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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Na graça de Greice ...

Hugo Gomes, 31.08.24

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Novamente Lisboa! Não “uma” qualquer, a Lisboa de Leonardo Mouramateus, brasileiro vivendo como Colosso de Rhodes nestes dias - um pé em cada margem - fazendo da capital o seu biótopo, envergando-se num imperativo olhar “estrangeiro”. E é essa Lisboa com que ficamos, porque é nessa mesma que habita Greice, jovem estudantil, algo fura-vidas e com uma particularidade, uma mentirosa nata, e através disso, mesmo sem intenções de má-índole, a convivência com ela torna-se algo difícil, não só para as personagens do seu universo, como para nós, espectadores. 

Talvez seja nesta mesma figura, a de Greice, com encantamento próprio, graças ao corpo e alma de Amandyra, o qual nos deparamos com o melhor e o pior que esta obra tem para nos oferecer, e portanto, um desafio à nossa sensibilidade, ou hipersensibilidade empregada nos espectadores hoje de poderes atribuídos. Até porque Greice detém as marcas burlonas de quem se “vira como pode na vida”, por vezes sem olhar a meios a quem prejudica, mas igualmente exibe um lado doce, jovial e vivido, e uma fantasia às telenovelas que Mouramateus parece partilhar fascínio, que faz querer a sua companhia, com alguma distância é certo, isto envergado no dito olhar do realizador, essa perspetiva de Lisboa longe de miserabilismos e classes médias baixas, apenas imigrantes com alguma sorte na sua fatura e com Belas Artes no horizonte (vejam, a estátua de São Jerónimo, o primeiro artefato a sair da escuridão-génese do filme). 

Greice” espelha os mesmos trilhos do realizador em outros 'andamentos', nomeadamente a da sua anterior longa-metragem “A Vida São Dois Dias”, este “homesick” [saudades de casa] embrulhado numa certa recusa de voltar, um desraizamento e suave negação das suas origens. Lisboa, novamente essa, o lugar de pertença às suas figuras que se dão pelo nome de personagens e curiosamente é nessa mesma cidade que Mouramateus revela-se mais esmerado nos planos e nas suas conduções (existe um flashback integrado à ação, cujo um quiosque assume tendências antonionianas). Depois conta-se sempre com o seu “muso”, Mauro Soares, a servir de “pau mandado” [no bom sentido] a este imaginário citadino. 

Contudo, o desafio imposto por Greice, essa menina-migrante sedutora, que engraça como subsistência, e o de enquadrar-se numa espécie de bolha. Talvez seja isso mesmo que nos compele a distanciar-nos da jeitosa órbita da protagonista. Há algo nela e nas suas companhias “alfacinhas” de privilégio ou de uma nova “burguesia à rasca”, ligadas a esoterismos e moralidades pré-fabricadas.

"Verdade ou Consequência?", no mundo de Luís Miguel Cintra: "escolheu o teatro, ser um criador, artista, pensador, e continua nesse caminho até hoje"

Hugo Gomes, 29.08.24

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Verdade ou Consequência? (Sofia Marques, 2023)

As cortinas descem, dividindo os dois mundos em que Camilla (interpretada por Anna Magnani) perdidamente se posiciona, num prolongado dilema existencial. Atriz de teatro, porém magnetizada pela vida civil que a espera sob juras de amor eterno, ou romances das alturas, só que acordada por um chamamento que lhe confronta com a sua “realidade”. Ela não pertence ao mundo dos meros mortais porque já havia feito a escolha, e há muito, o teatro, esse pulso de vida, o resto vencido ao seu estatuto de plateia, viraria num “outro teatro”, inacessível a Camilla

A mesma escolha havia feito Luís Miguel Cintra, e essa passagem integra e entrega a sua alma com uma sina. Trata-se do desfecho do filme de Jean Renoir, “Le carrosse d'or” (1952), o “da vida” do ator, segundo este, desafiado por João Bénard da Costa num certo dia. O derradeiro momento adquiriu uma dualidade simbólica neste “Verdade ou Consequência?”; a primeira, a essência do ator enquanto, e somente, ator, mais que uma profissão, uma vida restringida às dores da performance, do espéctaculo, do pensamento na arte e na forma, e por outro o reflexo emitido em hipotéticos e imaginários lagos encantados onde Luís Miguel Cintra, o próprio e não outro, contempla nesta sua jornada ao passado, à memória, aos tempos áureos e às figuras que o atravessaram, por entre fotos e arquivos abertos, locais manifestantes a essa nostalgia, à génese e ao seu íntimo.

Sofia Marques, também ela atriz, persiste na compreensão deste vulto maior da cultura portuguesa, não só do teatro, não só do cinema, como na invocação da sua aura, aquela que concentrou e inspirou centenas de artistas hoje em vigor. Depois de “Ilusão”, do qual seguiu de perto a concepção de uma peça no Teatro da Cornucópia, com fascínio à dupla Cintra - Cristina Reis, regressa agora com “Verdade ou Consequência?”, um convite, e um convidado, na busca das sombras, dos recuerdos e dos olvidados. E uma declaração vivida de “Ainda estou aqui!”

O Cinematograficamente Falando … falou com a autora, sobre o autor, sobre o processo de chegada, sobre a sua dimensão e tudo envolto. “Verdade ou Consequência?” chega aos cinemas portugueses, um depois da sua estreia no Doclisboa, em comemoração dos 10 anos do Cinema Ideal

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Verdade ou Consequência? (2023)

Gostaria que me falasse sobre os filmes, e especificamente sobre o tema que gira em torno de um único homem. Aliás, os seus filmes, não refiro apenas este, mas como também o “Ilusão” (2014), que de certa forma, aborda indiretamente esse homem, o Luís Miguel Cintra. Na sinopse oficial, você declara que esteve à procura do Luís Miguel Cintra que conhecia, ou seja, o do passado. Portanto, a pergunta é muito direta: conseguiu encontrá-lo neste filme?

