Sandra Milo (1933 - 2024)
Sandra Milo em “Giulietta degli Spiriti” (Federico Fellini, 1965)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Sandra Milo em “Giulietta degli Spiriti” (Federico Fellini, 1965)
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Numa Lisboa steampunk-retrofuturista, com pasteis de nata em abundância e um fado entoado em cada borda, Emma Stone, aqui a frankensteiniana Bela, criatura de fabricos e remendos, procura nestes lugares “exóticos” um elo que a une à humanização que tanto ouviu discursar na sua residência / esconderijo em Londres. O que vai encontrar, não só na imaginária capital portuguesa, como também algures no Mediterrâneo e numa Paris lasciva e sexualmente libertária, são “pobre criaturas” em vestas humanas, fealdades ou beldades, heroicas ou vilãs, corajosas ou cobardes, somente viventes sem noção.
A adaptação do bestseller de Alasdair Gray resulta nas mãos do helénico Yorgos Lanthimos numa comédia negra e algo burlesca com refinações existencialistas, pomposa num desfile de grostecidade e monstruosidades, o filme entra em conflito com a própria definição generalizada do Belo, aliás Bela, esse atalho, o nome, mantém-se na protagonista como uma provocação, e se essa beldade, seja estética ou cromática, validada numa sociedade como a de hoje, que perante tantas obras das mais diferentes artes, definidas em absoluto, caiu numa banalidade ou num axioma embutido. O conceito de Belo, associa-se a uma resposta harmónica aos nossos sensos e sentidos, há uma exaltação desse apaziguamento perante determinada melodia, imagem ou coloração, ou até na esquadra renascentista que surge ordenado pela régua e a sua simetria, o Belo está na ordem (daí um filósofo ultra-conservador como Roger Scruton tentar arregimentar uma validação da beleza e lamentar a sua decadência no século XX e XXI), e quanto ao oposto, a desordem, tendemos em encaixá-lo no desengonçado, no feio, nas feias-artes. “Poor Things” não nos leva a reflexões filosóficas ou esmiuçamento de qualquer género, só que a sua não-graciosidade, a sua não-subtileza, a reação dela extraída, faz-nos conduzir a esse dilema do belo e do feio. Ou será que perante esta modernidade que nos acompanha, o feio torna-se num novo belo e o belo no obsoleto?
Contudo, há aqui conflito devido à escola de Lanthimos, realizador e argumentista dotado em distorcer a sua realidade em semi-distopias várias (basta ver o caminho percorrido de “Canino” a “The Lobster” e assim sequencialmente para entendermos essa marginalização das leis básicas da “narrativa física”, diremos) e igualmente aproximando duma estética kubrickiana, perfeccionista e imperativamente esmagadora com tudo o resto. “Poor Things” tem essas tendências que nos levam a uma igualmente liberdade cénica ou de uma fantasia molhada borisviana com cruzamentos de um vitoriano orgásticamente feliz. Só as opções de como filmá-la leva-nos a essa bizarra aliança ao grotesco da sua narração e argumentação, a cor, perde ocasionalmente, tentando, previsivelmente criar um espaço temporal (e mimetizando os 'passos' de uma criança que vai reconhecendo gradualamnete a coloração do seu redor), e cujas as angulares histriónicas, a profundidade vertiginosa e embriagada, tendem em incentivar uma repudia imediata. Lanthimos está encarregue de repudiar-nos, e não falamos do “body horror” bastardamente cronenberguiano que por vezes sugere nestas imagens da bestialidade ou da Bela [personagem] a caminho da sua empatia (ou o pragmatismo que leva à sua anulação), mas na sua concepção enquanto filmica.
