Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Na Toca de Platão

Hugo Gomes, 10.07.24

STILL_ASTRAKAN_2.jpg

Astrakan 79 (2023)

Catarina Mourão, realizadora e documentarista cada vez mais citada após a aclamação de “A Toca do Lobo”, que - assumindo o tom de investigação, procurou o rasto memorialista do seu avô (Tomás de Figueiredo) - chega-nos, na presença de dois filmes estreados em modo pack promocional, como uma exímia artesã do espaço memória, esse a que o cinema português, nomeadamente na sua área documental, tem conquistado ou até mesmo colonizado através de ensaios e formatos inteiramente maleáveis, e outros nem tanto. O módulo tem encontrado sucesso entre o público resistente deste cinema tão nosso, a “culpa”, que não nasce nem morre solteira, teve como parte do cartório no passo, em jeito de um salto trazido, por Catarina Vasconcelos no seu “A Metamorfose dos Pássaros”, a busca da sua história enraizada num constante e inacabado exercício visual e artístico.

Com Mourão, nomeadamente com “A Toca do Lobo”, a elasticidade do seu artifício pouco sai do “arquivo”, das imagens encontradas e ali alinhadas ao serviço de eventuais interrogatórios, ora ternos, ora esclarecedores e, porque não, também eles crípticos. Daí se nota a sua bravura na descura, uma documentarista com voz, corpo e mente. Com estes dois trabalhos a tomar a sala de cinema como sua, distinguimos duas Catarinas Mourão no processo criativo, e no entanto, são diluídas numa só personalidade e num só método.

O primeiro (e com título que parece ter saído de uma música de Jorge Palma), “O Mar Enrola na Areia” (2019), soa-nos um poema visual de Mello Breyner, a ligação com o Mar presta vénia a essa despertada ligação, mas aparências iludem perante aquelas imagens vintage de convívios balneares em tempos salazaristas, apenas recortados por trechos, palavras, não escritas na areia, mas cujo papel nelas imprimidas higienicamente estabelecem um contacto, não só com o ambiente, como também com o arquivo ali amanhado e montado. É uma busca, como em “A Toca do Lobo”, de uma personagem que hoje vive enquanto lenda verbal. Trata-se do “homem do apito”, caminhante das praias do Estado Novo, de apito na boca e com uma relação ainda hoje por comprovar; há quem fale num sem-abrigo, ou num pedófilo, ou, embarcando na aura de mito urbano, numa espécie de “pai natal” do Verão, e, contudo, num papão. Os relatos de quem o viu ou de quem o presenciou, são esses intertítulos manuais com medo da chegada da próxima onda, eles estabelecem as diferentes visões quanto a esta figura inteiramente entregue a um folclore popular.

o_mar_enrola_na_areia_02.jpg__630x0_q85_crop_subsa

O Mar Enrola na Areia (2019)

Mourão “capturou” 30 segundos da sua presença em antigas bobines, só isso, o restante dos seus quase 15 minutos de duração faz-se pela ondulação de uma poesia imagética, algo nostálgica, de rostos encantados pelo mar e dos seus estados de espírito. Do silêncio trazido por este falso-filme mudo, corresponde-nos cognitivamente, e há que jurar que a sonoridade do batimento das ondas, o vento que sopra dunas acima, dunas abaixo, integra esta composição. É como ouvir um búzio e imaginar …

Já a sua longa-metragem - “Astrakan 79” (2023, ingressado na Competição Nacional do Indielisboa desse ano) - também lidando com mitos enraizados na cultura popular portuguesa, é, formalmente, um atalho para o seu regressar (talvez nunca tenha saído) ao cinema de pesquisa, mas é nos entretantos, sem nunca dispensar esse lado de “descoberta” e de “clarificação”, que resulta numa espécie de reconstituição artística em conjunto com um ato de esvaziar um baú arquivista. Permanece como um ensaio memorialista, até à sua segunda metade, um filme que parte de uma ideia, de uma fabulação, das doutrinas impostas por uma família militante comunista ao seu filho, Martim Santa Rita, e que a sua eventual experiência na União Soviética, em 1979 [Astrakan para sermos exatos], o mergulha num clima de desilusão quanto à “utopia” que lhe fora vendida desde cedo. A sua vivência por lá, assim como o seu retorno a casa, são descritos como temas tabus, engavetados e fechados a sete chaves. Com o segundo tomo, adquirindo um intimismo imediato pela presença do protagonista, 40 anos depois, relatando o que sucedera, e mais que isso, as consequências que tal viagem e percepção tiveram no seu seio familiar. 

Astrakan 79” é, inversamente a “Toca do Lobo”, a perda do fascínio familiar, que com o descortinar do seu mistério percebemos o quão presas, por vezes, estão a essas crenças instituídas, mantendo-se, ditatorialmente, como lemas de união entre eles, e cuja “diferença”, seja ela adquirida de forma for, é ostracizada. Família é nesses termos um regime, “fascista”, “censuratório”, imperando uma só vontade e pensamento. É comunismo soviético, como poderia ser outra ideologia, é a diferença política que antagoniza, e por um lado é valorização da política enquanto cerne de tudo e de todos. Catarina Mourão faz a sua “Metamorfose dos Pássaros”, num encantamento em gradual ruína. Com o seu quê de performativo, e a sua vontade de ir a fundo nos segredos só nossos.

Hollywood cantaria se soubesse cantar ... "One From the Heart", o sonho incompreendido

Hugo Gomes, 05.07.24

one-from-the-heart.jpg

If I could sing, I'd sing. I can't sing, Frannie!

Há uma pequena cena, daquelas que importância alguma têm para com o filme ou para com o seu discurso interior, na qual Hank (Frederic Forrest) lamenta ao seu comparsa de todos os sarilhos, Moe (Harry Dean Stanton), de que as “mulheres verdadeiramente não compreendem os homens”, enquanto vagueia pelas movimentadas ruas deste oásis babilónico que é Las Vegas, à procura da sua mais recente tentação. Parte dessa citação encontra-se na “mulher” indicada na confissão como uma entidade vaga, sem sexo nem orientação, e no homem, aquele com "h" pequeno para não se confundir com a espécie, premonição de um “homem incompreendido”, que se dá pelo nome de Francis Ford Coppola. O filme, para quem ainda não o conhece - a sequência retratada nada esclarece - é “One from the Heart”, hoje descrito pelo desastre que o envolveu, historiografado incessantemente até se tornar numa lenda, uma profecia amaldiçoada.

