Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Dancemos até que a morte nos separe

Hugo Gomes, 30.09.24

MEDIAM_d13380f3-813b-468a-886f-fb5b74925e40_01.jpg

Béatrice Dalle é a guardiã da fortaleza do espaço e do tempo, um salão de dança, como os antigos nomeavam com fulgor, que para o comum dos mortais, os viventes das ruas envoltas no tédio dos seus quotidianos, não passa de uma discoteca. Nesse lugar, as leis da física são violadas sob o regulamento lúdico, um escape que aqueles meros mortais anseiam experimentar. O tempo, por mais infinito que possa parecer, nunca passa de uma mera sensação; na verdade, ele voa, as horas correm, os anos passam ao som da batida. Do disco ao tecno, está empregue nessas cadências os seus zeitgeists.

Aí, já no início do relato, enquanto o "verde" ainda era uma garantia, John e May reencontram-se. Ela relembra-o de uma passagem passada, de que não eram estranhos, — já se haviam cruzado, conhecido, conectado. John, que não se recorda desse encontro inicial, rende-se ao conforto das suas palavras, e ambos tornam-se um fictício par naquele lugar imerso em álcool, euforia pré-sexo e promessasjuras de uma libertação social com a chegada do amanhã. Na intimidade desse momento, John confessa o seu segredo mais obscuro: acredita estar destinado a um grande evento, e essa espera consome-o, provocando-lhe uma ansiedade latente, como se algo — de qualquer natureza, talvez uma fera — estivesse à espreita, pronta a atacar a sua jugular.

La Bête dans la Jungle”, de Patric Chiha (“Brüder der Nacht”, um filme com o mesmo encantamento artificial e devaneios oníricos), inspirado no clássico literário de Henry James, é o ajustes dos tempos e do seu contexto, sendo aquele espaço de divertimento nocturno um museu encapsulado de memórias, onde cada melodia é uma passagem no tempo e cada corpo "levitando" na pista de dança é uma peça do seu período [1979 - 2004, para sermos mais detalhados]. A multidão, que aqui assume o papel de personagem principal, dança e anseia pela lascívia das suas juventudes sagradas, conduzem-nos, por um lado, a uma espécie de "madalena proustiana", recordando-nos de como as loucuras nocturnas foram, outrora, uma fuga às prisões das nossas sociedades, e por outro, tornam-se os delimitadores temporais, refletindo uma orientação ao espectador.

0769e08b9443b7af.webp

Na plateia, estão os nossos protagonistas, observando esse fenómeno natural de como os anos são velocistas. Eles contemplam, tal como o espectador, aquele mar de corpos em transe ao som da música da vida. Anaïs Demoustier (May) e Tom Mercier (John) são esses voyeurs da emoção alheia, sem perceberem que as suas próprias carnes não resistem à crueldade do decorrer. Assim, “La Bête dans la Jungle” adquire uma estética e uma crítica existencial à passividade, tal como os "garotos" de “The Dreamers”, de Bernardo Bertolucci, que, com uma revolução a acontecer lá fora, refugiam-se nas suas tentações e snobismos domésticos, é o passivismo de quem vive privilegiadamente nas suas comodidades. No caso do casal deste filme, é a espera por uma espontaneidade quase milagrosa que os transforma em mortos-vivos, alheios à vida que os rodeia. Tornam-se amorfos, anestesiados, insatisfeitos, até que a morte os separe.

“La Bête dans la Jungle” é uma viagem não só pelas memórias de um "night club", mas também pelas nossas próprias existências.

Portugal e o mundo árabe na distância de uma projeção. Arranca a 1ª edição do Lisbon Arabe Film Festival.

Hugo Gomes, 30.09.24

hq720.jpg

Everybody Loves Touda (Nabyl Ayouch, 2024)

Entre as muitas definições sobre a verdadeira essência do Cinema (o nosso absolutismo da 'coisas'), que variam consoante a sensibilidade e a perspetiva de cada um, há um facto incontestável: esta arte, além de contar histórias, criar estéticas ou expressar gestos artísticos, teve e tem contribuído para o encurtar da distância geográfica. Sentimo-nos mais próximos, mais comunicativos e por vezes, mais humanos. Através de uma projeção, uma tela e um filme, somos “transportados” para outros cantos do mundo, sejam eles exóticos ou simplesmente distantes, essa capacidade "vendida" de viajar através do Cinema alimenta o desejo de saciar curiosidades, como a forma como um determinado povo se vê a si próprio, ou a imagem que projeta perante o resto do mundo.

Deixemos de lado estas divagações “pseudo-filosóficas”, diversas carimbadas em spots para vender cadeias de cinema, para anunciar que Lisboa irá acolher a primeira edição do Lisbon Arab Film Festival, uma mostra de obras produzidas provenientes dos mais variados países que comumente associamos à "Arábia": o Médio Oriente, conectando ainda com o Norte de África. Este evento terá lugar na Culturgest, entre os dias 1 e 5 de outubro. Não há dúvida de que filmes desta natureza são em todo um caso um ponto de escuta e de observação, desafiando estereótipos, denunciando ‘males’ ou simplesmente narrando vidas que poderiam muito bem ser as nossas. Há Mil e Uma Noites a serem contadas, em película e em digital, abordando temas como liberdade, fé e esperança.

Nabyl Ayouch, cineasta marroquino aclamado em diversos festivais, terá a honra de abrir este evento com o filme feminista “Everybody Loves Touda”. Já “Inshallah a Boy”, de Amjad Al Rasheed, uma coprodução entre a Cisjordânia, o Qatar, a Arábia Saudita e a França, encerrará a mostra. O Cinematograficamente Falando … desafiou João Gonçalves, vice-presidente do festival, a revelar mais detalhes sobre a programação.

