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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Malditos domingos! O que fazer com vocês e com as vossas criaturas?

Hugo Gomes, 20.07.24

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Arthur Mersault, a emblemática personagem do romance de Albert Camus - “O Estrangeiro” - constantemente declarava a sua irritação, ou melhor, ódio, pelo domingo. A somente existência provocava a sua celeuma, uma quase maldição, que coincidindo com a sua natureza algo passiva, “abraçava” no tormento da sua inevitabilidade. 

Simpatizo com essas dores, até porque os domingos me tornam igualmente numa pessoa inconsolável, um sintoma quase patológico, e previsivelmente ao deparar com um filme que se apropria do pior cenário possível - um domingo eterno. Mas calma, não é nenhum “Groundhog Day”, nem uma variante dessas narrativas de dias em loop, pudera, porque imaginar a convivềncia de um domingo para o resto das nossas eternidades seria um pesadelo, autêntico e desesperante. É sim, uma primeira obra com o apadrinhamento de Wim Wenders sobre três jovens que vivem à luz da sua inconsequência, o domingo permanece como o dia sem programa, longo a sua deambulação ou improviso. 

Una sterminata domenica” é o seu título, Alain Parroni o seu realizador - e estranhem-se, um dos três argumentistas - deste, do qual é descrito, um choque geracional e confronto rural e citadino, com Roma, a cidade eterna, ali ao lado, e o campo decadente do outro, sem bucolismos é verdade, só ruína, física como moral. É uma daquelas histórias de juventudes traídas, defraudadas pelo destino e portanto longe da empatia, só que com isso posso eu bem, de jovens longe das nossas sensibilidades o cinema é pleno. Os zero em comportamentos da vida deram-nos saltos formais e de linguagem cinematograficamente incríveis [“400 Coups”, de François Truffaut, a “Kids”, de Larry Clark, é só escolher], ou até despertaram em nós um certo sabor proustiano, seja o ‘gozo’ do último dia de aulas [“Dazed and Confused”, de Richard Linklater], seja da fuga enquanto sonho húmido a tresandar pelo lascivo [“American Honey”, de Andrea Arnold] e depois existe o vazio, não a demonstração do vazio nessas existências (Harmony Korine sabe fazer isso bem e de bom grado), mas o vácuo seja estético, narrativo ou até naquilo que “Una sterminata domenica” fornece de mão cheia, “maliquices” carregadas de hiperatividade videoclippeira, ou … visto os tempos serem outros, a linguagem despojada do caseirismo que as redes sociais nos trouxe com afinco nesta sociedade em serviência.

Depois a fornalha: estes jovens sem alma, encarregados de estabelecerem-se enquanto figuras-choque, funcionais vítimas de um futuro incerto, de um passado besta e de um presente recheado de decepções em todos os seus esporos, mas também são elas, as personagens fúteis onde a sua futilidade não é de todo uma crítica construtiva (o filme não tem esse miolo), mas um factor do seu embelezamento. Vencedor da secção Horizontes do Festival de Veneza, Alain Parroni demonstra que sabe filmar o céu num determinado plano picado, mas que não sabe de todo o que fazer com esta juventude de meio tostão. É o recorrer ao realismo simulacro, com um efeito encantatório que o envenena, e esquecer do seu cenário, do seu contexto sócio-político, ou outro elemento que não traria esta “viagem” em vão.  

Tal como os domingos, meios-dias de um raio que têm um efeito doentio sobre mim, este filme parece condensar algumas dessas propriedades com vigor. 

Catarina Ruivo: "Quando a minha avó morreu quis salvá-la, e filmá-la pareceu-me a única solução."

Hugo Gomes, 19.07.24

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Na sua quarta longa-metragem, Catarina Ruivo (“André Valente”, “Em Segunda Mão”) decide capturar o vazio e, nele, encontrar uma figura familiar: a sua avó, uma presença que considerava sua e que o destino levou aos 92 anos. 

Surpreendeu-se com essa perda, mesmo que a idade avançada sugerisse o contrário; a vida que transbordava dela dava sinais opostos, contudo, através dessa existência encantatória, Ruivo decidiu conceber um filme em sua homenagem. Durante esse processo, encontrou uma avó que desconhecia: uma avó antes de ser sua avó, uma mulher cujas aventuras, desvendadas por meio de cartas e fotografias, revelam a protagonista de um "épico". O épico de Catarina Ruivo, “A Minha Avó Trelotótó”, é um documentário-ensaísta que condensa uma vivência que, por mais ingrata que seja essa ideia de redução, encontra aqui o seu devido palco.

Catarina Ruivo aceitou o desafio de Cinematograficamente Falando... e respondeu às seguintes questões envolto desta obra sua que estreia nos cinemas portugueses, cinco anos depois de ter sido premiado no Indielisboa

Começo pela seguinte questão: como se filma a ausência? 

Neste filme, parti da ideia de que a ilusão do real no cinema é tão forte que ao filmar a  ausência de um corpo, tornando visível o espaço que ele ocupava, consigo não só filmar a  dor dessa ausência, mas também, materializar um ser, fazer existir um fantasma.  

Considera este filme uma homenagem à sua avó ou uma representação do vazio  humano? 

Quando a minha avó morreu quis salvá-la, e filmá-la pareceu-me a única solução. Não queria fazer um documentário sobre a minha avó, mas fazer um filme com ela. O que  me propunha fazer era filmar um fantasma para depois o devolver ao reino dos vivos, como Orfeu tentou com Eurídice. Criar um mundo onde ela pudesse continuar a viver 

Depois de terminado o filme, consegue me dizer quem foi a sua avó? O que descobriu dela que estava fora do seu radar? A pessoa que conheceu é a mesma com quem terminou o filme?

No sótão de casa da minha avó encontrei uma arca cheia de cartas suas e do meu avô, que  morreu jovem e que nunca conheci. Cartas para os pais quando foi viver para Moçambique com o meu avô em 1946, cartas de amor, cartas para mim.  

Descobri uma nova intimidade com a minha avó. Conheci a minha avó com vinte, com trinta anos, quando ainda não era avó. Através das suas cartas conheci a Julita e via-a  envelhecer. 

Gostaria que me falasse sobre algumas questões estéticas, as fotografias e a sua importância memorialista, acima do seu lado arquivista, obviamente. 

Gosto das fotografias, da forma como cristalizam um instante. A minha avó fazia álbuns que  construía como um romance, uma biografia, e onde muitas vezes colocava legendas com  pequenas histórias, pelo que parte do trabalho já tinha sido feito por ela. A ideia de fazer bonecos de cartão a partir de fotografias e colocá-los em cenários naturais, brincando com a perspectiva, surgiu das bonecas de cartão que existiam na minha infância a quem podíamos vestir diferentes fatos também eles feitos de cartão. 

Sobre a utilização dos não-atores, ou melhor das pessoas que conheceram a sua avó e que no filme interpretam elas próprias como se ela estivesse viva?

Fiz este filme para salvar a minha avó e em troca este filme salvou-me. Trabalhar com quem nunca tinha feito cinema, fez-me descobrir novamente o cinema e devolveu-me intacta a minha vontade de filmar, que julgava perdida.

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Rita Durão é uma atriz que tem sido recorrente na sua filmografia, o facto de  emprestar a sua voz para a narração atribui algum sentido de familiaridade ao seu filme? 

Nunca filmei sem a Rita, e quando tive que pensar quem seria a voz da minha avó não  pensei em mais ninguém. Quando gravámos a sua voz a ler as cartas não o quis fazer como uma voz off no sentido tradicional do termo, queria trabalhar com a Rita como actriz, criar uma personagem, fazer um trabalho de composição, como num filme de ficção. E quando oiço a Rita sinto que conseguimos, sinto a sua voz envelhecer e mudar ao longo do  tempo. 

Porquê só agora a sua estreia em sala, cinco anos depois do Prémio no Indielisboa?

Só agora, com a ajuda do Gustavo Scofano e da Catarina Almeida, conseguimos que o  filme chegasse às salas, o que me deixa muito feliz pois os filmes só existem quando são  vistos. 

“A Minha Avó Trelotótó” é a sua última longa-metragem até então, encontra-se a preparar mais alguma? Tem novos projetos?