Julgo não valer a pena descrever esse mito de fiasco, lágrimas e desesperos, sonhos empobrecidos, daí dar origem a esse homem que poucos ou ninguém compreende. Mas cá vai um pouco de contexto: “One from the Heart” foi uma visão declarada do autor, um cineasta convencido de estar na penúria com o seu anterior “Apocalypse Now” - crónica febril da Guerra do Vietname com Joseph Conrad no coração, cuja rodagem, também lendária, custou caro a Coppola, mas foi minimamente compensada pelos elogios da crítica e prémios, como a Palma de Ouro no Festival de Cannes [ex aequo com “The Tin Drum” de Volker Schlöndorff], e alguns Óscares, nomeadamente o de Fotografia com Vittorio Storaro, que também teria um papel fundamental neste “Coração” … mas já lá vamos - adquire os velhos Hollywood General Studio e funda a sua Zoetrope, um delírio em trazer consigo a antiga glória dessa indústria, ou pelo menos uma sequela dessa, contrariando o percurso trazido pela chamada Nova Hollywood auto-declararia o seu óbito em 1980 com o estrondoso fracasso de “Heaven’s Gate” de Michael Cimino.

Tentou-se então o revitalizar o cinema de estúdio, estendendo um convite caloroso a cineastas de todo o mundo (temos conhecimento da também fracassada produção de “Hammet” de Wim Wenders), porém, a ideia de Coppola era impor um novo tipo de cinema, uma experiência que ele próprio auto-intitulou de “Cinema ao Vivo” (bem documentado no seu livro “Cinema ao Vivo e as suas Técnicas”, a tese que ‘sobreviveu’), cujo conceito envolveria a captação e transmissão simultânea das performances em tempo real, através de múltiplas câmaras e edição ao vivo, o que levaria a uma abordagem distinta e narrativa nessas mesmas histórias. 

filters_quality(80).webp

Um sonho idealizado, esmagado à primeira tentativa de Storaro - “Francis, porque temos de filmar com tantas câmaras? É tão difícil para mim iluminar. Se usássemos uma só câmara, podia ser muito mais rápido.” [tradução de Luís Lima e Alexandra João Martins]. Acabou por ceder, quebrando completamente a projeção deste “Cinema ao Vivo”, o qual restou apenas um esqueleto sem tendões dessa mesma ideia, o que convém salientar, é belíssimo essa sua “estrutura”.

One from the Heart” não caiu no goto nem da crítica, nem do público, “afundando” espetacularmente e conduzindo, aí sim, à ruína o projeto que era Zoetrope (600 mil dólares rendidos em território americano para 26 milhões em orçamento), um sonho lindo mas agora acordado. O filme, ao longo dos anos, tem sido revisitado e reavaliado até aos dias de hoje, agora sob o signo de “Reprise” (versão editada por Coppola, que pouco difere do original, exceto pelo seu ritmo nos primeiros momentos de filme), do qual é agraciado por uma tremenda consensualidade. Não vou para aqui desfazer consensos alguns, até porque a partilha apaixonada por este refúgio vem a mim desde os tempos de TV genérica, num encontro acidental. 

Anos passaram, agora tendo em conta que foram “a passo de corrida”, e uma característica da obra persistiu na minha memória cinéfila até à sua “desvirginação” em grande ecrã: o de como cada plano se metamorfoseia noutro, ao invés de dar lugar ao sucedido, e como as ações, que têm tanto de terreno como de onírico, partilham a tela numa posição utópica para com a compreensão do espectador. Por um lado, esses são os resquícios do dito “Cinema ao Vivo”, a história a acontecer organicamente, a narrativa a trabalhar como uma espécie de “cadáver esquisito” do momento. E com “Reprise”, explorei a fundo essa memória já longínqua e reencontrei esse filme que não é um filme, mas um truque de ilusão no seu sentido hipnótico e até acercado à nossa consciência.

284a3574fa75f65daa6d7678aa2b3718.png

One from the Heart” é a simplicidade unida à sua complexidade, uma contradição pois, mas deixem-me explicar: esse simples termo que é o seu enredo, um casal enfadado (o já mencionado Frederic Forrest e Teri Garr, atores reduzidos a estatutos de secundários, mas que com Coppola têm a oportunidade de brilhar) num subúrbio próximo da Cidade do Pecado, a.k.a Las Vegas, cujos néons, a sonoridade constante, os letreiros luminosos com indicação ao vício, paisagens de horizonte apenas opostas ao deserto de saguaros que o rodeia nos seus cantos e recantos. Ele, um mecânico que deseja instalar-se na confortabilidade de uma eventual vida familiar, ela, trabalhando numa agência de viagens, suspira por Bora Bora como outro lugar do mundo. Duas almas dessincronizadas quanto aos seus desejos que se deparam com a cidade que os chama incessantemente enquanto tentação. 

Cada um deles encontrará o seu personalizado carrasco: Raul Julia (ator que deixa saudades, é certo) a servir de bilhete de ida ao paraíso tropical, e Nastassja Kinski, a luxúria com o seu quê de inocência, a “mulher dos desejos” brindado com um lado circense (“If you wanna get rid of a circus girl, all you've gotta do is close your eyes.”). O galã mefistotélico e a sedutora de luxo, perfis vilânicos, porém, a nossa empatia por eles é conquistada. Portanto, é uma história de desencontros, de separação e, por fim, reconciliação, a mais convencional dos enredos hollywoodescos, jornadas pelo coração adentro mantendo-se a grande das epopeias, só que é na sua esquadria, a estética, o pensamento por detrás dela que este musical, com vista ao legado pesado do seu género, se depara com a sua complexa arquitetura. 