A criação do Lisbon Arab Film Festival reflete a crescente necessidade de transcender estereótipos. Como foram selecionados os filmes para garantir o desafio dessas percepções convencionais sobre o mundo árabe?

A seleção dos filmes foi baseada em vários factores: a qualidade artística; a variedade de representatividade dos países árabes da região do Norte de África e Médio Oriente; a variedade de tópicos abordados nos filmes. Selecionamos filmes que representam uma multiplicidade de vozes e que desafiam estereótipos, mostrando que para lá do Mediterrâneo os desafios e desejos são inerentes à condição humana, e também que mostram algumas características culturais dos diferentes povos árabes. No fundo, pretendemos ir para além das percepções superficiais sobre a região, mostrando histórias de resistência, amor, lutas sociais e emancipação.

Sendo esta a primeira edição do festival, que impacto esperam ter no público português e, de uma forma mais ampla, na relação entre Portugal e o mundo árabe?

O nosso objetivo é criar um espaço de diálogo intercultural que permita ao público português explorar novas perspetivas e entender a riqueza e a diversidade do mundo árabe. Esperamos que o festival ajude a romper com alguns estereótipos e crie pontes de entendimento. A longo prazo, desejamos que o LAFF [Lisbon Arabe Film Festival] se torne uma plataforma cultural importante para fortalecer as relações entre Portugal e os países árabes.

les-meutes.webpHounds (Kamal Lazraq, 2023)

O cinema é frequentemente visto como uma ponte para a compreensão cultural. De que maneira pretendem abordar questões e temas sensíveis, promovendo um diálogo intercultural sem cair em polarizações?

A nossa intenção com o LAFF nunca foi torná-lo um festival político. O nosso objetivo é proporcionar ao público em Portugal a oportunidade de conhecer uma realidade diferente, mas que está tão próxima de nós. A presença árabe em Portugal durou cerca de 500 anos e, no entanto, sabemos muito pouco sobre esse período. Muitos aspetos da nossa vida, como a organização das cidades, especialmente a sul do Tejo, e a própria arquitetura, refletem influências do mundo árabe. Na seleção dos filmes, não evitámos temas sensíveis que possam causar impacto ou desconforto no espectador. Pelo contrário, acreditamos que o cinema tem o poder de ser um catalisador de reflexão e ação. Queremos que os filmes exibidos no festival não só gerem debate, mas também ajudem a promover um diálogo intercultural genuíno, abordando temas complexos de forma que vá além de visões polarizadas.

A curadoria do festival inclui várias produções co-produzidas com países europeus. Estas colaborações intercontinentais enriquecem a narrativa sobre o mundo árabe nos filmes apresentados?

Acreditamos que as co-produções entre países árabes e europeus trazem uma riqueza adicional às histórias. Além disso, essas parcerias permitem que as histórias sejam contadas com diferentes sensibilidades e recursos, contribuindo para uma narrativa mais completa e abrangente.

Com filmes de várias geografias, como Marrocos, Palestina e Arábia Saudita, de que maneira o Lisbon Arab Film Festival pretende sublinhar as diferenças culturais e sociais dentro do próprio mundo árabe, em vez de o tratar como uma entidade monolítica?

O festival foi projetado para refletir a diversidade dentro do mundo árabe, destacando as diferenças culturais, sociais e políticas que existem entre os vários países da região. Cada filme traz uma perspetiva única sobre o contexto específico de onde vem, seja no norte de África ou no Médio Oriente, explorando questões locais, tradições e formas de vida que contrastam entre si. O objetivo do LAFF é mostrar que o mundo árabe não é homogéneo, mas uma mancha de retalhos de identidades e culturas ricas e variadas, que por algumas vezes têm semelhanças entre si.

O festival não se limita apenas à exibição de filmes, mas inclui eventos paralelos como encontros com cineastas e experiências gastronómicas. Como é que estes elementos adicionais contribuem para aprofundar a experiência do público e ampliar o entendimento cultural?

Estes eventos paralelos, como as experiências gastronómicas, são essenciais para criar uma experiência mais imersiva e envolvente para o público, conhecendo melhor a região. A ideia seria que ao interagir diretamente com os realizadores, o público teria a oportunidade de entender melhor os contextos culturais e os processos criativos por trás dos filmes.

image-w1280.jpg

Bye Bye Tiberias (Lina Soualem, 2023)

Como veem, dentro do circuito comercial português, a distribuição e difusão de obras cinematográficas árabes? Como acham que o público português reage a essas cinematografias?

Embora o cinema árabe ainda tenha uma distribuição limitada no circuito comercial português, o festival pode servir de plataforma para aumentar o interesse e a visibilidade dessas obras. Estamos confiantes de que, com a promoção adequada, o público português, que já demonstrou grande interesse pelo cinema arabe noutros momentos, com filmes como “Les Filles d'Olfa” [Kaouther Ben Hania, 2023], “Adam” [Maryam Touzani, 2019] ou a “Cairo Conspiracy” [Tarik Saleh, 2022], e acreditamos que a curiosidade despertará ainda mais depois do nosso festival.

Expectativas futuras para o festival?