Em 2020 filmei uma curta-metragem, “Boa Noite”, que espero vir a estrear e estou neste  momento a filmar uma nova longa-metragem de ficção, “Como é que te aguentas”.

Rajadas de 1996 com saudade ...

Hugo Gomes, 18.07.24

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Um dos grandes sucessos de 1996 - com a tutela de Steven Spielberg e um pós de prilimpimpim de Michael Crichton - “Twister”, disaster movie com uma essência de “monstro da semana”, provou em si ser uma espécie de “filho perdido” de um formato blockbuster hoje em desuso. Dirigido por Jan de Bont (a sua melhor obra desde “Speed”, o resto foi catástrofes atrás de catástrofes, e refiro ao sentido qualitativo do que temático), o filme explorava um epifenómeno americano; de tornados a um bando de “caçadores” por aquelas planícies tão típicas, com Helen Hunt e Bill Paxton a funcionar como “star couple” e um elenco secundário que ia desde Todd Field (sim, o que viria a ser o realizador de “Tar") e um Philip Seymour Hoffman a provar como o mais delirante dos extras. Nada contra, apenas um suspiro de saudade após recordar esse êxito de tela e de home vídeo (aquela espera interminável que dava uma segunda vida aos filmes). 

Vinte e oito anos depois, com Hollywood sem saber o que fazer - nós respondíamos ao dilema mas os investidores apenas dançam à vontade dos espectadores e dos números arrecadados na primeira semana de estreia - elaboraram aquilo que é um "três em um" (sequela / remake / produto de legado), de forma a conseguir uns milhões com o auxílio do saudosismo. “Twisters”, acrescenta-se o “S” no plural, é uma produção do nosso tempo com todas as malhas que acarreta-o, de igual maneira que o filme de Jan de Bont (aqui apenas como produtor) é do seu, a saudade é apenas um efeito, mas não fiquemos ingénuos perante o medo das acusações de “velho do Restelo”, até porque este novo projeto nos “corredores” propícios a tornados e das categorizações que alimentam um culto pequenino, é, ao contrário do primeiro, um estapafúrdio, de CGI mais evidente e com tendências a asserto políticos e ativismo climático (mesmo que tal não seja dito com “todos os dentes”). 

Isto torna “Twisters” em algo nada especial no panorama atual, mesmo jogando no seguro e dos actos aristotélicos do tão batido conceito de “storytelling”. Até o elenco é pouco inspirado e expressivo, uma possivelmente nulidade se não fosse o Glenn Powell e o “power” estrelar emanado, o qual muitos dos meus colegas têm defendido sob a lógica do carisma perdida da Hollywood clássica. Talvez sim, o ator detenha essa personalidade transbordante da tela que parece faltar a muitos dos seus colegas nesta Hollywood contemporânea, e salienta-se, o seu lado gingão e folião que o converte num “novo namorado da América”, ventoso o suficiente para “abanar” a dita protagonista, esta interpretada por Daisy Edgar-Jones (“Fresh”), que tal como a Helen Hunt da versão de Jan de Bont, são mulheres de “mangas arregaçadas” e com bagagem trágica. Só que no caso da personagem Edgar-Jones a uma cedência quase cega a esse lado negro que a impede de emancipar-se, enquanto que Hunt (apelido perfeito!) “caça” esses ventos destruidores da mesma forma que o seu luto, com entusiasmo e sem compromissos-reféns. 

Twisters” é sopro fraco aos alicerces do entretenimento hollywoodesco de hoje, produção adinheirado sem consequências nem agressividade para se estabelecer algo mais do que um futuro clássico do Canal Hollywood. E … espera aí!! Lee Isaac Chung?! O realizador do “Minari” assina isto?! Esperávamos mais de ti, rapaz!

"Yupumá", atrás de um movimento onde a "alegria é a resistência": conversa com Verónica Castro e Kawá Huni Kuin

Hugo Gomes, 17.07.24

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Yupumá (2024)

Era uma vez uma antropóloga na terra dos Huni Kuin, seguindo os preceitos estabelecidos pela antropologia de campo. No entanto, Verónica Castro tinha ambições diferentes; com uma câmara na mão, decidiu realizar um filme. O que poderia ter sido apenas mais um retrato do povo indígena amazónico revelou-se, nas suas palavras, um movimento. Tudo começou com a abordagem de Kawá, um aprendiz de pajé (curandeiro da aldeia), que lhe confidenciou um sonho que teve na noite anterior: viajar e conhecer a Europa. Esse sonho rapidamente se transformou num pedido - "Leva-me para a Europa".

Para isso, Kawá aprendeu outra língua, o inglês, para poder comunicar e transmitir aos europeus os costumes e a filosofia de vida dos Huni Kuin, denominada Yupumá, que significa o ato ou momento de fazer algo pela primeira vez. Hoje, após visitarem vários países, a dupla formada por Verónica e Kawá chega a Portugal. Com eles, além do filme cujo título é inspirado no conceito a ser difundido e da experiência do intercâmbio cultural, trazem um sonho de unir povos através de uma ideia.

"A alegria é uma resistência", perpetua Verónica, enquanto recebe o Cinematograficamente Falando... para uma conversa que nos transporta especialmente para aquela região do Acre brasileiro, às margens do rio Jordão, com a sua forma de ser em formato jiboia e a cultura representada por Kawá, que tem tantas histórias e impressões para partilhar.

O filme Yupumá” chega às nossas salas de cinema sob a produção Cedro Plátano. 

É através do rio que chegamos ao seu filme, e a sua “presença” ao longo desta. Gostaria que me falasse sobre a importância do elemento no seu filme, e se a quase onipresença é de algum significado aos Huni Kuin?

Verónica Castro: A água, como se pode imaginar, é muito importante. Existe uma interdependência nela. É a água que nasce, a que vem do rio, como também a água que vem do céu, ou seja, tudo o mesmo, só que em momentos diferentes. É muito importante para a comunidade e não poderia chegar ao Kawá sem o rio. Com o rio seco, seria impossível. O rio é essencial.

No rio temos a canoa que não é só para transporte, mas para muitas outras coisas. A canoa é usada por muitos para dormir, para cozinhar, as crianças brincam na canoa, também se lava a roupa, ou seja, a canoa é um espaço. Mas voltando à água, a sua fundamentalidade: serve para cozinhar, beber, lavar roupa, para os animais e para banho, especialmente na Amazónia, que devido às suas temperaturas uma pessoa toma três ou quatro banhos por dia, e mesmo quando está no duche, sua. Isto tudo para dar uma ideia da importância da água para tudo na vida, e para a comunidade do Kawá, ela liga e interliga tudo e todos, portanto, porque não ligar o filme a esse elemento.

Kawá Huni Kuin: O rio Jordão, na nossa língua Huni Kuin, chama-se “Renê Yurá”. Renê significa rio, Yurá é povo, ou seja, é o Rio do Povo.

Quando pensamos no rio, em cada trecho que divide as aldeias, é como se ele serpenteasse como uma jiboia. Assim, conforme se avança pelo rio Jordão, após meia hora de viagem de canoa, já se encontra uma aldeia. Ao subir pelo rio, após essa meia hora de viagem, já se vê outra aldeia. É aí que começa a divisão, com um igarapé – um rio muito pequeno – separando as aldeias. Mais adiante, outro igarapé faz o mesmo.

Dessa forma, as aldeias ficam divididas entre os igarapés.

Quer dizer que o rio assume-se como as fronteiras entre aldeias?

KHK: Exatamente! [aponta para o mapa e dedinha a zona do Acre] Depois de chegar a essa aldeia, ao continuar a subir mais à frente, há uma reserva que ainda não é considerada terra indígena, mas, após uma hora de viagem, entramos em terra indígena. A partir desse ponto, chegamos a outro rio. Dali para a frente, é terra indígena. As águas dividem cada aldeia, dando nomes às aldeias. Aqui é um igarapé, que é um pequeno rio. Assim, temos uma aldeia. Depois de passar por este igarapé, encontramos outra aldeia. Portanto, o rio é importante porque também serve como limite das aldeias, uma fronteira natural entre elas.