Estranhamente, esta obra do realizador espiritualmente vai ao encontro de um dos propósitos de “Canino”, que é o de desejar não ser amado, portanto acredito que nesse sentido, “Poor Things” é mais desafiante do que se propriamente se vai inferir na cinefilia ainda detida desse conforto visual. Se isso é bom ou não, cabe ao espectador posicionar-se nesta questão de belo ou nada …
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Doris Day em "The Thrill of It All" (1963)
Al Pacino em "...And Justice for All" (1979)
James Caan em "Rollerball" (1975)
Ted Neeley em "Jesus Christ Superstar" (1973)
Denzel Washington em "Hurricane" (1999)
Michael Caine em "The Statement" (2003)
Steve McQueen em "The Thomas Crown Affair" (1968)
Sidney Poiter em "In the Heat of the Night" (1967)
Cher em "Moonstruck" (1987)
Topol em "Fiddler on the Roof" (1971)
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Look at Me
O que têm em comum depressões com ansiedades, distúrbios da ordem psicológica (com agravante alimentar) e até a "simples" melancolia é encarar esse sofrimento não só como único, mas também como o mais 'pesado' do mundo. "Look at Me", a segunda longa-metragem de Taylor Olson, é um filme dessa ordem, do íntimo, do "eu", do terapêutico, em que o realizador assumidamente ator, assumidamente personagem e assumidamente inspiração, confronta-se numa sociedade ditada pelo estético e cuja ânsia de vencer (em ser e acreditar ser um “contender”) numa indústria igualmente competitiva (a do audiovisual) o guia por um tormento de bulimia e autodestruição.
Do mesmo prisma que Ari Aster enfatizou os seus demónios num prolongado "Beau is Afraid" (2023), Olson parte de si e da sua própria experimentação, incutindo um jeito "videoclipeiro" para representar um fado interiorizado e monstruoso, e ‘brinca' com a resolução do seu mundo [leia-se tela], comprimindo como sufoco ou alargando como libertação ou simples folgamento, recordando as semelhantes manobras de Xavier Dolan no aperto sentimental de "Mommy" (2014). É um projeto arriscado enquanto segunda obra, essa autognose pitada com um pouco de egocentrismo, cujo diálogo de si para si parece restringir tudo à sua volta, desde os secundários às eventuais figurações, recolhidos a uma mera subserviência narrativa.
Porém, Taylor Olson detém genica em conseguir envernizar um filme com claras carências de recursos e "mão de obra", e numa eventual indústria, esses dotes serão ferramentas para um futuro... quem sabe.
Secção: 2024 Unstoppable Features
All I've Got & Then Some
Uma história "underdog", daquelas que Hollywood tanto gosta de se encantar, com inspirações autobiográficas: "All I've Got & Then Some" acompanha Rasheed Stephens a ser, ele mesmo, Rasheed Stephens, rapaz de sonhos e ambições. Entre a comédia de stand-up e a atuação, vive na sua viatura e corre contra o ditado tempo para conseguir o seu "momento". Rasheed é igualmente o realizador, argumentista e produtor, ao lado de Tehben Dean, numa longa-metragem que, tal como o protagonista, anseia atingir essa emancipação artística. Porém, mesmo cedendo a algumas rasteiras de "obra de principiante" (como aquela montagem musical sob fragrâncias de vitória antecipada), existe um gesto algo transgressivo à própria noção do seu realismo imediato, assim como um reality show e as suas vertentes televisivas.
Nesse aparelho estético, é possível encontrar um elo de ligação do percurso de Rasheed com o formato vencedor da série "Seinfeld". As peripécias, muitas delas a acontecerem frente aos nossos olhos, são figuradas em ensaios de stand-up comédia, aqui num tom confessional e, por vezes, derrotista como separadores capitulares. E tal como o referido ‘Jerry’, é o humor do trágico, é o fracasso na vitória e, quem sabe, a comédia como apaziguação duma dor interna. Rasheed, o nosso jovem, ora cedido à sua melancolia, ora cedido à motivação, em que todos os dias são "os melhores dias da sua vida".
Secção: 2024 Narrative Features
L'Incidente
É sempre no lugar da pendura que acompanhamos "L'Incidente", trabalho inaugural da longa-metragem de ficção de Giuseppe Garau, que literalmente, seguimos a reboque de Marcella (Giulia Mazzarino), uma mulher e mãe solteira desesperada que, após ver a sua vida desmoronar num acidente rodoviário, prossegue num trabalho de assistência a outras sinistralidades. A sua escolha de perspetiva e, com isso, o seu reduto fortalecido, transmite-nos vitalidade a este drama descendente duma protagonista passiva e a caminho da "necrofagia". É um "crash" eventualmente moral, e sobretudo uma tortura com ajuste de contas a esta personagem, "rastejando" perante a chapa acumulada da sua não-reação.
