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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Um diamante bruto que se dá pelo nome de Anora

Hugo Gomes, 30.10.24

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O sexo é a moeda de troca nesta América “redesenhada” por Sean Baker, é o seu mote, o seu mantra, a partir do qual florescem histórias da sua visão yankee. Realizador que, nos últimos tempos, muito devido ao seu “filme de rua” “Tangerine” (2015), captado por um iPhone, conquistou o estatuto de grande nome do cinema independente norte-americano, isto num momento em que essa cinematografia de baixo orçamento parece ceder a fórmulas sundescas, com um ou dois nomes destacados. Depois desse “Kids” transgressivo, Baker acampou às portas da Disney numa busca incessante pela inocência, distanciando-se do mercantilismo e da desfiguração trazida pelos “pecados capitais” dos EUA em “The Florida Project (2017). Seguiu-se “Red Rocket (2021), onde resgatou o ator Simon Rex, conhecido pelas suas comédias disparatadas, impondo-lhe o papel de uma decadente estrela pornográfica, protagonizando uma série de peripécias tragicómicas sem qualquer réstia de redenção.

Aliás a comédia é uma droga que corre nas veias da cinematografia de Baker, de doses comedidas sem nunca induzir overdose, e é coms esse humor presente que “Anora” se instala, manejando espaço para os seus lugares-confortáveis, a do sexo, aqui representado, industrialmente, pela nossa Anora - Ani como ela prefere ser chamada (Mikey Madison) - dançarina exótica que aceita serviços de protituição para o filho de um oligarca russo com uma quantas propostas indecentes e aliciantes pelo caminho. Neste primeiro ato de delírio e ostentação, o filme abraça uma espiral de excesso, como um sonho repetitivo e musicado, que se assemelha aos infinitos anúncios de excentricidades. No entanto, quando esse sonho se dissipa, um “banho de realidade” espreita para tomar a nossa protagonista, sem nunca a banhar por completo devido à sua entranhada fantasia / alucinação. É nesse momento que Baker encontra um ritmo perfeito: o filme aguarda, esclarece, e o humor aí sugerido revela-se numa especiaria de aprumo paliativo, cada momento que Ani experiencia é trágico, dramático para não dizer mais, mas o cómico da situação extrai desses enredos o seu quê de ridículo, até mesmo sexo é olhado de vesga como um embaraço.

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Anora” estabelece uma espécie de malapata improvisada, Coney Island e arredores a servirem de trilhos carroleanos de requinte, um “After Hours” brejeiro, deliciosamente brejeiro, onde um secundário, a passos da relevância, Yura Borisov (“Compartment Nº 6”),  estabelece um vínculo humano para com o espectador — algo que, por vezes, parece faltar a Ani. Mas vamos com calma… Sean Baker arrisca-se em território que lhe é confortável, e esses riscos trazem os seus frutos. A duração do filme contribui para a maturação das personagens e das suas demandas rocambolescas, bem como para a evolução do enredo e do tom, depois, é a comédia sem nunca encostar-se totalmente à sátira, e nisso bofeteia a tendência de caricaturas-supra dos super-ricos ou dos machos tóxicos que muitas produções populares, como a série “White Lotus” ou o recente fenómeno de género “The Substance”. Aqui a crítica é sóbria e mascada e discursada em poucos minutos, sem sobreliteralidades, sem imediatismos, de lições devidamente retiradas à Nova Hollywood que espelha como exemplo formal.

No final, a nossa Ani revela-se humana, sem que isso desculpe as suas “anomalias” sociais, partilhadas por tantos de nós, e nesse ato, quase como um canto do cisne, o sexo, novamente palavra de ordem, aponta ao seu holofote, desta vez sob uma cor fria, em que a carne anseia por um afeto qualquer, uma empatia, um abraço de conforto. Somos humanos, dançamos, e para Sean Baker, fornicamos igualmente como ato lúdico, cada vez mais afastada da interação pessoal. “Anora” é isso, um abraço quente em tempos frios.

Esta vem do coração ...

Hugo Gomes, 29.10.24

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One From the Heart” é uma daquelas obras-primas desvalorizadas pelos nefastos ares do seu tempo, e mesmo com aquele discutível final com suplícios ao Happy Ending de “boa” Hollywood, torci para que Teri Garr conhecesse os trópicos que tanto desejava e fantasiava. Nada de mal em sair das suas raízes e ir ao encontro daquilo que o Mundo (ainda) tem para oferecer, uma mulher que após a sua efêmera libertação ecoa no libertário da sua emoção. É previsível que seja este o Papel de Teri Garr, a da rapariga de mala pronta, e estrada afora ao encontro da sua luz, como disseram e repetem desalmadamente, “this one’s from the heart”, e é … Contudo, não poderia fechar este “texto-homenagem” (ou lá o que seja) com a invocação da sua perdição numa Nova-Iorque fora-de-horas em “After Hours” de Scorsese, outra daquelas obras-primas dificilmente relembradas. 

Teri Garr (1944 - 2024)

"Disco Boy", falando com Giacomo Abbruzzese: "a alternativa a escapar do horror é 'dançar com o inimigo.'"

Hugo Gomes, 28.10.24

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Apresentado na edição de 2023 do Festival de Berlim, “Disco Boy” é uma história de identidades desejadas em conflito bélico ou colérico, que une Paris com a Delta de Niger, com a música assumida enquanto força utópica para personas antípodas. Seguimos Alexey (Franz Rogowski), migrante bielorusso que atravessa fronteiras e margens com o objetivo de se juntar à Legião Estrangeira Francesa, o plano é servir a essa tropa com a identidade francesa em vista como maior das recompensas, do outro lado um combatente nigeriano, Jomo (Morr Ndiaye), projecta-se numa outra vida, longe do seu alcance. 

A primeira longa-metragem do italiano Giacomo Abbruzzese, “Disco Boy” é uma produção de multi-esforços europeus como forma a preservar a sua ambição e visão original, uma valsa com a morte e com a vida, com o mesmo ritmo e bailado. Tendo estreado em Portugal no FEST de Espinho, o filme chegou às salas nacionais, prometendo o embate de ideias e o incentivo de uma nova força, a “dança com o inimigo”. Mas quem é verdadeiramente o inimigo?

Conversamos com o realizador sobre o projeto, e as custas dessa visão e como “Disco Boy” se comporta perante a nossa sociedade.  

Sei que algumas destas perguntas já foram feitas desde a estreia do filme no Festival de Berlim de 2023, porém, sabendo que este filme foi feito ao longo de 10 anos, gostaria de questionar o que aconteceu durante esse período? O que mudou desde a ideia inicial até ao filme que temos agora?

Na verdade, o cerne do filme não mudou muito. Desde o início, era sempre sobre Alexey, um bielorrusso ilegalmente chega à França com o intuito de se juntar à Legião Estrangeira. Depois havia esta outra linha narrativa— a história de Jomo, que envolvia um grupo de revolucionários ou ecoterroristas, dependendo da perspetiva. No Delta do Níger, essas duas histórias entrelaçavam-se. O conceito central e até a estrutura permaneceram os mesmos. Lembro-me de fazer uma exibição privada na Berlinale, onde um amigo meu, um argumentista do Reino Unido, esteve presente. Ele disse: “É incrível—li o esboço para este projeto há dez anos, e continua a ser esse filme!