Quando se chega a uma aldeia e se quer passar para outra, é preciso atravessar o rio a pé. Ao atravessar o igarapé, já se chega a outra aldeia.

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Verónica Castro e Kawá na rodagem de "Yupumá" (2024) / Foto.: Cedro Plátano

Mas esse rio é inconstante, certo? Quer dizer, você o comparou a uma jiboia - bonita imagem -, quer dizer que essas “curvas e contracurvas” que o rio faz aí nesse mapa, pode alterar de um dia para o outro?

KHK: Hoje em dia, as coisas estão a mudar muito porque está a chover bastante e há muitas inundações. Quando alaga, o rio corre com muita força e derruba as árvores das margens, tornando o rio ainda mais diferente. Na época de Verão, o rio fica tão seco que nem uma canoa pode viajar. Por vezes, temos que andar a pé. No caso da canoa, apenas duas ou três pessoas podem ir para que a viagem seja rápida. Agora, se levarmos uma canoa com três famílias e crianças, é muito difícil. Demoramos quase três dias ou uma semana para chegar apenas à aldeia, porque é muito complicado e o rio seca muito nesse período. Quando enche, enche muito rapidamente e alaga completamente. O rio hoje está a sofrer este tipo de mudanças. Os nossos avós contam que o rio não era assim; era profundo tanto no tempo de verão quanto no tempo de inverno, durante a época de chuva. O rio era diferente, mas hoje está a mudar. Contudo, as voltas que faz, semelhantes a uma jiboia, são normais para o rio.

No cartaz do “Yupumá” [aponta para o poster do filme] representa-se a floresta, a terra, a água e a jiboia. Porquê a jiboia? Porque ela mora debaixo de um poço no rio Jordão e é muito grande. A jiboia também significa, para mim, que foi ela que nos ensinou a nossa geometria.

Mas acerca da decisão de incluir o rio como uma personagem central [voltando-se para Verônica Castro] …

VC: Essa decisão? Bom, quer dizer, é a vida na aldeia e também a vida na canoa. E também é uma vida em relação ao rio e para mim. Então, voltando ao mapa, quando mostrei que comecei, comecei no meu primeiro encontro com um aperto de mão. “Bem-vindo!” Oito dias na canoa e não havia nem perguntas, nem discussões, nem preparações; era algo que acontecia do nada, como se caíssemos de paraquedas.

Obviamente, essa experiência marcou-me por ser a minha primeira experiência com o rio e com as comunidades indígenas, porque estava nesta canoa com 15 pessoas.

Quinze pessoas!? De que tamanho eram essas canoas?

VC: Máximo tamanho o tamanho deste quarto [faz um gesto que especifica-se o redor da divisória]. Assim, só que mais fininha. Eu posso mostrar uma foto? Então, estava na canoa com 15 pessoas, uma família única e duas pessoas de outra etnia que chama-se Yawanawá e o condutor da canoa - um brasileiro que mora lá, da comunidade dos ribeirinhos - com a sua mulher e uma criança, também estava lá um outro antropólogo. Então, o que é que aprendi em oito dias na canoa? No segundo dia parei de perguntar quando chegaríamos, porque tinha percebido que o tempo não existia tal como conhecia. Depois do segundo dia, percebi que podia estar aqui para o resto da minha vida. Sim, com uma noção de tempo completamente dissolvida.

Eram aquelas atividades que mencionei há pouco que substituíram a noção do tempo. Era só navegar, e os pequenos momentos reforçaram a nossa relação com a natureza.

KHK: Quando viajamos, levamos a nossa comida dentro da canoa, cozinhamos enquanto navegamos ou então encostamos e preparamos a comida na praia. Fazemos pesca, recolhemos lenha e cozinhamos na praia. Por isso, a viagem demora muito, pois vamos fazendo essas paragens, mas depois continuamos a viagem tranquilamente.

VC: Mas não era só uma viagem de lazer. Estávamos a viajar com uma canoa alugada e o condutor queria levar-nos rapidamente, mas não podíamos ir contra a natureza. Aprendi muita coisa nesta viagem. Na minha primeira introdução, além da relação com a água e da perceção do tempo que se dissolve completamente, também aprendi como se organiza o espaço dentro da canoa. Percebi que era interessante estar dentro daquela canoa com duas etnias indígenas, o vizinho com quem eles coexistem, uma família ribeirinha, um brasileiro de 73 anos e um antropólogo que conhecia muito bem essas terras, tendo trabalhado lá por mais de 40 anos.

Foi um microcosmo de vida na Terra. Comecei a observar as relações entre as pessoas e como essas dinâmicas se manifestavam dentro da canoa. Coisas tão básicas como onde as pessoas se sentam, quem pode sentar-se à frente da canoa e quem vai conduzir.

Hierarquia?

VC: Não se tratava de hierarquia, mas de lugares. Sim, lugares e a maneira como os espaços são ocupados. Enfim, isso é outra história. Mas só para dizer que esta viagem de canoa revelou tantas, tantas possibilidades para eu desenvolver a minha pesquisa. Certamente, é por isso que o rio, a canoa e estas viagens são inextricáveis. Não se podem separar, pois são como um fio central que guia a narrativa.

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Poster de "Yupumá" (2024)

Sobre essa questão da jiboia ensinar geometria, o qual também está claro no filme, essa relação com os animais. Para a sua cultura [virando para Kawá], cada animal teve um papel importante na aprendizagem humana.

KHK: Os animais são os nossos principais mestres da floresta. Os nossos mais velhos e os pajés [curandeiros] sabem contar essas histórias como se fossem mitos. Mas não são mitos, são histórias reais que aconteceram com os animais, numa época em que eles se comportavam como seres humanos, falavam, comunicavam com os parentes, e continuam a comunicar até hoje.

Temos essa história, uma das maiores sabedorias que transmitimos até hoje, porque aprendemos com essa habilidade, com os animais, com a natureza. Por exemplo, temos uma história sobre como o ser humano aprendeu a caminhar com o papagaio. O ser humano caminha igual ao papagaio, devagar, passo a passo. Havia outro pássaro que queria nos ensinar a caminhar, mas o seu caminhar era como o de um sapo, que pula. Se caminhássemos assim, seria diferente. Mas o papagaio caminha colocando um pé à frente do outro, como o ser humano.

Então, recebemos o caminhar do papagaio. Quanto à barriga, foi a barriga do japó [espécie de ave] que nos foi dada. Por isso, temos a barriga aqui. Se tivéssemos recebido a barriga do papagaio, ela estaria no peito, pois a barriga do papagaio é no peito. Então, eles decidiram: “Ah, tu vais dar o teu caminhar e eu vou dar a minha barriga.” Isso é um exemplo, essa história continua.

Para cantar, por exemplo, nós seguimos a tradição até hoje. Para as crianças começarem a falar, temos uma medicina chamada Eva, que tem o mesmo nome de um pássaro que imita outros pássaros. Quando a criança começa a falar, damos banho com isso e passamos na língua. Os animais são muito significativos para nós. Os mais velhos que cantam muito, que detêm o conhecimento, são como os canários, os cantadores. Aprendemos a cantar com o pássaro cantador, aprendemos com a jiboia e com outros animais, como a paca.

Cada um desses animais nos ensinou algo útil que utilizamos até hoje. A aranha ensinou-nos tecelagem, introduzindo-nos ao algodão. A jiboia ensinou-nos geometria. Outro pássaro de bico comprido, que vive nos lagos e pesca, introduziu-nos uma medicina da mata. Quando tiramos essa erva, machucamos, fazemos um bolo, colocamos na água e o peixe começa a pular. Cada animal nos introduziu algo significativo que preservamos na nossa cultura até hoje, por isso a nossa relação com os animais é tão especial. 

Alguns animais não comemos porque nos são sagrados, como a jiboia. Também não comemos o pássaro cantador, pois o respeitamos. Não comemos a onça, porque ela também nos ensinou a cantar. Existem cantos de onça, e cada palavra que usamos nesses cantos é poderosa e sagrada. Por isso cantamos, para curar e para nos conectar com esses animais, na língua da natureza, em que o som vem de uma fonte central.

