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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O Vale era do Cinema ...

Hugo Gomes, 29.06.24

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Existe algo que une esta auto-assumida epopeia do faroeste de Kevin Costner com “Megalopolis” de Francis Ford Coppola: ambos são projetos de “vaidade”, fruto da própria ambição dos seus criadores que decidem, dessa forma, preservar a sua liberdade, pagando a produção do seu próprio bolso. São também obras de risco, capazes de levar os seus mentores à falência, mas isso é outra história. Contudo, há que indicar também que “Megalopolis” e este “Horizon” são as últimas criações de homens que já não se reveem nas suas indústrias, nem sequer no cinema que os albergou durante muito tempo. Recordo, por exemplo, das inúmeras críticas dirigidas à última produção de Coppola em que o “apedrejaram” por ser um “velho homem branco” na batuta da sua culpa - até que ponto nos tornamos tão idadistas assim?

Mesmo não tendo ainda visto “Megalopolis”, é garantido e sabido que algo os separa: Coppola não é Costner, nem Costner é Coppola, e dentro dessa balança, nunca cedendo ao poder do saudosismo, Costner perde sempre em comparação. É, enquanto realizador, à imagem do seu perfil enquanto ator, um homem popular dirigido à população; portanto, é cinema popular que, sem dúvida, tem praticado e com isso alcançado um certo estatuto (até um Óscar venceu nessa categoria, ultrapassando no mesmo ano Scorsese, Frears e até Coppola). Só que entramos em contradição com o termo “cinema popular”, porque “Horizon: An American Saga” - sendo que esta primeira parte nos dá esse sabor - não é cinema, não tem imagens de cinema ou o que lá pode ser compreendido, é televisão, pomposa televisão ao sabor das febres do ouro encontradas com os Yellowstones desta vida, aqueles “Dallas com orçamento” que nos querem vender a ideia de cinema para pequeno ecrã. Pois, é nesse efeito que deparamos com “tv para grande tela”, e a narrativa parece perceber isso desde o início, chegando até deliciar-nos com um teaser no final como um gancho para a sua segunda parte (convém sublinhar que estão programadas quatro partes), reafirma essa televisionada cinematografia.

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Para que conste, houve uma autêntica transformação da linguagem televisiva ao longo dos últimos anos, e atualmente quando referimos a televisão, não nos limitamos somente às grelhas televisivas, mas também à base da programação de streaming, onde colidiu maiores orçamentos, a transição de atores exclusivos do cinema para esse mundo e um amplo abraço a outro tipo de planificação, mais aberta e geral, conjuntiva até, mas sem nunca perder o pio às restrições do seu espaço de projeção. Em “Horizon: An American Saga”, nunca detemos um plano que se compreenda no reino do cinema do grande espetáculo, tal como o Oeste selvagem que se apresenta nesta reconstituição, tudo parece estar conquistado por essa linguagem televisiva, e quanto maior o plano, maior uso do drone se aventura. O restante é uma narrativa que, como mencionado, não foge das teias de enredos em lume brando (há que render e render o tempo), com traços telenovelescos e personagens em "working in progress" para futuros clímax (a promessa do seguinte episódio).

Assim, ficamos com três horas que nos soam a episódios liquidados, o sonho de horizontes a serem explorados, e histórias de uma América em modo expansão por ainda contar, com Kevin Costner, também ator, no centro da multi-intriga que em outros tempos poderíamos apelidar de narrativa-mosaico. Porém, o que de brilho tem este western moribundo (Clint Eastwood enterrou um género que já na altura se encontrava mais para lá do que para cá em “Unforgiven”, em 1992, o que se seguiu foram reinvenções esporádicas e desconstruções) é o seu retrato ambíguo, nada devedor ao politicamente correto que hoje impera. Tendo em conta a crítica refém do discurso “homens velhos brancos fora do cinema”, para depois nem um plano conseguirem identificar, e porque sabendo que “Horizon: An American Saga” não é cinema, e definitivamente não é nem será, não impede o direito de Kevin Costner ter o seu gesto culminar, o seu canto do cisne e, porventura, o género que homenageia. O problema é o resultado, e disso não nos livramos.