Mas, ao mesmo tempo, escrevi 25 versões diferentes do guião. Por um lado, isto era sobre adaptar a ambição e o alcance do projeto para encaixar num orçamento viável. Trabalhei em tudo—nos diálogos, as personagens, na transição de uma cena para a outra—em busca de uma precisa atmosfera e desenvolvendo o filme ao longo do processo. Artisticamente, esta transformação não teria demorado dez anos em circunstâncias diferentes, especialmente se o financiamento para ele tivesse sido mais acessível.

Nas condições de hoje, um projeto como este poderia ter levado cinco anos. Mas o processo foi demorado porque, embora tentássemos torná-lo viável, continuava a ser um filme com, pelo menos, um orçamento de 3 milhões de euros. No cinema independente atual, continuavam a dizer-me: “Já não fazemos filmes assim. É impossível ter este orçamento para uma longa-metragem de estreia, a menos que haja uma grande estrela associada.” Queria trabalhar com o [Franz] Rogowski, que, naquela altura, ainda não era uma estrela …

Mas hoje, é uma das caras mais presentes do cinema europeu!

Absolutamente. Agora o é, mas naquela altura, o Rogowski não era um nome que pudesse ajudar a angariar o orçamento—bem pelo contrário. Alguns até hesitaram por causa dele. Tive de defender a minha escolha de Rogowski às redes de televisão ou a alguns produtores, que estavam a pressionar por nomes mais sonantes, mas sabia que ele era a melhor escolha. Esta decisão foi, principalmente, uma escolha artística.

Depois, havia a dura realidade de assegurar financiamento, que envolvia a aplicação constante, a troca de produtores e a navegação por contratempos. Em determinado momento, estava a trabalhar com um produtor que disse: “Acho que conseguimos angariar um máximo de 1,5 milhões de euros, mas vais precisar de cortar todas as cenas africanas e manter um elenco francês.” Para mim, isso mataria a essência do filme. Então, arrisquei e disse-lhe que, sob essas condições, não poderia prosseguir. Exortei-o a vender o projeto, e, eventualmente, novos produtores, mais jovens até, entraram a bordo. Como eu, eles tinham tido sucesso no formato da curta-metragem, e seriam a primeira vez que iriam abordar uma longa-metragem. Tinham uma postura fresca e colaborativa, o que foi revigorante.

Incrivelmente, em poucos meses, duplicámos o orçamento. Muitos que inicialmente disseram que “não” acabariam para o “sim”. Acho que, no final, isso fez toda a diferença.

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É impressionante que esta seja a sua primeira longa-metragem, porque é um filme bastante ambicioso para um primeiro projeto desse formato.

Acredito que as minhas curtas-metragens já eram bastante ambiciosas. As histórias que queria contar eram complexas e longe de serem simples. Sabia que precisava de criar esta narrativa de cowboy e encontrar um orçamento mínimo para capturar a essência que pretendia. No final, estou satisfeito com o que conseguimos alcançar.

No cinema, é preciso adaptar-se sempre às circunstâncias e às realidades que enfrentamos; não se pode dar ao luxo de ser rígido na sua visão. Considerando as condições desafiadoras que tivemos—especialmente o facto de termos apenas 32 dias para filmar, o que é muito apertado para um filme—estou contente com o resultado. Conseguimos criar algo que ressoa com a visão que tinha em mente. Acredito que é fiel à alma e à experiência que ansiava transmitir.

De onde veio este interesse na Legião Estrangeira?

A ideia central para o personagem de Alexey surgiu de forma inesperada. Estava numa discoteca na Apúlia [sul de Itália], a minha região natal, quando conheci um dançarino que tinha sido soldado. Fiquei intrigado com a forma como a mesma pessoa podia encarnar estes dois mundos opostos. Comecei a ver pontos de comunicação entre eles, como um sentido de coreografia, disciplina e uma força comum que culminam numa confrontação física.

No entanto, esta pessoa era italiana, e não queria retratar o exército italiano; era algo que não me interessava enquanto ponto de partida. De imediato, pensei na Legião Estrangeira Francesa, mais icónica e com uma tela mais ampla para explorar temas como a migração, a burocracia e o colonialismo. Estes temas tornaram-se uma perspetiva significativa para mim, especialmente porque vivi em Paris nos últimos 15 anos. Isso frequentemente me fazia questionar, como italiano em França, que perspetiva única poderia trazer à história que um realizador francês talvez não conseguisse.

A Legião Estrangeira pareceu-me interessante até porque existem relativamente poucos filmes sobre ela, especialmente considerando a sua importância para as forças armadas francesas, assim como o cinema americano explora frequentemente os seus Marines.

Assim de repente recordo o da Claire Denis (“Beau Travail”, 1999) e um com o Jean-Claude VanDamme (“Legionnaire”, 1998) …

Sim, são dois exemplos. Embora existam alguns bons filmes e alguns maus, realmente não há muitos que se concentrem na questão central que pretendia explorar: o facto de que um estrangeiro deve dar cinco anos da sua vida para obter um passaporte. Muitas das pessoas que se juntam à Legião Estrangeira são indocumentadas, à procura de uma segunda oportunidade na vida. Claro, também há nacionais franceses e europeus com documentos que escolhem alistar-se, mas a grande maioria são aqueles que vão lá pela promessa de um estatuto legal.

Fiquei fascinado pela dura realidade de sacrificar esses anos pela esperança de um futuro melhor. O filme é estruturado para refletir esta ideia de sacrifício. Também queria criar um filme de guerra que, pela primeira vez, permitisse ao 'outro' existir não meramente como uma vítima ou um antagonista por alguns breves momentos, mas como um personagem de uma história densa e complexa.

Nesta era de propaganda de guerra total, o mundo está proliferando com narrativas que frequentemente negam a possibilidade de entender as perspectivas dos outros. Todos acreditam na sua própria justiça, o que perpetua o conflito. O cinema oferece uma oportunidade única de ver o mundo pelos olhos de outra pessoa—alguém muito diferente de nós, seja em termos de género, estilo de vida ou etnia. Este é um dos aspectos mágicos do filme: permite-nos entrar numa outra perspetiva, o que acredito ser crucial para transmitir complexidade.

É por isso que a estrutura deste filme é tão importante. No início, somos apresentados a uma perspetiva; depois, cerca de um terço do caminho, começamos a ver as coisas do ponto de vista de Alexey. Quando a luta começa, o espectador fica incerto sobre a quem apoiar. Em muitas obras, há um protagonista claro, e é incentivado a alinhar-se com ele, mesmo que a sua moralidade seja questionável. Mas neste filme, testemunhamos o contexto mais amplo do conflito, percebendo que nenhum dos lados é totalmente monstruoso ou justificado.

Tanto Alexey quanto Jomo, o ecoterrorista, não são simplesmente vítimas das circunstâncias; são indivíduos que sonham em melhorar as suas vidas. Para eles, o único caminho para essa melhoria envolve envolver-se na violência. Alexey sente-se compelido a alistar-se para garantir um passaporte europeu, lutando por interesses que não são os seus. Ele torna-se um mercenário, mas mesmo assim tem camadas de complexidade.

Da mesma forma, Jomo, que vemos de uma perspetiva diferente, é rotulado como ecoterrorista. Mas novamente, há profundidade no seu personagem. Hoje em dia, quando falamos em matar um terrorista, muitas vezes usamos eufemismos como “neutralizar”, o que desumaniza ainda mais o indivíduo. Esta linguagem remove a sua humanidade e nega-lhes a oportunidade de serem vistos como pessoas reais com as suas próprias histórias.

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Giacomo Abbruzzese

O que está a dizer é que a designação “terrorista” existe enquanto propaganda governamental? É um conceito político?