Na aldeia, quando acordamos de manhã, escutamos primeiro os “capelães” a cantar. Depois vêm os outros pássaros, alguns cantam prevendo a chuva. Toda a comunidade o escuta, sabemos que a chuva vem à tarde. Na manhã seguinte, escutamos outro pássaro a cantar, os filhos do sol, que nos indicam que o dia será solarengo. Isso nos anima a trabalhar.

Os pássaros comunicam connosco e são os nossos meteorologistas. Essa conexão com a natureza ainda existe hoje. A nossa cultura continua a mostrar que a conexão com os animais e a natureza é profunda.

E em relação à sua viagem na Europa, como vê essa relação com os animais? Sente que nós, “europeus”, escutamos e compreendemos os pássaros?

KHK: Aqui, se prestarmos atenção aos pássaros que querem comunicar, somos capazes de entender o que eles desejam transmitir. Na Grécia, vi muitos turistas a comer hambúrgueres ou pães, e os pássaros vinham todos nas suas direções. Para mim, aquilo significava que os pássaros precisavam de comida. Se continuarmos a pesquisar o que os pássaros querem comunicar, é possível reconectar-nos com eles, porque acredito que não prestamos atenção suficiente aos animais.

Nós não damos a devida atenção a eles, sejam pássaros, gatos, cães, lobos ou outros. Aqui, é provável que essa conexão tenha sido perdida. Mas, se realmente quisermos nos conectar com os animais, é possível. Quando estive na Irlanda, na floresta, escutei diferentes sons dos pássaros, percebi outra energia, outro espírito, uma outra conexão. As pessoas não se apercebem dessa necessidade de reconexão.

Estou a sentir e a ver que é um mundo diferente. Temos de prestar mais atenção ao que os animais nos estão a tentar dizer para podermos reencontrar essa ligação que tivemos no passado.

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Yupumá (2024)

O curioso é que no filme quase todos os animais surgem no ecrã ou estão mortos ou a ser pescados?

KHK: Na minha opinião, o valor dos animais não está a desaparecer; pelo contrário, estamos a exaltar cada vez mais o seu valor. Por exemplo, o papagaio oferece muito. É o espírito do papagaio que se manifesta, e acreditamos que ao consumir a memória do papagaio podemos melhorar a nossa habilidade linguística.

Escuta duas ou três vezes sem gravar. Então, entende-se a ciência que o papagaio nos dá. Se comermos o miolo e a carne do papagaio, que é escura como o feijão, isso fortalecerá o nosso sangue. Usamos as penas do papagaio para fazer brincos, cocares e também as guardamos para defumar crianças, protegendo-as. Cada pássaro e objeto dos animais têm um valor especial para nós.

Antigamente matávamos a jibóia, tirávamos a pele, usávamos os ossos e a gordura para tratar ferimentos e outras coisas. Hoje em dia, o meu pajé, que é o meu professor mais velho, ensinou-me que não devemos mais matar a jibóia. Apenas a seguramos, falamos com ela e deixamo-la ir. Nas outras aldeias, ainda matam a jibóia, mas cada animal que comemos tem o seu espírito, que precisa ser purificado para evitar doenças.

Para prevenir isso, utilizamos a ciência da floresta, as ervas medicinais. O pajé, que é o curandeiro, dá banhos nas crianças, e os pais são obrigados a batizá-las com medicinas para que recebam a energia da planta e cresçam saudáveis. Desde que a criança nasce, já começa a receber tratamentos com medicinas e banhos. Durante a gravidez, a mãe deve tomar muitos banhos de ervas e ouvir cantos para que a criança nasça forte.

Durante a gravidez da minha esposa, eu não posso matar certos animais. Se eu o fizer, pode causar problemas para mim ou para a minha família. Por isso, respeitamos os animais especialmente nesse período.

Toda a nossa tradição está interligada com a natureza, animais, plantas e cantos. Desde o nascimento de uma criança, tudo é feito de acordo com a nossa ciência original e as nossas tradições.

Esta exaltação dos animais reflete o profundo respeito que temos por eles, reconhecendo as suas contribuições e a sabedoria que nos transmitem. Cada animal desempenha um papel significativo na nossa cultura e na nossa compreensão do mundo. Ao valorizar estes papéis, fortalecemos a nossa ligação com a natureza e com os ensinamentos que ela nos oferece.

VC: O que quis mostrar no filme não foi simplesmente que os Huni Kuin são caçadores de animais. Sim, utilizamos animais mortos, mas eles fazem parte de um sistema onde cada parte do animal é aproveitada, não só fisicamente, mas também espiritualmente. Valorizamos não apenas o que o animal nos fornece em termos materiais, mas também o espírito do animal.

Sigo para a génese do filme, é sabido que o filme propriamente dito nasceu de um sonho do Kawá, o de ir para a Europa …

KHK: Sonhar em querer conhecer mais sobre a cultura da cidade é algo que temos na nossa aldeia. De manhã, o nosso “cacique", que é como um presidente da aldeia, e a liderança, que é semelhante a um governo, reúnem-se para liderar os mais jovens e novos no trabalho e na administração. O “cacique” convida a liderança a acordar cedo e contar os nossos sonhos, o que sonhamos e o que vamos fazer com eles. Compartilhamos não só sonhos de quando estamos a dormir, mas também as nossas visões.

Temos muitos rituais e tradições na aldeia, e por vezes, durante uma noite de ritual, um sonho aparece-me, como uma visão. Eu viajo e vejo grandes navios, aviões, cidades grandes, coisas que nunca tinha visto antes. Isso faz-me perceber que preciso de aprender mais. Acredito que os meus ancestrais trouxeram-me essa oportunidade para buscar algo novo.

Por isso, surgiu em mim o desejo de realizar este sonho de viajar, fazer algo bom para continuar a aprender. Ouvi falar que alguns parentes viajaram para a Europa e voltaram contando como era lá. Isso despertou em mim o interesse de também conhecer e aprender.

Foi esse sonho que me motivou e que me ajudou a convencer a Verónica a colaborar. Queria comunicar a minha cultura, não só em português, mas também noutra língua, por isso comecei a aprender inglês. Quando a Verónica esteve na nossa comunidade, estava a filmar e nós ajudámos no seu trabalho. Percebemos que, ao fazer isso, estávamos a convencer a comunidade a colaborar e a trabalhar em conjunto. Daí surgiu o filme, que reflete a nossa tradição e a nossa palavra, que pode ser compreendida por todo o mundo.

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Verónica Castro na rodagem de "Yupumá" (2024)

E de onde veio a ideia do título - “Yupumá”? 

VC: Pois bem, o que acontece ao tentar apresentar o conceito indígena? Fiquei bastante empolgada com essa ideia e até perguntei ao nosso chefe, o pajé que você viu no filme. Mesmo sendo uma pesquisadora persistente, com papel e caneta sempre à mão, precisei ver e rever para entender. Ele explicou que não é algo que se defina facilmente, mas sim uma experiência que precisa ser vivida pelo corpo e ser reconhecida pela comunidade.

Foi nesse momento que percebi: a comunidade na Europa precisa de entender isto. Não são apenas os franceses e os alemães que são filósofos; não são os únicos capazes de entregar filosofias de vida ou compreender esses conceitos.

Decidi que este era um conceito que poderia ser muito útil para o nosso olhar europeu.

Haverá algum tipo de continuação? O das “aventuras” de Kawá na Europa?

VC: Até agora, a minha resposta tem sido que vocês aqui estão integrados nisto. Assim, o filme transborda para a realidade. A continuidade é vivida através do conceito Yupumá.

KHK: A primeira vez que viemos, acredito que tivemos uma experiência de Yupumá. É por isso que este projeto ainda continua. Estamos aqui, cada vez mais, a formar famílias e comunidade, e as pessoas estão a conhecer-nos. No início, apenas a Verónica me conhecia, mas hoje em dia muitas pessoas já me conhecem e cada vez mais vão conhecendo. Estamos a criar uma comunidade e um grupo de trabalho. Assim, continuamos em movimento.