Uma pizzaria para lá do Armagedão

Hugo Gomes, 29.06.24

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A demanda pela última pizza nova-iorquina, o macguffin que se reúne a outros adereços de Fim do Mundo; que podemos contabilizar o aperto na Bíblia como recordação da Humanidade em “The Day After Tomorrow”, de Roland Emmerich, partilhada numa versão em braile em “The Book of Eli”, os twinkies como obsessão de Woody Harrelson em “Zombieland”, ou ainda mais “longínquo” dessa impregnação de Apocalypses cinematográficos, os livros, essas páginas agora entregues à mente dos errantes que se auto-baptizam por “homens-livros” em “Fahrenheit 451”, escrito por Ray Bradbury (com adaptação célebre de François Truffaut). Isto para dizer que às portas do Armagedão todos procuram ou preservam algo, esse mesmo encarado como uma negação face à extinção civilizacional, e no caso de “A Quiet Place: Day One” esse “objeto” é uma pizza, o que fará os protagonistas se moverem por uma Nova Iorque abandonada ao silêncio, salvaguardado por uma espécie alienígena invasora, que para quem assistiu aos anteriores “A Quiet Place” sabe em antemão que são sensíveis e atraídas pelo ruído (piada mortal o facto que terem “aterrado” na cidade mais barulhenta). 

Aqui, o empenho de John Krasinski nos referidos exemplares, a tentativa de um filme de família nos confins do Mundo (o desejo desse cinema para todos é trazido com a estreia do reconhecivelmente familiar “If: Amigos Imaginários”), organizou-se como a sua estreia em plena na realização, prometendo, e convém afirmar o fracasso daí exercido, o de executar uma obra com o receio da barafunda sonora, uma história, que registando as qualidades muitas vezes perdidas pelo cinema sonoro, a de ser perceptível através de movimentos, expressões e toda a semiótica ali, narrativamente falando, viável. Porém, a música intrusiva abandona a ideia fulcral, apenas dando espaço de manobra a Krasinski apresentar-se como um discípulo das lições fundamentadas de Spielberg neste reconhecível jogo de cinema para massas. Hoje em dia, arriscamos afirmar que é o homem mais capaz de mimetizar os passos do cineasta de “Jaws” e “E.T.”, mas só o tempo nos dirá obviamente. 

Quanto a “Day One”, Michael Sarnoski (“Pig”) assume o cargo e estabiliza o estilo e arquitetura do franchise, e como o título indica é uma prequela, o início da iminente extinção. No centro está Lupita Nyong’o, como mulher em estado terminal num Mundo que parece estar no mesmo modo, tenta sobreviver por entre uma “Big Apple” transformada em escombros e ninho destas vespas extraterrestres (o visual é que continua como enfadonhamente descaracterizado), na companhia do seu gato Frodo (bichano que fará delícias das audiências) e de um estranho (Joseph Quinn) que parte com ela na busca do seu referido “macguffin”. 

Ao encontro dessa tal pizzaria, perante a destruição e a possibilidade daquele “bem” proustiano ter desaparecido à face da Terra, uma imagem depara-se entre os dois sobreviventes, rendidos à sua desintegração no mundo, de joelhos no asfalto e rodeados de todos os sinais destrutivos possíveis, até uma labareda ascender-se do esgoto como um convite danteado. Esta imagem perdura por alguns segundos mais, e no simbolismo apocalíptico adquire uma carga emocional na sua estética, dois sujeitos, um com muito para viver, outra sem nada e a contar os dias, um felino no meio como anjo de guarda, abraçados, consolidando os seus lamentos, lutos e aceitam por fim o seu destino.    

O meu corpo, os meus géneros ...