Especialmente em conflitos geopolíticos, os rótulos que atribuímos aos lados opostos podem ser drasticamente diferentes. Por exemplo, os russos podem ver os ucranianos como terroristas, enquanto os ucranianos podem rotular os russos como terroristas. A situação é ainda mais pronunciada no conflito Israel-Palestina, onde a terminologia muda dependendo da perspetiva.

É surpreendente como classificamos ações como terrorismo para um grupo, mas não para outro. Esta disparidade muitas vezes se resume ao valor que atribuímos às vidas; algumas vidas são vistas como mais valiosas do que outras. Isso, para mim, é inaceitável. Cada vida tem o mesmo valor, e por trás de cada morte há uma história única que merece ser ouvida. Se realmente entendêssemos as histórias do 'outro', poderíamos reduzir o conflito e a divisão.

No entanto, se continuarmos a focar apenas nas narrativas que ressoam connosco—particularmente no mundo ocidental— a nossa capacidade de empatizar com os outros diminuirá. Corremos o risco de reduzir as pessoas a meros números, em vez de reconhecer a sua humanidade. Este problema existe em ambos os lados de qualquer conflito.

Gostaria de mencionar Israel-Palestina visto que antes de virar cineasta foi fotógrafo do conflito por muitos anos. Essa sua experiência influenciou a visão para deste filme?

Absolutamente. Nunca teria concebido a ideia para este filme sem as minhas experiências em Israel e na Palestina. Mudou fundamentalmente a minha vida. Reformulou a minha perspetiva sobre o mundo, a política e até mesmo a realização de filmes. Aprofundou a minha compreensão do que queria expressar e despertou uma curiosidade em sair das zonas de conforto sobre como os medias e os políticos representam as questões. Não há respostas fáceis.

Como artistas, jornalistas e cidadãos, temos a responsabilidade de nos esforçar para compreender as realidades em que vivemos. As situações terríveis que enfrentamos muitas vezes decorrem da nossa incapacidade de desafiar as narrativas que ditam como as coisas devem ser. Dizem-nos que não temos escolha senão estar em guerra ou alocar mais fundos para a defesa. Mas isso não é apenas o que temos; é o mundo que estamos ativamente a construir. É ingênuo pensar em nós mesmos como os bons e os outros como os vilões.

Durante o meu tempo na região, fui profundamente impactado pelo nível de humanidade e complexidade do outro lado, algo que considero ausente na cobertura dos meios de comunicação ocidental mainstream sobre a Palestina. Embora haja escritores e artistas dessa área a ganhar reconhecimento, muitas vezes conhecemos todos os detalhes sobre figuras políticas, mas permanecemos ignorantes em relação às vozes de civis e artistas. Isso cria um efeito desumanizador. Se mostrássemos mais artistas e as suas perspetivas, entenderíamos que existe sensibilidade e complexidade nessa narrativa além da mera propaganda.

Esta complexidade é uma razão significativa pela qual queria criar um filme como este. O cinema opera no reino do imaginário, e pretendia construir uma narrativa de guerra que chegasse através de uma lente diferente—não apenas pela crueldade das imagens gráficas, que somos inundados em todo o lado. Queria abordá-lo de forma diferente.

Por exemplo, na luta entre Jomo e Alexey, o som desempenha um papel crucial, criando uma profundidade emocional que contrasta com a imagética. As imagens em si evocam uma sensação de dança e conexão entre os dois, formando um vórtice que puxa o filme para uma experiência mais psicadélica e xamânica na sua segunda metade. Isso cria uma espécie de buraco negro que muda a direção do filme, convidando os espectadores a explorar uma compreensão diferente do conflito.

Algo que interpreto no seu filme é que nenhum destes personagens quer estar onde inicialmente está. Alexey, um bielorusso que atravessa fronteiras, junta-se à Legião Estrangeira para mudar de identidade. Jomo na Nigéria, quando perguntam sobre os seus desejos, ele responde com a fantasia de ter nascido em um outro lugar. Então, nenhuma destas personagens quer ser quem são. Somos pessoas insatisfeitas neste mundo. Nascemos cronicamente insatisfeitas com as nossas identidades.

Não sei, mas é interessante aquilo que dizes. Não vi o filme exatamente dessa forma porque, para mim, por exemplo, o Jomo é alguém que não se move. Ele está a projetar-se de alguma forma, o que é normal nas pessoas, mas na verdade a sua escolha o faz ficar. A irmã dele quer partir, mas ele quer ficar. O Alexei quer ir embora, é o seu desejo. Isso é normal para um ser humano projetar-se com esperança. É por isso que estamos num momento muito, digamos, trágico para a Humanidade, é muito complicado para nós projetarmos um futuro melhor. Algumas pessoas aceitam ter uma vida muito complicada e difícil porque têm esperança para os seus filhos. Aceitam o seu fado: "Vou trabalhar arduamente porque, pelo menos para os meus filhos, vai ser melhor."

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A crise ambiental, a insegurança social, a divisão cada vez mais agravada entre classes está a aumentar cada vez mais, tudo isso faz com que a sociedade esteja a atomizar-se. O sociedade deveria ser antes era um pacto entre pessoas que decidem não se matar umas às outras e respeitar-se mutuamente, pois concordamos que, se ficarmos juntos, somos mais fortes. Esta seria a maneira como tudo funcionaria. 

Só que, como disse, a sociedade está a atomizar-se devido à avareza de alguns ou devido a um sistema impraticável e infuncional, sem promessas de proteção e trabalho para todos, criamos uma sociedade onde corremos o risco de, digamos, um outsider que chega e destroi tudo. Só que o outsider vem de dentro da sociedade. O problema é a sociedade. Por exemplo, penso no que aconteceu no Bataclan, Paris.

Não acredito que os problemas que enfrentamos sejam externos à sociedade francesa. As questões manifestam-se dentro da própria sociedade. Se algo trágico ocorre em Paris, há razões subjacentes específicas a esse contexto. Não vejo estes eventos como uma simples oposição entre “nós” e “eles”. Muitos dos indivíduos envolvidos nasceram e cresceram na França, fazendo parte do próprio tecido social. Quando uma sociedade deixa de funcionar de forma coesa, cria uma disfunção que pode, em última análise, destruir-nos a todos. Esta cegueira é perigosa, e é por isso que devemos reavaliar constantemente como coexistimos.

Voltando à nossa discussão anterior, esforço-me por criar personagens que possuem desejos; eles não se veem como vítimas. Querem melhorar as suas vidas e avançar. No entanto, esse desejo pode levá-los a situações perigosas. Por exemplo, tanto Jomo quanto Alexey entram numa espiral que pode levar à sua destruição.

Ainda assim, há um vislumbre de esperança no final deste filme, mesmo que seja retratado de uma forma sonhadora e utópica. Culmina numa afirmação poética: a alternativa a escapar do horror é 'dançar com o inimigo.' Acho essa frase— dançar com o inimigo —particularmente poderosa.

Só uma última pergunta. Gostaria que me falasse sobre a sua colaboração com a diretora de fotografia Hélène Louvart, e como surgiu a ideia desta atmosfera onírica para “Disco Boy”?

Hélène foi a minha primeira escolha. Entrei em contato com ela há quase dez anos. Leu o argumento e como era fã das minhas curtas aceitou de imediato. Ao longo da minha luta para conseguir financiamento, ela esteve sempre ao meu lado, como uma presença orientadora. Chegou um momento em que finalmente consegui o orçamento e comecei a planear a rodagem, apenas para ser desviado pelo COVID.