O nosso objetivo é que o LAFF cresça e se torne um evento de referência entre o mundo árabe e Portugal. No próximo ano, temos a visão de expandir o festival a outras cidades portuguesas e de acrescentar um ciclo retrospectivo de obras anteriores ao ano 2000. Também pretendemos acrescentar uma nova nuance na nossa visão, que seria uma ligação cultural através da música e ter pelo menos um concerto por ano com artistas do mundo árabe. Assim pretendemos melhorar a construção de pontes culturais.

 

Para ter acesso a toda a programação, ver aqui

 

Yanis Varoufakis por Raoul Martinez: "as verdades simples, quando desafiam o poder, são muitas vezes obscurecidas para criar a ilusão de complexidade."

Hugo Gomes, 28.09.24

Yannis_Varoufakis_web500.jpg

Yanis Varoufakis

Até então, na história da União Europeia do século XXI, uma das figuras em destaque foi Yanis Varoufakis, um professor de economia convertido a ministro das Finanças, determinado a retirar a Grécia da bancarrota através da renegociação da dívida do país com o Poder estabelecido da “União”. Uma jornada incansável, olhada com ferocidade e suspeita pelos seus homólogos. Contudo, para Varoufakis, o desfecho não foi o esperado. Essa coragem — para alguns, audácia; para outros — encontra-se narrada na nova série documental de seis episódios da autoria de Raoul Martinez (“Creating Freedom: The Lottery of Birth”), intitulado de “In the Eye of the Storm: The Political Odyssey of Yanis Varoufakis”. 

Através de um relato do próprio Varoufakis e com o auxílio de imagens de arquivo, a série explora essa "missão: salvar a Grécia", conduzindo a uma análise desses eventos, esforços e estratégias negociais. O que poderia ter sido feito? O que falhou? Quem foram os vencedores? Quem foram os derrotados? Até lá, uma coisa é certa: parafraseando o próprio Varoufakis, "a dívida está para o capitalismo como o inferno está para o cristianismo".

O Cinematograficamente Falando … falou com o realizador no âmbito da estreia portuguesa do documentário em formato seriado, promovido pelo movimento DiEM25 - Democracy in Europe Movement 2025, co-fundado por Varoufakis. Uma conversa envolto numa das personagens mais fascinantes, aguerridas, controversas e não consensuais, da história recente.

Gostaria de começar com a questão sobre a génese deste documentário? Ou por outras palavras, o convite surgiu de onde? Da sua parte ou do próprio Yanis Varoufakis?

A ideia partiu de mim. Entrei em contato com o Yanis por via Brian Eno, um amigo que temos em comum. Há algum tempo, tinha o desejo de fazer um documentário sobre economia e capitalismo, e procurava uma narrativa que tornasse as ideias mais acessíveis para um público não especializado. Achei "Adults In The Room" — as publicadas memórias de Yanis sobre o seu tempo como ministro das finanças — uma leitura envolvente e explosiva, e sempre fiquei impressionado com a sua capacidade de expressar ideias complexas de maneira simples. Senti uma urgência de que a sua história fosse contada, de que servia como um microcosmo das dinâmicas mais amplas que moldam o nosso futuro.

De que forma a jornada pessoal de Varoufakis, desde académico a ministro das finanças, encapsula a luta mais ampla entre os ideais democráticos e o poder económico? 

O Yanis não se comportava como um político típico porque não o era. Era um académico que se tornou dissidente. Acredito que precisamos de mais outsiders na política — mais dissidentes — se queremos escapar ao consenso tóxico da política tradicional.

Varoufakis descreveu frequentemente a austeridade como uma arma de "guerra de classes". Espera com este documentário conscientizar o público sobre o papel estrutural da dívida no capitalismo?

Sim, essa é uma das minhas esperanças. Dedico um episódio a explorar as dinâmicas da dívida, da austeridade e da extrema-direita. É uma relação que precisamos de compreender melhor se quisermos evitar os erros caros do século XX, que deixaram a Europa em ruínas. E a experiência recente da Grécia com a dívida e a austeridade oferece uma lição valiosa sobre onde reside realmente o poder, quando as forças da democracia entram em choque com as exigências do capitalismo.

MixCollage-28-Sep-2024-06-01-PM-3741.jpg

Raoul Martinez

Entre o poético e até bíblico, elabora a luta de Varoufakis para com o establishment europeu algo equiparado à história de "David contra Golias". Como garantiu que a sua resistência à Troika fosse retratada de forma equilibrada, tendo em conta os riscos elevados para a Grécia e para a Europa como um todo?

O meu objetivo não era traçar um equilíbrio de forma mecânica, mas sim precisão. Vivemos num mundo saturado por uma guerra de narrativas, e aqueles com os maiores recursos, aliados às instituições mais poderosas, tendem a fazer prevalecer as suas narrativas. Como realizador independente, acredito que corrigir as distorções do nosso ambiente percepcional, que resultam do poder altamente concentrado, é o meu papel. Quando nos dizem que 1 + 1 = 3, estou interessado em defender que 1 + 1 é igual a 2.

Dito isto, tentei falar com figuras chave como Merkel e Schäuble, mas não estavam interessados em apresentar a sua perspetiva em frente à câmara. Também fiz questão de incluir a narrativa dominante através de imagens de arquivo de meios de comunicação e de figuras importantes.

Varoufakis é conhecido pelo seu estilo de comunicação articulado e, por vezes, provocador. Podemos dizer que este aspeto da sua persona moldou o tom e a narrativa do documentário? Encontrou desafios em equilibrar o seu carisma pessoal com a complexidade das questões políticas e económicas?

