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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Uma questão de castas ...

Hugo Gomes, 31.05.24

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A dimensão causada por “Caste: The Origins of Our Discontents”, livro-tese vencedora de um Pulitzer da jornalista Isabel Wilkerson, levou a que Ava DuVernay condensa-se todo o discurso entranhado nessa escrita para um metragem com mais de duas horas de duração, optando pela pior opção de abordagem neste caso, a ficção. 

Origin”, ficou assim o título, coloca o espectador no centro emocional da sua autora, lidando com a produção do seu iminente livro enquanto confronta o pesado luto que a vida, essa maldita, lhe proporcionou. Enquanto isso, viaja pela Europa com destino marcado a Berlim, para a Índia com encontro com os “intocáveis”, “dalits” para sermos mais exactos, e por fim, escarafunchar as feridas da sua América ainda assombrada pela desigualdade social e racial, a terra das segregações e linchamentos. Através destes mesmos pontos, DuVernay, também autora do argumento, faz malabarismo com o conteúdo do livro, que expõe uma teoria de castas e processos de desumanização para fortalecer uma hierarquia de poder interligadas pelos cantos do Mundo, e das ênfases dramáticas provenientes da sua protagonista (Aunjanue Ellis-Taylor), num modo de superação e em percurso de uma prolongada e interminável palestra. 

Origin” é, em todo um caso, um filme desarmante na sua relação com a crítica formalista, porque nele existe uma associação intrínseca do seu tema com as opções estéticas e narrativas. Porém, o livro está cá fora, o filme é outro universo que assume como fácil audiobook para os “preguiçosos” e revela aquilo que DuVernay nunca conseguiu conquistar na sua posição de realizadora, um olhar técnico e estético com os pés devidamente assentes na terra, trocando a razão pela emoção (ocasionalmente manipulatória devemos dizer). Isto, claramente, nunca menosprezando o seu trabalho enquanto produtora (mais relevante que a sua posição na cadeira de realização), em “Origin” existe uma exaustiva vontade de persuadir ao invés de acompanhar o raciocínio de Wilkerson, e essa persistência o torna um filme-coxo, caindo nas armadilhas mais evidentes para se vender ao seu jeito mainstream (a urgência enquanto reação mercantil). 

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Contudo, há dois momentos que destacaria, que mesmo sugerindo e não dando a lado nenhum, guia-nos pela pressuposição de um outro e possível filme; o primeiro, um plano focado na vitrine da porta de uma loja de conveniência, refletindo as iluminações exteriores e metamorfoseando-as como pequenas constelações (um universo a expor essa interligações geográficas e históricas com a teoria de castas de Wilkerson), rompidas pela saída de Trayvon Martin (Myles Frost) - afro-americano, que na trama, como na vida real, seria assassinado num subúrbio branco passado alguns minutos - que automaticamente se enquadra naquele improvisado cosmo, o centro, daí a partida do seu epísodio para a condução teórica. 

O segundo, e mais desaproveitado que o anterior, na aflição perante uma infiltração na sua própria casa, Wilkerson solicita serviços de um canalizador, a figura que nos surge, interpretada por Nick Offerman, é um homem branco de aspecto rude, mas é o boné vermelho com as inscrições MAGA (Make America Great Again) que a deixa inconfortável. Mesmo assim, a nossa protagonista persiste num diálogo com este sujeito com “cara de poucos amigos”, a conversa levará a pontos íntimos de ambos, criando automaticamente uma empatia mútua. Ultrapassado as características da sua desumanização, Wilkerson viu neste canalizador trumpista um humano como ela (aí é encontrada a solução para a sua ainda por tecer teoria de castas). Trunfo retirado do baralho, o único, porque o resto é pedagogia.   

O farrapo humano

Hugo Gomes, 30.05.24

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Eis o salto triunfal de André Marques ao ambicionado território da longa-metragem - após anos e anos dedicados ao formato curta, numa trajetória elogiada nos círculos cinéfilos, críticos e até mesmo académicos [“Yulya”, “Luminita”] - "O Bêbado", um título que por si sugere o tom cruel acarretado pela obra, é um exemplo a merecer ser replicado de como o cinema português poderá adquirir a capacidade de cativar um vasto público sem o auxílio (ou lê-se rendição) da linguagem televisiva. 