Encontrei, sim! Trabalhei na Cornucópia durante grande parte da minha vida. Não foi a minha vida toda, mas pelo menos metade, porque entrei aos 19 anos e saí em 2016, quando a companhia terminou. E por essa razão, posso dizer que estava à procura de filmar algo que conhecia bem, no sentido de que sabia exatamente o que iria encontrar. Queria filmá-lo para mostrar às pessoas o Luís Miguel Cintra que eu conhecia, a que tinha acesso, e o quão privilegiada era ter esse acesso.

Só que, entretanto, quando comecei a fazer as filmagens [“Ilusão”], coincidiu com o fim do Teatro da Cornucópia. O próprio Luís Miguel estava numa fase muito diferente da vida, numa espécie de balanço, refletindo sobre como viver uma vida totalmente diferente daquela que tinha até então. Fazia três espectáculos por ano, e não tinha quase tempo para mais nada além de pensar e preparar os próximos espectáculos. E de repente, encontrou-se numa outra situação.

Portanto, quando comecei a filmá-lo, nós dois ficámos ali um pouco em processo de descoberta.

Também queria lhe perguntar exatamente isso, porque ao encontro do Luís Miguel Cintra do passado, o filme também tropeça no Luís Miguel Cintra de hoje?

Claro. Porque a minha ideia sempre foi essa. A minha intenção nunca foi fazer um filme recorrendo a imagens de arquivo. Decidi fazer um filme com o Luís Miguel Cintra de agora, aos 74 anos, na sua vida atual, sem a companhia do Teatro da Cornucópia, e um pouco também afastado do cinema enquanto ator. Quis enfrentar a vida tal como ela é, sem fugir da realidade presente, que também é uma busca constante — uma busca não só pelo sucesso e pela felicidade, mas também por tudo o que faz parte da vida dele.

Foi um caminho muito mais difícil de percorrer, mas também me pareceu muito mais interessante e pessoal.

Sim, é verdadeiramente pessoal, mas permita-me dizer que, pelo menos falando da minha experiência, saí da sala um pouco melancólico e triste.

Mas a vida é triste …

Não posso deixar de concordar. Isso também está ligado à escolha da última cena do filme, que é a transmissão da última cena do “filme da vida de Luís Miguel Cintra”, “Le carrosse d'or”, de Jean Renoir. A sequência final, tanto do filme dele como do seu, transmite a ideia de que ele pertence ao mundo dos atores, ao mundo do teatro, enquanto o resto do mundo se torna a plateia. Ou seja, este Luís Miguel Cintra que você filma, que está ligado ao real, esconde um Luís Miguel que se interessava pelos espectáculos e que traz consigo uma certa nostalgia do teatro.

Mas um ator vai sempre ter saudade do espectáculo, porque ser ator é algo que nunca se abandona. Não se demite dessa função; um ator continuará sempre a pensar como ator, ainda mais quando é um criador como ele é. É impossível que isso não faça parte da vida dele todos os dias. Por isso, “Le Carrosse d'Or” é o filme da vida do Luís Miguel, porque Anna Magnani, a personagem principal, escolhe o teatro em vez da vida comum. Ela escolhe permanecer nesse mundo. E, de certa forma, o Luís Miguel também escolheu o teatro, porque viveu toda a sua vida para isso. Ele não criou os laços que talvez outras pessoas tenham criado, como ter filhos e, mais tarde, na vida, recorrer a esses familiares que oferecem mais proteção. Ele escolheu o teatro, ser um criador, artista, pensador, e continua nesse caminho até hoje.

E até no cinema, parece que ele tem estado a afastar-se, praticamente. Lembro-me de um encontro com ele em 2018, quando passaram “A Ilha dos Amores”, em versão restaurada, no Festival de Cannes. Ele respondeu-me a uma questão envolvendo mercado de trabalho e o envelhecimento dos atores de que os jovens já não criam personagens de “velhos”. Ou seja, ele sente que já não tem lugar neste novo “universo” cinematográfico que está a emergir para as novas gerações, porque já não há a tendência de escrever personagens para atores como ele.

Nem para ele, nem para outros atores da sua geração... Não se pode dizer que isso seja uma regra geral, mas o cinema da época dele, desde o início até há relativamente pouco tempo, tinha uma narrativa muito diferente daquela que se vê agora. Talvez por isso ele não se identifique tanto com o cinema atual. Embora seja uma pessoa bastante livre e cheia de vontade de continuar a explorar novas formas de fazer arte, talvez sinta que as coisas estão mais vazias hoje em dia. Parece que tudo quer chegar muito rapidamente ao objetivo, com uma ânsia de alcançar o sucesso de forma imediata.

Ilusão (2014)

Achas que envelhecer é mau para um ator?

Não há nada de mal em envelhecer para um ator. Também digo isso enquanto atriz. Envelhecer é muito bom. Para começar, é sinal de que estamos vivos, e isso já é uma maravilha [risos]. Mas, quer dizer, tens uma noção da matéria dada. Trazes contigo a tua vida, as tuas experiências, o que fizeste e o que encontraste. Ficas com saudades de ‘coisas’ que já fizeste, mas também encontras novos desafios o qual tens que enfrentar, gostando ou não. Aprender com eles faz parte do crescimento. É um processo evolutivo.

Vamos recuar um pouco e falar de “Ilusão”. Apesar de em relação à Cornucópia haver um prenúncio de “fecho de portas” no ar, “Ilusão” foi concretizado em 2014, e a companhia encerrou em 2016. De certa forma, o filme, mesmo que inconscientemente, foi um tributo à Cornucópia e à sua memória?