O Yanis é um comunicador nato: engraçado, perspicaz e direto, com uma compreensão profunda dos temas abordados na série. A sua personalidade forte e o talento que detém para contar histórias são as razões que tornam a série envolvente, sem modéstia à parte, como também foram essas suas propriedades que me atraíram para o projeto. Felizmente, não senti que a qualidade da sua análise fosse prejudicada pelo seu carisma. Na verdade, as questões centrais que ele explora — como a servidão da Grécia face à dívida e os fracassos da austeridade — não são particularmente complexas. A maioria das pessoas entende a essência rapidamente e sem dificuldade quando são bem explicadas. No entanto, as verdades simples, quando desafiam o poder, são muitas vezes obscurecidas para criar a ilusão de complexidade.

O seu filme faz conexões entre a crise da Grécia e as crises mais amplas que afetam o capitalismo tardio, desde o colapso ambiental ao aumento do autoritarismo. Como entrelaçou estes temas globais na narrativa sem perder o foco na odisseia política de Varoufakis?

Desde 2015, o âmbito do envolvimento político do Yanis expandiu-se, passando dos problemas da Grécia para a criação do DiEM25 e da Progressive International, ambos explicitamente internacionalistas na sua orientação. Pareceu-me natural refletir essa jornada na narrativa da série, alargando o foco para incluir o capitalismo global e as várias crises civilizacionais que enfrentamos.

O facto de, como está especificado na sua série, muitos outros “protagonistas” recusaram participar ou responder com a sua perspetiva à história de Varoufakis. Gostaria que me falasse dessa abordagem ao restante “elenco”, mas também de como Varoufakis ainda é hoje uma figura controversa e incomoda?

Contactei Wolfgang Schäuble, Angela Merkel, Christine Lagarde e Aléxis Tsípras, entre outros. Estava aberto a incluir os seus depoimentos na série, mas ou recusaram o convite ou simplesmente não responderam.

Quem decide quais as figuras que são controversas e quais não são? Parece que se ganha essa etiqueta quando se desafiam de forma eficaz as narrativas e interesses poderosos. No discurso popular, acho que o termo é, na maioria das vezes, vazio de significado, servindo apenas como uma ferramenta de propaganda.

O centro do espectro político não é onde se evitam os extremos, mas onde eles são normalizados. Afinal, a política do 'business-as-usual' está literalmente a destruir as fundações ecológicas da civilização moderna, e os governos centristas, dos EUA à Europa, estão atualmente a facilitar um genocídio em Gaza.

Como alguém que procura tornar as ideias económicas complexas mais acessíveis, que papel acha que a batalha de Varoufakis pela "literacia económica" desempenha na formação de uma sociedade democrática mais informada?

É um papel fundamental. Muitas das decisões mais importantes que uma sociedade toma são classificadas como 'económicas'. Quando esta área é isolada da maioria e aberta apenas a um pequeno grupo de supostos especialistas, a democracia seca e morre rapidamente. A maioria das decisões económicas gera vencedores e perdedores. Elas aumentam o poder de uns e reduzem o poder de outros. Ou seja, são profundamente políticas. Apresentá-las como tecnocráticas é um mecanismo eficaz de controlo na guerra de classes constante que é travada contra a maioria. Para uma democracia funcionar, é necessário que a população tenha uma literacia económica suficiente para defender os seus interesses com confiança.

image-w1280.webp

In the Eye of the Storm: The Political Odyssey of Yanis Varoufakis (2022 - 2024)

Na sua opinião, o que é que a história de Varoufakis nos pode ensinar sobre o futuro da política de esquerda na Europa e além, especialmente dado o crescimento do populismo de direita e o fracasso das políticas mais progressistas em ganhar tração duradoura?

A sua história desvenda onde reside o poder e como este opera, e a sua análise sobre a dívida, a austeridade e a extrema-direita é validada a cada dia que passa. As muitas falhas da política centrista estão a alimentar a extrema-direita, à medida que um número crescente de pessoas se desilude com o status quo. E a extrema-direita fortalecida confere legitimidade aos centristas, armando-os com um argumento poderoso: “apoie-nos ou a extrema-direita vai assumir o controlo!”. Nesse sentido, estas forças rivais precisam umas das outras. Unidas na sua oposição a uma alternativa progressista, estão presas a uma dinâmica mutuamente benéfica que só pode levar a um desastre a longo prazo.

Falando de Varoufakis no campo cinematográfico, chegou a ver “Adults in the Room” de Costa-Gavras? Se sim, o que achou e que lições, se é que teve, o que fazer ou não fazer em relação à abordagem à sua persona?

Não vi o filme do Gavras, pois queria abordar a história do Yanis com olhos frescos. Tenho a certeza de que um dia o verei.

Onde está o lugar no "não-lugar"?

Hugo Gomes, 26.09.24

Thumbnail (1).png

Não pintes Mona Lisas onde elas não existem.

De tão estranho tornou-se quase trágico na perspetiva de mercado. Frederico Serpa fazia um pitching deste seu “filme-poema”, como gosta de o apelidar, aos inúmeros investidores e exibidores numa igualmente fatídica edição dos Encontros de Cinema Português, a iniciativa anualmente promovida pela NOS, sempre encerrada com os ilusórios debates sobre o panorama do cinema nacional [este aconteceu em 2020, com pandemia e despacho discriminatório de filmes portugueses para salas vazias]. Na plateia, ouviam-se esporadicamente risos tímidos, balançando com um embaraçoso silêncio, até porque Serpa estava a vender uma ideia e nunca, em momento algum, um filme, no sentido comercial que tanto aqueles “senhores” sentados de perfil sério esperariam. 