Hugo Gomes, 26.06.24

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Chegamos a mais um trio de curtas emparelhadas como uma sessão única, utilizando a sua temática unificadora como “desculpa” para a sua aliança. “Ovnis, Monstros e Utopia: Três Curtas Queer” [“Entre a Luz  o Nada”, “Sob Influência”, “Uma Rapariga Imaterial”] reúne três obras, fruto de três produtoras diferentes [“Primeira Idade”, “Promenade”, “Terratreme”], mas cujas vertentes artísticas parecem saltitar de filme para filme. Enquanto o seu cuidadoso lançamento em junho assinala o içar da bandeira arco-íris e o punho certeiro em nome do Pride, como soa ordenar este calendário temático.

Contudo e quanto aos filmes, mesmo entrelaçados no selo queer, é curioso encontrar uma voz antagónica a essa mesma categorização, e é dela que gostaria de partir. Odete, atriz , performista e personagem principal de “Sob Influência” de Ricardo Branco - e também participante do festival de “Entre a Luz e o Nada” de Joana de Sousa, e compositora musical de “Uma Rapariga Imaterial” de André Godinho -, brindou-nos com um questionário habitual, sempre pontuado pela produtora Promenade nas suas redes sociais. É um hábito na sua conta de Instagram: os atores e agentes artísticos desta casa são desafiados a enumerar cinco coisas que adoram e cinco coisas que odeiam, curiosamente, Odete assinala o termo “queer” na lista dos ódios. 

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Entre a Luz e o Nada (Joana de Sousa, 2023)

Não entendendo bem o seu contexto, mas junto-me a ela, não em odiar [palavra demasiado forte], mas em questionar essa gravidade orbital trazida pelo uso da palavra queer. Mesmo conhecendo a “estética queer” no cinema - uma prolongação do camp com mais requinte visual - neste caso, oponho a categorização como um catálogo, um sectarismo que vai contra aquilo que as três curtas parecem/desejam manifestar – o romper de barreiras (leia-se géneros, sexualidades, códigos pré-socialmente estabelecidos).

Quanto às curtas propriamente ditas, os três elementos impostos no título da sessão são referências simbólicas, signos presentes em cada uma delas, ou por um lado, alegorias e personificações. Comecemos então com os “Ovnis”: “Entre a Luz e o Nada”, o lado intergaláctico de uma rave organizada em edifícios ao abandono, um filme sensorial que se apresenta como o segundo trabalho de Joana de Sousa, reconhecida no meio como ex-programadora do Festival Doclisboa (2015 - 2023). 

Dos três, é o mais convencional na dita estética queer, impondo uma brincadeira de luzes, purpurinas, constelações e música techno que se avançam em sonhos coletivos e em loop. Parte dessa brincadeira para se impor como uma mostra de uma fauna única deste mesmo universo, consolidado numa festa à moda daquilo que Portugal faz bem, seja em juventudes inquietas [“Verão Danado”], seja em territórios cavernícolas [“Ruby”], são convívios marginalizados, algo escapistas para com a uma realidade que os aterroriza, e os obriga a “banalizarem-se”. “Entre a Luz e o Nada”, o festim (quase) nu possui não só essa evasão de uma normalidade, como um culto de apelo a forças maiores que elas próprias, uma vinda extraterrestre quem sabe, que os liberta das suas amarras e a apresenta num único corpo, uma utopia [calma, já lá vamos!]. Joana de Sousa brinca aos misticismos como uma nova religião.

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Entre a Luz e o Nada (Joana de Sousa, 2023)

Monstros”: não dos saídos do armário, mas daqueles cujas garras nos sacodem para forma dos nosso parâmetros, aqui, Odete, a tal protagonista contra o termo Queer, é emborcada de alucinógenos que a empurram para fora do seu terreno, da sua realidade, torna-se um corpo alheio, abananado, deambulando para lá onde for. “Sob Influência”, de Ricardo Branco (também assistente de realização de “Entre a Luz e o Nada”), faz a sua fuga pro vai desse estupefaciente e o coloca a mente e o corpo de Odete na demanda da sua alegoria, é um “objeto” perdido e simultaneamente encontrado no limiar da sua fronteira (convenhamos, há um elemento abstracto conformidade com a alusão de não-pertença, Odete não pertence a etiquetas, géneros, nem seja o que for, povoa na sua exclusividade como a sua plena característica). 

