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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

“Que Mulheres serão estas?”: a questão que vira sessão de curtas sobre mulheres ... e que mulheres!

Hugo Gomes, 04.10.24

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“Que mulheres serão estas?”, a pergunta que se faz de título, e o título que se faz de pergunta, talvez na persistência do dilema do que é uma mulher, e o que se faz para ser mulher. Decretos feministas, portanto, mas mais que isso, é a vontade de esmiuçar um género, ou além disso uma identidade, a partida dela nasce a iniciativa cinematográfica, três curtas portuguesas para fazer jus à tendência que desejamos tornar tradição. Essas sessões triplas, três produções cada uma delas oriundas de uma diferente produtora, cada uma correspondendo a uma visão e a uma definição própria de mulher. “Que Mulheres Serão Estas?” a questão que vira sessão.

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As Sacrificadas

Seguimos à tradicional e à sacrificada se não fosse esse também o título deste projecto - “As Sacrificadas” - sobre martires e forças, segundo se crê sobrenaturais, que o sexo feminino parece apresentar, neste caso a Otília (Tânia Alves), dividida entre o trabalho, em ser cuidadora da sua mãe e ainda, sob a ameaça dos fogos estivais. Uma curta que chega-nos ao circuito comercial com sabor de zeitgeist, um drama que borboleteia por esses temas e que revela “mão firme” de Aurélie Oliveira Pernet. Contudo, é um filme ausente, pertinentemente e perversamente, do seu lado incendiário. Entende-se a sensação de drama semi-rural enclausurado (mas sem fascínio algum para com esse meio), continuamente fechado a esta mulher de força avassaladora, e em consequência, cada vez mais apagada enquanto identidade, a tradicional e igualmente oprimida, nem que seja pelos códigos estabelecidos sociais, a da mulher, e aí está, sacrificada em prol de outros. 

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By Flávio

Depois segue a emancipação de uma outra mulher “aprisionada”, e não por menos desprezada, Márcia (Ana Vilaça), uma experiente em questões de redes sociais, sendo esse o seu escape, contrariamente condenatório à sua persona. Jovem, solteira e mãe, e com um pouco de inconsequência pelo meio, ela é, à partida, olhada de vesga pelos restantes, a irresponsável vista à lupa da tal sociedade que ordena e julga. “By Flávio”, curta de Pedro Cabeleira, uma das grandes ‘promessas’ do cinema português o qual não canso de insistir (basta conferir “Verão Danado”), trabalha aqui um filme sobre duplas vidas e de duplos desejos, com humor ácido e estéticas embebidas numa artificialização da fantasia pop. É um gag prolongado sobre as ditaduras visuais e aquilo que se prende nos “padrões socialmente seduzidos” do que é uma “mulher de descarte”. Vista as ‘coisas’ é uma emancipação feminina, da improvável, a suposta que “não vale um chavo”, corpo acima do resto, contra as convenções que a aprisiona. No final - “Sou eu e a puta da shotgun” - o grito de guerra da luta de quem por direito anseia uma nova feminilidade.  

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Um Caroço de Abacate

Já a terceira e última curta - “Um Caroço de Abacate” - de Ary Zara (cuja história da sua transpassagem encontra-se presente no documentário “Ary” de Daniela Guerra), lida com uma sombra preconceituosa, a do fetiche inicialmente, aqui representado por Ivo Canelas, homem cis que sente o fascinio pelo mundo de Gaya de Medeiros, aqui como mulher trans e prostituta, que numa certa noite decide mostrar-lhe um caminho alternativo ao lascivo da fantasia oculta. Das três é a historieta mais arriscada, até porque “puxa o tapete e sacode o pó” dela em temas e dilemas que numa sociedade ainda presentemente conservadora tende em negar, e curiosamente, o filme de Zara poderia funcionar nesse panfleto do que é mulher ou não é mulher, as fronteiras da identidade com o seu género, e agressão ao conceito de cisgenero e heteronormatividade. Poderia … mas para quem viu “Ary” apercebe que da sua experiência o ativismo é humano, é sentido, daí “Um Caroço de Abacate” jogar com o seu maior trunfo, a sua delicadeza e carinho para com as suas personagens, deixa de lado o discurso demolidor e transgressivo e se concentra num episódio “After Hours” com “Before the Sunset”, sem malapatas e nem romances acima da carne, apenas dois indivíduos de traços quase almodovarianos partilhando um mundo, uma dança, e uma expectativa. Empatia sobretudo, é a arma de guerra de Ary Zara, e nesse sentido faz mais pelas supostas “causas” que muitos irão realçar do que os verdadeiros “filmes de causa”. Somos humanos, e é o que importa, o resto é “conversa de tesão”. 