Hélène tem uma agenda tão ocupada quanto a do Presidente da República; todos querem trabalhar com ela. É muito requisitada por muitos realizadores de nome que estão a fazer os seus primeiros filmes, e eu, desde o início que era um admirador do seu trabalho. O que mais admiro enela é a sua disposição para correr riscos— não se esquiva de projetos desafiantes nem se acomoda numa zona de conforto. O seu profissionalismo, paixão e compromisso para com a sua arte são inspirações.

Infelizmente, perdi-a temporariamente quando a programação do meu filme foi adiada. Quando finalmente estive pronto para reiniciar, ela já estava reservada. Senti-me à deriva durante esse período, pois tinha opções limitadas devido à pandemia.

Enquanto continuei a fazer casting e a explorar outros diretores de fotografia, Hélène permaneceu como uma presença solidária. Conversávamos muitas vezes à noite; ajudava-me a encontrar soluções para o filme, mesmo enquanto trabalhava em outros projetos. Embora não fôssemos extremamente próximos ainda, ela realmente se importava com o filme, e senti profundamente esse seu apoio.

Então, em modo serendipidade, tive uma sorte quando o outro filme que devia fazer foi adiado devido à saída de um ator principal do projeto. Isso aconteceu apenas seis a oito meses antes da nossa filmagem programada, e como ainda não tinha encontrado um DOP com o qual estivesse satisfeito. Felizmente, Hélène ficou novamente disponível, o que foi uma sorte.

Quando finalmente colaboramos, a experiência foi incrivelmente orgânica. Sou alguém que está muito envolvido nos aspectos visuais do meu trabalho, como se pode verificar nas minhas anteriores curtas. Com Hélène, a comunicação fluiu sem esforço. Ela é aberta e respeitosa; se discorda de uma linha de diálogo, expressa as suas preocupações de forma ponderada.

As filmagens em si foram uma experiência extenuante. Ao longo de 32 dias, perdi sete quilos devido ao imenso stress. Não posso entrar em todos os detalhes, mas foi incrivelmente desafiador. No entanto, ter alguém como Hélène ao meu lado fez uma diferença significativa. Ver ela às seis da manhã trouxe-me conforto, e partilhávamos uma visão comum sobre o que queríamos alcançar.

Foi uma colaboração linda; acredito verdadeiramente que estamos perante uma rainha na sua arte.

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No 11º Olhares do Mediterrâneo a revolução do dia-a-dia faz-se no feminino ... e com Cinema!

Hugo Gomes, 27.10.24

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A Mulher que Morreu de Pé (Rosa Coutinho Cabral, 2024)

Falemos de Cinema, mas também de Mulheres, e da dissociação entre ambos. É com este mote que o Olhares do Mediterrâneo se apresenta, com uma programação forte em filmes e eventos paralelos que discutem o género, as possibilidades e a importância de desvendar um cinema pensado, feito e concretizado por mulheres. Ao ultrapassar a marca de uma década, agora com a sua 11ª edição, o Festival Internacional convida-nos novamente a percorrer as margens do Mar Mediterrâneo, explorando culturas e perspetivas audazes que culminam na arte que tanto valorizamos. Este ano, a Palestina surge não apenas como horizonte, mas como algo tangível através das imagens, já que este olhar traz consigo atualidade, urgência e subversão.

O Olhares do Mediterrâneo arranca no próximo dia 31 de outubro, transformando o habitual “Dia das Bruxas” numa celebração do feminino e da sua cinematografia. O evento prolonga-se até 7 de novembro com várias atividades e exibições em novos espaços, como o Cinema São Jorge, a Cinemateca Portuguesa, o Goethe-Institut e a Casa Comum.

Silvia Di Marco, co-diretora do festival, foi desafiada pelo Cinematograficamente Falando … a descortinar as novidades, a programação de mais um ano e a essência desta importante montra cinematográfica. 

O tema desta edição, "Revoluções Quotidianas", é uma escolha particularmente simbólica no ano em que se comemoram os 50 anos da Revolução de Abril. Pode explicar como se deu a escolha deste tema e de que forma ele se reflecte na selecção dos filmes?

Este ano escolher o tema da “revolução” era incontornável para nós, porque os valores de Abril de democracia e igualdade fazem parte do ADN do Olhares do Mediterrâneo - Women's Film Festival, assim como a ideia de que o quotidiano das mulheres que se empenham pela igualdade tem uma forte carga revolucionária: querer que as nossas vozes sejam ouvidas e não sejam apagadas, que as nossas histórias sejam contadas nos nossos termos e não por outros, é uma revolução que fazemos todos os dias e o Festival é uma forma de ampliar e concentrar a força destas revoluções quotidianas. 

Aliás, não é a primeira vez que trazemos a Revolução ao festival. Em 2021, por exemplo, acolhemos a estreia do documentário “Elas também estiveram lá” de Joana Craveiro. Na programação deste ano uma ideia mais subtil de revolução norteou o programa, exactamente para captar esta ideia de quotidianidade do gesto revolucionário, que é o gesto de quem não se conforma ao status quo, seja qual for. Por exemplo, na primeira sessão de curtas-metragens, a 31 de outubro, apresentamos cinco filmes que questionam o corpo de mulheres e crianças, como ele é vivido e socializado. No documentário “The Desert Rocker”, da argelina-canadiana Sara Nacer, damos a conhecer ao público a vida de Hasna El Becharia, a mulher que transformou a música Gnawa, tradicionalmente tocada exclusivamente por homens. 

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Remember my Name (Elena Molina, 2023)

No filme de encerramento da parte competitiva do festival, “The Girls Are Alright”, da espanhola Itsaso Arana, revela-se o potencial revolucionário de um ensaio de uma peça de teatro numa casa de campo, onde quatro actrizes e uma encenadora usam da palavra no gesto extremamente “feminino” de partilhar vivências  e tecer mundos possíveis em longas conversas imprevisíveis.

O Festival dá especial destaque ao cinema palestiniano, com a secção "Olhares da Palestina". O que motivou a escolha da Palestina como país convidado desta edição e qual a importância de dar visibilidade a estas cineastas, principalmente nos tempos incertos que o Médio Oriente vive hoje?

O Festival chama-se Olhares do Mediterrâneo e é impossível olhar ao e do Mediterrâneo sem ver o que acontece na sua costa oriental. Por isso, sempre nos posicionámos de forma clara relativamente à chamada questão palestiniana. Sem nunca deixar de reconhecer e defender o direito dos judeus a viver em segurança em qualquer lugar do mundo, incluindo Israel, consideramos que a opressão do povo palestiniano é inaceitável e tem de acabar já. 

Os horrores de 7 de outubro de 2023, que o governo de Israel utilizou como carta branca para o genocídio em Gaza, é a razão principal que nos levou a decidir que este ano devíamos ter uma restrospectiva sobre as realizadoras palestinianas. É uma forma de homenagear a vida e o trabalho destas mulheres e ao mesmo tempo oferecer ao público uma oportunidade de descobrir uma cinematografia e uma história amplamente desconhecidas e criar oportunidades de debate. Os filmes que apresentamos são essencialmente filmes da diáspora. Porquê? O que obrigou e obriga estas mulheres a viver fora da Palestina? Muitos deles falam de memória e arquivos perdidos. Que memórias são estas? Porque os arquivos, assim como as pessoas, sofreram uma diáspora ou foram destruídos? Acreditamos que no momento actual é essencial conhecer o trabalho das realizadoras palestinianas para reconhecer a sua humanidade e estamos convencidas de que estes filmes oferecem também  uma oportunidade única para ajudar a compreender como se chegou ao ponto em que estamos no Médio Oriente.