VC: Gosto de chamar a isto o movimento Yupumá. Sim, e está a crescer. Sempre digo que isto é uma proposta. O que estamos a fazer é uma proposta para mostrar, não só em termos de disciplina de antropologia, mas também como um exemplo de uma nova forma de fazer antropologia. Estava a falar há pouco; as pessoas perguntam-me: “Quando é que começaste o trabalho de campo, em que data?” Digo-lhes a data, mas quando me perguntam quando terminei, respondo: "Não sei, porque o campo está comigo agora. Estamos a criar este novo campo." [risos]

A antropologia já não é o sonho do antropólogo que vai lá com a sua caneta estudar o outro. Agora estamos a partilhar este processo e, na academia, argumento isto em termos de cinema. Já sou cineasta, então o cinema é uma ferramenta para mim. E agora, ao partilharmos estas habilidades e esta ferramenta, estamos a co-criar esta história. Em termos de cinema, estamos a avançar além das propostas de Jean Rouch.

Ultrapassar o verité?

VC: Exacto, é uma experiência. Só que não podemos estar em todas as salas para ter esta conversa, portanto o grande desafio é como transmitir este sentimento, esta sensação de pertença ao filme, e em todas as salas, quando este for visto sem a nossa presença.

Encontrou uma solução?

VC: Ainda não sei. Penso em como os filmes vivem para além da tela, da sala. Possivelmente, será através das ações das pessoas após verem o filme. Como será essa relação? Bem, um espectador poderá relacionar-se intelectualmente e emocionalmente, mas acho que este filme propõe um outro tipo de envolvimento. O que propomos é... isso mesmo, “Yupumá". Se as pessoas começarem a enfrentar a vida com esse estado de espírito, já estarão a relacionar-se com o filme. Ou seja, fazer algo pela primeira vez e dar prioridade a isso todos os dias. Seríamos, de facto, mais felizes. A nossa proposta é que a alegria é uma forma de resistência, e isso só é conseguido através do Yupumá.

Já demonstrámos o nosso filme em diferentes sítios, muitos em contextos mais íntimos, e as pessoas saíam perplexas, perguntando que tipo de filme é o “Yupumá". “Um filme indígena sem genocídio, sem incêndios, sem enchentes, apenas pessoas felizes com as suas vidas?”. A minha pergunta enquanto cineasta é: ou as pessoas só querem ver as misérias para se sentirem melhor, ou têm medo da alegria, ou simplesmente aterrorizam-se com a ideia de estarem numa canoa no meio de um rio, em silêncio?

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Yupumá (2024)

Visto que o cinema indígena, incluindo o seu filme como parte desse subgênero, está a crescer de tal forma, questiono se há algum perigo de banalização.

VC: Não quero julgar o trabalho dos outros. Acredito neste método e é desta forma que pretendo continuar a realizar filmes, levando-nos para além da sala de cinema de uma maneira digna. Se outros fazem filmes sobre a Amazónia de outra forma, muito bem, é uma escolha deles. Agora, se assumimos o cinema indígena, e que está a crescer e até tem festivais dedicados, já está na hora de colocarmos a questão do que define o cinema indígena e o que torna esses filmes verdadeiramente pertencentes a essa designação?

É uma boa pergunta. Tem a ver com o olhar, seja do filme, seja de quem está a formar esse olhar [sabendo que muitos realizadores dão câmaras a membros das comunidades para que eles filmam as suas próprias imagens]?

VC: Quem está a fazer a montagem? Não é fácil, mas quem monta detém o olhar do filme. Não é de agora, mas durante anos treinou-se indígenas para filmar, gravar e até montar, mas a questão permanece, o que define o cinema-indigena, ou melhor, quem decide os temas a filmar?

Nos braços da Palha deitado ...

Hugo Gomes, 15.07.24

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César Mourão desafia-se na realização, num projeto que ele próprio pretende apelidar de cinema. No entanto, apontamos o caminho esburacado que o ator parece seguir. Acenamos com isso tentando interceptá-lo, interromper a sua vontade, iludido pelo “bem” que ele pensa praticar, mas em vão. Ele cedeu ao “audiovisual”, essa comunidade que encontra na tela, sem diferenciações, onde tudo é programado para ser adaptado às plataformas. O resultado da sua primeira longa-metragem - “Podia ter Esperado por Agosto” - uma comédia romântica como a publicidade nos engana, é televisão quanto aos seus frutos e procedimentos.

Em alguns momentos, Mourão parece enganar-nos – se não fosse isto uma comédia de enganos, mas já lá vamos. Somos confrontados com o facilismo e a banalização que a cultura audiovisual, muito portuguesa, contaminou nos desejos de fazer cinema. Por exemplo, um pouco de contexto: a nossa história decorre numa aldeia em Arcos de Valdevez, em contraste com cenas avulsas da cidade de Lisboa - nada de fascinante em relação à metrópole porque a narrativa não se mostra interessada num embate à la Dickens - contudo, existe uma sequência que nos soa a um virtuosismo vaidoso, em que a praça dessa mesma aldeia é “palmilhada” por diferentes habitantes, personagens e até gado. A câmara acompanha circularmente essa multidão gota-a-gota, manifestando calculismo e meticulosidade em criar cada movimento como um simbolismo à rica vida deste meio rural, até que o protagonista, também ele César Mourão, invade a tela e percorre a praça em direção a uma ruela.

A lente segue-o até que, a certo momento, esta parece levitar. Mais um pouco até ser humanamente impossível a sua altura e aí damos de caras com um drone, artifício exaustivamente confundido com os interlúdios de telenovelas, banalizando-se nessa linguagem publi-televisiva, e, por sua vez, auferindo um conceito de imagens emancipadas do homem. Há um perigo nesta massificação, o faz-se pela artificialidade e pelas baixas orçamentais (mais barato que uma grua, por exemplo, hoje cinematograficamente obsoleto). Portanto, o drone está vulgarmente presente. É uma praga e deve ser declarada como tal! Chamem o exterminador, por favor!

Porém, não poderia deixar de abordar um outro “elefante na sala”, este também muito impregnado nos conceitos mercantis do “cinema popular português”, que é o argumento e a ingenuidade com que se resolvem todos os conflitos. Neste caso, como havia mencionado, é uma comédia de enganos. Nada contra, burlas e charlatanices fazem paródia e carimbam o absurdismo que merecem, mas o lado romântico e como um mero “Amo-te” justifica as maiores barbaridades cometidas é assunto urgente para debate. Os espectadores contemporâneos são outros daquilo o qual estes filmes são pensados, queremos acreditar que sim, demasiado cínicos para acreditar em “contos de fadas” e, pior ainda, o cinema, por vezes romantizado e escapista, deixou de estabelecer esse delírio há muito.

Nem pela Júlia Palha, ‘coisas’ destas se fazem…

"O digital é talvez o factor mais realista": Eduardo 'Teddy' Williams e a busca do auge da Humanidade

Hugo Gomes, 13.07.24

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Eduardo "Teddy" Williams na rodagem de "El auge del humano 3" (2023)

Foi em vésperas da estreia nacional (com ‘perninha’ no festival Indielisboa e uma retrospetiva no Cinema Batalha), que Eduardo Williams, conhecido por estas bandas cinéfilas como “Teddy”, me recebeu para falar sobre o seu mais recente projeto, "O Auge Humano 3" (“El auge del humano 3”), que conta com produção portuguesa, além de envolver outros 7 países, unidos para explorar uma ideia de universalismo. A nossa conversa abordou desde as ideias por detrás do filme até ao seu cinema em geral, consolidando Teddy como uma das vozes mais debatidas no meio académico cinematográfico e no mundo do cinema experimental e independente.

Com "O Auge Humano 3", lançado sete anos após o primeiro (atenção, nunca houve um "O Auge Humano 2", essa sequela está no “segredo dos deuses”), acompanhamos um grupo de jovens que testemunham um fenómeno difícil de caracterizar para lá das montanhas. Enquanto vivem e debruçam-se sobre os seus quotidianos, ponderam um retorno ao estado selvagem, ao primitivo ou até místico. Eis uma obra sobre a comunicação, mesmo diante de diversas línguas ouvidas ao longo deste percorrer de cenários em 360º e dos glitchs que vão sendo presenciados. Há uma distorção dessa realidade! Mas Teddy acalenta as nossas preocupações, tal é tão ou mais real do que a nossa própria realidade humana. Aliás, o que é ser humano?