Margarida Gil: "sempre fugi do real, porque para mim o real não é suficiente."

Hugo Gomes, 03.10.24

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Mãos no Fogo (2024)

Chega às salas portuguesas “Mãos no Fogo”, a mais recente e premiada obra de Margarida Gil, cineasta que tem habitado produções austeras nos últimos tempos. No entanto, talvez habituada a este ambiente ou sentindo-se confortável com a intimidade que ele proporciona, afirma não se importar. Afinal, o "cinema pobre", como a própria define, é a sua arte.

Neste trabalho, vencedor do Prémio de Melhor Longa-Metragem na 21ª edição do IndieLisboa, Gil mergulha no lado sombrio e contido do mal presente no clássico de Henry James — “The Turn of the Screw —, readaptando-o à sua realidade. Uma palavra curiosa, "realidade", visto que, nesta versão, seguimos uma estudante de cinema com o sugestivo nome Maria do Mar (Carolina Campanela), que se instala num casarão algures no Douro, com a ambição de consolidar a sua tese sobre o "real no cinema". À medida que os dias passam, a presença fantasmagórica da casa leva-a a questionar a sua própria realidade e a dos seus atos. Será que a queda de Maria do Mar representa, simbolicamente, um gesto de Gil contra um determinado tipo de cinema?

Foi numa solarenga e escaldante tarde de Setembro, na esplanada da Cinemateca, que a realizadora falou com Cinematograficamente Falando … sobre ideias, oposições e o cinema em que acredita — mesmo que, para isso, tenha de meter as suas mãos nas brasas.

Gostaria de começar com a génese deste projeto, de onde veio a ideia para readaptar … talvez não seja a palavra indicada, ou melhor … trabalhar o livro de Henry James?

Se me perguntares de onde vem, nem sei dizer, porque acho que ninguém é capaz de responder a essa pergunta. Pelo menos, não sou capaz de a responder. Às vezes vem de sonhos, ou de uma visão que se tem. Neste caso, de um livro que me marcou. Depois, nunca foi tanto o livro em si, mas algo que ele me transmitiu. Aquela violência, aquele mal que nunca é por acaso. Interesso-me muito por questões sobre a maldade. Sobre o porquê de se fazer o Mal. Porquê se maltrata? Porquê essa relação maléfica com a vida e com os seres humanos? No fundo é a história da vida. Essa questão, que também é a história do Poder, em que as criaturas exercem o Poder, e normalmente o mal está associado a isso. São questões que me envolvem sempre no cinema. Neste caso, a questão das crianças que são, ou não, cúmplices naquela situação toda, o qual considero o auge da maldade: essa fusão de criaturas indefesas com o Mal. Parece-me a expressão mais maléfica do Mal. E isso deixou-me com uma sensação de indignação insuportável.

Provocou-me uma reação, porque é sempre uma irritação. Não há uma única vez que leia o livro sem ficar profundamente irritada. Aliás, o Henry James, escritor que considero superlativo, tem o condão de me irritar imenso. Já a Agustina Bessa-Luís também me afeta profundamente. São escritores que me deixam possessa, por um lado, pela sua grande imperfeição – que, aliás, adoro –, por deixar tudo em aberto. Essa é a perfeição deles. Será voluntária ou não? As coisas são enunciadas, subentendidas... Há uma necessidade imensa nisso. Estou a referir-me aos dois, mas não sei se o que digo faz muito sentido... É qualquer coisa assim. Mas agora que falo nisto …

Curiosamente ia falar sobre a “presença”  de Agustina Bessa-Luís no seu filme, acho curioso ter a mencionado.