Foram quatro anos de rodagem (e filmado entre o handycam, 4K e a película 16mm) que, por fim, culminaram neste projeto intitulado “Arrabalde”. O conceito base é simples: dois amigos lançam-se de mota para os confins da sua cidade, aliás, do subúrbio quase marginalizado onde vivem e de onde desejam sair. Nesse trajeto, encontrarão inúmeras “personagens”, situações aí almejadas como parábolas evidentes da gentrificação e transformação dos nossos centros habitacionais, nomeadamente Lisboa, a qual dialoga sem quase nunca repousar a câmara nos seus quarteirões ou monumentos. 

O que se entende é que o resultado sobressai ao mero paladar do conformismo que o mercado revelou e estabilizou, e, mais do que a denúncia, o poema ou a estratégia, “Arrabalde” é um filme que nos leva a um “não-lugar”, o reconhecível espaçamento nada geográfico que o cinema acolheu como seu. Foge da reconstituição da sua metrópole gravitacional, porque anseia esta distorção. O caminho por essas algibeiras possivelmente não terá o destino como o pretendido, mas é a sua imprevisibilidade que nos magnetiza. 

Para onde quer o filme ir? Para onde vamos? O que vemos? Qual é o “meu” lugar? Desta feita, pergunta o aluno desinteressado a um Luís Miguel Cintra como representante de uma ditadura académica numa sala de aula universitária. Não falam a mesma língua, mas compreendem-se, só que não se percebem. A distância social entre eles define-os. Serpa instala assim um efeito de desestabilização de um sistema, de um formalismo, e porque não de um cânone, e fá-lo por uma via caótica, procurando nos seus destroços um filme, ou um espírito dele. 

O crítico e programador Ricardo Vieira Lisboa, em contexto de “Frágil” de Pedro Henrique, “abocanhando” outros exemplos ‘recentes’, como “O Primeiro Verão”, de Adriano Mendes, e Verão Danado, de Pedro Cabeleira (Serpa foi ator aqui neste ‘lugar’), apelidava de “Geração Whatever” o possivelmente movimento artístico composto por realizadores que afirmam, através dos seus filmes, uma manifestação de existência, acalentando a sensação de despertença da qual fazem parte. 

Arrabalde” provém desse sentimento, reflete-o sobre a cidade e as suas transformações, como igualmente o reveste no investimento da sua produção. “Para onde vamos?” já não é apenas uma pergunta, é um modo vivente e meio desamparado.

Próxima paragem: Estónia e arredores, com Porto no coração do 7º BEAST IFF

Hugo Gomes, 25.09.24

MV5BYjY3ZDhlMjAtNmU0Zi00Nzc2LThhOTMtNzYxMDVjNmRhOD

Dark Paradise (Triin Ruumet, 2023)

Depois da Eslováquia, o “comboio” BEAST IFF embarca na Estónia, novamente com uma mostra rica de cinema proveniente daquelas andanças e ares, sem nunca olhar a meio às suas periferias. É o Cinema do Leste novamente a encher o Porto, a partir de hoje (25 de setembro) até ao próximo dia 29, com projeções no Batalha Centro de Cinema, Cinema Trindade, Cinema Passos Manuel, e eventos paralelos, conversas, exposições e DJ sets, na Livraria Térmita e no OKNA

A abertura traz ao grande ecrã três curtas-metragens que definem, e bem, o tom desta sétima edição, com destaque para “Sauna Day” (estreado no último Festival de Cannes), de Anna Hints (que o circuito nacional a reconhecerá de uma outra sauna confessional - “Smoke Sauna Sisterhood”) e Tushar Prakash, um olhar a uma sauna masculina com invocação quase xamânica. Além do filme de Hints / Prakash, a sessão inaugural contará ainda com “Heiki on the Other Side” (2022), de Katariina Aule, comédia negra com o submundo pós-vida à mistura, e “Miisufy” (que teve estreia no último Sundance), de Liisi Grünberg, animação sobre a dualidade real / virtual com inspirações reconhecíveis ao fenómeno Tamagotchi, reforçam a oferta rica e variada deste ano. Os realizadores de “Sauna Day”, a realizadora Katariina Aule e a produtora de “Miisufy” (Aurelia Aasa) estarão presentes na sessão.

Contudo, o Cinematograficamente Falando … dará voz a quem esteve realmente por trás deste evento, desta seleção e desta perspectiva que encherá o Porto nos próximos quatro dias, Radu Sticlea e Teresa Vieira, os diretores artísticos e programadores, repetiram o convite de responder e de desvendar os cantos e recantos desta sétima celebração do BEAST. O comboio não pára!

Com a Estónia enquanto país-homenageado desta edição, pergunto quais foram os critérios usados na selecção dos filmes e eventos que melhor representam o panorama cinematográfico contemporâneo e histórico do país?

O trabalho de desenho de programação advém de uma combinação de factores. Desde logo com os materiais a que o festival tem acesso, graças ao apoio dos nossos parceiros institucionais (como o Instituto de Cinema da Estónia e do Centro de Arte Contemporânea da Estónia, por exemplo). Materiais que advêm de pedidos já de si direcionados pela equipa curatorial do festival. 

O BEAST tem, no seu core, uma atenção para com trabalhos com assinatura de pessoas dentro do amplo espectro da identidade de género (que se traduz numa preocupação de criar uma programação com diversidade de género), uma atenção para trabalhos tanto do presente como do passado, uma atenção para com trabalhos de escola, uma atenção para com obras de videoarte, entre outras. A partir desta base, a equipa permite-se à descoberta: muitas vezes desconhecendo o caminho, este surge através de um longo e profundo trabalho de investigação. 