Ilusão" foi uma homenagem, mas não foi criado com essa intenção consciente. Na verdade, tinha feito outro projeto antes. Em 2010, realizei “Vê-Los Assim Tão Pertinho” (2010), uma experiência com as Comédias do Minho, que trabalha muito com a comunidade e explora emoções e conceitos relacionados ao Minho. Após essa experiência livre, fiz “8816 Versos” (2013) com o ator António Fonseca, um filme em que acompanhei a decoração dos Lusíadas. O Luís Miguel viu esse filme, gostou e como tal me fez uma proposta: visto que estava a trabalhar com não-atores, o público da Cornucópia, e estudantes de teatro, desafiou-me a acompanhar todo o processo e a fazer um filme sobre isso. Aceitei o desafio com muita vontade, porque era algo novo para mim acompanhar o trabalho do Luís Miguel e da Cristina Reis com pessoas sem a disciplina e a rotina de atores.

Assim, comecei e deparei-me com a Cornucópia exatamente como a conhecia: com a mesma seriedade, rigor, alegria e imaginação, mesmo com não-atores. O que fiz foi mostrar o trabalho da companhia através daquele espectáculo, que incluía os primeiros textos de Federico García Lorca, e que resultou numa peça bastante especial.

Com o “Verdade da Consequência?” explorava outras abordagens. O Luís Miguel costuma dizer, e menciono isso no filme, que invento novas formas de me relacionar com ele. Talvez seja verdade. Talvez tenha sentido um pânico ao perceber que o teatro da Cornucópia estava a desaparecer e não quisesse deixá-lo ir embora. Foi uma maneira de manter essa inspiração e a sua influência comigo, de continuar a aprender com ele e a olhar para o mundo da maneira que ele o faz e o qual tanto admiro.

Foi uma experiência muito bonita, emotiva e divertida, e esses momentos refletem-se de alguma forma no filme.

E em “Verdade ou Consequência?” quem é que teve a ideia da viagem?

Fui eu que tive a ideia da viagem porque, na verdade, queria fazer umas quantas com ele. O meu objetivo, desde o início, era viajar para Espanha, porque o Luís Miguel nasceu lá, como ir a Itália, porque isso está muito ligado à sua educação; quando era jovem, ele viajava frequentemente para aprender História da Arte, e também para a França, pelas mesmas razões, relacionadas com a sua educação. Tínhamos, portanto, pensado em fazer várias viagens. Só que, entretanto, aconteceu a pandemia e só conseguimos ir a Espanha, em 2019. Logo a seguir, veio a pandemia, e não conseguimos fazer mais nada. Tudo ficou um pouco diferente.

Decidi, então, planeei que o Luís Miguel me mostrasse o seu “mundo” a partir da sua própria casa, porque a pandemia trouxe-nos uma nova visão sobre o conceito de casa, não é? O confinamento fez-nos pensar nas nossas raízes, onde realmente pertencemos. Ele tem uma casa no Porto e outra em Lisboa. Qual é, então, a sua verdadeira casa? Essa questão abriu uma nova perspetiva o qual não tinha considerado antes, mas que me fez refletir graças à pandemia. A escolha de fazer o filme sozinha, sem equipa, também está relacionado com esse contexto, porque era muito arriscado levar uma equipa de filmagens para dentro da casa dele.

Por isso, resolvi fazer tudo entre mim e ele, e acho que funcionou bem.

O mundo dele, a sua casa, rodeada de imagens sacra …

Sim, a casa dele já é um mundo por si só. A casa dele é, no fundo, uma enorme coleção de mundos. E isso é muito bonito. São imagens, algumas com muito valor, outras sem valor nenhum. É como se ele criasse uma pequena Humanidade dentro da sua própria casa.

O Luís Miguel Cintra, de certa forma, é um mundo em si mesmo. Lembro-me que no “Dicionário do Cinema Português”, o crítico Jorge Leitão Ramos o declarou como “o melhor ator do mundo” …

John Malkovich afirmou o mesmo …

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Luís Miguel Cintra e Catherine Deneuve em "O Convento" (Manoel de Oliveira, 1995)

O Malkovich … sim, ia acrescentar isso. Após a rodagem de “O Convento” (Manoel de Oliveira, 1995), John Malkovich lançou a hipótese de que Luís Miguel Cintra tivesse ido para Hollywood, seria considerado um dos melhores atores do mundo. Mas apesar de tudo isso, há um sentimento de que o Luís Miguel Cintra permanece um tanto na sombra em Portugal.

Não sei se ele está na sombra... Quer dizer, estar na sombra depende do público. Ele é um ator que, para começar, não tem necessidade de se promover, porque a sua obra já fala por si. Além disso, sempre foi um homem que trabalhou imenso. Se formos a ver, ele trabalhou com praticamente todos os realizadores portugueses, participando nas suas primeiras obras, e isso é incrível. Acho muito bonito alguém aceitar participar nas primeiras obras de realizadores, e ele tinha muito gosto nisso. Isso também diz muito sobre a sua personalidade e o seu comprometimento para com o Cinema.

Ele fez filmes que podemos ver e apreciar. Como ator, trabalhou 45 anos, foi encenador e diretor de uma das maiores companhias de teatro em Portugal, e talvez até na Europa. Para mim, pelo menos, é uma figura de destaque. Portanto, essa ideia de estar na sombra... Não sei, sinceramente, não o partilho.