Passo, com um suspiro de admiração, pelos cenários de estúdio, em serviência à sua tradição, ergue-se uma Las Vegas replicada, com a sua plasticidade a entender-se com características à sua reprodução. Cenários para fascinar, com cores a condizer e em passagem convidativa, mas é essa estética que funciona como alicerce à narração, por entre raccords a improvisados split-screens, ou sobreimpressões de ações em paralelo, projetado com a funcionalidade do seu cenário ou do espontaneidade, um filme de artesãos e artesanatos, a capacidade de trazer os favoráveis tributos do teatro para essa peça de quotidianos fragmentados e do 4 de Julho faustosamente celebrado. A vida é uma festa, ou melhor, um carnaval, cuja festividade só amplia esse amor, algo saudosista, em trazer o artifício de uma Hollywood, até na altura já entendida como miragem.

ONE-FROM-THE-HEART_-REPRISE-From-director-Francis-

E é através desse “embrulho” que algo que nos soa tão comum, a separação de um casal, adquire o seu tom de espetáculo. A espetacularidade que a trata como o maior conflito humano, até porque como canta a dupla Tom Waits e Crystal Gayle (narradores musicais): “This One’s from the heart” … e é mesmo!

Uma ‘coisa’ que Hollywood nos ensinou é que até as suas derrotas conseguem ser encantadoras.

Revenge of the 80's e mais cultos. Arranca o 3º Screenings Funchal Festival com vénia ao cinema de género.

Hugo Gomes, 05.07.24

MixCollage-05-Jul-2024-04-32-PM-7638.jpg

"Dead or alive, you're coming with me!", proclama Peter Weller, ou melhor, Robocop na homónima obra-prima de Paul Verhoeven, enquanto, Roddy Piper, mascando pastilha e com a shotgun a postos, ameaça: "I have come here to chew bubblegum and kick ass... and I'm all out of bubblegum.", numa outra obra-mestra, desta com assinatura de John Carpenter. "They Live" e "Robocop", dois filmes que ilustram o frenesim da sci fi da década de 80, pouco pretensiosa e astuta como deve ser, tendo a violência e o humor corrosivo como brindes. São alguns dos exemplares que serão exibidos nesta terceira edição do Screenings Funchal Festival (do dia 5 a 27 de julho), que, de mãos dadas com o MOTELx, premiará a Madeira ao longo de um mês objetos de culto, ora extraídos da ficção científica dos anos 80, ora dos recentes trabalhos do género de terror com direito a holofote.

Pedro Pão, programador, foi novamente desafiado a apresentar-nos a iniciativa, os seus filmes, as suas representações e a possibilidade de futuras edições com arraial à mistura.

Segundo parece, foram 315 os filmes exibidos ao longo destes 7 anos que marcam a iniciativa Screenings Funchal, como se sente perante este número? Tem a sensação de legado? 

É um número jeitoso e que custa a acreditar porque arrancar com isto foi duro. Houve muitos entraves. Portas fechadas que deviam estar abertas e muita porta na cara. A insularidade por si só é tramada e aqui ainda temos algumas especificidades lynchianas que podem ser muito desgastantes e com as quais ou aprendemos a lidar ou desistimos. Eu ainda não aprendi, mas também ainda não desisti. Portanto, de certa forma, é difícil de acreditar, mas não creio que "legado" seja a palavra certa. A sensação que tenho é a de ter feito o melhor que podia (e sabia) com os meios disponíveis. E isso, o que finalmente começa a dar, é uma certa paz de espírito. E mais importante ainda é a sensação de que estas sessões são importantes para algumas pessoas. No final do dia, só isso importa, mas é um número muito bonito.

Este ano, o Screenings Funchal Festival terá como aliado o MOTELx, antes de partimos para a temática do evento, como aconteceu esta abordagem / parceria? 

A vontade de trazer o MOTELx ao Funchal começou na minha primeira visita ao festival em 2017. Aquele festival, com aquele público e ambiente, foi uma experiência que me marcou bastante e fiquei com muita vontade de trazer um pouco daquela magia ao Funchal. O cinema de terror por cá geralmente corre bem, mas acho que, apesar de estar melhor, há uma grande lacuna (até neste género) na diversidade das obras que estreiam aqui na ilha. A ideia andou a marinar desde então.

A6P2-4-678x381.jpg

Repo Man (Alex Cox, 1984)

Porquê ficção científica - terror, ou melhor, cinema de género? Como se seleccionou a programação?

Acho que a escolha deveu-se à riqueza e diversidade do cinema de género, das lacunas na oferta e é também uma tentativa de trazer público mais jovem ao Screenings. Tenho particular estima por este género e isso acaba também por influenciar as escolhas. Incluo com relativa frequência cinema de género na programação regular do Screenings Funchal. Recentemente exibimos o “Le règne animal”, “Les Cinq diables”, “Memoria” [Apichatpong Weerasethakul] entre outros e correram bem. Mas não foram bem sucedidos em atrair o público mais jovem que gosta e vai ao cinema ver este tipo de filme. Portanto, aproveitamos estas circunstâncias especiais, e preparamos uma “caixa” que lhes pudesse parecer apelativa (o terror e o sci-fi), para depois apresentar obras autorais o mais estilisticamente diversas possível. E tentou-se no processo, não alienar o público habitual.

Sobre a mostra de culto dos anos 80, continua a existir um diálogo destas alegorias / distopias com a nossa contemporaneidade? Estes filmes ainda funcionam perante um público moderno, e muitas vezes, mais sensível? 

Acredito que sim! Acho que nesta selecção o “They Live” é o melhor exemplo disso. O John Carpenter disse há uns anos numa entrevista que o filme não era ficção científica era um documentário. Basta pensar na pandemia para este filme parecer um documentário em vários e perturbadores níveis. Não sei o que poderá querer dizer que filmes futuristas distópicos feitos há quase 40 anos, estejam hoje a se aproximar do género documental. Mas espero que estes filmes também sirvam para pensarmos nisso.

E sobre a seleção infantil?

Toda a secção Lobo Mau do MOTELX é simplesmente incrível. Foi possível trazer ao Funchal o Sustos Curtos que eu acho particularmente mágico. Espero que haja curiosidade por parte dos pais, porque tenho a certeza que os miúdos vão adorar. Acho mesmo importante naquelas idades este tipo de experiências. É um investimento com retorno exponencial garantido.

Ambição para o futuro? O desejo de um ciclo de John Waters mantém-se?