A discussão alarga-se sobre "O Auge Humano 3", o virtual enquanto nova realidade, o filme das multi-interpretações e de estéticas e o AI contra a carne da nossa carne. 

Começo a conversa desta forma: que lugar acha o ideal para ver o seu filme?

O lugar para qual o meu filme foi feito? É isso que me está a perguntar?

Sim, é uma questão um pouco abstrata, porque entendo que a sua estética é provocadora, neste caso, neste filme, sinto uma certa distância das pessoas, do factor humano, por ter sido filmado com uma câmara de 360 graus o que lhe aufere uma sensação estética muito virtual. Não sei se era esse o seu propósito.

Sim, uma parte é voluntária, a outra surgiu através da descoberta e do experimento. Em relação ao local, faço filmes para o cinema, seja em película, seja em 360 graus, a sala de cinema será sempre o seu lugar, exceto algumas encomendas para museus. Tenho consciência de que se vê muito cinema em computadores e nos mais diversos lugares. Nada contra essa opção, mas os filmes que faço são concebidos para serem vistos e ouvidos no cinema, refiro o “ouvido” porque considero o som extremamente importante para a experiência cinematográfica, e penso deixar saliente esse elemento na minha filmografia.

Acerca da distância com o humano, não sei o que responder; depende de como se pense nisso. Não o encaro da mesma maneira, porque, para mim, o virtual hoje em dia é parte da minha vida, é essencialmente humano, é uma criação humana e é o mundo em que vivemos. Acho que, para mim, justamente esta presença do virtual no filme fala, pelo menos, de como experimento a vida hoje em dia, e creio que muita gente partilha tal experiência comigo. Então, simplesmente acredito que uso ferramentas para mostrá-lo de uma maneira mais sucinta, talvez. Quanto aos rostos se deformarem e especificamente integrarem a imagem, obviamente que na vida, no real, não vemos isso, mas talvez sintamos isso a acontecer de alguma maneira.

Não sei, pelo menos eu sinto aquilo que os ingleses apelidam de “uncanny valley”, sofro com isso, a deformação das faces das suas personagens quando nos aproximamos, leva-me a distanciar deste conjunto, porque tudo me soa na ressonância do fim da Humanidade. O nosso fim, de certa maneira, não sei, é a minha impressão acerca do seu filme, mas pelo que entendi, também é um filme com várias interpretações, dando uma exposição para quem o vê.

Sim, por isso, mesmo que por vezes se pense o mesmo ou não, o tipo de filme que faço, como bem disseste, é justamente para isso: para se abrir a múltiplas interpretações e não se reduzir somente à minha. Se assim não fosse, faria filmes mais claros e que comunicassem diretamente uma ideia minha, mas essa não é a minha noção de cinema. Gostei de ouvir a tua interpretação e respeito-a, mesmo que não vejas o filme à minha maneira. Não te posso censurar; se o fizesse, seria contra a minha essência. Só te digo como me sinto em relação aos lugares, ao binarismo do humano e do não-humano, mas isso também depende das nossas experiências, das nossas vidas, de como nos sentimos em relação ao cinema. Nem todos nos sentimos da mesma maneira. Mas, o que dizias concretamente no início?

Que existe uma certa distância, como o fim da Humanidade.

Sim, isso! O fim da Humanidade! Não sei. [risos] Tenho esta sensação desde os meus tempos de criança. Chega o ano 2000, termina a Humanidade, desde os lugares mais simples e até aos mais bobos, até coisas como a mudança climática e a destruição do planeta, que se tornam cada vez mais reais. E também há esse desejo de querermos o fim de certas ‘coisas’, mas não a Humanidade, talvez o sistema em que vivemos. Nesse sentido, há que escolher em colocar-se na crise ou de ver a crise do sistema, por assim dizer, de diferentes sistemas. Mas o fim da Humanidade... não sei! Não acredito, na verdade. Por agora, parece-me que ainda falta muito para tal acontecer.

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El auge del humano 3 (2023)

Digo isto, porque existe a certo momento do “O Auge Humano 3” uma personagem a lamentar-se de que existir é cansativo. Entendi isso como algo muito niilista no seu filme.

É verdade, e além disso, acho que deve haver um equilíbrio entre essas coisas. Deparamos por momentos mais niilistas, como esse que citaste, ou do cansaço em relação ao trabalho, à vida  como ela é ou por outras questões, só que também temos que ver que há esperança. O simples facto de pessoas, de países distantes, se reúnem e avançam em conjunto em direção a algo que não entendemos ao certo é para mim uma forma de esperança e de continuar a tentar algo em oposição a esse niilismo: uma revolução. Mas sim, há de tudo, as duas dimensões: falar sobre determinados elementos negativos ou sobre o facto de que a mera existência provoca cansaço, só que não podemos esquecer que temos um outro lado.

Outra característica do seu “O Auge Humano 3”, é que foi filmada em vários lugares do mundo, como Sri Lanka, Taiwan e Peru. Além disso, a forma como juntou os locais cria uma sensação de unidade. É como se toda a Humanidade estivesse conectada, com excepção da linguagem, visto ouvirmos uma panóplia delas, quase como uma Torre de Babel, que nos separa ou nos identifica. Mas, ao mesmo tempo, todos esses lugares e pessoas, apesar das distâncias, são semelhantes porque somos humanos. No entanto, sempre mudamos algo para sermos mais diferentes, especialmente no que diz respeito à linguagem.

Penso que no filme também está implícito uma fantasia: as personagens entendem-se em diferentes idiomas. Há cenas em que um fala mandarim e o outro responde em espanhol. Mostrando que as línguas não nos separam como realmente o fazem. 

Também, ao fazermos um filme, viajo para países cujo idioma não falo e, por vezes, usando a internet e outras ferramentas, conseguimos que essas barreiras linguísticas não sejam a nossa total separação. No filme, há pessoas que não falam inglês, espanhol ou qualquer idioma que eu fale e, de várias maneiras, conseguimos comunicar-nos. Parece-me que isso está presente, também na forma como o fazemos, o que é interessante. Não quero dizer que somos todos iguais, porque, felizmente, é melhor que não sejamos todos iguais, mas que podemos juntar-nos e ter um projeto como este. É como, a certo momento, todas aquelas personagens caminharem juntas para a montanha em busca de algo maior do que elas.

Por mera curiosidade, qual o lugar que, como demonstra no filme, tem aquelas habitações que parecem-nos cogumelos?

Ah, é o Sri Lanka!

É muito peculiar. É como um parque infantil! Gostaria que me falasse sobre os diálogos, li algures que estes foram conseguidos por via da improvisação.

Não só. Alguns textos foram escritos e outros foram improvisados. Há cenas em que tudo o que vemos é totalmente escrito, enquanto outras revelam o improviso, e a maioria das cenas combina os dois registos. Esta é a norma no meu cinema.

E quanto ao que dizes sobre as casas, posso contar-te que a primeira razão para querer filmar no Sri Lanka foi exatamente este bairro. Já tinha ido ao Sri Lanka antes, numa viagem de lazer, digamos, não por motivos de filme ou curiosidade, e passei de autocarro por este bairro e fiquei muito surpreendido. Depois, ao investigar, descobri que tinham construído estas casas sob esta forma porque um tsunami havia destruído tudo, e estas estruturas provaram ser mais resistentes, caso haja outro tsunami, do que uma forma retangular.

O filme ia ser rodado sob a chuva, mas não conseguimos fazê-lo nesse contexto. No entanto, a presença do clima no filme tem o seu lugar nesta narrativa, por isso, achei por bem incluir este cenário estranho ou irreal para nós. Mas, ao mesmo tempo, quando estamos lá, vemos que para estas pessoas aquele bairro é um lugar normal. E isso fascinou-me, um local onde o irreal e o real se encontram na mesma imagem.

Podemos dizer que o seu filme é quase como um retorno ao selvagem, mais concretamente a Humanidade à Natureza, e por fim, as suas esperadas pazes?

Não sei se diria retorno, mas sim o ato de ir. Não vou sempre atrás da natureza, mas também em frente, como em tudo. Portanto, diria que é ir ou um pouco buscar, afastar-se da cidade que nos aprisiona. Talvez para depois voltar, porque no final a câmara cai, há algo de querer subir e depois descer novamente. Existe sim uma insatisfação com o lugar onde vivemos e a vontade de nos afastar para desencadear outras possibilidades, ir para a selva, ir para a montanha, etc.