A programação inclui uma forte componente de filmes sobre migrações, colonialismo e racismo. Como é que o cinema pode contribuir para aumentar a consciência sobre estas questões sociais e políticas?

Dando a ver e “sentir”, através do documentário, da ficção, do cinema experimental, as múltiplas facetas das migrações, o colonialismo e o racismo. Apresentando narrativas diferentes daquelas que são habituais. Criando oportunidade de debate e encontro. Despoletar curiosidade, pensamento crítico, mas também empatia. O cinema tem esta capacidade incrível de transmitir conhecimento objectivo e ao mesmo tempo mexer nas nossas emoções, dois elementos essenciais para fomentar a consciencialização sobre questões sociais e políticas.

Com um total de 67 filmes de 28 países, como foi o processo de curadoria para garantir uma diversidade geográfica e temática, especialmente num festival dedicado a realizadoras da região do Mediterrâneo?

Muito trabalho e uma equipa dedicada! A maioria dos filmes são seleccionados a partir de uma chamada. Este ano recebemos cerca de 530 filmes, entre longas e curtas-metragens através desta chamada. Cada um foi visto e avaliado por pelo menos duas pessoas. Além destes, avaliamos mais cerca de 50 filmes que procurámos activamente, vendo quais passaram nos festivais mais importantes e os catálogos de várias distribuidoras independentes. Para os “Olhares da Palestina” contactámos vários arquivos e a selecção foi feita em colaboração com a equipa da Cinemateca Portuguesa.

Este ano, o festival traz várias estreias nacionais e até uma estreia mundial com o filme português "A Mulher que Morreu de Pé", de Rosa Coutinho Cabral, envolto da influência e pensamento da escritora Natália Correia. Gostaria que me falasse dessa estreia e a sua importância num festival como este?

Foi um achado! Nós estávamos já a fechar a programação e a Rosa Coutinho Cabral estava ainda a acabar de montar a versão definitiva do filme quando nos contactou. Pensámos logo que era uma oportunidade imperdível: homenagear a Natália Correia no Festival no ano do 50º aniversário de 25 de Abril tem algo de especial para nós. "A Mulher que Morreu de Pé" é um documentário-ensaio visual fascinante e a sua estreia no Festival será também uma oportunidade para pensar no legado da Natália como pensadora e artista revolucionária, que viveu e pensou de forma autónoma todas as questões, artísticas e políticas, inclusive na sua relação com o feminismo da altura. 

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A realizadora Farah Nabulsi durante a rodagem de "The Teacher" (2023) / Foto.: Omar Al Salem

O filme de abertura, "The Teacher", de Farah Nabulsi, aborda a complexa questão da violência na Cisjordânia. Que impacto espera que este filme tenha no público português, especialmente no contexto de um festival dedicado às revoluções quotidianas e no vivenciado zeitgeist?

Trata-se de um filme que, a nosso ver, mostra a situação atual na Cisjordânia de forma honesta e equilibrada, tomando claramente uma posição, mas sem desumanizar o outro lado, e questionando a violência como forma de luta. Gostaríamos que o filme oferecesse ao público português a oportunidade de conhecer uma realidade que muitos desconhecem e que atingisse o objectivo da sua realizadora, a britânica-palestiniana Farah Nabulsi, de levar os espectadores numa viagem intensa e emocional dentro das vidas dos protagonistas do filme, que faça reflectir sobre as escolhas e decisões que as personagens tomam e a realidade cruel em que essas decisões são tomadas.

Além das exibições, o festival oferece uma programação rica em workshops e debates. Pode destacar quais as iniciativas paralelas que considera significativas nesta edição?

Sem dúvida os debates sobre colonialismo. São dois, o primeiro na sexta-feira, 1 de Novembro, pelas 16h, à seguir à projecção do documentário “Maria India - Genealogia de Migração e Colonização”, moderado pela jornalista Joana Gorjão Henriques. O segundo, no domingo 3 de Novembro, pelas 18h, intitulado “Colonialismo/Decolonialismo e as Suas Representações”, no seguimento de uma sessão de quatro curtas-metragens que tocam de forma diversa este tema. Em Portugal é impossível pensar a revolução sem pensar no passado colonial do país, portanto estes debates são particularmente importantes. 

Incontornável também o “Debate Travessias” deste ano, cujo tema será a migração de menores não acompanhados e contará com a presença da realizadora do documentário “Remember My Name”, a espanhola Elena Molina. Entre os workshops assinalamos “Género, Autoconhecimento e Empatia”, a 31 de Outubro, com Laura Falésia e André Tecedeiro, da associação Flecha, o workshop Gender Stereotypes and Sexism in Films”, sábado, dia 2 de Novembro de manhã, organizado no âmbito do projecto “Olhares do Mediterrâneo with Eurimages For Equality” e, numa nota mais leve, a Oficina de Cantos do Mediterrâneo, no mesmo dia à tarde, que o ano passado teve grande sucesso.

Sendo o mais antigo festival de cinema no feminino em Portugal, quais foram as principais mudanças que notou no panorama do cinema realizado por mulheres ao longo dos últimos 11 anos? E para onde o Olhares irá “olhar” nas futuras edições?

Há cada vez mais filmes realizados por mulheres e a sua visibilidade vai aumentando, o que nos anima muito. Ao mesmo tempo, as mulheres continuam a ter problemas de acesso aos financiamentos mais substanciais, que tipicamente servem para poder realizar longas-metragens de ficção. O que é muito interessante é que aumenta a capacidade e a vontade das cineastas de se organizar ou criar redes para melhorar e reforçar as suas condições de trabalho, como é o caso da MUTIM - Mulheres Trabalhadoras das Imagens em Movimento aqui em Portugal

Relativamente aos filmes que apresentamos no Festival, continuamos a notar que os que entram através da chamada para filmes variam muito consoante os anos e o zeitgeist do momento, mas há temas, nomeadamente os que dizem respeito às relações humanas e familiares nas suas múltiplas vertentes e manifestações que continuam a ser recorrentes, confirmando a necessidade das realizadoras de explorar o quotidiano e o privado como elementos fundadores do colectivo e do político. 

Nos próximos anos continuaremos a olhar com muito cuidado para tudo o que acontece, cinematograficamente falando, mas não só, à volta do Mediterrâneo, especialmente ao Sul e ao Leste, mas não excluímos a possibilidade de alargar as nossas fronteiras a outros horizontes. Estamos a criar redes com vários festivais de cinema feito por mulheres e esperamos que em breve isto nos permita criar novas actividades, como, por exemplo, residências artísticas.

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Toda a programação e informação aqui

Joana Ribeiro em "Os Papéis do Inglês": "há momentos em que somos só nós e o deserto. Isso pode ser assustador, mas também é libertador."

Hugo Gomes, 25.10.24

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Os Papéis do Inglês (Sérgio Graciano, 2024)

Sul de Angola, deserto de Namibe, na demanda por uns papéis, um macguffin, um tesouro incógnito que ditos e suspeitas o rodeiam, por entre aquele território enigmático, de horizontes infinitos e de gente ligada a um tempo fora, Ruy (João Pedro Vaz), um poeta, um escritor, um cineasta, homem de artes e de palavras em geral, revela-se numa figura quase quixotesca e enxuta na demanda dessa preciosa papelada e nos mistérios acarretados nele. 