Gostava muito de trazer o Paulo Carneiro e o Pedro Costa ao Funchal e tenho alguns ciclos em mente que gostaria muito de concretizar como por exemplo do Herzog… Mas como é que se escolhem só 4-5 filmes dele? O John Waters continua em cima da mesa. Festejar um aniversário com esse ciclo seria a festa de arromba que a Madeira merece. Adianto em primeira mão que quando isso se concretizar, a edição irá se chamar “Arraial Screenings Funchal”.

449633287_1057782199412454_7911958148224214551_n.j

Toda a programação poderá ser consultada aqui

Cinema - Lazarus

Hugo Gomes, 04.07.24

image-w1280.webp

O Estranho Caso de Angélica (Manoel de Oliveira, 2008)

O cinema existe então para responder a um desejo: ver a vida passar à nossa frente, entendê-la melhor, e vivermos redobradamente. Não seriam as palavras de Oliveira as de uma optimista sobre uma arte cuja morte foi decretada várias vezes? Se o cinema dá vida a tudo o que morreu, como Angélica , a discussão sobre aquilo que traz às nossas vidas nunca encontrou um fim. Todos gostaríamos de poder viver para sempre - nem que seja por uma hora ou duas para sentirmos uma amostra da eternidade. Será essa a razão para continuarmos a ver filmes?

Francisco Valente em “Espelho Mágico: uma história do cinema” (editora Orfeu Negro)

À procura de Fernando Pessoa, enquanto se acha Manuel Guimarães: uma conversa com Leonor Areal

Hugo Gomes, 03.07.24

OEOP-Assistencia-Repuplica2.jpg

Onde está o Pessoa? (2023)

Onde Está o Pessoa?” relembra, e bem relembrado, o jogo visual celebrizado mundialmente “Onde Está o Wally?”. Neste caso, trata-se de um ensaio audiovisual que se incorpora como um filme-documento sobre uma certa nata artística da capital portuguesa. Estamos em 1913, e à saída de um concerto que teve lugar no antigo Teatro da República, uma multidão apercebe-se que está a ser “espiada” por uma câmara do outro lado da rua. A reação desta, que vai desde o evidente desconforto, passando por brincadeiras, até ao pensamento de posterioridade, proporciona à estudiosa académica, realizadora e ensaísta Leonor Areal um delicioso jogo de “quem é quem?”, até que… zás… eis Fernando Pessoa!

Este loop de imagens de poucos minutos fez notícia por ser uma alegada captura do escritor de “A Mensagem” em movimento. Será mesmo ele, ou um sósia?

Leonor Areal conversou com o Cinematograficamente Falando … sobre este projeto, que faz parte de uma multi-plataforma em homenagem ao poeta – o Arquivo Pessoa – sobrando tempo para abordar “países imaginados”, Manuel Guimarães e os Saltimbancos nunca concretizados.

Gostaria que começasse por falar sobre este projeto, o Arquivo Pessoa.

Este projeto começou há cerca de 30 anos, desde que a ideia surgiu. Depois, levou alguns anos para ser realizado em CD-ROM. Desenvolvi-o no meu mestrado em Comunicação Educacional Multimédia e que converti em CD-ROM em 1997. Consiste numa base de dados de toda a obra atribuída a Fernando Pessoa até àquela data, e numa outra vertente mais de iniciação para leigos e estudantes, que é uma antologia guiada que depois se transforma num percurso labiríntico. Portanto, tem muitas ligações, porque a obra de Pessoa é labiríntica. Em 2008, esse CD-ROM foi transposto para a internet e é o que hoje está no site Arquivo Pessoa Net e Multi-Pessoa Net.

Mas de onde vem esse fascínio por Pessoa?

Estudei Literatura na minha licenciatura e, portanto, conheci a obra de Fernando Pessoa através das aulas e desenvolvi um gosto por ele. Acho que é difícil não se sentir atraído e fascinado por Pessoa, porque a sua obra é tão vasta e complexa que todos nós encontramos nela algo que nos toca, não é? E pareceu-me que o hipertexto, que na altura estava a emergir, era um instrumento de organização das ideias, das imagens e do pensamento em rede que se adequava perfeitamente à obra de Fernando Pessoa. Naquela época, estávamos habituados aos livros com uma estrutura linear, que não podem ser de outra forma. 

Ele mesmo explica que as suas ideias surgem em associações permanentes e iniciam caminhos que depois não consegue terminar, porque desses caminhos nascem inúmeras ramificações. Por isso, ele nunca conseguia terminar as coisas, porque as suas ideias proliferavam imensamente. Assim, pareceu-me que essa maneira como Pessoa descrevia o seu pensamento e a sua obra fragmentária era, especificamente, adequada ao hipertexto.

Com o auxílio das possibilidades de pesquisa de uma base de dados, construí aquela parte mais didática também como hipertexto, em que temos percursos lineares, como os percursos guiados, quando se conta uma história ou se apresenta um conteúdo. Mas depois, esses percursos cruzam-se entre si, e as ligações cruzadas estão lá feitas, de maneira que podemos saltar de um percurso para outro através de uma associação informada, indo de um para outro e, provavelmente, a certa altura, já estamos perdidos no labirinto da obra de Pessoa. Assim, construí essa parte como um labirinto, criando todo o sistema em torno da vastidão da obra pessoana.

Leonor-Areal.jpg

Leonor Areal

Gosto do termo "pessoano". Não sei quanto a si, mas quando olho para a Pessoa, reconheço o seu inegável génio, mas há qualquer coisa de conspiratório no seu percurso, como estivesse dependente e “e se”. No filme do Edgar Pêra, "The Nothingness Club", logo no início, é-nos informado que Pessoa poderia ter ganho o prémio Nobel se não fosse a guerra. Portanto, lanço esta questão; acha que hoje, apesar de ser tão estudado e reconhecido, Pessoa continua, de certa forma, incompreendido?

Não acho que Fernando Pessoa seja incompreendido; pelo contrário, acho que ele é cada vez mais compreendido. Até porque essa maneira de pensar, essa dispersão em que ele vivia, essa multiplicidade, até os vários heterónimos que são egos ou alter-egos. Nós hoje lidamos com isso como algo quase inevitável, porque acedemos à internet, começamos num sítio, acabamos noutro, perdemos tempo e deixamos coisas inacabadas…

Como os avatares?