Tem administrado um workshop no Porto [Cinema Batalha] e, devido a isso, queria questionar: o que pretende com o workshop que dedica aos jovens ou interessados em cinema?

Depende um pouco de quem vai. Antes de o fazer, não sei ao certo, nem projeto minuciosamente quem vai participar, desconfio se serão mais estudantes ou mais curiosos. Era algo aberto, por isso tenho a perfeita noção de que não seriam apenas estudantes. De qualquer modo, partilho a minha forma de trabalhar e estou disponível para responder às perguntas que tiverem. Partilho a minha abordagem desde o mais concreto, resolvendo problemas específicos, até os meus pensamentos sobre por que faço o que faço, etc. Tento esclarecer sobre o meu cinema, ou pelo menos tento. [risos]

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El auge del humano (2016)

E no seu caso, deixe-me mencionar uma coisa. Porque quando vi este e o primeiro “O Auge Humano“, notei uma estética e uma transição estética de filme para filme. Neste caso, é algo que percebo como muito virtual. Como já havia dito, sente-se uma grande distância em relação às pessoas. O porquê disto? Onde estou? O que é isto? Para onde vou?. Existe uma política estética nos seus filmes? Procura algo absoluto, uma meta?

Relacionado com o deformado realista? Sim. Quero dizer, para mim, o digital é talvez o factor mais realista. Mesmo que, à primeira vista, pareça irreal. É mais que realista, trespassa esse conceito. Através da utilização dessas ferramentas, podes mostrar pelo menos um ponto de vista da realidade de forma mais clara. Como te disse, quando vemos os rostos deformados, isso revela como me sinto, por exemplo, mesmo que não se veja o meu cabelo.

Mudar a estética, é, em parte, apenas curiosidade por usar diferentes ferramentas no cinema, mas, de forma geral, o sentido é sempre expressar um ponto de vista sobre o cinema, sobre a vida, e não restringir a “mim” e à minha perceção. Também tento fazer filmes que não sejam apenas sobre as minhas ideias, mas sobre como essas ideias são percebidas por pessoas em diferentes lugares e em diferentes idiomas. Por isso é que viajo para diferentes países e culturas, para ver como estas minhas ideias podem ser transformadas em outra 'coisa' que não sejam minhas.

E, como te disse, às vezes há improvisação, há “contaminação” de ideias de outras pessoas que integram o filme, e eu realmente pretendo tal contágio, valorizo muito. Estou a tentar agora juntar essas duas coisas, como me pediste, mas não sei. Pode ser muito longo falar sobre o que é realista ou não. Mas sim, não há dúvida de que há uma ideia de expressar ou partilhar pontos de vista sobre o mundo e a realidade, pelo menos como a vejo, e, em alguns casos, como as pessoas no filme a veem e acreditam.

Escolho imagens que mostram isso de forma mais clara, encaro-as como as imagens mais normais da vida. Vejo o mundo assim: o que é real e o que não é são quase indissociáveis. Portanto, há algo, mas não tenho certeza se respondi à tua pergunta neste caso.

Lembro-me de um colega meu, quando viu “O Auge Humano 3” em Locarno, dizer-me que parecia um filme feito por AI, Inteligência Artificial. Pergunto-lhe sobre isso, sobre os avanços na tecnologia para fazer filmes sem pessoas, sem cineastas. Tentaste com essa estética que temos estado a falar para te aproximar mais das propriedades estetizadas, hoje previstas, pelo AI, ou é apenas uma coincidência?

Nem por isso. Não uso AI nos meus filmes.

Não referia ao uso, referia à estética …

Sei, o que quero dizer é que não estou em contacto com a Inteligência Artificial, nem para o filme, nem na minha vida. Não estou a pensar nisso. Sei o que é de forma geral, mas não tenho tentação ou pretensão de me relacionar com isso. Para mim, está mais associado ao mundo digital de outra maneira, por ter vivido muito através da internet desde a juventude e por jogar videojogos. Está muito ligado a essa parte do mundo digital ou vida virtual. 

Quando penso em preparar um filme, estou num modo virtual, porque estou sentado em frente a um computador a descobrir mundos e a “escavar” ideias, porém, quando faço um filme, torna-se também uma experiência muito física. São os opostos da artificialidade vendida pelo conceito da AI. Descubro as cidades e os países que visito e as pessoas que conheço fisicamente, sem qualquer informação virtual. É muito importante que no filme existam esses dois mundos: o virtual e o físico. De um modo geral, se me perguntares o que penso sobre relacionar o filme com inteligência artificial, diria que não o faria, especialmente porque o que entendo sobre inteligência artificial se resume a juntar informações.

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Parsi (2016)

O filme é muito diferente disso, é sobre humanos a decidirem, no momento, o que fazer, sendo surpreendidos por vezes, e outras vezes a prepararem-se. Acho que o funcionamento do nosso cérebro difere dessa inteligência artificial, não estão no mesmo patamar. Contudo, como referi ao longo desta conversa, estou aberto a ouvir e a gerar diferentes pontos de vista com o filme, no entanto, não estou receptivo à AI. Não a utilizo; talvez se o fizesse, compreendê-la-ia de uma forma diferente.

Quanto aos outros elementos, como os videojogos ou a internet, surgem no filme porque fazem parte da minha experiência de vida, portanto, surgem naturalmente. Não acho que com isso desejo fazer um filme sobre a vida virtual ou a internet; isso acontece porque é assim que experiencio o mundo. Depois, percebo que, quando escrevo um filme, não penso muito no início, mas sim mais tarde. É mais tarde que me dou conta de como e quanto a presença da vida virtual está no filme.

Essa presença é muito evidente, não só quando falamos disso, mas ainda mais quando não falamos. A forma como falamos, de como as personagens se expressam, tem muita influência das conversas de chat. Em outras curtas-metragens minhas, isso é dito de forma mais evidente. Mas, em muitos momentos da minha vida, falei mais com as pessoas através de chat na internet do que na vida real. O ritmo da conversa e a forma como organizamos a informação diferem. Quando escrevo diálogos, percebo o quão presente isso está.

Mas neste momento não temos uma ideia clara do que é o cinema de inteligência artificial. Temos algumas imagens definidas e uma visão bastante ampla. Mas quero perguntar: o porquê das câmaras de 360 graus? De onde veio essa ideia?

Usei esta técnica uma vez numa curta-metragem, “Parsy”, em 2019. Escolhi inicialmente porque queria dar a câmara aos atores. Com uma câmara de 360 graus, não é necessário enquadrar durante a filmagem, os atores podem segurar a câmara e não precisam pensar no enquadramento. Isso foi muito útil na altura. Depois de experimentar, descobri outras vantagens durante a filmagem, mas o motivo principal para usar novamente esta técnica neste filme foi a possibilidade de enquadrar na pós-produção. Penso que isto é diferente do que penso sobre a inteligência artificial, porque ao visualizar as imagens num headset de realidade virtual, pude gravar os meus movimentos. Por exemplo, ao visualizar a imagem, se faço isto, o enquadramento fica assim; se faço aquilo, fica de outra forma. É uma maneira muito diferente de abordar o enquadramento num filme. Faço os meus filmes para pessoas que não sabem o que é o enquadramento ou a realidade virtual, mas espero que sintam esta forma especial de observar os outros e de estar com eles através deste método.

Para mim, a maior diferença é que agora posso fazer o enquadramento não durante a filmagem, como é habitual. Durante a rodagem, estamos a pensar em mil e uma coisas, incluindo no próprio enquadramento, agora, faço-o sozinho na pós-produção, numa sala, dedicando todo o meu corpo e mente a isso. É diferente a forma como penso sobre o que enquadrar, onde enquadrar e como sentir isso, incluindo a relação física. Normalmente, enquadramos com as mãos, agora, posso fazer isto, enquadrar e até mover o meu corpo. A relação física com o enquadramento revelou-se diferente. Essa foi a razão para escolher esta câmara. Além disso, editei as duas horas do filme no computador e depois assisti-as de uma vez, para que pudesse enquadrar o filme todo de uma vez. Normalmente, faríamos isso cena por cena. Agora, consegui fazer o enquadramento continuamente, cena após cena, à medida que me movia. A última parte do filme está relacionada com essa experiência de assistir e, não sei, de ter assistido ao filme.