Está no ar, parece que é natural. E essa coisa, do “parece que é natural”, irrita-me muito.

Sim, pegando, por exemplo na “Sibila” da Bessa-Luís, há toda a normalização da má-índole nas personagens …

Como me irrita, é verdade. O Henry James deixa-me sempre perplexa, porque acho que ele é genial. A forma como conta, como esconde... aquela habilidade de ocultar o mal. Ele é o escritor que, por acaso, mais tarde descobri que tinha algo de muito Shakespeareano, muito Hitchcockiano. E, um dia destes, ouvi o Hitchcock dizer que o escritor que ele achava que melhor compreendia o seu cinema era de facto o Henry James. E esse lado perverso que o escritor tem, não há dúvida. A Agustina também o possui, sem dúvida. E o Hitchcock, obviamente. Mas, curiosamente, acho que não tenho esse lado. Contudo, fico fascinada por isso.

Provavelmente, há muitas explicações, mas sinto que acabo por derivar para um lado mais solar, mais "Renoiriano", se calhar. Enfim, quem me dera... Já sou eu a “armar-me aos cucos”.

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Margarida Gil no Festival de Berlim

Sobre essa questão da perversidade, há um ponto interessante, especialmente porque a protagonista é vegetariana, e o primeiro contacto que ela tem com a casa é através da cozinha, onde encontra a cozinheira, Adelaide Teixeira, prestes a preparar um peru. Ou seja, logo ali temos uma relação mefistofélica. Depois, é através do cinema, das filmagens, que ela vai desvendando a diversidade e as complexidades daquela família. Portanto, a perversidade, apesar de você dizer que não a tem, está sempre lá presente.

O assunto interessa-me muito, mesmo que não tenha necessariamente essa perversidade em mim. No entanto, quase todos os meus filmes possuem esse lado, ou pelo menos algo próximo disso. É um tema que me fascina. A rapariga, com a sua candura quase tocante, tem uma visão tão particular do mundo que acredita que o que filma é a realidade, e que o real é aquilo que os seus olhos captam e que é possível filmar. O que ela vê é o que existe, tal como muita gente me diz. Há muitas pessoas que vivem convencidas de que aquilo que veem com os seus próprios olhos é a vida, como se a perceção visual fosse a única verdade.

Que a verdade é só isto que nós vemos, e não há nada mais …

É mais daquilo que nós não vemos. Acho que essa candura da personagem foi a minha pequena traquinice. É como puxar o “tapete”, porque o que está lá debaixo, é o que ela não vê. Mas o percurso que faz, como num "road movie" dentro da casa, acaba por embater com a vida, tal como acontece na realidade. As crianças, que podem ser bastante malvadas, são também quem mais acredita em tudo. Para uma criança, tudo é possível: o elefante voa, as estrelas levantam voo da água ... Para elas, tudo isso é real. Acho isso uma das coisas mais bonitas do mundo.

No entanto, à medida que vão crescendo, começam a encarar a realidade de outra forma, cedendo, cedendo, cedendo, até que o único real que reconhecem é aquele que podem ver e tocar, e aí perdem o encanto. Quando o perdem, começam a participar, de forma mais consciente ou lenta, no Mal, até ao ponto de fusão, como faz Henry James. Mas no meu caso, não o faço assim. Há um ponto em que a personagem está quase a mergulhar nesse Mal, quase a fundir-se com ele. Já estive tentada a seguir esse caminho no filme, mas  depois pensei ... não posso perpetuar isso. Tive que tomar uma posição e, nesse momento do filme, tomei-a.