Garau, também argumentista, faz do seu percurso uma crónica da sua contemporaneidade, ilustrando, através dessa tela reduzida à impotência imposta e exercida numa sociedade cada vez menos empática (encontramos estéticas equiparadas ao realismo social dos irmãos Dardenne ou do realismo absorvido de Lucrecia Martel). É o velho enredo a colar à nossa traseira, enquanto nós, espectadores, reduzidos ao “lugar de testemunha”, sentimos-nos impotentes e incomodados pelo constante embaraço e humilhação do filme para com a sua protagonista. Será que o realizador odeia efetivamente a sua personagem? Ao contrário do que soa, a resposta é não. Há um gesto de solidariedade da parte dele em auxiliar uma luz moral, um agradecimento indevido depois de um subsistente gesto antiético, saboreia-se como uma epifania persistente, na esperança de que a sua queda à insignificância não seja total.
Já nós, espectadores, somos ofendidos com a “correria” de ofensas a Marcella. Nada podemos fazer, nem sequer apontar o dedo; a sociedade já nos consome, e demasiado, a nossa paciência.
Secção: 2024 Narrative Features
One Bullet Afghanistan
Tendo dedicado 18 anos ao Afeganistão, imersa nesta guerra prolongada, a oscarizada documentarista Carol Dysinger ("Learning to Skateboard in a Warzone (If You're a Girl)"), apresenta-nos esta abordagem como resultado da sua ligação com o país e das experiências dele decorrentes. O relato inicia-se como um episódio quase kafkiano: um jovem afegão baleado na perna, cujo ferimento o levaria à morte. Antes disso, surgiram acusações de que a autoria da bala era de negligência americana, e o exército americano a negar esses direitos, resultando, burocraticamente, na falta de apoio ao ferido e família.
"One Bullet Afghanistan" retorna à história alguns anos depois, tentando confortar uma família que vive um luto constante, e como cada membro familiar expressa esse mesmo luto de maneiras distintas. Compreendemos o filme como um retrato subtil do conflito, da impotência de um povo enredado nesta situação e da ascensão de um radicalismo anti-ocidentalismo que levou o Afeganistão ao estado atual, marcado por retrocessos civilizacionais e um revanchismo vincadamente talibã.
"One Bullet Afghanistan" é, formalmente, direto e possivelmente imediato; as imagens não o valor que as declarações extraídas, seja das proclamações de uma crença única e não-negociável ou de uma mãe desgostosa que desespera em ser a melhor anfitriã [“coma, coma, (...)]. O seu lado político-social é suscitado nestes diálogos e na observação de um movimento em ascensão, especialmente de uma ideologia anti-mulher que bebe e agrava do seu tradicionalismo vindouro (“No Afeganistão, só és órfão quando o teu pai morre, mesmo que a tua mãe esteja viva”). Carol Dysinger despede-se assim do país que a acompanhou por quase duas décadas e das experiências que transformou em filmes. No entanto, a despedida é triste, pessimista e desprovida de forças para prosseguir. É o Afeganistão de hoje, impelido à barbárie, ao isolamento e ao fanatismo, que "dela boa poesia não traz" [Catherine Nixey].
Filme de abertura
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Oppenheimer (Christopher Nolan, 2023)
Ontem foram anunciados os "premiados" da OFCS (Online Film Critics Society), na qual participo, e constatei que são exatamente os mesmos nas suas devidas categorias em relação a outra enxurrada de prémios e círculos de crítica. Hoje, confirma-se a "harmonia" com as nomeações aos Óscares, como se fosse um campeonato. O que mais entristece não são os prémios, mas sim como este círculo de críticos parece não sair daquele formato de "gosto". Deixou há muito de existir exigência, e sobretudo, pensamento. Temo que a Crítica de Cinema se transforme em algo meramente decorativo... e estrelado.
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À Flor do Mar (João César Monteiro, 1986)
Cavaleiro Vento (Margarida Gil, 2022)
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"Périphérique Nord" (2022)
À segunda longa-metragem e ao segundo encontro, Paulo Carneiro mantém-se motivado em presentear-nos com o seu cinema, a sua ideia, a sua concepção, para a qual não existe pessoa melhor para a explicar do que ele próprio. Mas voltando ao filme, depois da sua autodescoberta em "Bostofrio", segue para a Suíça ao encontro de uma comunidade lusa de emigrantes, cujo carro é a respetiva catedral, um altar à sua identidade, ao seu jeito memorialista de "ser português". O realizador frisa constantemente para que não nos deixemos levar ao engano; "Via Norte" ("Périphérique Nord") não é um "filme sobre carros", é um "filme com carros", no qual as viaturas são atalhos ao que realmente mais importa no cinema de Carneiro, que é aproximar pessoas.