Sobre a estreia deste filme agora [produzido em 2022, estreado em 2024] ... Sei que é para celebrar os 10 anos do Cinema Ideal, mas também há algo mais pessoal por trás disso. Recordo-me na Cinemateca que deram prioridade à publicação do livro “Luís Miguel Cintra: O Cinema”, e, embora seja um pouco agressivo dizer isto, mas essa urgência estava ligada à preocupação de o fazer antes que ele “partisse”. Ou seja, também há esta intenção de estrear o filme quase como uma homenagem.

Não, não queria de todo... É claro que queria estrear este filme com o Luis Miguel vivo, com saúde, para que ele pudesse acompanhar-me no que será agora o percurso do filme. Conto com ele para ir comigo, viajar, e aproveitar a vida, porque ouvi-lo é sempre uma experiência única. Esse era o meu objetivo. Não fiz o filme a pensar que o Luís Miguel não estaria cá quando o filme ficasse pronto.

Não senti essa urgência de que falas. Demorei o tempo que precisei para terminar o filme. Comecei a prepará-lo em 2019, e agora estamos em 2024. Houve a paragem da pandemia e depois continuei as filmagens, seguiu-se a montagem, e houve outras pausas, porque também sou atriz e faço bastante teatro. Muitas vezes, tinha ensaios e espectáculos, então, o processo foi feito aos poucos.

O Luís Miguel tem uma doença que as pessoas já sabem, ele tem Parkinson, mas não tem mais nada além disso. Apesar de tudo, já tem o diagnóstico há bastante tempo e tem conseguido viver com ela. Não está, de todo, no fim. A doença tem o seu tempo, e ele tem conseguido controlá-la. Ainda está numa fase em que consegue lidar com isso.

Ele continua a fazer as suas peças e a montar os seus espectáculos. Alguns desses projetos acontecem, outras vezes nem por isso, mas ele não está parado. A mente dele continua sempre ativa …

São mais as que acontecem ou as que não acontecem?

Na verdade, já aconteceram três espectáculos desde que a companhia terminou. Pelo menos participei em dois deles; “Dom João”, uma produção longa, com cerca de quatro horas, e “Pequeno Teatro ad usum delphini vanitas”, que aparece no filme e é inspirado em Dom Quixote. Além disso, fez um em conjunto com o pianista João Paulo Santos, que também é mostrado no filme. Ou seja, durante o tempo em que estive a filmá-lo, ele estava ocupado em peças de teatro, numa oratória, e a colaborar comigo nos nossos projetos. E ainda tem muitas outras ideias para futuros projetos.

Enquanto atriz, filmes como estes consomem-lhe muito tempo?

Consome sim. O filme foi feito um pouco por etapas. O Luís Miguel vive no Porto e, de vez em quando, vinha a Lisboa. Então, aproveitava esses momentos ou combinava períodos em que ele ficava em Lisboa para que pudéssemos fazer as filmagens. Outras vezes, ia ao Porto e filmava lá. Foi preciso muita disponibilidade, especialmente para saber ouvir e observar com atenção, para depois conseguir transmitir isso no filme. Tudo foi concebido de uma forma muito espontânea e pouco planeada. Nunca combinamos antecipadamente o que iríamos falar, dizer ou ouvir. Foi um processo bastante orgânico.

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Sofia Marques e António Mortágua em "Ramiro" (Manuel Mozos, 2017)

Em relação ao cinema, constante que tem uma carreira longa e diversificada, contudo, destaco dois papeis, o de “Veneno Cura”, da Raquel Freire (2008), que aliás que também participou na primeira obra dessa realizadora [“Rasganço”, 2001], e “Ramiro”, de Manuel Mozos (2017). Porque olhando para o seu percurso em grande tela, vejo colaborações com João César Monteiro [“As Bodas de Deus”], João Botelho [“Um Filme em Forma de Assim”, “Corte do Norte”], Mário Barroso [“Ordem Moral”], Jorge Cramez [“Amor Amor”], Joaquim Pinto [“Pathos Ethos Logos”] e Christine Laurent [“Demain?”], mas praticamente tudo reduzido a papeis secundários ou de passagem. Portanto, a minha pergunta, é, as suas participações cinematográficas são escolhas suas ou são os papeis que lhe chegam a si?

Deixa-me só acrescentar o “Cinarauma” de Inês Oliveira (2010) … Interessa-me imenso o cinema português, mas também já deves ter percebido que às vezes é muito difícil porque acaba por ser sempre os mesmos atores que fazem cinema em Portugal.

Portanto, é uma questão dos papeis não chegarem a si …

Não me queixo, porque estou sempre disponível e aproveito todas as oportunidades que tenho. O projeto “Veneno Cura” foi algo que adorei fazer, com uma entrega absoluta. Gostei imenso de trabalhar nesse filme, e a colaboração com toda a equipa de cinema foi muito especial. Fiz grandes amigos aí, e que ainda hoje são meus amigos. Foi um projeto realmente bonito. O “Ramiro” foi também uma maravilha, pois adoro o trabalho do Manuel Mozos e o seu cinema. Foi um prazer enorme participar nesse filme.

Gostaria de ter mais oportunidades no cinema, mas, no fundo, é preciso que os realizadores estejam dispostos a arriscar em trabalhar com atores que talvez não estejam sempre em todos os filmes. É legítimo que eles escolham atores e atrizes que imprimem algo especial nos seus projetos, e, se gostarem do trabalho, podem querer incluir esses talentos nos seus filmes.

Hellboy luta a direito contra homens tortos ...

