie condenada e desconstruída”.
“Bowling Saturne” poderia ser, como tem sido abundante, mais um desses ensaios de textualidades e decomposição dos códigos entre géneros, nomeadamente a do homem outrora pintado: seres irracionais e sanguinários, acorrentados a essa maldição do cromossoma Y. Neste sentido, não é surpreendente que seja uma mulher a realizar o filme, mas o verdadeiro twist está na crueza com que Mazuy se debruça para captar este retrato. Construindo um quadro de serial killers e de detetives encarregados de os capturar, filmando a violência daí emanada, o tabu sobre as mulheres e contra as mulheres, com uma secura longe do espectáculo gore ou da glorificação do ódio, fazendo do próprio ato uma imagem a deslizar para a objetividade. A perspetiva, quem sabe, está naquele cão, herança e “roommate” de Armand, criatura prisioneira de um ambiente de sexualidade frustrada e ferida. O termómetro para essa loucura enraizada, e igualmente o separador entre o predador natural e o predador. A brutalidade é apresentada sem a tentativa de adotar a visão do predador ou da presa, mas sim de uma testemunha — e talvez seja por isso que estas imagens nos atormentam.
Se existe um filme próximo a “Bowling Saturne”, esse seria definitivamente “Henry: Portrait of a Killer”, de John McNaughton: destituído de empatia pelo vilão/protagonista, sem esperança de redenção, e aqui, com a fotografia de Simon Beaufils (“Un couteau dans le cœur”) a assaltar-nos a sensibilidade, convocando-nos de forma confortável para a violência que representa. Uma oposição aos nossos sentidos (e sem a necessidade de sádicos e gratuitos palhaços assassinos … fica a provocação). Esta é uma história de predadores, com rostos humanos e sorrisos maliciosos, que ora nos repugnam, ora nos fazem ferver o sangue. Se este último estado se manifestar, não se preocupem; Patricia Mazuy sabe bem onde tocar nos nossos nervos.
E talvez nos tempos que decorrem, filmes como este adquirem uma importância social dos que “felizes” ensaios de desconstrução, é que por vezes o Cinema é um espelho dirigido a gorgonas, a Medusa, confrontando os nossos horrores numa “pega de caras”, talvez como alternativa à nossa cobardia em lidar com as realidades em redor. Sim, peguei emprestado tal alegoria a Radu Jude no seu dicionário “de Anedotas, Signos e Maravilhas” no premiado “Bad Luck Banging or Loony Porn”. Contudo, “Bowling Saturne” explicita esse choque de ideias com as imagens de uma masculinidade protecionista, não tão longínqua das milésimas variações variações do slasher movie ou de psicopatas 70’s e 80’s.
E antes do habitual revirar de olhos de uma cinefilia também conservadorista e cercada, não existem lições de moral no cinema de Mazuy, apenas perversidade didática e um sorriso sádico e deleite com a morte avistada.