Sobre essa questão do cinema e do real, que é justamente o que a Maria do Mar defende – já voltaremos ao nome, que também acho uma escolha curiosa – a tese dela é precisamente sobre o real. Ela acredita piamente naquilo, mas ao longo do filme vamos percebendo que as suas convicções são postas em causa. Há um ponto muito curioso no seu percurso, que talvez seja o que mais gostei no filme: ela acredita nesse cinema do real, mas o filme, esteticamente, é construído de forma a parecer uma fábula, uma fantasia. Como disse, tem algo de encantado.

E, olhando para muitos dos movimentos artísticos do cinema contemporâneo, o foco está muito no realismo, na tentativa de capturar a ideia do que é o real. Mas o problema não está no real em si, está na ideia do que se pensa ser o real e isso acaba por despir os filmes do seu lado estético, da sua magia. O que fez foi uma pequena provocação, porque, enquanto a Maria do Mar acredita nessa visão crua do real, o filme esteticamente caminha noutra direção, quase como um “conto de fadas”. É uma contradição que, de forma subtil, questiona essa obsessão moderna pelo realismo e desafia a própria noção de verdade no cinema.

Sim, o filme está cheio de provocações, e essa do peru é um ótimo exemplo. Tenho um prazer especial em "tirar o tapete" ao espectador, e ele escorrega com facilidade nas cascas de banana que vou deixando de lado. Dá-me gozo, é o meu lado sádico, essa ideia de que a pessoa está confortável, convencida de que entende o filme, e de repente eu lhe tiro o chão debaixo dos pés. Interessa-me tanto a técnica quanto a visão, porque sou assim. Gosto do contrassenso. Do que não se vê com os olhos abertos. Acredito muito mais no sonho, no inconsciente, naquelas coisas que não conseguimos explicar, mas nas quais acreditamos. Acredito com convicção. Acho que nunca perdi isso.

Tenho uma confiança total quando sinto que algo é assim, seja porque sonhei, ou porque não sei explicar, mas simplesmente sei. E vou até ao fim. Por vezes, o que surge parece tão estapafúrdio que até chego a pensar: "Mas será que isto faz sentido?", para perceber posteriormente que faz, e as pessoas entendem. Não são estúpidas, percebem o que está lá, ainda que por um caminho menos direto.

Quanto ao cinema do real, não tenho nada contra, apenas acho uma visão limitada. E, mais do que isso, é uma forma de hubris, aquela arrogância que, na cultura grega, o homem tem ao enfrentar os deuses. Quando se faz o chamado "cinema do real", parte-se do princípio de que se pode filmar o real, como se o real fosse apenas aquilo que se pode captar com a câmara. Esses hubris, essa arrogância, as pessoas nem se dão conta de que a têm.

Se me responderem: "Ah, mas Kiarostami fazia ‘cinema do real’?" Não sei se era bem assim. Adoro todo o seu trabalho, e posso garantir que aquilo não é de todo “cinema do real”. Agora, os Dardenne, esses sim, e o cinema deles já não me interessa tanto.

32.jpgMãos no Fogo (2024)

Fiz televisão durante muitos anos como também documentários, aquilo que se poderá chamar “cinema do real”. Mas sempre fugi do real, e de forma automática, porque para mim, na verdade, o real não é suficiente. Não me chega. Preciso de voar, de fazer as criaturas reptilianas ganharem asas. A Humanidade fez isso ao longo da evolução: os peixes saíram da Terra, os répteis voaram e viraram pássaros, transformaram-se e sobreviveram. Porque é que nós não podemos fazer o mesmo?

Falando no documentário, que no senso comum é considerado o auge do realismo em cinema. Há uma crença quase inabalável no que está lá, no que é mostrado. Mas mesmo no documentário, como no caso do seu “O Fantasma do Novais” (2012), tentou evitar esse absolutismo. Nesse filme, mistura o lado de investigação – quem foi Joaquim Novais Teixeira? – com uma dimensão de ficção ou semi-ficção, através da Cleia Almeida, que performaticamente representa essa descoberta. 