Hugo Gomes, 28.08.24

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Jack Kesy é o novo Hellboy no cinema

Hellboy, material “maldito” em “live action”! Culpemos a febre “The Dark Knight” naquele concorrido verão de 2008 que não se apresentou devidamente favorável ao segundo tomo da personagem sob as mãos de Guillermo Del Toro - “The Golden Army”. Não fora o fiasco, nem fora o sucesso esperado em função do seu orçamento mais musculado para fazer jus à imaginação fértil do mexicano (rendeu cerca de 168 milhões de dólares, frente a um orçamento de 65 milhões, que inflaciona praticamente o dobro com o marketing), o filme ainda obteve a ousadia de abrir portas a um terceiro, mas tal foi negado. Mais tarde, envolvido em outros trabalhos e um sequestro da Terra Média (“The Hobbit” que não acabou por concretizar), o desejo de finalização da trilogia caiu no limbo. 

Em 2019, contou-se com um reboot, Ron Perlman cedia o lugar de “diabrete” a David Harbour em estado de graça devido aos reinados do streaming, e Neil Marshall tomava conta da cadeira anteriormente na posse de Del Toro. O resultado, esse sim, um autêntico fiasco [55 milhões de dólares rendido mundialmente]. Seria o prego no caixão da personagem criada por Mike Mignola no cinema. Seria, mas não o fora … quer dizer, há pelo menos um último suspiro a dar na sua tumba. 

Hellboy and the Crooked Man” (ou seja como nemesis a folclórica figura do “homem toroto”), produto de baixo orçamento com benção do autor original, e não só (tem presença sua no argumento), assume as suas limitações e abraça o terror, a convencionalidade do seu género como sua. Não é uma sequela, nem um reboot, até nem se sabe o que pretende ser este filme tomado pela parcial equipa por detrás de “Crank” (2006) ou o “Ghost Rider” em decadência (mas do invulgar díptico, a versão de 2011 é o mais tolerável), indivíduos habituados a cercos produtivos e gerar adrenalina através de tiques de câmara. Ou seja, chico-esperto e amador, desenrascado a criativo, uma fusão com aliança à escuridão (e muita!) da fotografia (não se vá notar o que falta nos cenários ou na caracterização das personagens). 

Portanto, este ornitorrinco (“tem bico, põe ovos, mas não é pato”) isenta medo em ostentar barato, aliás até sente-se orgulhoso em demonstrar o quanto poupou. Por outro lado, esse tom de pechisbeque que condiz com a ambiência do terror, não puro, mas destilado como whisky rasco, não é o embaraço que parece ser, o que é devidamente pecado em toda a esta produção de “joelhos cortados” é a sua incapacidade narrativa, de personagens que caem de paraquedas em lugar destaque ou da intriga (aqui com bruxas white trash ao invés dos anteriores nazis satânicos) que se desenrola automaticamente, por lugares-comuns, por flashbacks meramente explicativos e … ora bolas, diálogos de rascunho. 

Se calhar o problema é nosso, espectadores, que demos a ideia a estes produtores, que tudo pode regressar com dignidade, até quando o prazo de expiração é uma evidência. Não querendo parecer fundamentalista, mas “Hellboy” foi apadrinhado por Del Toro, como uma adopção legítima. Para bem da nossa sanidade fiquemos por aí …

Kira Muratova: uma cineasta de três corações a (re)descobrir

Hugo Gomes, 23.08.24

transferir.jpegThe Long Farewell (1971)

Dois filmes de Kira Muratova chegam às salas em cópias restauradas, um lembrete de uma distribuição que resiste ao imperativo daquela dominância americana e dos entretenimentos imediatos, e que, de uma forma ou outra desafiam a cinefilia destas bandas. “Brief Encounters” (1967) e “The Long Farewell” (1971), as primeiras obras a solo da realizadora, e aí, cada um por motivos diferentes, os impasses para a sua proliferação artística. Tendo sido “proibida” filmar por anos e após anos, ordens das diretivas do regime soviético da altura (“Getting to Know the Big Wide World”, em 1980, marcou o fim desse “castigo”), e cuja vinda da perestroika e a consagração de “The Asthenic Syndrome” (1989, vencedor do Urso de Prata de Berlim), “libertaram” essas mesmas obras, dando ao mundo uma cineasta sem igual. 

Mas apesar destes anos todos, a questão permanece: quem é Kira Muratova? Uma mulher em conflito, nem que seja pela sua inconsciência ou o (in)fortúnio da sua existência. Nascida em 1934, na região de Soroca, hoje Moldávia, Kira Korotkova (tendo adoptado apelido Muratova durante o breve enlace com o seu co-realizador Oleksandr Muratov), formou-se em cinema no Instituto Gerasimov de Cinematografia, em Moscovo, antes de se radicar em Odessa, local onde produziu a maior parte da sua obra e que viveu até o seu último suspiro, em 2018. Ou seja, moldava de raíz, russa de mente e ucraniana de coração (nacionalidade que adquiriu após a independência), três partes de uma geografia próxima e igualmente distante, hoje, como é evidente, em conflito, um reflexo, ora involuntário, de uma conturbação interior, que iria marcar o seu estilo e estética, da narração ao visual. 

Desde os primeiros passos na realização, em 1961, Muratova revelou-se numa presença incómoda para o regime soviético, recusando-se a ceder às rígidas “normas” do realismo socialista, pontuando por narrativas erráticas, fragmentadas como um caleidoscópio emocional, o uso atípico do som, e a criação de personagens grotescas e desoladas, num delinear de um retrato socialmente corrompido e na decadência moral, sufocada pela estagnação brejneviana. Constantemente acusada de um niilismo quase misantrópico, Muratova manteve-se, mesmo após o abrandamento da censura, como exploradora dos abismos da condição humana e da sua “simbiose” para com a ideologia político-social em voga. Existia nela uma rebeldia, uma vontade de romper cânones de pensamento e proferir uma estética do absurdo e igualmente atenta às correntes artísticas que lhe atravessavam.