Branco brinca a outros géneros, o do cinema, com sugestões de um terror psicadélico e de criaturas escuras como breu, voyeuristas e famintas, tudo envolvido num exercício de “nem carne, nem peixe” mas com atributos estéticos e produtivos que colocam “Sob Influência” num quadrante de um sonho acordado, e drogado. 

Contemplamos então a “Utopia”: “Uma Rapariga Imaterial” de André Godinho, o dos três o mais conseguido esteticamente, mas o mais ambíguo na sua temática / abordagem. A história tem tanto de fantástico-erótico como onírico-febril, um encontro mesmerizante entre Tiago (João Duarte Costa) e uma “rapariga” de nome João, que reside numa isolada casa no meio da floresta. Existe um choque inicial que nos guia à parcialidade do cinema de João Pedro Rodrigues, dos travestis caçadores-de-gambuzinos em “Morrer como um Homem” (2009) ou das amazonas agressoras de observadores de aves em “Ornitólogo” (2016), mas é nesses cantos e recantos obscuros do feral e do silvestre que se esconde sexualidades a ser exploradas nos confins da empestada civicionalidade que termina essas comparações. 

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Odete em "Sob Influência" (Ricardo Branco, 2023)

João Pedro Rodrigues não é tão favorável às mulheres como Godinho encanta neste registo com sonho de diluir géneros, corpos e genitálias, e isso torna-se evidente na sequência de sexo erotizado e hipnótico em que a tal rapariga de nome João assume e encorpora três carnes, distribuídas em três géneros (João Abreu, Aurora Pinho e Mafalda Banquarte), quebrando os limites do seu erotismo direccionado, nesse termo relembra o “faz de conta” de Bertrand Mandico na sua fantasia surrealista “Les Garçons sauvages”, ao trocar os papeis dos géneros e com isto desafiando o sexualismo dessas imagens e desses corpos. 

Só que “Uma Rapariga Imaterial” termina exatamente nesse registo erotizado e prossegue com uma agenda escancarada de revolução, contrapondo os “eles” contra os “outros”, os normalizados, os males do mundo materializados. Aí, a confusão instala-se, invocando e desinvocando todos os temas e mais alguns, propagando uma ideia de utopia (a cena final resume-se a isso). Infelizmente, o resultado é o contrário: uma distopia, um confronto sem decretos e declarações convictas.

É uma pena que um filme que desbrava as ervas-daninhas da sexualidade através de uma montagem perfeccionista e encantatória (a cargo de Francisco Moreira, responsável pela montagem de “A Metamorfose dos Pássaros” de Catarina Vasconcelos e “Alva” de Ico Costa) se deixe deslumbrar pela necessidade de transmitir uma mensagem imperativa, ou múltiplas mensagens, num ativismo algo tosco. A subtileza dos primeiros minutos era mais do que suficiente.

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Uma Rapariga Imaterial (André Godinho, 2023)

O Tempo, trabalho e melodia em "Soma das Partes": falando com o realizador Edgar Ferreira

Hugo Gomes, 23.06.24

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Seis décadas, sessenta minutos de filme, é o que se resume a esta composição documental que se dá pelo nome de “Soma das Partes”, um projeto que vénia faz ao percurso histórico da Orquestra Gulbenkian, salientado as suas importâncias sociais, políticas e artísticas. 

Um trabalho informativamente rico, integrado por dezenas de entrevistados, solistas, maestros, todos juntos com batutas e instrumentos na mão, sonorizando este “tic-tac” - da sua fundação em 1962 por Madalena Perdigão, até à nossa contemporaneidade -, numa pauta de imagens de arquivo e performances em forma de brilharete, um aperitivo para todos aqueles que estão alheios a este universo, e que mesmo assim musicado para todos os públicos. 