Ele tornou-se de tudo: mítico, um autor projetivo, ou seja, alguém em quem as pessoas projetam as suas próprias ideias e sentimentos, que nem sempre são dele, e até um ícone. Hoje em dia, vemos Fernando Pessoa em camisetas, em objetos decorativos, até em sabonetes. Eu acho que ele alcançou uma notoriedade tão grande. Mas, quando vi isso, pensei: "Isto é tão superficial. O que é que Fernando Pessoa tem a ver com sabonetes?" [risos]. É apenas uma tentativa de vender um produto usando a sua imagem, um desenho com o sujeito de óculos e bigode…

Fernando Pessoa desprendeu-se do seu imaginário literário, tornou-se numa atração e por sua vez uma figura ficcional. Há pouco referia o filme do Pêra, mas também fruto de duas metragens de João Botelho [“O Filme do Desassossego”, “O Ano da Morte de Ricardo Reis”], de Eugéne Green, para além dos inúmeras obras literárias como a do José Saramago [“O Ano da Morte de Ricardo Reis”] …

Simplificadamente: Óculos, bigode e chapéu, e por isso, vendem sabonetes aos turistas. Só para dizer que ele se tornou, de facto, quase um gadget caricato. Até há bandas desenhadas, algumas até bem interessantes e uma quantidade de literatura e filmes sobre ele. Aliás, há uma revista chamada Pessoa Plural, se não me engano, dedicada ao estudo de Fernando Pessoa no cinema. Penso que está disponível online, por curiosidade. O cinema português, em particular, tem uma grande ligação a Pessoa.

Ele está no cinema, na literatura, e há imensos autores que se inspiram nele. Além de Saramago que bem referiu, temos também o Antonio Tabucchi, que escreveu "Requiem".

Que também virou filme …

Sim, Alain Tanner adaptou para o cinema … E há muitos outros autores, no fundo, ele é uma referência …

Sim, mas falo não só dessa adaptação à sua figura como também se separou da sua pele de escritor para se tornar numa figura ficcional em domínio público [risos]. Não sei qual a banda desenhada que se refere mas recordo de uma em que Pessoa era um espião numa das suas vidas duplas [“A Vida Oculta de Fernando Pessoa”, de André F. Morgado e Alexandre Leoni].

Há outra obra engraçada, uma banda desenhada do Miguel Moreira e da Catarina Verdier. Pessoa dá origem a uma quantidade enorme de obras que o questionam, interpretam, que o leem. No cinema, ele tem sido interpretado por vários atores, mas inicialmente adquiriu um aspecto mais grave, pesado e sorumbático. De certo modo, isso é reforçado pelos comentários das pessoas, que perpetuam essa imagem mais austera de Pessoa. Mas isso também tem a ver com os retratos fotográficos da época. Curiosamente, naquela altura, as pessoas não sorriam para os retratos, muitas vezes porque as fotografias eram tiradas em pose, e sorrir poderia resultar numa imagem tremida.

Isso porque o processo de fotografia era muito demorado?

Exatamente. Durante muitos anos, pensei que essa seriedade nas fotografias refletia a seriedade da sociedade da época. Depois, percebi que era devido à necessidade de ficar imóvel para que a fotografia ficasse nítida. Por exemplo, no caso das fotografias de rua, as pessoas muitas vezes eram capturadas em movimento, o que dificultava a obtenção de sorrisos. Temos muito poucas fotografias de pessoas a sorrir ou a rir, e o mesmo acontece com Fernando Pessoa. Não temos uma fotografia onde ele mostre os dentes ou sequer um sorriso. Isso nos transmite uma imagem de gravidade ou tristeza que talvez não corresponda completamente à sua personalidade.

10473325_848827891828507_1604010196257171688_o_770

Fernando Pessoa

Ou até tormento? A sua alma torturada é também mítica.

Sim, mas em relação a isso, ele queixa-se nas correspondências e nos seus poemas. Como toda a gente, ele tinha dias bons e maus, dias mais produtivos e criativos. No entanto, tendemos a congelar uma única imagem dele, uma imagem séria e grave. De certo modo, essa imagem se descongela com este filme, permitindo-nos ver outras facetas de sua personalidade.

Sobre este filme, as primeiras divulgações que tivemos através da comunicação social, foi o de alguém ter encontrado uma suposta imagem em movimento de Pessoa neste trecho. Portanto, começo por perguntar: como foi que o encontrou? Será mesmo ele, como o filme indica?

Sim, eu o encontrei porque fui à procura dele, sem saber que realmente o encontraria. [risos] Achei interessante que tantos homens daquela época se parecessem com o que hoje consideramos o ícone de Pessoa: chapéu e bigode. Todos pareciam iguais naquela altura. Como eu sabia que ele circulava por Lisboa e frequentava concertos, havia a possibilidade de ele estar ali, e igualmente a possibilidade de não estar, como tudo na vida. Fui à procura, pensando que essa pergunta seria interessante como ponto de partida para um filme ou ensaio que pudesse fazer a partir daquelas imagens.

Quando comecei a analisá-las, houve um momento em que o vi e tive aquele insight imediato: “É ele, pronto!”. Mas isso não bastava, tive que verificar e comparar. As fotografias de Pessoa não são muitas, mas os fotogramas desses segundos, cerca de 12 segundos, são muitos, talvez uma centena ou duas, todos diferentes porque ele se move. A partir do trabalho e da análise desses fotogramas, consegui verificar se os traços correspondiam às fotografias conhecidas dele.

Após muito tempo de dúvida, tive a certeza. Aquela certeza intuitiva inicial foi confirmada pela análise. No filme, demonstro isso. Claro que não mostro todo o processo de meses, quase um ano, mas destaco alguns pontos chave que permitem, com bastante segurança, afirmar que aquela é Pessoa. Claro que devemos sempre admitir a possibilidade de erro, mas estou bastante segura. Segura o suficiente para arriscar a minha reputação e dizer: "Acredite em mim, se quiser, eu estou segura."

Naturalmente, é normal que o espectador tenha dúvidas até aceitar a conclusão. Será difícil provar que não é Pessoa, porque se não for, é alguém igual a ele. E o que significa alguém ser igual a alguém?