Na verdade, deparamos com uma anti-telenovela, um ensaio incorporando em formalismos e terminologias identificáveis do cinema romeno - focando-se no quotidiano e extraindo dele uma crítica social, a estética crua e a câmara predatória para com o protagonista -, ostentando um guião minuciosamente trabalhado, verossímil e silenciosamente eufórico, refletindo o desespero sufocado do protagonista, Rogério (interpretado por Vítor Roriz, arrebatadoramente lacónico e corpóreo), o nosso “bêbado”, um constante refugiado no álcool com intuito de "anestesiar" a sua existência fragmentada e silenciosamente torturante (curiosamente a imagem do filme torna-se mais enevoada de forma a acompanhar o estado de embriaguez da personagem). 

Recebemos como cartão de “boa-vindas” nesse seu mundo ao som de "Quero Viver", a música póstuma de António Variações, interpretada pelo grupo Humanos, uma representação desses desejos ardentes escondidos sob a sua carcaça desanimada, contrastando com o retrato miserabilista de uma decadente Setúbal, aqui equiparada a periferia de sonhos nunca alcançados. Contudo, o filme evita cair no cliché do "farrapo humano" e no moralismo declaradas em guerras contra o alcoolismo, foge do panfletarismo, estabelecendo a sua fixação pela ficção. A sua ambiência é dotada por detalhes de um quotidiano identificável, acreditamos piamente naquele registo, naquele personagem, naquelas dores e naquela realidade, e é por essa via que Marques marca o seu devido ponto, mas não termina aqui. 

É que quadros dardaneanos encontram-se demasiado presos a um cansado discurso social, aqui, é o ‘brinde’ que surge na passagem do primeiro ao segundo ato que apimenta a narrativa, fazendo dirigir por outros caminhos, meio revoltosos é verdade, de um tom de vigilantismo acidental, o “Taxi Driver” à portuguesa que muitos adorarão descrever. O ponto extra deve-se aos seus minimalistas diálogos, principalmente oriundos da personagem de Rogério, mais performativo e expressivo que apenas um debitador-de-texto, um filme que funcionalmente comunica através das suas imagens, não dependendo da verborreia. 

Uma lição estudada, executada e bem-sucedida, do qual “O Bêbado” se orgulha de apresentar como artifício de uma estreia fulgurante no formato longa. André Marques consegue um crível conto de mártires residentes da nossa contemporaneidade. Brinde por isso!

Estamos com Sandra Faleiro!

Hugo Gomes, 27.05.24

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Muita comparação com as primeiras comédias negras almodovarianas têm sido reunidas num consensual coro, da mesma forma que o encosto de Sandra Faleiro à magnética presença da diva do pastiche Carmen Maura. Contudo tentaremos abandonar por momentos essas vibes, que de certo correspondem a influências, e foquemos neste “Estamos no Ar”, o salto cumprido de Diogo Costa Amarante (“Cidade Pequena”) ao reino das longas, numa comédia dramática com o seu quê queer, mas sobretudo envolto numa atriz a merecer mais destaque que estes ventos lhe dão. Sim, ela mesmo, Sandra Faleiro. 

A sua personagem tem tanto de figura aportuguesada e moderada, oprimida pelas cânones sociais ainda em vigor, como também rasgada pela tentação, essa fantasia ardente que reacende com faros tradicionais, ou seja, a farda repescada enquanto afrodisíaco do desejo sexual. Mulher de meia-idade, de seios fartos e cirurgicamente operados como doce chamariz ao(s) seu(s) vizinho(s), um pela boa conduta de vizinhança - um trabalho de lavandaria aqui e acolá como satisfação de necessidades - e do outro lado da janela em modo “Rear Window” encavalitado com a perversão de “Peeping Tom”, o flirt pelo desconhecido quando o Tinder é somente visto como engate pouco discreto. 