Já nos cinemas: “Soma das Partes”, um filme de história e das suas historietas, dirigido por Edgar Ferreira, o condutor – apesar da sua negação – que nos recebeu na própria Fundação Gulbenkian para uma conversa sobre a sua composição e que, adivinhem, terá acompanhamento futuramente…

Questiono-lhe, este filme foi um encomenda ou uma proposta sua à Fundação?

Este filme nasce da necessidade de comemorar os 60 anos daquele que é um dos agrupamentos mais importantes da Instituição e, nessa altura, convidaram-me para fazer o documentário.

E havia alguma estrutura pré-estabelecida pela Gulbenkian?

Não. Não houve uma conversa prévia com o serviço de música. Logo nessa conversa inicial surgiu a ideia de "60 anos, 60 minutos", e tal ficou decidido. Começámos a trabalhar nesse conceito e em como poderíamos fazer um documentário que tivesse paralelismo com a música, sugerindo um determinado ritmo ou compasso, e que conseguisse contar toda a História da Orquestra gulbenkiana, desde o seu início até à formação que se conhece hoje.

E como foi essa gestão de tempo, principalmente nas entrevistas que insere?

O filme é feito em co-argumento com a Andrea Lupi, que fez as entrevistas aos 23 entrevistados. Quando tivemos uma conversa prévia, explicitei a minha proposta de demonstrar o tema do tempo, visto estarmos a comemorar o marco temporal da própria orquestra, e explorar as suas diferentes perspetivas: o tempo da música, o tempo da interpretação, o tempo dos maestros, a própria longevidade do agrupamento ou mesmo o tempo das obras que tocam, que têm entre 200 e 300 anos, e que ainda assim permanecem resistentes à erosão da passagem do tempo.

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Edgar Ferreira / Foto.: Elsa Mónica Alexadrino

Com esta estrutura definida, as perguntas que fizemos seguiram essa ideia. Incluímos, sempre que possível, questões relacionadas com o tempo, para nos dar diferentes perspetivas sobre a temática, que depois espelhámos ao longo da narrativa do documentário.

Respondendo especificamente à sua pergunta, com essas entrevistas, havíamos angariado muito material, abrangendo diferentes décadas. Perguntámo-nos se estaríamos a ser demasiado redutores ao restringir-nos a uma estrutura tão rígida que nos obrigava a deixar determinadas partes de fora. O exercício foi: vamos tentar condensar tudo o que queremos dizer num curto período de tempo e perceber se conseguimos fazê-lo ou não.

Fizemos a primeira década, depois passámos para a segunda e assim por diante, mas a dúvida persistia. Houve décadas em que partimos de um pré-argumento com 40 minutos, que tinham que ser concentrados em 10. Como foi feito esse exercício? Na edição, muitas vezes utilizamos a complementaridade do discurso dos entrevistados para conjugar – alguém começa uma frase, outro termina; alguém enuncia um conjunto de obras, outro acrescenta – permitindo que cada entrevistado retomasse o discurso, não se restringindo apenas àquela pequena parte. Respirações, interjeições, tudo o que não era essencial para o entendimento do documentário foi retirado. Adjetivação dupla: "é bonito e elegante", não, basta "elegante". O elegante já contém a beleza, então ficámos apenas com esse adjetivo.

Dessa forma, conseguimos incluir todas as temáticas que nos interessavam em cada uma das décadas. O documentário adquiriu uma cadência e uma rapidez de desenvolvimento inesperadas.

O facto de ter “conduzido” e trabalhado o tempo neste documentário, sente-se com isso próximo dos propósitos de um maestro / condutor?