Mas o que é curioso no seu filme, logo a começar pelo título - "Onde Está a Pessoa?" - é a proposta que apresenta. Ao longo do filme, antes de irmos diretamente a Pessoa, codifica aquela nata artística que saía daquele espetáculo, que atualmente é o Teatro São Luiz, mas que antes se dava pelo nome de Teatro da República. Ou seja, o filme não é apenas um dispositivo para encontrar Pessoa, mas também é quase uma reflexão sobre a elite artística da época. Eles praticamente conviviam e mantinham relações próximas, pelo menos de homem para homem.

Sim, aquilo era o centro de Lisboa, era a comunidade da Brasileira. Todo mundo sabia que os intelectuais se encontravam na Brasileira [café lisboeta]. Era lá que eles trabalhavam, mesmo vivendo em outros lugares da cidade. Todo mundo passava por lá, era o ponto de encontro. Naquela época, Lisboa recebia influências do comércio e da cidade, mas comparada aos dias de hoje, era relativamente pequena. Ali era o coração da capital, onde as pessoas se encontravam.

Se havia um concerto especial ao domingo, como música sinfónica, quem tinha uma certa cultura ou frequência habitual desses ambientes certamente ia. Talvez não houvesse muito mais além disso. Talvez teatro, e já havia os animatógrafos, onde se passavam peças curtas. Então, era natural que eles se encontrassem na Brasileira.

OEOP-Assistencia-Republica1.jpg

Onde está o Pessoa? (2023)

Aliás, o concerto que aparece no filme foi um evento esgotado, muito disputado. Para reconhecer as pessoas, precisei fazer um trabalho meticuloso de pesquisa em documentos antigos, revistas como a Ilustração Portuguesa, revistas musicais, biografias, fotobiografias e sites, procurando pessoas que viveram em Lisboa naquela época para verificar se correspondiam às imagens que encontrava. Foi um trabalho que também dependeu de insights.

Por exemplo, por vezes folheava uma revista e de repente via uma ilustração que reconhecia, associando-a a uma pessoa que conhecia da vida real ou do filme. O inverso também aconteceu, procurando no filme pessoas que eu conhecia. Assim, foi um processo que se estendeu ao longo de meses e anos, porque mesmo depois de terminar o filme na forma atual, continuei a descobrir mais pessoas e informações.

Há mais pessoas para além daquelas que apresenta no filme? Descobriu mais alguma após terminar o filme?

Há mais uma coisa. Por exemplo, fiz algumas descobertas depois de terminar o filme (porque os filmes não podem ser feitos e refeitos), o que é um trabalho contínuo e exigente. O percurso não termina com o filme, ele continua.

Quanto ao filme, já descobri muitas coisas. Por exemplo, encontrei a Florbela Espanca, que na altura não a identifiquei. No entanto, um espectador que saiba disso hoje poderá possivelmente identificá-la quando ela aparecer.

Julgo ter lido Florbela Espanca nos exemplos dados no press release do filme, mas não recordava de a ter visto.

Pois é, mas isso faz parte das conversas, não é verdade? Posso dizer onde a Florbela está. Talvez se lembre. Há um momento no início em que digo: "O casal feliz.”, é ela. Eu estava atenta, mas é verdade que não esperava descobrir todos esses famosos. Para mim, eles eram todos anónimos, como qualquer multidão, seja hoje ou em outra época. Estava mais curiosa para entender o comportamento das pessoas diante da câmara, como elas se mostram interprerlativas. Queria capturar esses momentos de vida entusiástica. Depois, aos poucos, foram surgindo os famosos que encontrava. O primeiro que tocou particularmente no meu percurso foi o António Silva. Foi o primeiro que vi.

Sim, o homem fardado!

Bombeiro, de fato. Então, vejo o homem com aquela farda e penso: "António Silva!”. Volto atrás, exatamente como fiz na minha investigação, quase da mesma maneira como as coisas aconteceram. Claro, tive que condensar um pouco.

É curioso ver no seu filme, a relação das pessoas, desta época, em relação a uma câmara. Hoje a nossa interação é completamente diferente …

Sim, comportavam-se como crianças …

Exato …

Isso suponho que tenha a ver com a novidade que era uma câmara a filmar pessoas na rua. Hoje em dia, ninguém pararia para ver ou até...

Hoje, a maioria evitaria a câmara …

Naquela época, a novidade por si só devia ser suficiente para deixar as pessoas fascinadas. Quando as filmagens eram feitas, o que não era muito frequente, era costume apresentar esses filmes nos animatógrafos ou em outros locais. Provavelmente as pessoas que estavam presentes eram filmadas sem saber exatamente para quê, mas esperavam ansiosamente para verem a si mesmas na semana seguinte.

Estas imagens datam do ano 1913, décadas depois do primeiro “filme” português …

Sim, o realizado por Aurélio Paz de Oliveira em 1896 [“Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança”]. Naquela época [em 1913], ocasionalmente viam-se filmes estrangeiros, além de curtas-metragens, onde as pessoas iam principalmente para ver aquela ‘coisa’ espantosa que era a imagem animada. O cinema naquele tempo encantava e intrigava, assim como hoje a inteligência artificial nos intriga. No entanto, hoje em dia temos que lidar com ‘coisas’ que nos assustam, talvez, a mim assustam um pouco.

Havia uma sensação de novidade naquela época, era isso que queria dizer. As atitudes das pessoas podem revelar ou refletir isso. Embora muita coisa daquela época já não se consiga explicar exatamente, pois eram filmes mudos, e por isso, nós não sabemos o que as pessoas diziam. Estou à espera de que alguém com dotes de leitura labial me possa ajudar a decifrar.

maxresdefault.jpg

Nasci com a Trovoada: Autobiografia póstuma de um cineasta (2017)

Saímos agora do filme … poderia-me falar um pouco sobre “Cinema Português - Um País Imaginado”, o seu livro-tese?