Neste novo filme de Sérgio Graciano - “Os Papéis do Inglês” - a obra de Ruy Duarte de Carvalho (1941 - 2010) revela-se em matéria maleável para a ficção e à autognose, à aventura pouco convencional, e à reflexão de uma terra e das suas assinaturas, e, sobretudo, do seu lugar no Mundo, seja em África ou nos escritos. O escritor deu carta branca para o produtor Paulo Branco adaptar a sua trilogia “Os Filhos de Próspero”, e o resultado é uma homenagem, ora sentida, ora exótica, ora trovada e entendida no seu consciente. No seu seio, outros se juntam à busca pelos registos em parte incerta, seja o fiel David Caracol, ou mais tarde, um retornado angustiado Miguel Borges, acompanhado pela juventude em forma de Carolina Amaral e de Joana Ribeiro, aqui como Camila, arqueóloga com fascínio pela poesia de Carvalho, e que, através das suas lentes, ‘penetra’ nesta África desconhecida, do berço da Humanidade até às longitudes mais distantes da civilização.

O Cinematograficamente Falando… conversou com a atriz, no Cinema Nimas momentos antes da antestreia nacional de “Os Papéis do Inglês”, numa breve passagem pelo seu papel e pela sua colaboração constante com as produções de Paulo Branco e de novos projetos que chegarão a nós num ápice. Fiquemos assim na companhia de Camila, a jovem aventureira…

Começo pelo início: a sua chegada a “Os Papéis do Inglês” …

A chegada a este filme aconteceu durante um almoço com o Paulo Branco, onde ele me falou deste projeto, que era completamente desconhecido para mim, pois até então não estava familiarizada com a obra de Ruy Duarte de Carvalho. Confesso que o interesse surgiu não só pela evidente ligação à obra de vida de Ruy, o qual teria a oportunidade de o “descobrir”, como também pela personagem da Camila, que interpreto. Em criança, o meu primeiro sonho era ser astronauta, mas também havia um desejo em mim de ser arqueóloga. Assim, ao surgir a oportunidade de interpretar uma personagem ligada a essa área, mesmo sem muita arqueologia durante as filmagens, pareceu-me uma experiência interessante e fez todo o sentido.

Depois do dito “Sim” ao projeto, chegou a ler a obra de Ruy Duarte de Carvalho?

Li pois … Li a trilogia “Os Filhos de Próspero”, que como se bem sabe, serve de inspiração para este projeto, e também “Vou lá visitar Pastores”, pois a minha personagem referencia esse livro e, na época em que o filme decorre, tinha acabado de o ler, por isso fiz o mesmo. Troquei depois várias ideias com o João Pedro Vaz sobre o escritor e a sua obra, uma vez que ele realizou uma pesquisa intensa e profunda sobre o autor para o seu papel.

E como trabalhou, ou preparou, esta Camila?

Esta personagem foi principalmente construída com base na leitura dos livros. Tivemos ensaios, todos na Leopardo [Filmes, produtora de Paulo Branco], e grande parte do trabalho veio da relação que desenvolvi com a Carolina Amaral. Já conhecia a Carolina, mas não éramos amigas, e neste projeto ficámos muito próximas. Foi realmente isso: a conexão com os outros atores, o que estava no guião e na leitura da obra do Ruy.

os-papeis-do-ingles (1).jpegOs Papéis do Inglês (Sérgio Graciano, 2024)

E tendo esse espírito aventureiro, como foi essa ida a Angola?

Foi incrível! Angola foi espectacular e até então foi uma das viagens de trabalho de que mais gostei. É um lugar muito especial, mas também já tinha uma carga, um significado para mim, porque o meu avô esteve em Angola e o meu pai também passou lá muito tempo. Sempre tive o desejo de visitar o país e essa oportunidade surgiu no ano seguinte ao falecimento do meu avô, o que tornou a experiência ainda mais especial. Foi muito emocionante visitar um sítio de que ele falava tanto e de que tanto gostava.

O deserto do Namibe é o mais antigo do mundo, e sente-se uma carga energética única quando se está lá. Num dos locais onde filmámos, havia um monte de pedras à entrada, onde, segundo se dizia, era preciso adicionar uma antes de entrar, e se isso não acontecesse não conseguiriamos sair do deserto. Ao longo da rodagem, senti essa energia e a importância do lugar.

Há uma frase muito bonita de Ruy Duarte de Carvalho em “Vou lá visitar Pastores", que me acompanhou durante as filmagens. Vou lê-la, porque já não a sei de cor, embora a tenha decorado na altura, pois era uma fala minha. Entretanto, outros projetos surgiram e fui esquecendo. A frase é:

Para nós, o deserto faz falta quando estás noutro lugar. Quando estás lá, vocês não dá-se nem conta; mas quando não estás, sentes-lhe a falta. Mas não é de te exaltar o deserto que tu precisas, nem é isso que te faz correr para lá. É estar lá só, e estar antes onde talvez ele possa ver-te, o deserto, e não tu a ele.

Esta frase acompanhou-me muito ao longo da rodagem. O especial que é estar no deserto, porque há momentos em que somos só nós e o deserto. Isso pode ser assustador, mas também é libertador.

Um sentimento de estar sozinha num deserto?

Sim, mas gosto desse sentimento e aceito-o, porque ali tudo é imenso, tudo é grandioso. A vista perde-se, e houve momentos e situações em que realmente se sentiu a imensidade do deserto e daquilo que estávamos a ver. Havia, por exemplo, um campo que me fez lembrar o filme do Terrence Malick com o Sam Shepard.

“Days of Heaven”?

Sim, exatamente, “Days of Heaven”. Com aquele cenário! Houve um momento em que tive que tirar fotografias e tudo, porque aquilo foi mesmo incrível. Lembro-me de ver o Mário Castanheira, o nosso diretor de fotografia, a filmar o Miguel Borges, o João Pedro Vaz, o Sérgio Graciano, e todos os outros ao redor. Aquilo fez-me mesmo recordar esse mesmo filme, que adorei ver, aliás, aqui no Cinema Nimas.

Houve também várias paisagens que me fizeram lembrar momentos de filmes que adoro. É isso que é tão bonito nos filmes: trazem-nos paisagens e imaginários que ainda não vimos, mas que, quem sabe, um dia poderemos ver. Adorei essa parte de filmar em Angola.

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Days of Heaven (Terrence Malick, 1978)

Esse recorda-me … aliás, farei uma ponte a um outro filme que participou - “Diálogos Depois do Fim” - adaptação de "Diálogos com Leucó" de Cesare Pavese, que foi filmado nos Açores. Recordo semelhante sentimento, a de isolamento, ou de estar em estado remoto, na Ilha do Pico.

Sim, porque acho que, quando estamos num lugar tão imenso e cheio de história, há momentos em que, ao olhar para o horizonte, não vemos ninguém. Atrás de mim estava toda a equipa e o elenco, mas se me virasse para determinado lado, não havia uma única pessoa por quilómetros. Isso é incrível; adoro essa sensação de estar completamente sozinha e, de repente, ao virar-me, perceber que há toda uma gente atrás.

Mencionei “Diálogos Depois do Fim” nem de propósito. Tal como nesse filme de Tiago Guedes, como este de Sérgio Graciano, contracena maioritariamente com o ator Miguel Borges. Está encontrada dupla? 

Pois é [risos]. Olha, foi uma surpresa maravilhosa. O Miguel Borges é um ator que admiro muito, e não é de agora, já há bastante tempo, e tem sido incrível poder trabalhar em diferentes projetos e vê-lo em ação. Gosto muito dele, do Miguel, mesmo muito. Tenho um carinho enorme por ele. Nos “Diálogos”, mais para o final, tivemos um trabalho mais próximo e direto. Neste projeto, não tanto, mas estivemos juntos em Angola durante um mês, mas já tem sido constante a colaboração.