Não me atrevo a fazer essa comparação porque não tenho domínio suficiente no ato de dirigir uma orquestra. [risos]

Não refiro à arte de dirigir uma orquestra, refiro mesmo a essa ginástica e ensaio de tempo …

Posso dizer algo complementar: a ideia de termos uma marcação de tempo no filme não é nada de novo, já foi feita inúmeras vezes, mas, regra geral, essa marcação de tempo é em contagem decrescente, o que gera ansiedade quanto ao fim. Aqui é o inverso, temos uma contagem crescente, uma soma, não uma subtração. Acrescentamos à história deste agrupamento, não na expectativa de um fim que resolva o filme. Em vez de sentir expectativa ou ansiedade sobre o fim, há um sentimento de crescendo, continuidade e progressão.

Eu tinha dúvidas porque, quando sentimos a passagem do tempo, nem sempre é por um bom motivo; estamos à espera de algo, e isso reflete-se no documentário. Ou seja, para o espectador, ver que o tempo está a passar pode ser prejudicial, mas devido à elevada cadência, o que acontece, ou a sensação que pretendemos obter, é que quando chegamos ao fim de uma nova década, ficamos curiosos por saber o que vem a seguir. O que vamos ouvir a seguir? Isso combina com o momento final que de alguma forma nos transmite o que é comum num movimento de uma orquestra ao longo de 60 anos.

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Maria João Pires em "Soma das Partes" (2023)

Mas essa decisão de colocar um cronómetro no seu filme, não teve medo de transmitir uma ideia contrária ao espectador?

Como estava a dizer, tive essa dúvida. Acho que no resultado final não sinto. Em qualquer momento poderia ter optado por retirar, mas não o fiz porque senti que este cronómetro faz sentido existir no filme. Ao contrário de fechar, esta contagem permanece, é um movimento contínuo.

Quanto aos entrevistados? À sua seleção? Houve alguém que recusou o convite?

Ninguém recusou o convite, houve dificuldades em reunir com alguns deles, seja por motivos de agenda. Estamos a falar de pessoas com agendas muito preenchidas, concertos a nível internacional. No caso dos maestros, dirigem orquestras em todos os cantos do globo, semana após semana. Alguns solistas, como Maria João Pires ou Evgeny Kissin, dão igualmente concertos pelo mundo inteiro com frequência, e reunir todas as entrevistas no mesmo espaço, no Grande Auditório, foi uma tarefa difícil, requerendo alguma logística.

Como funcionou essa abordagem com os entrevistadores?

Com a Andrea, falávamos previamente sobre a questão do tempo, e depois falávamos antes e durante cada entrevista, tendo algumas perguntas-guia para direcionar os conteúdos que pretendíamos obter, especificamente para aquela área ou para aquilo que aquela pessoa nos poderia dar. Houve esse exercício. A conversa fluía naturalmente e, normalmente, eu e a Andrea discutíamos na entrevista: "Que tal perguntarmos isto também?". E, se houvesse disponibilidade, essa pergunta era feita.

Em relação à investigação?

Tenho trabalhado com a Gulbenkian com alguma regularidade, e é um privilégio poder estar neste meio com os músicos e tudo o que isso envolve. Tendo a oportunidade de trabalhar com o serviço de música, vou conhecendo parte da história. Do diálogo com os músicos e técnicos, vou conhecendo histórias, coisas que aconteceram ou estão a acontecer, momentos importantes que, de alguma forma, marcaram a vida da Orquestra Gulbenkian

Quando comecei o documentário "Soma das Partes", já tinha em mente temas que para mim eram bastante evidentes: a música contemporânea, a Madalena Perdigão, que está na génese dos três agrupamentos da Fundação Calouste Gulbenkian: Orquestra, Coro e Ballet.

À medida que o documentário foi se desenvolvendo, adquiri conhecimento de outros episódios até então desconhecidos para mim, seja por via de pesquisa, seja de menções feitas pelos entrevistados nas nossas conversas. Como as entrevistas foram espaçadas, ao obter uma resposta, permitiu-nos investigar um pouco mais sobre o tema e, se achássemos pertinente o seu desenvolvimento e aprofundamento, fazíamos isso com outro entrevistado a seguir.