Então, esse livro, que foi publicado há aproximadamente 12 anos, foi baseado na minha tese de doutoramento, concluída cerca de 14 ou 15 anos atrás. Ele realiza uma análise abrangente de um período da história do cinema português, geralmente situado entre 1950 e 1980, com algumas variações devido à natureza fluida do tempo, da história e da vida em geral. Para efeitos metodológicos e para concluir a tese de maneira robusta, foi necessário estabelecer limites claros.

O livro tem como corpo somente as longas-metragens de ficção ambientadas na contemporaneidade, refletindo o mundo atual, e não em filmes históricos. Além de analisar as representações gerais, explora os temas e o contexto cultural desses filmes. Examina como Portugal é retratado ao longo do tempo e como esse retrato evolui nas produções cinematográficas. Não se restringe apenas a uma análise das representações, mas também investiga a evolução do cinema em si, a sua linguagem e estética, o que reflete diferentes maneiras de pensar e de ver o mundo.

Vim cerca de 200 filmes integralmente para conceber essa tese. [risos]

Essa relação com o país que estamos a ver, e com o mundo, é muito interessante. Você realizou um filme chamado "Nasci com a Trovoada: Autobiografia póstuma de um cineasta", sobre Manuel Guimarães, realizador com uma visão muito ligada ao neorrealismo da época. Poderia-me falar sobre esse filme como também sobre Manuel Guimarães, que me parece um cineasta que, por mais tentam resgatar a sua obra, nunca conseguem plenamente.

Mas há muita gente hoje em dia que aprecia o Manuel Guimarães! E eu os aprecio bastante [os filmes]. Eles têm sido revisitados ao longo do tempo. Houve um período nos anos, se não me engano, 80 ou 90 … talvez nos anos 90 [em 1997], em que a Cinemateca fez um ciclo dos filmes do Manuel Guimarães, exclusivamente dedicado: "A Travessia do Deserto", um título muito adequado. Essa foi a travessia que ele enfrentou nos anos 50, quando tentava fazer cinema interessante tanto socialmente quanto cinematograficamente, mas enfrentava a censura e a falta de recursos. Mesmo assim, ele conseguiu produzir algo significativo.

Por outro lado, ele faleceu em 1975, após a Revolução. Por isso, a sua sequência de carreira não se deu como esperado. Mais tarde, começaram a surgir os DVDs, uma coisa mais recente, talvez nos anos… 2009, 2010, mas posso estar errada em relação às datas.

Não estou a duvidar da sua dedicação a Manuel Guimarães, sei fez curadoria à exposição [com pesquisa de Carlos Braga, Miguel Cardoso e Rafael Prata.] que aquando no mais “recente” ciclo do cineasta na Cinemateca [em 2015]. O que refiro é este esquecimento que parece ainda envolver Guimarães, por exemplo, deu-se um gesto de reavaliação de António Macedo que parece, hoje em dia, ter dado frutos em relação à sua deixada obra.

Devo dizer que fiz um grande esforço para recuperar Manuel Guimarães, pois acredito que era um bom cineasta e que, se a sua obra não é perfeita, foi devido às condições adversas e às lutas que teve de enfrentar. Todos os seus filmes foram censurados, exceto o último [“Cântico Final”, 1976], que não foi cortado, mas que ele não conseguiu terminar porque morreu. A obra é um reflexo de uma vida difícil, e considero isso de grande valor. O que restou das suas intenções ainda possui qualidade, apesar de tudo.

Tenho uma teoria, que não posso comprovar, mas acredito que existe uma certa rejeição a Manuel Guimarães por ele ser visto como comunista ou esquerdista. Ele, de facto, tinha afinidades com os neo-realistas comunistas, como Alves Redol, por exemplo, e com Manuel da Fonseca.

Ele tinha desejo de adaptar a “Seara de Vento” do Fonseca, certo?

Sim. Ele tinha um projeto de adaptar o livro, que nunca chegou a realizar. Projetos havia muitos naquela época terrível. Hoje em dia também há muitos projetos; embora os tempos não sejam tão terríveis, continuam a ser desafiantes, de uma forma ou de outra. Faz parte do sonho, no fundo. Em vez de vermos isso como obstáculos, devemos ver como sonhos. Era o que Manuel Guimarães fazia. Ele usava, aliás, muito essa palavra, "sonho".

A mim, parece-me que existe um preconceito, uma rejeição inicial por ele ser esquerdista ou por estar associado a isso. Não sei se é, mas é o meu palpite.

njswdioktp.webp

Saltimbancos (Manuel Guimarães, 1952)

Mas em relação ao seu documentário - “Nasci com a Trovoada”?

Então, esse filme era um projeto do Manuel Guimarães, que ele queria realizar como filme autobiográfico. Nos seus documentos, que listava os filmes que pretendia fazer e sobre os quais falava em cartas aos amigos, havia alguns esboços. No início, não escreveu sequências e planos, mas redigiu algo que corresponde a uma voz off, uma voz interior na primeira pessoa.

Utilizei esses documentos e outros materiais pessoais dele, além dos seus filmes, para construir essa autobiografia póstuma. Portanto, é uma falsa autobiografia, mas como é tudo feito com materiais dele, fui muito purista: tudo o que está ali é Manuel Guimarães remixado por mim.

E o que é feito desse filme?

Não consegui distribuir o filme nem que a televisão o passasse. E acho que a RTP tinha a obrigação de passar um documentário que é sobre o cinema português, como tem passado tantos outros. Tinha essa obrigação moral e estatutária, digamos, de serviço público, de passar filmes portugueses, especialmente os que são sobre a nossa história e cultura. A RTP deve isso ao cinema nacional.

Foi dado algum motivo a essa rejeição?

Houve muitos emails de um lado para o outro, conversas e negociações. Chegaram a dizer que sim, mas o sim nunca se concretizou. Acabei por desistir, de certo modo. Desisti de insistir ou de persistir, mas tenho o filme disponível para quem quiser ver. Para divulgar o filme, gosto de mostrar aos interessados.

Mas voltando à reavaliação de Manuel Guimarães, falou-me do seu quadrante político-ideológico, mas também se associa a fraca adesão do público português ao seu trabalho pelo facto de os anos 50 terem sido uma década difícil para o nosso cinema. Guimarães começou nessa altura a dar os primeiros passos na realização e fez isso lindamente com "Saltimbancos", três anos antes de "La Strada" de Fellini.