A principal razão para usar a câmara de 360 graus foi essa diferença no enquadramento e, enquanto a usava, descobria outras coisas. Por exemplo, a relação com o tipo de imagem é, por vezes, como o Google Maps, outras vezes como uma câmara de segurança ou como um videojogo. Descobri isso mais enquanto a utilizava do que antes. Não pensei especificamente que queria a câmara por isso. Mas quando vejo e edito, sempre tenho a oportunidade de acentuar isso ou não. Por exemplo, deixei alguns movimentos robóticos no computador porque me faziam pensar numa câmara de segurança. Ou algumas cenas eram mais como o Google Maps e podia escolher se queria que isso fosse mais acentuado ou menos acentuado. Portanto, sim, essa foi a razão.

É fácil conseguir financiamento para os seus filmes? Pergunto isto porque o “Auge Humano 3” é uma coprodução entre 8 países [Argentina, Peru, Brasil, Portugal, Países Baixos, Taiwan, Sri Lanka, Hong Kong].

Não! Fácil não é. Não sei quem te dirá que é fácil. Ninguém sente que é fácil, certo? Mesmo que para alguns filmes seja menos difícil do que para outros, ninguém acha que é fácil. Mas sim, a primeira vez que consegui financiamento institucional vindo de institutos de cinema, como aqui em Portugal, Argentina, Brasil, Holanda e Taiwan, foi para este filme. Para os outros, nunca consegui esse tipo de financiamento, principalmente quando comecei a fazer curtas-metragens. O que escrevia nunca interessava às outras pessoas, porém, acabei por encontrar quem se interessasse pelo meu cinema. Para as curtas, recebia ajuda de pessoas que gostaram de algum trabalho ou que leram algo que escrevi. Talvez, se gostares dos meus filmes, possas “ler” o que quero para o meu próximo filme e entender ou ter uma ideia do que pretendo fazer.

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El auge del humano 3 (2023)

Tentei procurar maneiras de fazer cinema com o dinheiro que tenho, ou fazê-lo com o apoio dos amigos. Apercebi-me de que ter as imagens filmadas é uma forma de conseguir que as pessoas se interessem em financiar o filme. Para a primeira longa-metragem, consegui financiamento privado dessa forma, graças àqueles que viram imagens que já tinha filmado ou as minhas anteriores curtas-metragens. Penso que, para este filme, provavelmente foi porque os anteriores tiveram uma boa recepção nos festivais de cinema e em outras partes do mundo cinematográfico.

E nas escolas de Cinema?

Talvez as instituições confiem mais nos meus filmes agora. Mas não é fácil. Além disso, é interessante que essas complicações tragam novas formas de resolver problemas, o que também é sempre fascinante.

Sigo para a pergunta, do qual julgo que lhe mais fazem. [risos] Este é o “O Auge Humano 3”, e houve um “1”, mas nunca um “2”. Pensa em fazer mais algum “O Auge Humano”? Talvez o 4?

Não sei. O próximo filme não será sobre o “2”, isso é certo. Não há dúvida alguma. Talvez nem sequer seja sobre o universo do “Auge Humano”. Não sei. Talvez no futuro, num futuro muito distante, quem sabe?

Mas por onde anda “O Auge Humano 2”? [risos] Ficará como um mito urbano? [risos]

Perdido no tempo. [risos] Sim, mas por agora, essa é a ideia. Não é uma necessidade fazer essa sequela. Claro, é possível, mas gosto deste mistério. É esse espaço vazio que talvez possa ser preenchido no futuro, ou talvez não. Um buraco misterioso. Também está no meu campo existir tantos buracos e partes que não compreendemos ou que estão de alguma forma em falta.

Pode falar em novos projetos? Sinto que tem um novo filme na sua mente.

Não! [risos] Não estou a sentir-me bem quanto a isso. Claro que tenho ideias em mente, mas por agora são apenas pequenas notas. No início, faço apenas anotações sobre as coisas que me despertam interesse. Depois, quando quero começar um projeto, sento-me, leio as notas e dou-lhes forma. Na maioria das vezes, provavelmente já não gosto da maior parte dessas notas, mas aquelas que ainda me agradam, junto-as e começo a trabalhar nelas. Por agora, estou a viajar muito para apresentar este filme. Além disso, como falo tanto sobre ele, sinto que preciso me distanciar e direcionar a minha mente para outro lugar. Estou sempre muito ligado aos filmes que faço, por isso não consigo dividir os meus pensamentos. Algumas pessoas conseguem ter vários projetos na cabeça; no meu caso, só consigo focar num de cada vez.

Ou seja, um “filho de cada vez” …

Sim, espero começar em breve, mas desde agosto, desde Locarno, tenho viajado sem parar. Vou continuar a viajar por mais alguns meses. Assim que conseguir desacelerar, espero poder iniciar o projeto.

Ansiedade toma o controlo da Pixar

Hugo Gomes, 11.07.24

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Alerta Puberdade!

A sirene ecoa em aviso vermelho, e as emoções, perplexas com o que está a acontecer, fazem de tudo para “despachar” o botão que misteriosamente surgiu no painel de controlo (ou sensorial) com as gordas palavras “Puberdade” assinaladas. Tal não evitou que uma equipa de demolição remodelasse o espaço que as audiências de 2015 conheceram com fulgor e emoção. Isto foi seguido pela chegada de novas emoções, um novo quarteto liderado pela laranjinha Ansiedade.

Em 2024, Riley, a personagem humana que servia de carapaça para as intrigas entre emoções — aqui personalidades comicamente abstratas — cresceu, e, pelos vistos, continua a crescer à medida que falamos. A adolescência está ao virar da esquina, um território amplo e fértil para novos tratados nesta simplificação do funcionamento humano, com a Saúde Mental na berma da sua contemporaneidade. Mesmo com isso em jogo, é impossível não encontrar em “Inside Out 2” (dirigido por um quase “desconhecido” Kelsey Mann) a fórmula vencedora, confessamos, um pouco cansada dos últimos ensaios, mas aqui centrada nessa pedagogia em forma de historieta. 

Enquanto em 2015, o filme assinado por Peter Docter (que também esteve por detrás de “Up” e “Soul") explicitava o papel da tristeza no crescimento das nossas personalidades, aqui a complexidade da identidade é a mais-valia da sua moral. Não somos perfeitos, e os maniqueísmos que interiormente assumimos como verdades não correspondem à nossa essência. Talvez seja por isso que, mais uma vez, Alegria (com voz de Amy Poehler) seja uma discutida “vilã” neste díptico, sendo ela o factor, o direto e indireto, dos conflitos internos de Riley, tratando de atos movidos pelas melhores das intenções (ou cegueira emocional talvez). Mesmo assim, em outra lição estudada pela psicologia simples de “Inside Out”, precisamos dela, sabendo que, segundo ela própria - “Maybe this is what happens when you grow up. You feel less joy” (“Talvez seja isto que acontece quando cresces. Sentes menos alegria.”). Quanto mais voltas na Terra temos mais apercebemos deste facto.

Vejamos, não estamos aqui perante um grande filme da Pixar, receio que esse grau o perdemos há algum tempo (traço uma linha no muito subestimado “Soul”, produção chicoteada pelo medo da COVID e do streaming que transforma o cinema em algo caseiro). Contudo, opera nesse espírito de encontrar uma razão na sua ‘sequelite’, com um humor mais apegado à trama e um universo expandido. Tem o seu momento “pixaresco”, lágrima ao canto do olho pela identificação comum que os temas trazidos ressoam nos espectadores, personagens devidamente carismáticas (o impagável sotaque de Adèle Exarchopoulos enquanto ‘Ennui’, ou Aborrecimento) e o coração requentado. Mas … e o mas está sempre presente por estes lados … já não vimos isto? Quer dizer, a Pixar já não se tornou nela própria numa fórmula previsivelmente identificável? Talvez sim …

Alerta Sequela!! Por este andar, teremos mais divagações na mente.

We are suppressed emotions!