O programa emerge como resultado das aspirações iniciais da equipa, revelando-se como o fruto da inspiração que surgiu a partir de todos os filmes com os quais entrou em contacto. Assim, temos este ano uma secção de país de foco diversa: de curtas a longas-metragens; de documentários a ficção; de anúncios televisivos a videoarte.

19eee5a9b1fb8fefac566238f11df762.webp

Sauna Days (Anna Hints & Tushar Prakash, 2024)

Este ano, a competição oficial conta com uma variedade de géneros e formatos, desde ficção até animação. Como garantem um equilíbrio entre a inovação artística e a acessibilidade ao público nas selecções de "Experimental East" e "AnimaEast"? 

Desde a sua primeira edição que o BEAST conta com as secções competitivas East Wave, East Doc e Experimental East. A secção competitiva AnimaEast foi introduzida o ano passado e mantém-se nesta nova edição. Uma adição que consideramos dar o espaço justo ao universo do cinema de animação num festival dedicado a regiões de forte impacto nesse contexto cinematográfico. 

Os filmes de cada uma destas secções são escolhidos pelos respectivos comités de selecção, que contam com especialistas em cada uma das áreas e com pessoas de diferentes nacionalidades - e isto aplica-se igualmente no caso da competição de animação e experimental. Os critérios de selecção têm diversos parâmetros e aquilo que ressalta é a alta qualidade e a relevância política dos trabalhos que procuramos trazer junto do público. Um público que vemos, desde sempre, tanto com interesse em entrar em contacto com narrativas e formas mais normativas, como com espaços de maior expansão das possibilidades da forma do cinema (que não se fechará nunca numa só caixa - e aqui estaremos, em conjunto com o público, sempre curioses e ansioses por navegar em todas as suas possibilidades).

A secção "Visegrad Film Hub" apresenta um conjunto diversificado de filmes de diferentes origens e temas. De que forma os programas como "LAPILLI" e "Fairy Garden" contribuem para a discussão sobre a memória e identidade da Europa Central e de Leste?

A selecção do documentário húngaro “Fairy Garden" foi feita em conjunto com o HU Verzio Film Festival, um dos festivais com os quais o BEAST colabora no contexto do programa Visegrad Film Hub. Este documentário de Gergő Somogyvári, vencedor do prémio do público da última edição do HU Verzio, encaixa na linha de programação do BEAST de representação queer. Este filme mostra-nos a (tanto dura como bela) realidade de vida de Fanni, uma jovem mulher trans e Laci, um homem de 60 anos sem-abrigo. Vivem juntos num lugar longe do centro de Budapeste. E nesse lugar, que surgiu devido à opressão social, à violência, cria-se uma casa de apoio mútuo, de trabalho para construção de uma realidade melhor para ambos. Uma família cria-se neste contexto: e a beleza surge dos gestos de ternura e amor que observamos e acompanhamos. Neste filme temos um equilíbrio entre o negativo e o positivo: mostrando os potenciais de salvação através de comunidade, de família escolhida, não deixando de lado todas as questões problemáticas da sociedade que essa mesma comunidade (ainda) tem que enfrentar. Questões presentes na região da Europa Central e de Leste mas também em Portugal e no resto do mundo. 

Lapilli” é a mais recente longa-metragem de Paula Ďurinová. Um filme-ensaio de homenagem à vida dos seus avós, tal como um filme que cria espaço para a realizadora lidar com os diferentes estágios de luto. Uma observação cuidada, uma abordagem sensível (como um sussurrar cinemático-geológico) que retrata, através do processo individual e único, algo universal. Ďurinová é uma de várias vozes de grande força no contexto cinematográfico da Eslováquia, e consideramos que este filme é um diamante que deve ser partilhado com o público no Porto

Com iniciativas como o CINE-GEOGRAFIA: Blackness and Race in the PRL, vemos uma abordagem histórica e social ao cinema. Como consideram que estas narrativas dialogam com a actualidade sociopolítica, e qual o impacto que esperam gerar no público português? 

CINE-GEOGRAFIA: Blackness and Race in the PRL abre uma conversa sobre a riqueza da troca cultural — como as interações diversas entre a Europa de Leste e as nações africanas deram origem a alguns dos movimentos criativos mais profundos. Num mundo muitas vezes dividido pelo racismo e discriminação, percebemos que a 'alteridade' não é algo a temer, mas algo essencial para o nosso crescimento e compreensão de quem somos. Com este programa, esperamos mostrar ao público português que, do outro lado da exclusão, está uma força vibrante e poderosa, alimentada pela diversidade. É ao abraçar essas diferenças que construímos as coisas mais impactantes e significativas, uma filosofia que está no coração do nosso festival e de muitos membros da nossa equipa.

queer-fighters-of-ukraine.jpg

Queer Fighters of Ukraine (Alex King & Angelika Ustymenko, 2023)

A inclusão do primeiro festival de cinema queer da Ucrânia na secção "Queer Ukraine: Sunny Bunny" (que teve primeira edição no ano passado) merece destaque nesta programação. Que papel esperam que o BEAST desempenhe na promoção de cinema queer no contexto de um festival focado na Europa de Leste?

A ligação entre o BEAST e a Ucrânia tem acontecido ao longo de várias edições de diferentes formas, fora do contexto da secção competitiva do festival. Já tendo sido o País de Foco do festival, e com alguns programas especiais fora de competição, desde 2023 que temos uma colaboração com o Sunny Bunny (que teve nesse ano a sua primeira edição). Consideramos que, tendo em conta o contexto actual do país, torna-se ainda mais urgente criar um espaço para as vozes, as visões cinematográficas da Ucrânia - e, em particular, de narrativas sobre e vidas da comunidade queer.