 

“Brief Encounters” (“Breve Encontros”, 1967) 

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A província serve de palco - aliás, palavra adequada visto que os flashbacks que servem de essência a esta narrativa encostam-se nessa dimensão algo teatral … mas já lá vamos - nesta sua primeira longa-metragem emancipada, onde já se anunciava o seu estilo com ecos da Nouvelle Vague francesa. Embora cronologicamente situado duas décadas antes, o filme foi mantido na escuridão até ao tempos da reconstrução (perestroika), sendo revelado ao mundo apenas pouco antes de “The Asthenic Syndrome”. 

É um triângulo amoroso entre Valentina (interpretada pela própria Muratova), uma funcionária regional em Odessa (“Caros camaradas …” desta forma somos apresentados a ela, por via da sua devoção partidária-ideológica), o seu marido Maksim (Vladimir Vysotsky, poeta e cantautor russo), e a jovem Nadia (Nina Ruslanova), uma empregada doméstica, que, sem o saberem, partilham um passado amoroso com o mesmo homem. A fragmentação destas relações é simbolicamente espelhada em objetos como pratos quebrados e uma guitarra com cordas partidas, exaltando a irreparabilidade do que se perdeu. A estrutura não linear do filme, tecida por esses flashbacks, os únicos onde Maksim se manifesta corporalmente, invocam o desejo aliado ao adultério e por consequência à condição feminina, que previsivelmente levaram à censura da obra. 

 

“The Long Farewell” (“O Longo Adeus”, 1971)

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Na sua segunda obra a solo, Muratova centra-se na dolorosa tensão entre uma mãe dominadora (Zinaida Sharko) e o filho (Oleg Vladimirsky) que dela se afasta, exprimindo um desejo de viver com o pai. Pedido esse, que fora interceptado pela própria progenitora.

Esteticamente mais elaborado que o anterior (tem um tom felliniesco, principalmente no seu retrato com burguesias alienadas), este é um filme mais concentrado nos não-ditos do que as palavras proferidas pelas personagens. Existe uma tensão previsível desde o ínicio, e essa “tirania” maternal conduz o filme para algumas imagens-alegóricas, seja essa dissipação para com um regime controlador ou o exodus ideológico de uma “Mãe Rússia” na sua decadência. Conforme a interpretação, é na sua abordagem vanguardista que Muratova julgou ter sido a sua condenação à censura - a subserviência a visuais e narrativas impostas pelo ocidente. 

Sendo assim, aquele final, a de uma mãe a provar a um mundo (mais concretamente uma figurativa plateia) que a ridiculariza, ter ainda a digna hipótese de ostentar o seu status, em contradição para com um filho embaraçado e defensor de outras vias. Tal pode-se traduzir nessa rebeldia que a realizadora bem entende - a história de duas “Rússias”, por via de uma geração que acredita, em oposição às anteriores, em outras soluções para além da conservação do regime e de um sonho utópico. 

Aliás, falando em utopias e virtudes comunistas que só em terreno onírico existem, Muratova é uma forte e ácida crítica a essas mesmas fantasias. Estas duas obras, uma mais ostensiva que a outra, pavoneiam essa mesma ofensiva. Uma realizadora num conflito interno que deixa transparecer numa linguagem, que só o Cinema conhece como ninguém.

Que os mundo dos mortos seja o palco da tua vingança ...

Hugo Gomes, 22.08.24

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Através da imprensa, ficou-se a saber que foram tomadas precauções rigorosas durante as filmagens de "The Crow". Segundo consta, nenhuma arma "real" foi utilizada nas sequências de ação (que contam com múltiplos tiroteios), provavelmente sob a sombra do fatídico caso de "Rust" (a produção de Alec Baldwin ainda a preencher manchetes), assim como pela memória do original de 1994. Nesta decisão nenhuma crítica “disparo”, contudo, é por estas mesmas cautelas que ressalta o facto de que, independentemente do número de versões, qualquer adaptação deste "anti-herói" das páginas de James O'Barr nunca conseguirá emancipar-se da sua assombração. 

Como bem sabem, há vinte anos, Brandon Lee, filho de Bruce Lee, em ascensão na indústria, preparava-se para alcançar o esperado estrelato com a adaptação de "The Crow", mas, estranhamente, uma arma carregada presente no set ditou o seu trágico fim. Lee eternizou-se à custa dessa tragédia, que, ironicamente, auxiliou o sucesso do filme e impulsionou a carreira do realizador Alex Proyas, alimentando mitos em torno do projeto, desde uma maldição sobre a família Lee (recordando que Bruce Lee também faleceu a meio de uma rodagem - "Game of Death", de Robert Clouse, em 1978) até à ideia de uma anátema associada ao corvo. Apesar das sequelas de baixo orçamento, lançadas em modo direct-to-video, os estúdios nunca esconderam o desejo de ressuscitar a história, e foi preciso aguardar duas décadas, com inúmeros falsos começos (muitos projetos anunciaram-se e morreram logo de seguida) para chegarmos a esta adaptação gótica desajustada, com a assinatura de Rupert Sanders, um um “tarefeiro” sem grande expressão, convém afirmar ("Ghost in the Shell", "Rise of the Planet of the Apes"). 

Mas, voltando ao início da "conversa": qualquer "The Crow" que seja trazido ao ecrã será sempre associado ao filme de 1994 e aos eventos que o envolveram. Uma versão como esta, mesmo tentando distanciar-se, acaba por nos conduzir àquela memória coletiva; a dissociação é inevitável, pois desde a sua génese, está estabelecida uma comparação e como sabemos, não podemos voltar a 1994; as audiências exigem outros elementos, mas nem por isso são menos ou mais exigentes. Enquanto o filme de Proyas era mais direto na sua narrativa trágica, aqui, somos encurralados num romance que dá origem ao pacto mefistotélico. Bill Skarsgård (“It”), o novo "corvo", e a artista musical FKA Twigs, sua "Julieta" de todos os terrenos, vivem um amor vampírico que desespera pelo gótico-pop que caracteriza este universo, uma "palha" que tenta estabelecer no espectador uma sensação de amor "bigger than life". 