Nos meus primeiros filmes, direcionados para televisão, e em película deve-se acrescentar, são considerados documentários, mas na verdade, têm muito pouco de documental. No entanto, são considerados como tal. Como, por exemplo, em “Para Todo o Serviço” (1975), sobre as criadas de serviço e o sindicato de formação para o trabalho doméstico, vou ao encontro da primeira aprendiz desse tal sindicato, uma antiga criada de Salazar ... e tudo aquilo é o mais real possível, é totalmente real, as pessoas, as suas histórias, no entanto, é totalmente ficcionado. Elas estavam a representar os seus próprios papeis, aquilo que faziam na vida real, desempenhavam-no em frente à câmara.

Foi das primeiras ‘coisas’ que fiz, e ninguém me questionou, censurou ou alcunhou aquele meu trabalho de “falso documentário”. Até porque essa questão simplesmente não existe para mim.

O que é que poderemos considerar um “falso documentário”?

Um falso documentário... O que é isso, afinal? Um falso documentário? Pois, é como um falso comentário, uma caricatura.

Sim, é visto como uma caricatura, mas a questão é que, hoje em dia, utiliza-se muito o termo 'falso' para descrever algo gerado pela encenação. Contudo, não há nenhum documentário que não tenha tido a percentagem de encenação, nem que seja de previamente pensado. “Nanook”, por exemplo, tendo o título de “primeiro documentário”, foi um objeto assumidamente encenado por Robert Flaherty. 

Mas a ficção também não é documentário? Quando filmamos os atores, quem são eles? Bonecos digitais? Estou a fazer um documentário sobre a pessoa que está a interpretar uma personagem específica. Há muitos documentários dentro da ficção. Ou seja, essa barreira não é produtiva, é pouco interessante. Serve para fazer festivais de “cinema do real”, grupos de “cinema do real”, teses sobre “cinema do real”, e depois, qualquer dia muda-se para uma outra coisa. Já ninguém faz documentários sobre cinema de ficção, o que faz sentido. Pronto, o documentário do “cinema do real” ... sempre me pareceu uma ideia forçada. Esta irritação não é de agora, sempre me fez rir essa coisa do “cinema do real”. Não quero ofender ninguém, porque sei perfeitamente que há muita gente que vai discordar…

Gostaria que me falasse o nome da personagem de Carolina Campanella, Maria do Mar.

Simplesmente porque gosto muito desse nome … [risos]

Pergunto porque Maria do Mar leva-me por vários caminhos, especialmente dentro do cinema português. Faz-me pensar no filme “Maria do Mar” de Leitão de Barros, passado em Nazaré. 

É um filme lindíssimo!

E com uma forte carga de erotismo, especialmente naquela cena do salvamento. Mas também porque a sua última longa-metragem chama-se, exatamente, “Mar” … daí a minha questão, se existe uma ligação consciente.

É tão português, e ao mesmo tempo não conheço ninguém com esse nome … Mas não impede de o achar um tão belo nome, tão extravagante de facto. Digamos que pode ter sido uma situação inconsciente, perfeitamente. Mas não vou afirmar que é, porque isso seria presumir algo falso.

36.jpgMãos no Fogo (2024)

Em relação aos recursos disponíveis para fazer este filme, fiquei com a impressão de que, comparando com as suas obras anteriores, especialmente as mais recentes, estamos perante um aumento orçamental.

Não, foi exatamente o mesmo. Não me vou queixar de ter pouco dinheiro. Não quero voltar à pobreza de antigamente, acho que posso fazer cinema pobre, mas não cinema ... para pobres. Sempre trabalhei com muito poucos meios, contudo, gosto de trabalhar com boas câmaras, com a melhor equipa que existe, mesmo que isso seja caro. Sou bastante rápida e preparo tudo muito bem, mesmo que mude tudo … na véspera [risos]. Por vezes, meto um bocadinho de medo às assistentes, mas não o faço de propósito, porque confio nas suas qualidades. Já sabem é que à noite vão receber uma mensagem com as tais alterações [risos].