Miguel Borges é um dos atores recorrentes nas produções de Paulo Branco, assim como a Joana. “A uma Hora Incerta” (Carlos Saboga, 2015), também da sua produção, foi o seu inaugural papel no cinema. Desde então, tem sido uma presença habitual neste rol de filmes, incluindo os “projetos-órfãos”, curiosamente, como “O Homem que Matou D. Quixote” (inicialmente de Paulo Branco). Gostaria que me falasse um pouco sobre esta parceria.

Sim, o Paulo foi o primeiro produtor a dar-me uma oportunidade no cinema. Quando fazia televisão, ainda havia uma visão algo pejorativa sobre isso no cinema português. O Paulo foi o primeiro produtor português a apostar em mim e a acreditar no meu trabalho. Gosto muito dele; acho que é um produtor imenso. Quando estou com ele, o nosso diálogo sobre cinema é espectacular, e adoro ouvi-lo falar sobre cinema, das histórias sobre das dificuldades que já enfrentou para conseguir produzir filmes, ou seja, do seu universo.

Enquanto o Paulo quiser trabalhar comigo e eu puder, cá estarei. Até agora, todos os projetos para os quais o Paulo me convidou foram possíveis, e foram também projetos dos quais gostei muito de fazer. O futuro é incerto, mas espero que esta parceria continue.

Pelo que percebo é que, hoje em dia, estando bastante presente na televisão, está a ser muito difícil conciliar com outros projetos paralelos.

Não. Por acaso tenho tido sorte, tenho conseguido conciliar os projetos, mesmo agora que estou a trabalhar numa novela. Este ano, por exemplo, tinha uma série da Bando À Parte, em Guimarães, e em breve vou filmar em Manteigas com o Mário Patrocínio, num projeto produzido pela APM, em novembro, e tem sido possível conciliar tudo com a novela, o que é ótimo, porque nada me dá mais ansiedade do que perder um projeto por causa de outro. Tenho tido muita sorte nesse aspecto, e até agora não houve nada que tivesse perdido por conflito de agenda. Aliás, houve um, produzido pelo Paulo … é verdade, que não consegui porque estava em Londres, mas isso já envolveu outras questões. Foi na altura do Covid, e tornou-se muito complicado gerir essa situação.

Nessa altura, mais concretamente em 2020, integrou o European Shooting Stars. Gostaria que me falasse sobre as “portas” que a participação desse programa abriu. 

Parece que foi há tanto tempo [risos]. A maior porta que se abriu para mim foi, sem dúvida, conhecer outros atores europeus na mesma situação e poder trocar experiências e sonhos. Conheci pessoas com quem ainda hoje mantenho contacto, como o Bartosz Bielenia [Corpus Christi”], que é um ator incrível. No ano passado, ele veio a Portugal e chegou a ficar em minha casa - ele vive na Polónia, tenho família por lá, por isso, quando lá for, provavelmente também o irei visitar - fez um espectáculo com o Albano Jerónimo e a Iris Cayatte [“O Carro Falante”, de Agnieszka Polska], na Culturgest. Mas o que realmente me marcou foram estas amizades que permanecem e a partilha de experiências.

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Diálogos Depois do Fim (Tiago Guedes, 2023)

Foi também nos Shooting Stars que soube que tinha conseguido o papel na série “Das Boot", e isso foi, em parte, graças ao evento, pois os produtores estavam lá e viram-me. Claro que isso ajudou. Na altura, recebi também convites para outros castings. Depois veio o Covid, mas foi por causa dos Shooting Stars que consegui a minha agência nos Estados Unidos, a Gersh. Comecei a ter reuniões logo a seguir ao evento, e foi esse network que, ainda hoje, continua a ser importante para mim.

O que poderia-me dizer sobre esses novos projetos?

O de Manteigas… Não sei o que posso partilhar sobre ele. A minha personagem é uma mulher que viveu a vida toda lá, nunca saiu de lá, e vai ter um reencontro com alguém com quem esteve envolvida há alguns anos. As coisas não correram bem entre eles, e o filme explora esse reencontro – pelo menos, essa é a parte da minha história que será retratada.

No próximo ano, tenho um filme chamado “Augusta & Kátia”, realizado e escrito por Lud Mônaco e produzido pela Promenade, que será rodado a meio do ano, creio eu. É um filme sobre duas amigas e a forma como lidam com questões sociais, económicas e profissionais num país que não é o delas. É uma abordagem mais virada para a comédia, e tenho gostado bastante dessa diferença entre drama e comédia. 

A comédia é difícil, sem dúvida, mas tenho-me divertido muito. Acho que o filme “Sonhar com Leões”, que fiz com o Paolo Marinou-Blanco pela Promenade, também foi uma experiência nesse sentido. Foi a minha primeira experiência em comédia, e estava apavorada, porque achei que seria possível.

Mas, no final, adorei e diverti-me imenso. Pouco depois, fiz o casting para “Augusta & Kátia”, que também é uma comédia. Pensei: “Isto é demais, não vou conseguir.” Mas fiquei com o papel! Se calhar, tenho mais jeito para a comédia do que pensava. Quem sabe?

Ri-te, Ri-te ... A 3ª edição do HaHaArt Film Festival arranca com comédia para subverter expectativas

Hugo Gomes, 24.10.24

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Hundred of Beavers (Mike Cheslik, 2022)

É rir à portuguesa, sem necessidade de restringirmos ao alarve, até porque, segundo o pŕoprio director, Manuel Oliveira, o HaHaArt Film Festival chegou para subverter o esperado. Nesta sua terceira edição, o festival promete ultrapassar a gag e superar o seu formato; com uma masterclass, uma retrospectiva [Close Up], duas secções inaugurais que colidem com a Competição e com as sessões especiais. Temos Junta Yamaguchi a abrir as festividades [“River”, 2023] e um exército de castores e outros animais peludos para fechá-lo [“Hundreds of Beavers”, 2022], no meio há um Joker longe do selo DC e de Todd Phillips [“The People’s Joker”, 2022] e ainda André Ruivo, da sua ilustração à sua imaginação cinematograǵfica. Em HaHaArt Film Festival, a gargalhada tem prestígio. 

O Cinematograficamente Falando … conversou com Manuel Oliveira sobre o terceiro ano desta montra cinematográfica para que Pombal seja a capital nacional do cómico durante quatro dias [24 - 28 de outubro].

Com uma terceira edição, o que poderia dizer sobre o processo de “aprendizagem” e de aprimoração do HaHaArt Film Festival?

Acima de tudo, tem sido uma oportunidade para todos os envolvidos, de mergulhar num género de um modo que talvez tenha ultrapassado até as nossas próprias expectativas. Este foco num cinema específico parece limitador, mas na verdade abriu de tal maneira os horizontes dentro da equipa, que se tornou no principal motor motivacional por detrás do festival e da ambição de crescer. A criação de novas secções – como a exibição de uma retrospectiva, a promoção de uma masterclass, a exibição de longas-metragens – e a expansão de outras – como a secção infantil – é um grande passo para uma organização que se mantém com os mesmos recursos dos últimos dois anos. Acima de tudo, estamos a otimizar e a fazer o máximo que conseguimos com os recursos que temos! Tem sido um processo muito gratificante e sentimos que há muito espaço para crescer e melhorar.

