Dorme que o teu mal é sono! (edição Halloween)
Tobe Hooper dirigindo "The Texas Chain Saw Massacre" (1974)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Tobe Hooper dirigindo "The Texas Chain Saw Massacre" (1974)
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Peter Lorre, Vincent Price, Boris Karloff e Basil Rathbone em imagem promocional de "The Comedy of Terrors" (Jacques Tourneur, 1963)
Começo por situar-me numa peça recente - “02:22: Uma História de Fantasmas”, encenado por Michel Simeão e com texto de Danny Robins, no Teatro Villaret - o encontro entre dois casais de amigos que perante um estranho fenómeno sobrenatural relatado na casa que serve de cenário, pontualmente presente na hora indicada no título, debatem sobre a veracidade dos fantasmas, espíritos, ou lá o que fossem. Nesse quarteto encontramos um céptico, um homem de ciência e de lógica que ministra uma improvisada masterclass sobre a origem das assombrações, focando na questão do medo e a sua grande importância humana. Segundo ele, o Homem era composto por três tipos de “cérebro”, o “cérebro-macaco” [razão], o “cérebro-cão” [emoção] e o por fim, o “cérebro-lagarto” [instinto], e neste último integrava o sintoma do medo, porque é na base dele que é possível sobreviver aos perigos iminentes e, segundo a peça, até o facto de “cagarmos de medo” não é mais que um ato primitivo para nos tornar numa refeição nada apelativa a eventuais predadores.
Portanto, o medo não é uma cobardia ditada pela sociedade que deseja agrupar humanos pela sua dominância social, pelo contrário, uma ligação espectral com o nosso “eu” selvagem, o “homem das cavernas” que optou por refugiar-se nas grutas como abrigo a desconhecidos fenómenos naturais (as tempestades, por exemplo), ou a manutenção do fogo, não como uma somente forma exequível de se aquecerem, como também de afugentar as imensas ameaças noturnas. Por outro lado, não há que negar que o medo e todo o seu “sistema orbital” é deveras apelativo, ou até sensual na maneira como somos magnetizados pelas suas “ramificações”. Desde a génese do Homem dito moderno que o medo fascina; criamos ficções e fabulações à volta dele, e procuramos morais a sua base, escrevemos livros sobre ele e mais que tudo, o vendemos, seja nos jornais ou outros medias enquanto sustento financeiro. E o Cinema é cúmplice dessa “prostitução” em relação ao medo, e que melhor género para falar dele do que o terror? Todo este sujeito a um único propósito, fazer do medo a sua causa, o seu entretém e a sua arte.
O terror brotou em mim desde os meus “verdes anos”. Recordo dos tv spots de “The Exorcist” ou “Child’s Play” o qual me amedrontavam e igualmente alimentavam a minha curiosidade, arquitetando a partir daí planos para escapar da imperativa “hora de dormir” e espreitar tais obras na televisão genérica. Ou do poster de Freddy Krueger colado numa das paredes do quarto de uma prima minha, cujo seu vislumbre trazia-me pesadelos na minha tenra idade ou, e de forma tão marcante, “Shining” de Kubrick, na coleção de VHS(s) que o meu pai ostentava nas sua estante. Foi o intitulado “meu primeiro filme de terror”, e os traumas ainda hoje instalados (o quarto 237 continua a provocar palpitações). Apesar de hoje em dia encontrar no cinema de terror o seu quê de “relaxante”, possivelmente como um escape do verdadeiro terror que é os nossos dias, foi por outros géneros, emoções ou formatos que procurei o tão esquecido medo, e tendo por vezes resultados triunfais.
Quanto mais velas de aniversário sopro, mais amedrontado fico perante a ideia de envelhecimento, da decadência que o meu corpo e mente poderão revelar ou até na solidão consolada ao testemunhar as repentinas despedidas de todos em meu redor, esse medo, o encontro num outro tipo de cinema; num “Amour” de Haneke (ver o nosso(a) companheiro(a) de uma vida a desaparecer gradualmente aos nossos olhos), num “The Father” de Florian Zeller (Anthony Hopkins sentindo abandonado e chorando pela sua mãe) ou até mesmo num “Venus” de Roger Michell (Peter O’Toole impontente em defender a sua honra, mazelas temporais no seu corpo é óbvio). É o “Forever Young” dos Alphaville tocado numa triste e inconclusiva melodia, o tempo não volta atrás e por mais “lagartos” que sejamos, não conseguimos sobreviver a esse derradeiro medo, o medo de morrer, mas antes, a sua descida infernal.
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La Morte Rouge (Victor Erice, 2006)
No célebre "Filme que em Portugal tem de ser intitulado outra vez", o detetive John "Scottie" Ferguson perde o medo das alturas quando Judy, que afinal era Madeleine, que afinal era Carlotta, que afinal era Kim, morre outra vez. Sempre que revejo esse filme (que não era o melhor de sempre, que afinal passou a ser, que afinal voltou a não ser), fico com imensa pena de Scottie. Pois, como o cavalheiro chega ao fim da história sem a couraça das vertigens, vai por certo tornar-se um leviano e expor-se a todos aqueles riscos indecorosos que só nós, do alto da nossa acrofobia, sabemos devidamente reconhecer e, em consequência, evitar.
