Uma questão de castas ...
A dimensão causada por “Caste: The Origins of Our Discontents”, livro-tese vencedora de um Pulitzer da jornalista Isabel Wilkerson, levou a que Ava DuVernay condensa-se todo o discurso entranhado nessa escrita para um metragem com mais de duas horas de duração, optando pela pior opção de abordagem neste caso, a ficção.
“Origin”, ficou assim o título, coloca o espectador no centro emocional da sua autora, lidando com a produção do seu iminente livro enquanto confronta o pesado luto que a vida, essa maldita, lhe proporcionou. Enquanto isso, viaja pela Europa com destino marcado a Berlim, para a Índia com encontro com os “intocáveis”, “dalits” para sermos mais exactos, e por fim, escarafunchar as feridas da sua América ainda assombrada pela desigualdade social e racial, a terra das segregações e linchamentos. Através destes mesmos pontos, DuVernay, também autora do argumento, faz malabarismo com o conteúdo do livro, que expõe uma teoria de castas e processos de desumanização para fortalecer uma hierarquia de poder interligadas pelos cantos do Mundo, e das ênfases dramáticas provenientes da sua protagonista (Aunjanue Ellis-Taylor), num modo de superação e em percurso de uma prolongada e interminável palestra.
“Origin” é, em todo um caso, um filme desarmante na sua relação com a crítica formalista, porque nele existe uma associação intrínseca do seu tema com as opções estéticas e narrativas. Porém, o livro está cá fora, o filme é outro universo que assume como fácil audiobook para os “preguiçosos” e revela aquilo que DuVernay nunca conseguiu conquistar na sua posição de realizadora, um olhar técnico e estético com os pés devidamente assentes na terra, trocando a razão pela emoção (ocasionalmente manipulatória devemos dizer). Isto, claramente, nunca menosprezando o seu trabalho enquanto produtora (mais relevante que a sua posição na cadeira de realização), em “Origin” existe uma exaustiva vontade de persuadir ao invés de acompanhar o raciocínio de Wilkerson, e essa persistência o torna um filme-coxo, caindo nas armadilhas mais evidentes para se vender ao seu jeito mainstream (a urgência enquanto reação mercantil).
Contudo, há dois momentos que destacaria, que mesmo sugerindo e não dando a lado nenhum, guia-nos pela pressuposição de um outro e possível filme; o primeiro, um plano focado na vitrine da porta de uma loja de conveniência, refletindo as iluminações exteriores e metamorfoseando-as como pequenas constelações (um universo a expor essa interligações geográficas e históricas com a teoria de castas de Wilkerson), rompidas pela saída de Trayvon Martin (Myles Frost) - afro-americano, que na trama, como na vida real, seria assassinado num subúrbio branco passado alguns minutos - que automaticamente se enquadra naquele improvisado cosmo, o centro, daí a partida do seu epísodio para a condução teórica.
O segundo, e mais desaproveitado que o anterior, na aflição perante uma infiltração na sua própria casa, Wilkerson solicita serviços de um canalizador, a figura que nos surge, interpretada por Nick Offerman, é um homem branco de aspecto rude, mas é o boné vermelho com as inscrições MAGA (Make America Great Again) que a deixa inconfortável. Mesmo assim, a nossa protagonista persiste num diálogo com este sujeito com “cara de poucos amigos”, a conversa levará a pontos íntimos de ambos, criando automaticamente uma empatia mútua. Ultrapassado as características da sua desumanização, Wilkerson viu neste canalizador trumpista um humano como ela (aí é encontrada a solução para a sua ainda por tecer teoria de castas). Trunfo retirado do baralho, o único, porque o resto é pedagogia.