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Infelizmente o trágico parece ser injustificável à particularidade que levará à compaixão da ave negra, e fora disso a postura inteiramente sonolenta de Twigs dissipa qualquer compaixão à sua figura, de certo ambígua e relevante para o coração da trama. Skarsgård, por sua vez, oferece as ferramentas óbvias para justificar esta nova incursão (o olhar de desalento que o acompanha é a sua personagem), mas até o filme encontrar o seu tino (há uma clara falta de ritmo), o seu lamento revela-se deplorável, numa busca por uma gravidade que Sanders parece incapaz de alcançar. 

No entanto, é quando a maldição se interioriza na sua magnificência que a violência "R" manifesta as suas liberdades e libertinagens, com coreografias de violência gratuita (da autoria do stunt coordinator Adam Horton, "Mission: Impossible") a preencher os requisitos operáticos. Curiosamente, é na Ópera, sob os acordes de "Robert le diable" [ópera francesa composta por Giacomo Meyerbeer, entre 1827 e 1831], que a magnificência da sua produção é nos descortinada. Para um filme com cuidado em não mesclar legados e tributos, a sua dose generosa de pólvora e mutilações por via de katanas japonesas é um “fuck off”, um malabarismo de cinismo e dos propósitos de uma produção como esta - “queremos ação porque o sabemos fazer, enquanto que o drama, a sua Humanidade, nem por isso”. 

Mas fora o ato de ocasional génio do seu género que se vai com a sua alegórica queda do pano, resta-nos um anti-clímax, um romantismo demagogo e pacóvio, e pouco mais. Promete sequela, mas o medo dos fantasmas de 1994 está bem presente; "The Crow" prossegue numa vitória artificial sobre as suas amarras. Vénia a Brandon Lee, um beijo na mão e seguimos com a nossa vida, o corvo vem logo atrás.

Até ao último golpe ...

Hugo Gomes, 21.08.24

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"Scorched Earth" (2024)

Há qualquer ‘coisa’ de antiquado nestas duas obras da prometida trilogia de Trojan. Uma antiguidade trazida até nós sob um rol de lágrimas de saudade, ou como os italianos proclamam, nostalgia. Já não existem thrillers com este ADN! Estão praticamente extintos, e até mesmo - com base na sua constante comparação - Michael Mann, parece ter esquecido de como os fazer. 

Chega a Portugal, através da The Stone and the Plot, uma estreia quase simultânea dos dois primeiros capítulos de Thomas Arslan, realizador alemão que no circuito da distribuição portuguesa o conhecemos nas paradas do false-western com Nina Ross incluída (“Gold”, 2013), em tempos que se prosseguia enquanto “musa” de Christian Petzold (o “colega” de Arslan, que juntamente com Angela Shellac, compõem uma imposta vaga cinematográfica alemã - “A Nova Escola de Berlim”).

Mas voltando a Trojan … Mas quem é esse “Cavalo de Troia”? Apenas basta contemplar os primeiros minutos de “In the Shadows” ("Nas Sombras", 2010), e refiro em contemplar, porque é isso mesmo que exercemos neste thriller. Deixamo-nos cercados pela ambiência daquela Berlim noturna, quase deserta e deixada ao “Deus-dará”, e apercebemos através de uma “infiltração”, que Trojan não é mais que um engenhoso artesão do crime, o indivíduo predileto para qualquer golpe, e aí, após sair da prisão, persegue quem lhe deve e avança no estratagema seguinte. Interpretado por Misel Maticevic, Trojan soa-nos uma figura retirada da caderneta de Mann, uma mistura de James Caan com um Robert De Niro amargurado. Homem de poucas palavras, ação economizadora, detido por um código de honra apenas equiparado à sua sobre-precaução. A liberdade não é sinónima de redenção, portanto, é procurar um novo “trabalho”, algo que lhe proporciona vida sem conduta alguma, sem compromissos sociais nem calabouços afetivos. 

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"In the Shadows" (2010)

Arslan é apaixonado pelo cinema de género norte-americano, não apenas o western do seu ensaio dourado que o evidencia, mas nestas paradas, reportando o romantismo dessa clandestinidade integrada nas personagens num conceito-cápsula de um neo-noir contemporâneo. Essa tal noite que parece abundar, e até mesmo o dia filmado sem nenhuma radiosidade, é a nocturnidade que se vende à soturnidade, e por si só ao laconismo da personagem que mote dá a “In the Shadows”, um autêntico aspersor, espalhando a sua aura ao longo da narrativa. Filme de fugas, de calculismos e de cauções. Crime manniano que nos oferece um pontapé de arranque para uma história de homens frios e desadequados.

Seguindo com “Scorched Earth” ("Terra Queimada"), Arslan mantém-se na palavra definidora da “prequela”, noite e ação sem grandes estrilhos. Nesta segunda parte, catorze anos depois (e isso nota-se na personagem de Trojan), continua-se como porto-seguro para os elementos que enraizaram em “In the Shadows”. Se procuram crime frenético ou do estiloso encanto, podem esquecer automaticamente. O que vemos, e o que se preserva é a sua contemplatividade. Trojan feito para mais um “heist” relatado sob paciente cadência e sem espectáculos gratuitos, confidencia-se para com o espectador essa aliança sombria. Tornamo-nos cúmplices, não em pactuar com o “criminoso”, mas em nunca encorajar a sua retirada em cena. 