Nunca gostei do medo. Para cumprir o mandamento novo "Sai da tua zona de conforto!", limito-me a abandonar o sofá e a sentar-me na cadeira um pouco mais dura da mesa da sala, onde só me permito deglutir alimentos que estejam dramaticamente assassinados, tragicamente cozinhados e em absoluto fora da zona de influência dos militantes da entomofagia. Como Alexandre O’Neill, não me sinto suficientemente conde para querer corar com uma insígnia, muito menos a da coragem. E também nunca procuro descobrir a minha verdadeira natureza ao ser posto à prova numa situação-limite: não tenho os sete pés necessários para fugir com a graça de um Fred Astaire. O medo simplesmente não me atrai (chamem o Freud, se quiserem: disso não tenho medo).
O próprio Hitchcock nunca me apanhou por esse prisma. Conhecedor das rigorosíssimas estatísticas que provam que o tráfego rodoviário comporta muito mais risco de morte do que o cuidado com a higiene, tenho muito mais medo de ver a Janet Leigh a conduzir do que a tomar banho. Não, o Englishman in Los Angeles interessa-me na medida da sua ininterrupta erupção de formas audiovisuais que sempre convergem para nos falar da necessidade do negrume na formação ou solidificação do par amoroso. Aí, sim, Toto, I’ve a feeling we’re in Kansas again…
Não estou nisto em consonância com os meus parceiros de quarto escuro. Ao que parece, o filme de terror é uma das ervas daninhas, perdão, um dos géneros que mais tem crescido (numericamente falando, claro) ao longo da história do cinema, afugentando quem gostava mais de cantar, de namorar com estilo ou até de usar as imagens fúngicas, mas não fungíveis, da guerra para combater a bactéria da guerra real que, como se sabe, se tem revelado multirresistente (sobre isto, não haja grandes ilusões).
Cada vez que vejo um filme cujo desígnio é meter-me medo, eu fico efetivamente transido de medo (pois, como recusar uma oferta calculadamente elaborada para ser irrecusável?), ao mesmo tempo que um outro, que é eu, despreza aristocraticamente a infantilidade e a tacanhez daqueles truques que, numericamente falando, não dariam para mais do que um rato perante a montanha do Kama Sutra. Sempre dei bolinha preta àquele monstro debaixo da minha cama que é especificamente devido à infinita mediocridade do cinema.
O mais curioso é que, se um meliante me colocasse diante da célebre alternativa “o teu filme favorito ou a vida”, transido de medo, eu diria: “O espírito da colmeia”. Ora, a obra-prima ficcional de Victor Erice narra precisamente o efeito que, na Espanha após a sua Guerra Civil, um filme de terror tem sobre uma criança, fazendo-a intuir que os moinhos talvez sejam muito mais assustadores do que os gigantes. Por que carga de água ou vinho é que eu consigo tomar esta evocação do elo entre cinema e medo como estrela polar?
Julgo que a resposta é dada pelo próprio Erice em “La Morte Rouge”, uma curta-metragem ensaística que ele estreou já no presente século. Ao colocar a situação narrativa de “O espírito da colmeia” sob a aparência da autobiografia, a evocação do medo que se terá entranhado num menino após o visionamento do filme “A garra vermelha” é filtrada pela música de Federico Mompou. Em busca desse tempo que para si nunca se perdeu, Erice já não consegue fazer-nos sentir a ameaça das mãos assassinas do filme que o traumatizou, tem menos poder para as mostrar como sombras expressionistas do que como garras melancólicas extraindo sons sem alvoroço de um piano, algures numa casa vizinha. O medo já só sobrevive como memória distanciada. Pensada. E assim também acontece, de certo modo, em “O espírito da colmeia”.
Agora a brincar, e para resumir, se o cinema quiser seduzir o meu coração pateta, pode jogar múltiplas cartas: beleza, humor, erotismo, compaixão…Sou Anna, sou Elvira, Zerlina, disponível para as 1003 formas com que se desmiola um corpo humano. Já o medo que, por muito que eu não queira,é claro que por vezes também me apanha na vida(o que aí acontece, aí fica), não lhe encontro o menor travo de prazer (nem mesmo o prazer catártico da tragédia) que me convença a ir procurá-lo numa sala de cinema. O medo parece-me coisa mais séria, é para casar… com o pensamento. Chamem o Cronenberg, se quiserem: o seu método não me parece suficientemente perigoso.
*Texto da autoria de Pedro Ludgero (Porto, 1972). Trabalha como pianista acompanhador. Escreve poesia, teatro, textos para a infância e comentário sobre cinema. Até ao momento, realizou cinco curtas-metragens.