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Houve algum episódio dentro desta “Soma de Partes” que o fez repensar na estrutura do documentário? Por exemplo, enquanto espectador, senti curiosidade em saber mais sobre o afastamento de Madalena Perdigão da Fundação.

A Madalena Perdigão merece um trabalho exclusivo sobre ela. Este documentário não é sobre ela, é sobre a Orquestra. Achei importante mencioná-la, porque obviamente está ligada à história da Orquestra, mas houve um momento em que tivemos que deixar essa questão de lado. Estaria mais preocupado, como havia afirmado há pouco, se aqueles dez minutos correspondentes a uma década não fossem suficientes para esquematizar todos os acontecimentos desse período e se tornasse redutor, refém de uma estrutura inicial que nos impedia de atingir todo o potencial prometido. E as décadas foram-se resolvendo, uma a uma, e no final sinto que não ficou nada de fora que eu achasse que deveria estar no documentário.

Mas em relação a esse filme sobre Madalena Perdigão. Seria o realizador indicado para essa tarefa?

Gostava muito, mas ... só o tempo dirá. [risos]

Fale-nos desse outro projeto seu, o “Coro: 60 Anos do Coro Gulbenkian”?

É um projeto que tem um ponto em comum com o filme da Orquestra, que é a passagem por 60 anos de existência …

Ou seja, não terá 60 minutos?

... e as semelhanças terminam aí. O documentário do Coro permitiu-me conceber algo distinto do que fiz com a Orquestra e só faria sentido fazê-lo dessa forma. Isto está relacionado com a forma como abordo cada projeto. Tem que ser desafiante, tem que me propor algo de novo, que não me faça sentir que estou a replicar um modelo ou esquema do que fiz anteriormente. Tendo dois agrupamentos que pertencem à mesma instituição e que estão a comemorar o mesmo arco temporal, achei que tinham que ser dois projetos inteiramente distintos.

Sobre o título “Soma das Partes”? Este é alusivo à composição do documentário, seis décadas a 10 minutos cada, dando no seu total 60 minutos de duração, ou é uma referência à estrutura da orquestra, ela uma formação de vários músicos, talentos, instrumentos e classes musicais?  

É as duas coisas. A resposta está na pergunta. [risos] E daí, sendo natural, que é um nome comum, sempre utilizamos essa expressão "A soma das partes é maior que o todo", e isso não deixa de ser verdade neste caso, tanto nos elementos que compõem uma orquestra, no som que acabam por produzir, na perseguição pela excelência que está na génese da iniciativa da Madalena Perdigão até à formação atual, como também é maior do que o próprio tempo que foi experienciado pela Orquestra.

"Chestnut": o impasse, e depois a maturação da castanha

Hugo Gomes, 21.06.24

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Tentando evadir os holofotes que lhe foram apontados com o sucesso da série “The Stranger Things”, na plataforma Netflix, a atriz Natalia Dyer tem escolhido uma alternativa no que requer presença na grande tela, conseguindo nestes últimos anos representar-se como faceta indie norte-americana, com considerações à sua figura enquanto descoberta sexual (com exceção do terror “All Fun and Games”, em 2023). Assim foi em “Yes, God, Yes”, abordando os benefícios da masturbação em ambientes religiosamente sufocantes, e agora numa espécie de "coming up" com toque LGBT, conectando-se com a identificável maturação.

Este filme - “Chestnut”, primeira longa-metragem de Jan Cron - usufrui do elemento queer para nos trazer a historieta universalista de uma jovem norte-americana pós-graduação, aspirante a escritora, que, na fuga a bares, se depara com um trio de personas automaticamente a integram no seu grupo, este, regido por clubes de poesia, litros de álcool e disputas sobre a qualidade musical das bandas que entram em diegese com a narrativa (composto por Ruby Haunt, Bullion, Kinship, entre outros). No centro desta folia está Tyler (Rachel Keller), uma jovem inconstante e, por vezes problemática, que será o seu interesse amoroso, com efeitos previsivelmente autodestrutivos.