O filme prende nesse tom, a tonalidade de um último golpe … talvez? Como também são as “fisgas” para que seja bem sucedido num “trabalho de quadros” com antagónicas trafulhices que funcionarão como conflitos. Por sua vez, é o filme em que Arslan cede, ou encaminha a audiência a tentar descodificar a humanidade por trás de Trojan, apontando constantes fugas para aquela fura-vida a que chama de existência. Sem “falinhas mansas” ou floreados morais, a noite novamente como manto de segredos e de atos de discreta violência, ao segundo filme se continua romântico na forma como este mundo nos colide.

Aguardemos o terceiro, e possível, final desta demanda sombria …

 

* "Nas Sombras" está disponível na plataforma Filmin [ver aqui], enquanto que "Terra Queimada" encontra-se em exibição nos cinema selecionados [consulte aqui].

Equus Ex Machina

Hugo Gomes, 19.08.24

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Em conferência de imprensa em Cannes deste ano [2024], Karim Aïnouz ligava a imagem do motel, brasileiramente falando, com a de um país hipócrita, cujos desejos, muito deles reprimidos só poderiam ser concretizado no refúgio destes lugares, com pouco contacto com o exterior, e sob o sigilo monetário. Será isto a sua representação de Brasil? Uma sociedade vivida com intensidade no oculto? 

Quanto a “Motel Destino”, o filme que o motivou a essa relação, é previsivelmente o encarar dessa metáfora, até porque o estabelecimento do qual título partilha com o filme, revela-se num abrigo “mágico” de Heraldo (o estreante Iago Xavier), que após um noite a tresandar sexo ocasional, acorda, algumas horas depois, roubado pela sua companheira de passagem. Incapacitado de pagar a estadia, pede auxilio a Dayana (Nataly Rocha), funcionário do local (e devido a sua relação com o proprietário, meia-dona daquilo tudo), e prossegue em modo relâmpago para a tarefa pedente, mas atrapalhada pelo lapso temporal. 

Heraldo, juntamente com o seu irmão, Jorge, tinham como plano assassinar um francês residido naquela cidadela cearense, como forma saldar a dívida para com a máfia local. Chegou tarde demais, e como era “esperado”, o francês continuava vivo e o seu irmão morto. A cabeça do nosso protagonista está agora a prémio, tendo como única solução regressar ao motel e pedir asilo. Durante dias, na sombra dos corredores que dão acessos às alas privadas, autênticas montras lascivas, sob olhar atento do gerente, e também esposo tóxico de Dayana, Elias (Fábio Assunção, ex-galã de novela, aqui cedido à decadência que lhe aufere um lúdico antagonista), Heraldo torna-se num “faz-tudo”, até cometer um (outro) erro na sua vida: envolver-se com Dayana

Com uma direção fotográfica assinada pela sua colaboradora habitual, a francesa Hélène Louvart (A Vida Invisível de Eurídice Gusmão e “Firebrand”), “Motel Destino” proclama um certo onirismo suado enquanto retrata aquele cerco agora criado para conter Heraldo e a sua tentação. Um interior que se vai confortando até ser, isso mesmo, o exterior como perigo iminente. Toda a vez que o nosso protagonista sai do seu recinto, tememos pela sua vida, da mesma forma que de fora para dentro, de clientes sarados a “fantasmas do Natal passado”, até aos acidentes animalescos (a cobra como carga simbólica bíblica evidente - “problemas no paraíso!”), tudo chega-lhe sob um toque de aviso ou sinal xamânico. 

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Aïnouz regressa aos guetos de mística e sexualidade ali reencontrados na encruzilhada do ilícito (“Madame Satã” como a sua maior auto-referência), ou dos desencontros, essa nova estância perdurante na sua filmografia, e cujo apogeu repousou na sua adaptação de Martha Batalha (A Vida Invisível, como esquecer?). Aqui, o desencontro não é uma traição do destino, mas antes uma sorte em que o espectador deseja prevalecer. “Motel Destino”, por outro lado, ostentando uma pobreza disfarçada, como pechisbeque se tratasse, com neons e cores obtusas cobrindo as suas limitações técnicas (mais um ponto para Louvart!), mas que nunca atingem a gravidade dramática ansiada por Karim Aïnouz

A culpa? Esta recai sobretudo na fragilidade do protagonista - Iago Xavier - isento de ferramentas performativas para abraçar a sua tragicidade. Há pelo menos dois momentos que a sua emotividade de jardim-escola retrai as ênfases e a dramaturgia que as cenas em questão suplica; uma delas na intenção confessionária do seu passado, algo trágico, não só à personagem de Rocha como também, indiretamente, ao espectador, sendo que a outra, lá mais perto do final, como o Auto da Barco do Inferno numa declaração de resiliente (“Nasci com um alvo no peito”) proclamado com frouxidão. A sua sorte, porém, como a de Aïnouz, é Rocha e ainda mais Assunção (com aquelas vibes à “pornochachada”) a assumirem-se reforços. 

Cai o pano, ou melhor, o cavalo (ao ver o filme entenderão!) e o que fica é um exercício de crítica social que vai em corrente oposta ao muito, e dito, “cinema brasileiro político”, este fraquejado pela sua sobre-literalidade. “Motel Destino”, como faz Kleber Mendonça Filho desde … sempre talvez … utiliza a sua geografia como holofote alegórico. É o motel como espelho do Brasil, esse país que Karim Aïnouz proclama encontrar. Um país a viver loucamente nas suas sombras, só que o tal "sombreado" ostenta tons carnavalesco. Bem haja …

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