Numa nova conversa, com novos temas, mas rodando os anteriormente mencionados tópicos, Paulo Carneiro disponibilizou o seu tempo para nos falar de "Via Norte", do cinema "que lhe dá na telha", sobre emigração e identidade portuguesa, e do seu próximo filme, "A Savana e a Montanha".
Avanço com a questão-base, como surgiu a ideia para a sua segunda longa-metragem?
Geralmente, a temática dos meus filmes – refiro-me "os meus filmes" porque, bem, estou a concluir outro, neste momento - é fruto de processos muito orgânicos. Ou seja, não ando à procura de ideias; elas vão surgindo porque alguém menciona algo, e a partir daí encontro algo muito pessoal nelas. Aqui, na verdade, faz parte de um imaginário infantil. Na aldeia dos meus pais, a minha mãe na Beira Baixa e o meu pai em Trás-os-Montes, em Bostofrio, onde realizei o meu primeiro filme, em criança, via a chegada dos emigrantes, acompanhados pelos os seus grandes carros. Ficava ali especado, a observá-los, porque talvez eles me transmitissem algo. Este fascínio também era responsabilidade do meu pai, visto que sempre gostou de carros; já trocou imensas vezes e dedicou bastante tempo a isso. Também partilho essa paixão.
Na verdade, havia muito julgamento por parte das pessoas que permaneceram na aldeia em relação aos emigrantes. Mas para mim, emigrar é um ato de coragem e há sempre críticas por parte daqueles que ficaram em relação a eles, que chegavam com grandes carros, alguns modificados e outros não, mas geralmente tinham sempre os veículos a brilhar. Isso intrigava-me, porque eu verdadeiramente apreciava ficar ali como quem visita um museu para ver uma pintura ou uma escultura, ou algo do género. E, de certa maneira, refletindo sobre isso.
Ou seja, é uma coisa imaginária da minha infância que continua presente em mim, e até recordo que, na altura em que “Bostofrio” estreou, várias pessoas comentaram comigo sobre isso, questionando o que se faz depois de realizar um filme na aldeia, meio autobiográfico e assim por diante.
Eu digo: olha, vai-se para a cidade e faz-se um filme à noite, e brinca-se com esta ideia da cultura pop, mas tentando e tentando, sempre indo para um dispositivo formal muito clássico. E, na verdade, é um bocado isso.
Para mim, era também tentar glorificar a ideia de emigração. Tenho dois tios emigrados, fui viver para a Suíça durante uns tempos para fazer este filme. Pronto. Mas isso é uma situação forçada. Mas efetivamente dou muito valor à emigração porque tenho noção das dificuldades e de várias pessoas que conheço que trabalham no estrangeiro, das dificuldades que é a tua adaptação a uma nova cultura. E é, não me parece nada que faça sentido julgar esta coisa da exibição do carro. Porquê? Porque o carro para mim é como para eles, pelo que percebi no processo deste filme, aquela imagem do caracol que anda com a “casa às costas”, neste o carro é a “casa deles”. Estás a ver que é um símbolo de sucesso? E qual é o problema de se gostar de carro e gostar de exibir um carro? Eu acho que não tem problema nenhum.
A minha leitura do teu cinema, desde "Bostofrio", onde foste à procura de uma memória do teu avô e acabaste sempre por (re)descobrir-te a ti próprio, a tua própria identidade. E aqui também vais buscar um pouco dessa identidade, mas desta vez a identidade portuguesa, através desta conversa com o dono daqueles carros, fala muito, sobretudo, sobre a sua própria identidade espelhada nos respetivos veículos.
Pois, eu acho que é isso! O Kaurismäki também diz isso! Ele diz que o carro é o dono. É uma continuação do dono. Acho que carros que tento mostrar no filme, são fruto da relação dessas pessoas. Elas tentam incutir nas viaturas, modificam à sua maneira, ou seja, a forma como tratam os carros é o espelho delas próprias. Alguém disse que os carros de hoje em dia não têm personalidade, por isso prefere o seu um carro antigo porque reflete a sua personalidade.