Romance lésbico, será a fácil etiqueta para enfiar “Chestnut” [tradução para castanhas, o fruto] na que se acredita ser a sua “gaveta”, só que contrariamente a sua concepção está longe das estéticas ditamente, e ditatorialmente, queers - que vingaram no cinema, ora diversas vezes associados ao marginal e hoje trespassadas, cada vez mais, para o mainstream - e por sua vez mais próxima da fórmula indie-americana que qualquer Sundance desta vida ostenta como montra de promoção. Não é de todo um exemplar transcendental e interessante na sua teoria e igualmente prática, contudo, é Natalia Dyer que consegue carregar o filme para encostados, sem nunca, e daí o importante nestes exemplares, trair a empatia criada com o espectador.

No fundo, “Chestnut” é um filme de superação, crescimento e dores provenientes de "corações partidos" que nos servem como "abre-olhos para o futuro". O elemento lésbico é uma normalização e universalidade que nos faz desejar resgatar o filme das tais categorizações "queer" (e todo o marketing que isso tem acarretado) que tentam associá-lo, exceto um discurso enfiado às três pancadas sobre géneros e trans no calor do after. Mas perdoamos isso, visto que não é invocado mais nenhum panfletarismo aqui, apenas pessoas a viver as suas vidas, malditas e com manias de leccionar-nos … o que fazer, se a vida é mesmo feita desses encontros e desencontros?

Donald Sutherland (1935-2024)

Hugo Gomes, 20.06.24

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Il Casanova di Federico Fellini (Federico Fellini, 1976)

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Invasion of the Body Snatchers (Philip Kaufman, 1978)

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Don't Look Now (Nicolas Roeg, 1973)

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JFK (Oliver Stone, 1991)

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The Hunger Games: Mockingjay – Part 2 (Francis Lawrence, 2015)

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Eye of the Needle (Richard Marquand, 1981)

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Klute (Alan J. Pakula, 1971)

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M*A*S*H (Robert Altman, 1970)

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Revolution (Hugh Hudson, 1985)

MV5BODBiNzExZWUtNjM2ZS00YWNhLTgyZTMtZGVmZDU0NGUyNDStart the Revolution Without Me (Bud Yorkin, 1970)

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The Day of the Locust (John Schlesinger, 1975)

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Space Cowboys (Clint Eastwood, 2000)

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Backdraft (Ron Howard, 1991)

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Johnny Got His Gun (Dalton Trumbo, 1971)

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Ordinary People (Robert Redford, 1980)

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Novecento (Bernardo Bertolucci, 1976)

Debates sobre Cinema Português, para que vos quero?

Hugo Gomes, 20.06.24

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Na rodagem de "Revolução (Sem) Sangue" de Rui Pedro Sousa, até à data o filme português com mais espectadores em 2024

Desta vez tenho que tirar o chapéu a Jorge Mourinha por esta pertinente (mais disto, por favor) crónica influenciada pelos debates (nada enriquecedores) dos Encontros do Cinema Português, promovido pela NOS Cinemas. O último deste segmento que presenciei foi o de 2020, que após despachar filmes portugueses sem eira nem beira, culpavam os filmes pelos seus fracassos e o facto de uma representante da NOS (julgo ser a mesma que Mourinha referencia no seu texto), afirmar que a distribuidora / exibidora é um empresa que vende "filmes para millennials" (é que nem sabem sequer o que é um millennial), o que prova que há um problema nestas chefias.

Sobre o cinema português e o seu público, o tema mais complexo do que encostar as produções à delegacia ou paternalizar os espectadores com os “que eles querem ver”, traduzindo-os por comédias de teor televisivo. Ou mais grave, um representante da RTP a tratar filmes com conteúdos e a maldizer dos “festivais”.Há muito por onde começar e são poucos os parágrafos para acabar, mas uma ‘coisa’ é certa, tivemos obras de Manoel de Oliveira em pleno anos 90 que fizeram mais espectadores que “Soares é Fixe”, portanto, como explicar isto sem ser o de apontar o dedo aos mesmos?  

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