Já que menciona isso, é interessante que recentemente escrevi um ensaio onde li e analisei os projetos de filmes do Manoel de Oliveira, aqueles que ele teve nas décadas de 1930, 1940 e 1950, mas que não pôde realizar. Todo esse espólio está atualmente disponível na Casa do Cinema no Porto e fui lá consultar esses guiões. Há um deles que se chama "Saltimbancos", que li atentamente e comparei com o filme do Guimarães.

Esse projeto é de '44 ou '45, não tenho a certeza, mas esse meu texto já está publicado. Para além desse guião, tem planificação, orçamentos, tudo mesmo ‘preparadinho’, só que o filme nunca foi realizado. Era um projeto muito duro, muito neorrealista antes do tempo, e com muitas semelhanças na crueldade humana retratada em “La Strada” de Fellini, lançado 10 anos depois. É impressionante.

Isto é durante a Guerra que ele faz este projeto, portanto, são formas de olhar para o mundo e de construir uma visão, uma história dentro desse mundo, com preocupações, neste caso, acerca da sociedade, do tratamento dado às crianças e da vida errante e difícil dos saltimbancos.

exposicao-manoel-de-oliveira.jpg

Manoel de Oliveira

Falava-se disso na época nos jornais, e, por volta de 1945, surgiu o romance "O Circo" de Leão Penedo, que depois foi adaptado pelo próprio escritor para o "Saltimbancos" de Guimarães. Portanto, na mesma altura, havia um escritor em Lisboa e um cineasta no Porto a abordar o mesmo assunto. Além disso, existem representações de "Saltimbancos" na pintura, embora não se saiba se essas datam da mesma época. Às vezes, há ideias que andam no ar, são preocupações comuns. Fellini, mais tarde, em outro contexto, também abordou temas semelhantes.

Só para concluir sobre Manuel Guimarães, fiz aquele documentário ”Nasci com a Trovoada” apenas com materiais de arquivo. No entanto, também realizei cerca de vinte entrevistas com pessoas que trabalharam com Manuel Guimarães. Se não tivesse encontrado o arquivo na Cinemateca, teria utilizado apenas as entrevistas, mas não consegui juntar ambos os elementos. Assim, metade do filme das entrevistas está montado, enquanto a outra metade aguarda há 10 anos. É isso que pretendo fazer a seguir.

Receita de iscas sem nenhum amor para dar

Hugo Gomes, 03.07.24

emma-stone-kinds-of-kindness.webp

Por entre distopias desenfreadas e pratos esquisitos, Yorgos Lanthimos rumou para os EUA com o propósito de conquistar, não o agrado consensual, e sim, a repugnância enquanto espectáculo, garantindo essa formulação nos mais diferentes quadros, seja performativo, temático, visual ou até moralmente.

Entre ganhos e perdas, o ódio ao realizador grego tem sido a sua combustão, o seu presente envenenado ao espectador, que hoje lida com o desastre e mesmo assim recusa desviar o olhar. Nesse sentido, Lanthimos fala para nós, para a nossa sociedade, e dentro desse ramo dos assumidos provocateurs, sempre pontuado por produções excêntricas, conjuga um trabalho eficaz em captar audiências largas com um elenco estrelado (o isco à sua bizarria), muitos deles atores movidos pela atração de transfigurar os seus papeis-tipo, daí Emma Stone ser a sua “musa” nos últimos filmes (como também a estranha 'dançante' a todo o serviço).

Depois de algumas coroas de flores atiradas ao palco com “Poor Things”, adaptação de um livro de Alasdair Gray, Lanthimos prossegue em sociedades vis e disformes, conjuradas da sua realidade neste encontro antológico de três “contos” que tão bem transluzem os limites da devoção (regresso à colaboração com o argumentista conterrâneo Efthimis Filippou). Para isso, recorre a um elenco parcialmente fixo: Emma Stone, novamente, emborcada e de olhos vítreos, embriagados, a servir das três a raiz dos problemas, e no outro canto Jesse Plemons (tão sósia de Matt Damon) a concentrar-se em protagonistas de difícil empatia.

São “histórias de bondade”, como assinala o título em português com muito sarcasmo embrulhado; a história de um homem sem autonomia na sua vida, a de um marido que não reconhece a sua mulher retornada após dias desaparecida e de devotos de um culto qualquer que procuram uma espécie de messias. Três narrativas que exploram os devaneios de Lanthimos, no encontro indigesto das suas primeiras narrações - pontuados na sua frieza e, sobretudo, estranheza - são igualmente retalhos aparentemente sofisticados no sentido formal. A primeira, intitulada “The Death of R.M.F.”, é um abraço apertado às estéticas kubrickianas, essa demanda que Lanthimos inveja, aqui, olhando de soslaio às margens de “Eyes Wide Shut”, com o seu protagonista a pavonear por territórios estranhos que não lhe competem, um conto de devoção ao Poder, desse encarregado 1%, a “minoria” dominante segundo a lógica das hierarquização social.

Contrastado com a imperatividade da Família (a próxima devoção) no segundo trecho - “R.M.F. is Flying” - de contornos shyamalanianos e cuspidelas a sentimentos pasolinianos. Já no terceiro - “R.M.F. Eats a Sandwich”, é a Religião devota que comanda, sendo do tríptico o mais desengonçado esteticamente, onde se nota a clara ambição de Lanthimos em regressar ao seu estilo desconcertante dos trabalhos gregos. Os três, sempre embebidos num humor ácido de negritudes plenas, não escondem esse sorriso trocista do realizador em desafiar o espectador do seu conforto (rimos, muitas vezes embaraçosamente, do próprio embaraço ou da tragédia destas personagens sem um pingo de compaixão).

Não é "cinema confortável", está evidente, mas tem iscas a acompanhar um prato longe da iguaria, longe da calorosa refeição doméstica, uma mixórdia fria, descontente, disfuncional, concretizada através das sobras encontradas no frigorífico, algumas das quais expiradas, apenas 'disfarçadas' com temperos ativos. Existe, e daí ele não conseguir desenvelhiçar, um sentimento de “projetos na gaveta”, atados e vendidos como antológicos. A experiência dá-nos pouco, para além da provocação sobre a provocação.

Pág. 3/3