No geral, BEAST tem tido uma forte presença de filmes queer na sua programação, além de muites des elementes da equipa fazerem também parte da comunidade. Desde o ano passado que decidimos formalizar essa atenção curatorial permanente com a criação de uma secção: How To Care for Cosmos. Um título inspirado no livro-diário de Derek Jarman, “Modern Nature”. Consideramos de extrema importância ter este espaço, e tentamos representar tanto filmes de países cujo contexto relativamente aos direitos e vivências da comunidade LGBTQIA+ não sejam positivos, como também os movimentos progressivos que acontecem na região da Europa Central e de Leste, que permitem um avanço para uma realidade mais igualitária. Uma junção de inquietação com esperança: tentando cuidar do presente para criar um futuro melhor. 

No ano passado, por exemplo, dedicámos um espaço a filmes queer da Eslováquia: país onde duas pessoas queer foram assassinadas a tiro. Uma tentativa de gesto de homenagem às suas vidas e de lançamento de um alerta para com as atitudes homofóbicas, transfóbicas que ainda acontecem em regiões de nossa proximidade. Este ano, por exemplo, temos a presença da Polónia: um país que, durante 8 anos, esteve sob um regime de direita que impediu o avanço dos direitos LGBTQIA+ e que instigou uma narrativa anti-”propaganda LGBTQIA+”. Com a saída desse governo do poder, quisemos criar um espaço que aponte para um futuro que esperamos melhor: “Such Feeling”, um filme de gestos de intimidade, que nos mostra como o apoio dentro da comunidade permitiu a sobrevivência de muites nesse contexto sócio-político. Um filme de lutas fora do ramo da violência (no extremo oposto): uma luta de arte política, de corpos e identidades reivindicativas, que esperamos que, nos próximos anos, alcancem os merecidos e devidos direitos.

A presença destes filmes e destas narrativas é fulcral para um maior entendimento do espectro de situações um pouco por toda a Europa. O BEAST é e quer-se manter como um espaço para a exibição de filmes sobre - e com - essas realidades, para a criação de um diálogo entre os diferentes pontos da Europa, incluindo Portugal.

O que poderá dizer sobre os convidados desta edição? 

Este ano, o festival conta com uma vasta e forte presença de realizadores, produtores e curadores da Estónia (País de Foco): Anna Hints, Tushar Prakash, Katariina Aule, Aurelia Aasa marcam presença na cerimónia de abertura e apresentam os filmes que dão início à 7ª edição do festival. Além disso, vamos contar com a presença de Lyza Jarvis da EKA, que irá apresentar os filmes selecionados para a Carte Blanche da escola de animação de Tallinn. Junta-se também a Marika Agu - gestora de arquivos do CCA, com quem o BEAST colaborou para a criação do programa de videoarte -, que irá apresentar o CCA, além de fazer parte do Júri deste ano.

O júri é constituído por Tadeusz Strączek (Polónia), Heleen Gorritsen (Alemanha), Jakub Spevák (Eslováquia), Eugen Jebeleanu (Roménia) e Juliana Julieta (Portugal). Do contexto da secção Visegrad, contamos com a presença das curadoras do programa CINE-GEOGRAFIA: Blackness and Race in the PRL, Monika Talarczyk e Magda Lipska, que farão uma apresentação deste que é um dos programas de grande destaque do festival. Contamos também com a presença de dois realizadores de realizadores de longas-metragens presentes nesta secção: Paula Ďurinová (“Lapilli”) e Gergo Somogyvari (“Fairy Garden”). No contexto da talk de Festival Makers do contexto Visegrad, teremos um momento de encontro, conversa e partilha com Eniko Gyuresko, Ewa Szablowska e Szymon Stemplewski, que partilharam as suas experiências na direcção ou direcção artística de festivais. São alguns dos destaques deste ano.

Fairy-Garden-jpeg.webp

Fairy Garden (Gergő Somogyvári, 2023)

A programação desta edição parece privilegiar não apenas o cinema, mas também as intersecções com outras artes, como a instalação imersiva de Štefan Oliš. Qual é a visão por trás da incorporação destas vertentes e que contributo esperam que tragam ao festival como um todo? 

Este ano, estamos a focar na integração do cinema com outras formas de arte para enriquecer a experiência do festival. Teremos elementos interativos por todo o festival, começando no nosso ponto de informação OKNA. A nossa colaboração com a TRAKT, liderada por Štefan Oliš, uma organização da Eslováquia que se especializa em media interativos e programas educativos para jovens, já dura há vários anos. Os visitantes podem contar com características interativas, como instalações sonoras e arte em vídeo, em vários locais. O nosso objetivo é criar um ambiente mais envolvente que estimule a participação e a interação com a arte apresentada.

Com uma sétima edição, para onde o festival irá, ou que fronteiras falta transpassar ou deseja fazê-lo, numa oitava edição? Por outras palavras, que ambições tem o BEAST?

“Para onde Vamos?” é o mote do festival deste ano. Algo que se relaciona inevitavelmente com um questionamento interno, de tentativa de entendimento do caminho pelo qual o festival quererá atravessar e para onde quererá chegar. Teremos mudanças já para o próximo ano - ainda por anunciar. E esperamos que o público nos siga nos novos passos que o festival irá tomar. 