Ela, sim, a nossa vedeta cinematográfica, aliás, de vários palcos, como pudemos “ver” [sendo o teatro nicho nestas lides] enquanto canibal sarcástica e de seduções nata em “O Livro de Pantagruel”, com encenação de Ricardo Neves-Neves. Há um elemento ultra-sexualizado na sua presença voluntariamente insonsa, como subjugada aos tabus da sua mente e as possibilidades deste prolongar delírios de coitos e abraços imaginários, mas é mesmo esse interior vandalizado, ou melhor, invadido que a acarreta-lhe medo. Um rato passeia alegremente no seu domicílio, roedor que provoca náuseas e insónias à personagem de Sandra Faleiro, sendo essa criatura uma representação animalesca do seu espírito pregado ao poder das suas sexualizadas projecções. 

Estamos no Ar” é um filme sobre sexo, respirando e suando por todos os esporos, revelando-se na sua essência uma ousadia como golpe desferido ao relato dos “bons costumes” à português de mandar. Entre Carloto Cotta ocultando a sua homossexualidade por entre fardas “emprestadas” (a identidade por via da vestimenta) e de Valerie Braddell (atriz que esteve em alta na curta “As Sacrificadas” de Aurélie Oliveira Pernet) a servir de peculiar viuva que na dominância do seu luto, solicita o corpo da sua melhor amiga para uma experiência quase frankensteniana, a de reavivar o seu falecido marido: personagens à deriva da sua sexualidade fragilizada detidas por uma sociedade que lhes dita como comportar. 

Diogo Costa Amarante engendra a ratoeira de estéticas neon, de sonhos febris em esverdeadas luzes frias, e concretiza um mosaico à lá Beleza Portuguesa, o que se esconde, ou que escondemos nos nossos “refúgios”, sejam físicos [corpo e imóvel], sejam mentais e sentimentais? Porém, a sua conjugação de histórias repartidas não é de todo fluída, demasiado fragmentadas, como curtas em separação de bens que se reúnem em equivocadas e embebidas festas na combustão do álcool e de preservativos nos bolsos para alguma ocasião. Mas, no seu coração, no seu centro, deparamos com uma atriz que aos seus 50 anos ostenta a sua redescoberta “flor da juventude”. Estamos com Sandra Faleiro!

Do real para o imaginário cinematográfico ... com queimaduras nas mãos!

Hugo Gomes, 26.05.24

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O cinema de Margarida Gil tem caminhado para produções austeras, em jeito de resiliência e talvez um pouco de "carolice", que a faz avançar contra todas as adversidades. Há uns meses, uma curta e uma longa-metragem estrearam em modo double bill nos cinemas portugueses ["Cavaleiro Vento", "Perdida Mente"], de forma a relembrar a sua existência num meio que resiste aos apoios e aos júris que selecionam quem "filma" e "como deve filmar". Gil, por outro lado, calha a "sorte grande" com um filme de produção modesta, que a extrai dos trabalhos mais artesanais e, em todo o caso, amadores. O que encontra neste refúgio ao abrigo da Ar de Filmes é a sua aparentemente derradeira oportunidade de se reerguer. Daí que a realizadora se conquiste por meio de um cuidado técnico e uma planificação que a vincula às tradições, hoje em modo expiratório, do cinema que a viu nascer. Um cinema oliveriano em trajes de Henry James - "The Turn of the Screw" ("A Volta do Parafuso", na tradução portuguesa da editora Sistema Solar) - mas despido do seu horror gótico e encantado com as possibilidades da sobrenaturalidade trazida à arte de filmar, sobressaindo como relato gótico com vénias ao misticismo que o Cinema nos trouxe.