O “Perdida Mente” foi quase todo improvisado a partir de uma ideia apenas. O “Cavaleiro Vento”, o mesmo procedimento, aliás nasceu de um sonho …

A do cachalote a voar sob o Pico?

Precisamente …

Eu, sabendo a equipa que tenho, que é tão boa e preciosa, tenho confiança em mim e sei que eles podem confiar. Não cedo, sigo o plano de trabalho, e até tenho tendência a simplificar as coisas. Não sou dada a muitos caprichos; quando é preciso, sou convincente, e não preciso de ter muitas exigências. Faço filmes que considero bastante baratos. Portanto, não sou uma cineasta que se sai caro [risos], sei exatamente o que existe e, não … não sou excessiva. A minha escola é a de João César Monteiro, e não é por acaso que se vive com um realizador assim durante tantos anos; sempre tive inclinação para isso. Filmava tudo e aproveitava todo o material que filmava na televisão. Tudo. E filmava um para um. Nunca percebi isso de os cineastas precisarem de fazer muitas takes.

Então é só uma take e pronto?

Não digo que faça apenas uma take, pronto. Isso depende dos atores. Mas tenho tendência a fazer muito poucos takes, e geralmente é na primeira.

Também não é dada a decoupagem?

Depende muito dos filmes, mas normalmente sei aquilo que quero e faço um esboço. Depois adapto tudo conforme necessário. Não tenho feito muitos directos para televisão, mas isso não me preocupa. Adaptar à luz, por exemplo, e ver os atores a seguir por ali é maravilhoso. Porém, tenho tudo planeado; tenho uma carta na manga, por segurança, porque, se não tivesse, não conseguiria dormir. Preciso disso.

Falando em atores, o seu “Mãos no Fogo” tem uma força gravitacional no seu interior que se chama Rita Durão, um papel alucinado e sinistro …

É Henry James puro e duro... ela é a incorporação desse espírito.

A personagem da cozinheira também é muito Henry James, mas a da Rita Durão não existe no livro; em vez disso, há a de um tio. A questão do Henry James está relacionada com o fato de que muitas daquelas personagens não existem realmente; é um truque do autor. Ele mostra uma 'coisinha' e depois desaparecem, ficam apenas a insinuar, a assombrar. A do Marcello [Urgeghe] também é uma mistura de várias personagens da obra.

Mudando drasticamente de assunto, tem existindo um movimento, especialmente aqui na Cinemateca, que é o de resgatar alguns cineastas que estiveram connosco, principalmente a geração que começou a filmar nos 70 e 80, tirá-los do esquecimento. Este ano, recordo, houve um ciclo do Fernando Matos Silva, da Monique Rutler, e do José Nascimento, mais tarde, gerando exaustivos catálogos sobre as suas obras. A Margarida Gil acredita que terá lugar num ciclo destes ou espera que não?

Não [risos]. Peço, por favor, que não façam. [risos] 

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Mãos no Fogo (2024)

Já houve um festival que lhe dedicou um ciclo, o FESTin

Sim, a divulgação para esse ciclo foi escassa, mas louvo a iniciativa e a intenção. Só que tudo isso dá-me um sabor de … postumum. Penso que se deve dar atenção na altura, um pouco como aquela frase que o João César Monteiro sempre usou: “tarde piaste”. 

Por enquanto, espero continuar o mais possível a produzir, portanto, não quero distrações. E são distrações algo narcisistas, não preciso,tenho sido bastante bem tratada, exceto no cinema a certa altura, mas já estou mais que habituada.

E quanto a novos projetos?

Tenho, mas sou demasiado supersticiosa para falar sobre eles. Dá-me azar. [risos]

A Loucura tem par!

Hugo Gomes, 01.10.24

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Os acordes Hildur Guðnadóttir mantém-se como herança direta de uma sequela, que em modos não justificava a sua existência, mesmo que as solicitações salivavam que nem cães perante o sucesso do primeiro “Joker”, e assim pegamos nos feitos e nos efeitos desse Joaquin Phoenix vestido a rigor e com maquiagem circense. Alguns anos passaram desde o brutal e televisado assassínio de Murray Abraham (o apresentador de longa duração interpretado por Robert De Niro), Arthur Fleck encontra-se na prisão aguardando julgamento que poderá ditar, ora uma, a sua reabilitação num centro apropriado caso vir a ser provado das sua distorção mental, ou a cadeira elétrica cujo novo e promissor procurador público, Harvey Dent (Harry Lawtey), deseja com clareza. 