Mas o mote deste ano não se prende somente com isso: é um reflexo de uma inquietação generalizada. Não é possível definir o futuro, mas queremos fazer parte de um trabalho comunitário - na área da cultura, na área do cinema -, contínuo, de criação de propostas que possam encaminhar para um mundo melhor, para um futuro possível. Ambições de utopia, que esperamos que nos levem a um lugar o mais próximo possível dela - é assim que todes caminhamos na vida. O cinema tem um grande papel nesse sentido: e queremos que o nosso trabalho se mantenha relevante no sentido de melhorar o estado das coisas.

Os rostos nos "Ossos"

Hugo Gomes, 25.09.24

gn3Qz07qCwaqHjfVG2cXxxGoh2C.jpg

21942id_1308_179_w1600.jpg

MV5BM2Q5NWQwNGEtMzQwYy00MTI4LWIxYmUtMjU0Y2IyNmRkOD

maxresdefault.jpg

Ossos-1.jpeg

Hoje recordei “Ossos” de Pedro Costa, possivelmente dos seus filmes o que menos vezes revi. Sempre foi, para mim, um "filme de negação", ostentando a arquitetura que o cineasta viria a ser reconhecido, analisado e admirado anos depois, após o convite a um quarto particular. Mas da minha última experiência, já longínqua, o que retive foram os rostos, a peculiaridade daquelas faces que ocultam histórias — e histórias, às quais o filme nunca ousa 'tocar'. Ao rever [como se o estivesse a ver pela primeira vez] em 4K, é essa particularidade que se torna saliente: aqueles rostos, aqueles "sujeitos" impressos num cinema ainda em plena autodescoberta. E não é o cinema exatamente isso? Uma prolongada reinvenção? Os contornos assimétricos, atípicos, banalizados em "vidas malditas" são pinturas ora entregues à escuridão, ora ao gótico venerado com exatidão pelas sombras. “Ossos", o filme insatisfeito de Vanda Duarte, uma dessas protagonistas faciais, regressará aos cinemas portugueses a partir do dia 10 de outubro, preservando a sua enigmática presença. A sessão será antecedida pelo operático “Filhas do Fogo", mas isso será outra conversa.

Aos 30 tens o filme que mereces, e antes tens o filme que és capaz de fazer ...

Hugo Gomes, 24.09.24

Captura de ecrã_24-9-2024_215929_vimeo.com.jpeg

A reunião de sete amigos, ainda jovens, com muita vida pela frente, numa estância de verão com a praia “à porta”, encapsulado num objeto estranho, arriscado e, por vezes, vaidoso — uma espécie de "L’Avventura" de Antonioni, se tivesse sido escrito por Vicente Alves do Ó. Isto porque, entre esses jovens, paira uma distância, seja social ou estética, em relação ao comum dos mortais que se conta maioritariamente o espectador. No entanto, seguimos por outro caminho. Há algo que pesa sobre os seus ombros, uma espécie de fantasma, que, num filme de duas horas de duração, é desvendado em tão pouco tempo, numa ejaculação precoce narrativa.

Perdoamos tal precipitação, até porque "Chuva no Verão" é a primeira longa-metragem de António Mantas Moura, e antes da sessão de imprensa fomos alertados por um dos responsáveis da sua distribuição de que o realizador tem apenas 27 anos. Com essa idade, há uns anos atrás, seria um “homem feito” — com calo nas mãos e uma equipa de basquetebol em termos de ‘filhotes’ — adultos na verdade do comum senso, emancipados ou decretados a uma morte certa. Hoje, 27 anos, está-se na 'flor da idade'; experienciamos o tempo de maneira diferente da "era da outra senhora". Portanto, as personagens desta trama assumem os seus 25 anos, mas vivem como se tivessem mil e um fados para contar.

Nada contra este tipo de histórias, mas Mantas Moura revela-se incapaz de as contar. Para "escrever" sobre personagens joviais com profundidade é preciso manter-se distante dessa época, observando esse estado como uma miragem entrelaçada em memórias codificadas e interpretadas ao longo desse hiato. Despir o encantamento ingênuo, ou o fatalismo de pavio curto que esses genes frescos ainda recolhem. Mantas Moura vive ainda nessa idade. Para ele, os 20 anos parecem o fim do mundo, e é dessa sensação que as suas personagens parecem encarecer, mesmo que o conflito coletivo carregue tragédias nos respectivos bolsos.

Captura de ecrã_24-9-2024_21588_vimeo.com.jpeg

"Chuva no Verão" é uma obra mastodôntica de quem ainda soa 'verde', deixe uma sensação de interminável perambulação por um drama de inconsequências, com jovens que se confundem entre si, num fascínio pela proeza de nunca ceder ao estilo televisivo. Se, por um lado, a estreia de César Mourão se fez / rendeu por essa linguagem, Mantas Moura tenta ir mais além, com alguns planos de detalhe que apimentam a jornada, ou planos gerais que procuram induzir um sentimento que, por vezes, falta no desempenho do seu elenco, que declama diálogos com uma crueza de principiante.

O realizador aproxima-se de uma estética pop sem nunca exagerar na vertente plastificada. Realiza anúncios corporais prolongados, e, nesse aspeto, não podemos mentir: há pretensão, tentação e esforço visíveis. No entanto, por vezes, isso não é suficiente. "Chuva no Verão" é o exemplo de que, por vezes, a prática é necessária para avançar rumo a horizontes mais distantes. Afinal, não se "descobre" o caminho marítimo para a Índia quem apenas andou de canoa.

Pág. 1/3