A mesa redonda sobre a comédia como agente subversivo parece ser um dos pontos altos da edição deste ano. Como vê a importância de debates como este no contexto de um festival de comédia? Acha que a comédia é suficientemente reconhecida pelo seu poder subversivo, social e, tendo em conta os tempos incertos de hoje, político? Por outras palavras, podemos considerar o HaHaArt Film Festival um festival de filmes políticos?

Nem todo o cinema de comédia é reconhecido pelo seu poder subversivo ou de impacto social e cultural. Muitas vezes, o maior dos preconceitos sobre o cinema deste género surge daí mesmo: da familiaridade e da perpetuação de determinadas ideias para obter reações fáceis. Nesse sentido, o HaHaArt Film Festival é um festival de filmes políticos, sim, porque tentamos mostrar o outro lado do género. Consideramos que todos os filmes em competição – ou pelo menos quase todos – são, de um modo ou outro, subversivos, mesmo aqueles que entram em determinados moldes com menos resistência. Isto deve-se também à importância que damos, no processo de programação, a deixar claro que, para o HaHaArt Film Festival, a comédia no cinema é muito mais do que fazer rir; é uma visão narrativa e um modo de abordar o público. E isto também é, conscientemente, um gesto político e subversivo.

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Uma das curtas em competição: "O Procedimento" (Chico Noras, 2024)

Este ano, o HaHaArt Film Festival aposta numa programação que desafia as convenções da comédia, ao incluir filmes como "River" de Junta Yamaguchi [abertura] e "Hundreds of Beavers" [encerramento]. Gostaria que me falasse sobre essas escolhas e melhor, o que se pode considerar filme de abertura e de encerramento num festival como este?

Acima de tudo, estas escolhas são importantes para a identidade do festival. O HaHaArt Film Festival é jovem, está na sua terceira edição. Escolher filmes para abertura e encerramento nesta altura do campeonato é, para nós, uma maneira de transmitir ao público essa ideia. Especialmente tratando-se de sessões de longas-metragens, que até este ano tínhamos tido apenas uma. Tanto o “River” como o “Hundreds of Beavers” são filmes que definem muito bem o HaHaArt Film Festival: abordagens arrojadas que subvertem expectativas sobre o género, mas que ao mesmo tempo trazem uma familiaridade dentro dos seus moldes. Pensamos que, em conjunto com a exibição do “The People’s Joker”, formam uma trindade muito caleidoscópica, mas que, no final do dia, ilustram muito bem a nossa identidade.

A comédia é frequentemente subvalorizada em termos de reconhecimento artístico. De que forma o HaHaArt Film Festival pretende desafiar essa perceção e elevar a comédia ao mesmo patamar de outros géneros cinematográficos?

Acima de tudo, mostrando o que há dentro do género que demonstra isso mesmo. Quando se trata de cinema de género, seja ele qual for, é fácil abordá-lo como conservador ou limitado pelas suas lógicas internas. O cinema de comédia sofre com essa visão, à qual ainda se acrescenta a perceção de que a comédia é a irmã mais feia da tragédia. Um preconceito cultivado desde há muito na cultura ocidental e que coloca o género em desvantagem. O que ambicionamos é mudar expectativas e expandir olhares, ao abrir portas à abrangência do género e à multiplicidade de abordagens do cinema de comédia contemporâneo, seja através do debate ou dos filmes que escolhermos exibir, como é o caso da já referida tríade que apresentamos fora de competição. Acreditamos que, ao ultrapassar alguns preconceitos sobre o cinema de comédia – que achamos ser mais um produto do contexto sociocultural do que propriamente das características do género –, podemos ver o que, na sua universalidade e particularidade, há de verdadeiramente artístico e pertinente.

A inclusão de uma retrospectiva dedicada a André Ruivo, possivelmente mais conhecido como ilustrador do que cineasta, através da secção Close Up, sugere uma aposta em nomes menos convencionais do género cinematográfico. O que considera que a obra de Ruivo traz ao festival e ao público em termos de inovação e natureza da comédia dita cinematograficamente canónica?

Primeiro, traz um destaque a um tipo de cinema – o de animação – que tentamos sempre incluir no debate em torno do cinema de comédia. Depois, a relação da obra do André Ruivo com a ilustração e o cartoon satírico permite pegar no que há de particular no cinema de comédia e expandir para outras disciplinas. No caso dos seus filmes, consideramos que existe neles a representação da “portugalidade” de um modo muito divertido e dinâmico, algo que acontece com a sua ilustração, mas que nos filmes ganha outras dimensões, tendo em conta os jogos de diálogo, as metamorfoses, os timings e outras particularidades cinematográficas.

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The People's Joker (Vera Drew, 2022)

O festival tem como um dos seus objetivos criar e desenvolver o espírito crítico do público em relação ao género de comédia. Que impacto espera que este evento tenha na perceção dos espectadores sobre o género e na adubação de uma apreciação mais profunda da comédia?

Gostamos de acreditar que qualquer amante de cinema que venha a uma das sessões do HaHaArt Film Festival sai de lá com um sentimento de entusiasmo. Primeiro, pela tal quebra com a perceção do que é cinema de comédia. Segundo, entusiasmo por ter experienciado, como se espera de um festival de cinema, uma amostra do melhor que o cinema contemporâneo tem para oferecer. E esperamos que essa experiência os siga até casa e permaneça com eles no momento de escolher e pensar o cinema de comédia.

Com a crescente internacionalização do festival, como é que o HaHaArt Film Festival se posiciona em relação a outros festivais de comédia, tanto a nível nacional como internacional? O que o distingue e como vê o seu futuro no panorama dos festivais de cinema?

Até ver, somos o único festival que se foca neste género em Portugal. Na Europa e no mundo, há alguns que seguimos atentamente e com os quais temos feito contacto. Colectivamente, os objetivos entre nós são semelhantes. Claro que cada um tem a sua identidade própria. O que distingue o HaHaArt Film Festival é o rigor com que internamente tentamos definir e separar o que é o cinema de comédia e o que é a comédia no cinema. O que também nos distingue é o facto de sermos um festival de cinema em Pombal, fugindo aos grandes centros urbanos. Estamos numa fase em que estamos a tentar envolver a comunidade local, através do CCP – Cineclube de Pombal, que é o organizador principal deste evento. Isto faz do HaHaArt Film Festival um festival com um ambiente familiar e sem hierarquias, onde todos falam com todos, num espírito de cinefilia.

Ao longo das edições, a comédia tem-se afirmado como um género essencial, mas muitas vezes marginalizado, ou decretado como uma futilidade para “tempos sérios” que a nossa contemporaneidade parece assumir. Quais são os desafios mais significativos que enfrentam na programação de filmes de comédia e como esperam que o HaHaArt Film Festival possa contribuir para a renovação do interesse no género?

Os tempos são sérios, como acabam por ser sempre. Voltando ao tema da nossa mesa redonda deste ano, penso que a subversão, desafio e questionamento são claros no cinema de comédia. A ideia de brincar com coisas sérias, muito na moda, exprime-se de várias formas no cinema que tentamos promover. E aqui falamos, evidentemente, da comédia negra ou da comédia política. Por outro lado, desafia ainda a “seriedade” das expectativas sobre a arte e o género, acabando por ser também subversivo de uma forma auto reflexiva. 

Os maiores desafios são a construção de públicos, tendo em conta a localização do festival e os seus recursos, e a desconstrução dos tais preconceitos que achamos discriminatórios no género. Temos a certeza, no entanto, de que o que não faltam por aí são excelentes filmes de comédia à espera de serem descobertos ou redescobertos, e é em dá-los a conhecer que está a maior contribuição do HaHaArt Film Festival.

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Toda a programação e informação sobre o festival aqui

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