Nessa demorada espera, Fleck revela-se constantemente num farrapo, numa sombra daquilo que era e que inspira ser, até que, uma misteriosa loira surge no seu caminho, também ela enclausurada, partilhando uma loucura transcendental para com este. Amor? Dirão alguns. O que acontece é que esta mesma mulher, Lee Quinzel (Lady Gaga), desperta esse Joker adormecido, ambos valsam pelo delírio coletivo, a destruição de um sistema e a construção de uma “montanha”. Um plano maior, que apenas Arthur “Joker” Fleck poderá concretizar. 

O título, francês porventura, “Folie a Deux", invoca o síndrome de Lasègue-Falret, elaborado pelos psiquiatras franceses Charles Lasègue e Jules Falret (1816 - 1883 / 1824 – 1902), sobre essa loucura partilhada e sincronizada / transmitida entre duas figuras, e por essa sugestão somos confrontados no calor da dualidade, a de um romance propício e destrutivo até à ambígua esquizofrenia de Arthur Fleck, novamente com Phoenix emprestado ao sacrifício. Todd Phillips, agora virado “realizador à séria”, lançando as cartas scorseseanas na mesa, desliga-se das mimesis referenciais de “Taxi Driver” e de “The King of Comedy” que corria nos veias do anterior. É nos braços do musical que se contempla a sua maturidade, “New York New York”, outro Scorsese (e um bem esquecido … ou será ignorado?) à cabeça, e com o astrolábio apontado às estrelas da Hollywood clássica do género, devolve cruelmente ao musical o seu teor escapista. 

Aqui, o escape tem perversidade mental, situa-se como estado interior das personagens, fantasias projetadas em mentes clausuradas e devaneios com o seu quê de violência anestesiada. A trupe “Looney Tunes” também entra na equação, outro efeito igualmente escapista que são aqueles desenhos animados que renegam as leis da física e da lógica, com personagens maleáveis, inquebráveis e de ferro para contrariar a fragilidade e a mortalidade do ser vivente. É dessa forma que “Folie a Deux" abre com um prólogo animado, e é desses códigos que Joker, não Fleck, se manifesta. 

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E como havia feito no desconforto da prequela, Phillips solicita as ferramentas do universo super-herois para as capturar num “cinema adulto”. Novamente, é um caso de um Cavalo de Troia, personagens de comics enfiadas numa linguagem maturada, sóbria e de técnicas reconhecíveis aos novos clássicos com selo prestigioso. Mas o que mais desafia essa tendência super-heroica, é o seu anti-clímax alicerçado a uma sensação de consequência, a sua tremenda decepção interior em prometer montanhas e oferecer-nos somente colinas, subverter as nossas expectativas ou conformidades, e por sua vez, guiando no espelho na animação-referência, retirar a natureza indestrutível que o universo de super-herois assumiu quer na tela, quer no imaginário do novo espectador “de cine”. A morte é definitiva, cada ato carrega o seu peso. 

Shyamalan havia feito algo idêntico em “Glass”, em estender a toalha para um terceiro ato frenético, parindo somente um contido e confinado conflito final, um autêntico anti-super-heroi. “Joker: Folie à Deux” é de igual registo, chega-nos como um cinema infiltrado, resultar em outra pária, talvez no prolongado das alegorias do populismo viscoso e desesperante - alimentado pelo sensacionalismo do espectáculo que os medias se converteram - na busca de agentes de caos que possam conduzir-nos a um “Novo Mundo”. Joker de Phoenix continua como esse 'messias' fabricável, mas no fundo é um miserável que procura a empatia do qual sempre lhe fora negado.

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