Paulo Carneiro
Acho que este é um filme com carros, mas que não é um filme sobre carros. Serve-se dos carros para falar de outras pessoas, das pessoas e de um amor e de um carinho. E de que forma a máquina pode transpor a personalidade da pessoa? Por vezes as pessoas confundem-se um bocado e ficam com medo de um filme sobre carros. Isso não interessa para nada. Costumo dizer, isto é um filme com carros, não é um filme sobre carros. Pode interessar até mesmo às pessoas que andam de bicicleta.
E tu fazes constantemente essa finta. Abordas as pessoas só para falar sobre o carro e eles acabam por falar sobre a sua própria experiência na Suíça e do que é ser português ou o conceito que têm da questão da imigração. Como sofrem? Quer na Suíça quer em Portugal, porque quando regressam, sentem que não são mais portugueses de alguma maneira, porque todo o ambiente faz com que eles sintam que não são de lá.
Exato, efetivamente, a grande proposta era fazer uma elegia a estas pessoas e criar um filme em que se visse o trabalho, mas que não se filmasse o trabalho, mas que se vê o trabalho no objeto do carro. Não estava interessado em fazer aquele cinema da emigração que fala do trabalho, no sentido de que se filma-o e as suas más condições, etc. Pretendia mostrar um lado diferente e fazer uma espécie de elogio a estas pessoas, uma homenagem até. Do que tenho ouvido, existem pessoas que se irritam com este pessoal que vinha, e que trazia o seu objeto de sucesso - o carro, o seu tesouro - e que fazem as pazes com elas, porque acho que também é um preconceito, é um estereótipo que se criou e que na verdade não é bem assim. E o filme também joga contra esse estereótipo.
Absolutamente, aliás, saliento que até existe uma palavra associada aos regressados, “avecs” penso eu, que é uma maneira de separá-los dos “portugueses que ficaram”. Separar os “contaminados”, culturalmente, dos “puros”.
Quando estás a ver o filme, não sentes um amor por aquelas pessoas e sentes que elas legitimam esse amor pelo carro? Porque o carro também é um objecto de integração. Os que têm carro se juntam num grupo com outras pessoas que têm carro, e assim formam uma comunidade.
A sensação que tenho é que os portugueses quando estão lá fora fortalecem os laços entre uns e outros, porque os que os une é a própria identidade.
Estas pessoas que o filme mostra, se juntam a outras pessoas com carros da mesma forma que cá nós juntamo-nos para ir ver futebol no café ou outro desporto. Na Suíça faz mais frio, e é um ambiente diferente, não se juntam num café, e até a cerveja custa entre 5 a 6 €.
Mas é isso. Cada pessoa vê no filme o que quiser. No meu ponto de vista, é um filme que se aproxima das pessoas através de outras pessoas.
Mais próximo do final, antes da cena do mercado da Pontinha, que já te questiono, gostaria que me falasse daquela boleia do curdo, os “não-pátria”, os que têm identidade mas que não têm país. Até que ponto encaixas nesta ode identidade portuguesa, o qual têm o seu lugar, Portugal, com as dos curdos que são desprovidos de uma nação?
Comecei a falar com o Abu por mero acaso, não estava planeado integrar o filme. Ele elogiava muito as habilidades dos portugueses, especialmente no que diz respeito à modificação de carros, ou seja, no tuning. A sua entrada simplesmente aconteceu. O Ricardo Leal, diretor de som, que tinha ficado na Suíça, foi apresentar o “Bostofrio” em França, e foi aí que conheceu o Abu. Na altura das apresentações, quando vou falar com ele, e conta que é curdo. Já tinha pressentido qualquer coisa, porque praticamente toda a montagem do filme segue cronológicamente a ordem de que o filme é filmado, por isso é que nota-se a modificação da minha abordagem, como o tipo de perguntas que faço aos entrevistados. O filme é também o processo de construção do próprio filme.
Mas voltando ao Abu, parece que os imigrantes encontram-se numa espécie de limbo. É como disseste, têm uma pátria, mas mesmo assim sentem-se num limbo, sem pátria porque é difícil readaptar em cada regresso. O que o filme faz é criar ali um paralelo, claro que é um paralelo incomparável. Quer dizer, são situações muito diferentes. A nossa relação com a guerra é muito diferente, como a nossa relação com o território. E mais díspar nessa ideia de pátria, porque é o maior povo do mundo que não tem uma pátria. Para mim, o importante ali, de certa forma, era mostrar esta relação com os carros. Não sei se se percebe no filme que esta relação com os carros e esta forma de integração através deles não são uma marca meramente portuguesa.