Ora, convém salientar que em "Mãos no Fogo", ao invés de amas enviadas para mansões remotas, é uma jovem estudante de cinema (Carolina Campanela, interpretando uma Maria do Mar, ligação com a donzela nazarena do homónimo filme de Leitão de Barros e com a última longa-metragem assinada por Gil, “Mar”, em 2019) com a tese do "Real no Cinema" na mente, que se depara com os habitantes do casarão - velha lógica de um cinema visto pela sua burguesia e de contos de realeza e bons costumes -, o qual é cedido por pensamentos de incerteza e de espectros que por lá habitam, tendo como única certeza a sua imortalização por via das imagens. É "filmar o real", mas é para além disso que a câmara e a sua narrativa subjacente captam, numa espécie de erotismo barroco e de mestres implícitos numa intelectualidade e cultura impermeável e intransponível (sob um snobismo vilipendiado de Marcello Urgeghe).

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Margarida Gil opera sob esses tópicos de perfuração do assombro residido naquela instância, cuja protagonista escreve e rasura com constância no seu bloco de apontamentos... isso mesmo, apontamentos sobre o testemunhado e captado numa intenção de se encontrar numa coesão de pensamentos, infelizmente atormentada por visões e presenças (Rita Durão na sua delirante forma) que a fazem desconfiar das suas próprias "crenças" (o peru, o vegetarianismo e a cozinheira Adelaide Teixeira [resgatada do primeiro filme de Gil - "Relação Fiel e Verdadeira" (1988) -, Mefistófeles de bata que a seduz ao pecado e à tentação]). É um filme de imagens, repito isto vezes sem conta, como oposição às acusações de teatralidade ou da narrativa fracassada numa percepção de storytelling aristotélico (sabendo também que é nesta declarada guerra para com tais “inimigos” que o filme nunca desfere a sua transgressividade). 

É a sugestão, o fantasmagórico que projeta como memorialismo de produções ‘tobiescas’ ou de um Manoel Oliveira de mão dada à sua comparsa Agustina Bessa-Luís. Aliás, é aí que entra o elemento crucial da jornada e de convocação de Gil: a casa, o seu efeito, a sua imponência, as histórias aí permanecidas, encobertas em pó ou imprimidas em esquecida película à espera de uma outra e nova projeção. A casa vira tradição, e é através dessa tradição que Margarida Gil deseja lançar o recado para o "mundo" - "Eu continuo aqui!". Visto que chegamos a um tempo de revisionismos e de recuperações - é preciso escrever a história do nosso cinema por linhas direitas - com Solveig Nordlund, António de Macedo, Carlos Vilardebó, Fernando Matos Silva, Monique Rutler e, recentemente, Rui Simões na esperança de um holofote há muito negado. Gil inveja tal salvação e, para tal, demonstra o quão é capaz de invocar cinema na sua pomposa e ostentada estética. Já não se fazem filmes assim! Aliás, este "Mãos no Fogo" poderá ser o último da sua espécie (basta constatar, por exemplo, como “Sibila” sucumbiu a um vazio lírico normalizado nestes novos tempos).

Falsos Gémeos

Hugo Gomes, 24.05.24

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Freddie Highmore em "The Spiderwick Chronicles" (Mark Waters, 2008)

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Bette Midler em "Big Business" (Jim Abrahams, 1988)

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Adam Sandler em "Jack and Jill" (Dennis Dugan, 2011)

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Leonardo DiCaprio em "The Man in the Iron Mask" (Randal Wallace, 1998)

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Jean-Claude Van Damme em "Double Impact" (Sheldon Lettich, 1991)

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Armie Hammer em "The Social Network" (David Fincher, 2010)

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Lindsay Lohan em "The Parent Trap" (Nancy Meyers, 1998)

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Nicolas Cage em "Adaptation." (Spike Jonze, 2002)

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Edward Norton em "Leaves of Grass" (Tim Blake Nelson, 2009)

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Tom Hardy em "Legend" (Brian Helgeland, 2015)

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Carloto Cotta em "A Semente do Mal" (Gabriel Abrante, 2023)

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Jeremy Irons em "Dead Ringers" (David Cronenberg, 1988)

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Jackie Chan em "Twin Dragons" (Ringo Lam & Tsui Hark, 1992)

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Bette David em "Dead Ringer" (Paul Henreid, 1964)

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Christian Bale em "The Prestige" (Christopher Nolan, 2006)

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