Há também muitos albaneses que têm esta relação, kosovares, e o Abu, que é curdo iraquiano, se bem me engano.
Chegou a ver o filme?
Nunca vi o filme. Fiquei, entretanto, sem o contacto dele no WhatsApp. Andei na Suíça à procura dele, visto que o filme estreou no Vision du Réel, fui à mercearia, ao trabalho, ao bairro dele e nada. Para mim, era importante mostrar as franjas da sociedade suíça, efetivamente do exterior, pessoas que foram para ali à procura de uma vida melhor, seja por que razão for - no caso dele era exílio político - e que tinha essa relação automobilística. Como também, de certa maneira, mostrar que a imigração portuguesa não era fechada e única.
Nesse sentido, era importante ele estar lá. Todos nós gostamos de carros, mas nós não fechamos a porta a outras pessoas e comunidades. É esse espírito que pretendo criar ali, nessa viagem que prossigo. Ou a de um português que abre a garagem, e que nasça daí a possibilidade de um filme. É abrirmos as portas uns aos outros e não deixar o filme acabar e eu acho que não acaba.
Por isso é que a conversa com o Abu dá-se por via de uma boleia, a possibilidade de sermos guiados …
Sim, a do cruzamento, ou seja, isso foi pensado … são detalhes. Esse é o único plano que está em movimento, porque está relacionado com a questão da viagem. Vamos acabar, mas estamos em movimento, porque queria que o dispositivo formal fosse diferente do resto. O início, que é visto como o começo da viagem, e depois, mais tarde, é a primeira vez que vês o dia, o filme maioritariamente passa-se todo durante a noite. E pronto, são formas de tentar sublinhar e destacar esses momentos.
Agora sim, podemos falar do último plano, a do Mercado da Pontinha, que neste preciso momento virou arquivo visto que aquele mercado não existe mais. No seu lugar está um parque de estacionamento.
Agora sim, mas ainda não se sabe o que vai ser realmente aquilo. Os carros ainda não estacionam lá. Tiraram a parte do telheiro, que era onde tinham aquelas mensagens do 25 de Abril, as fotografias do Alfredo Tropa … acho que também tinha as do Eduardo Gageiro, mas não tenho a certeza. Em suma, aquele mercado já não existe.
"Périphérique Nord" (2022)
Mas sobre esse específico plano, e apesar de termos mencionado o Mercado da Pontinha, que desapareceu, julgo que o grande ponto era o quartel da Pontinha e todo aquele simbolismo do 25 de Abril trazido por esse espaço. E tendo um filme sobre emigração …
E viste bem! Não sei se sabes mas esse quartel virou quartel da GNR, logo também é matéria de arquivo.
Achava que seria uma referência muito direta, portanto, pensei que não faria sentido incluí-lo no filme. Mas havia mais, mais dois planos, um à entrada do quartel, e outro sob toponímica e referência ao 25 de Abril. Então, pois, mas quer dizer, de certa forma, para te clarificar, no sentido de achar que é um piscar de olho nada direto, porque a imigração que retrato não é uma imigração com essa idade; já são as segundas e terceiras gerações. Mas de certa maneira, é um toque a essa emigração, porque foram os pais deles, um boost inicial da emigração, a partir da década de 50. Para a Suíça começou mais tarde, depois do 25 de Abril.
Quero dizer, o meu filme é na Suíça, mas poderia ser no Luxemburgo ou em outro lugar. Ao falar deste filme ao José Vieira, ele dizia-me que não poderia diferenciar as emigrações, que a sua separação era uma mentira. “Imigração só há uma!” Os sentimentos são iguais para todos, sejam dos que vêm do Norte de África, seja da emigração portuguesa para França antes de 74, é igual para toda a gente, independentemente dos traumas de guerra ou não. Percebes aquilo que sentes na relação com o teu país, esta ‘coisa’ de não saber onde pertences.
Para mim, aquela cena é uma referência clara, mas não é uma espécie de libertação. O cinema que me interessa é um cinema que se serve de uma coisa para se expandir para outra. Por isso é que estou neste universo automobilístico, falo dos carros para falar de outros tópicos. Como “Bostofrio”, o qual vou na verdade para me encontrar, para o encontrar, para procurar ou para ir mais fundo na questão da doença da minha avó e fazer uma elegia à minha avó, uma homenagem ao meu pai. Esse é o cinema que me interessa. Se vou falar de uma história de amor, não vou filmar um casal de namorados. Não é isso que procuro no cinema.
Continuas focado na tua demanda pelo “cinema da rua”, o cinema “sangue na guelra”?
Penso que sim. Quando vires o meu próximo filme, vais perceber. É um cinema “bora, bora, ….”. É aquela máxima de todos os filmes que fazes são os filmes que tu viste e que cresceram contigo. Continuo a trabalhar da mesma maneira. Há coisas que posso pensar antes, mas não trabalho com storyboard, isso não me interessa, o que me interessa é chegar ali e perceber o que é. Interessa-me trabalhar com as pessoas que quero, e é essa ideia do “cinema de rua”. É um cinema que te vai dando estímulos atrás de estímulos, e suscitam um brilhantismo como aquele do último plano do “Via Norte”.
Isso é a minha energia. Sou assim. Eu tenho essa energia e acho que isso é um cinema que me representa, a mim e à minha produtora, a Miguel [de Jesus]. Fazer um cinema espontâneo, que procura mostrar aquilo que somos - nós não procuramos ser aquilo que não somos. Se quiseres chamar isso de “cinema da rua”, penso que também poderá ser alcunhado de “cinema do subúrbio”, porque é uma forma de ver as ‘coisas’ de uma outra perspetiva. Isso se sente.
Para mim é importante que as pessoas que eu filmo gostem e que consigam vê-lo. É importante para mim, e não é por isso que seja um filme que artisticamente tenha menos valor que outro filme. É trabalho do ritmo, o tempo das ‘coisas’, tudo tem um tempo. Aquela ideia do plano fixo ser entediante, é puramente mentira, porque as pessoas que fizeram o filme, que contribuíram nele ou foram filmadas, viram-o e não tiveram problemas com esses planos. Mas acho que já estamos a ter problemas com esse rótulo de ser um “filme de autor”, mas igualmente popular nas salas de cinema. “Ah, mas eu não tenho público para isto”. O público não é tipo a alta burguesia.
"Périphérique Nord" (2022)
Continuarás com esse registo no “Savana”, o teu próximo filme? Já agora, fala-me desse projeto.
“A Savana e a Montanha” é resumidamente um “filme de cowboys”. O montador de som lá do Uruguai diz que é um “western social”. Vou adotar essa perspetiva. [risos]
Na verdade, foi um filme pedido. Foi filmado em Covas do Barroso, que está a cerca de cinco quilómetros de Bostofrio, de onde surgiu a especulação sobre a maior mina de lítio da Europa. O que saiu foi um documentário muito derrotista, e não era isso que pretendia.
Demorou três anos a ser filmado, mas como não gostei do resultado, e que vai contra o espírito daquelas pessoas - “A gente dos Trás-dos-Montes não é assim!” - decidi fazer outra ‘coisa’. “A Savana e a Montanha” é um filme de intervenção sem ser um filme de intervenção, que se assume na pele de um “filme de cowboys”, o qual mostra a organização do povo contra uma grande multinacional. O lado documental está preservado, com a ficção inspirada na própria vida das pessoas e cujos diálogos são escritos em colaboração com eles.
Também posso dizer que neste filme, eu não entro em cena.
Na nossa última entrevista declaraste que não te vias a fazer ficção, porque a ideia de dirigir atores não era a tua vontade.
Não são atores, são não-atores. Foi difícil, mas ao mesmo tempo já tínhamos uma relação de confiança com estas pessoas porque estávamos a filmar o documentário. A ficção foi uma maneira de mostrar a força deles, porque é inspirado nas suas histórias. São eles próprios a fazer deles mesmos.
E já o meu o meu outro filme, o de Cabo Verde, é um filme de detetives … [risos]
Mas quanto ao lado western de “A Savana’”, não será algo à lá Ennio Morricone, nem nada dessas fantochadas, será uma ‘coisa’ desconstruída, filmado a 16mm e em película.
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