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Matthew Perry conheceu o sucesso como Chandler na sitcom de sucesso "Friends" (1994 - 2004)
Ao lado de David Schwimmer no especial "Friends: The Reunion" (Ben Winston, 2021)
Na comédia de época co-protagonizada por Chris Farley [seu último papel no cinema], "Almost Heroes" (Christopher Guest, 1998)
Em "17 Again" (Burr Steers, 2009) partilha com Zac Efron a pele de um adulto fracassado com demasiados arrependimentos
Em conflitos culturais com Salma Hayek em na comédida romântica "Fools Rush in" (Andy Tennant, 1997)
Num dos sucesso da sua carreira, "The Whole ine Yards" (Jonathan Lynn, 2000), com Bruce Willis e Michael Clarke Duncan. Obteve sequela quatro anos depois, desta vez, fracassando nas bilheteiras.
Com Elizabeth Hurley na comédia "Serving Sara" (Reginald Hudlin, 2002)
Ao lado de Lauren Graham no discreto "Birds of America" (Craig Lucas, 2008)
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Joan Fontaine em "Rebecca" (Alfred Hitchcock, 1940)
Sentir medo será à partida um lugar comum no dia a dia dos humanos, na verdade, senti-lo pode muito bem ser um dos clichês mais evocados na vida, não só naquilo a que chamamos de quotidiano, mas também na “vida do cinema”. A nossa existência está cheia de clichês que a sétima arte adotou, e viceversa, sim, porque, se por vezes eu tenho medo de tomar duche de cortina fechada, não foi porque o aprendi na serenidade da minha rotina, mas porque em algum momento, o cinema me mostrou que cenas em chuveiros, podem ser efetivamente dramáticas, e como já devem ter reparado, estou de forma muito clichê a referir-me ao plano do filme “Psycho”, em que a personagem de Janet Leigh é surpreendida por um assassino durante o banho.
Os clichês foram roubados de um lado para o outro, e sinto que muitas vezes já não sei distinguir o que é que vem da realidade, ou o que é apenas ênfase da ficção. Por exemplo, nunca caminharam à noite e pensaram que a qualquer momento ia aparecer o Michael Myers? Já estiveram sozinhos num sótão e sentiram que a probabilidade do Ghostface surgir era altíssima? Ou ainda, numa sala de uma avó junto a um relógio daqueles que fazem muito barulho, nunca se perguntaram o que é que o Padre do “Exorcista”, diria naquela circunstância? O medo está em todo o lado, e acho que muitas vezes, ampliado por aquilo que o cinema nos deu.
Por falar em atrizes nos filmes de Alfred Hitchcock, há vários depoimentos de personalidades da indústria, que partilharam várias situações sobre a falta de sensibilidade do realizador, em dirigir as atrizes que com ele trabalhavam. Muitos são os testemunhos, que apontam para o facto das mesmas terem sido terrivelmente manipuladas no set, para constantemente estarem em tensão, com o objetivo de tornar o medo, real nos seus rostos, tão real que a câmara o captaria implacavelmente.
Medo, o realizador queria provocar medo nas intérpretes, queria juntar aos seus olhares intensos e doces, um ingrediente que nos provocasse a nós espectadores, pavor. A doçura do medo no olhar, tão perversamente perpetuada por Hitchcock, ficou consequentemente iconizada no cinema do século XX.
Embora mais conhecida pela sua leveza em comédias e romances, também Doris Day experienciou o medo nos filmes do senhor Alfred, em “The Man who Knew too Much”, com a sua complexa e delicada personagem Josephine Mckenna, provou os dissabores da intensidade de um homem, que queria realizar mais do que a ficção dos próprios filmes.
A esplêndida Grace Kelly, também ela ao longo de três longas-metragens, mergulhou nas tensões de um realizador obcecado pela sua imagem, bom depois decidiu que afinal queria mesmo era ser princesa, o que também não deixa de ser um bocadinho assustador. Viram? Mais um momento em que não percebemos muito bem quem é que está a imitar quem, se a vida, se a ficção ou se todas ao mesmo tempo, de qualquer das formas, deixar de ser atriz para ser princesa do Mónaco, deve dar um medo dos diabos.
Joan Fontaine em “Rebecca”, que a psicologia adotou para explicar mais um complexo, aqui relacionado com os medos do passado, medo dos fantasmas do passado, neste caso bem literal, já que o próprio do fantasma em questão, aqui é mesmo o espírito de uma ex-mulher que deambula pela casa, tentando terminar com a paz do casal.
Se nunca tiveram que aturar uma assombração dessas, onde pessoas obcecadas pelos vossos companheiros vos tentam incendiar a vida (para quem viu o filme, perceberão a escolha do verbo incendiar), que bom para vocês, aqui Fontaine teve não só que aturar histórias do passado, como também um Hitchcock “passado”.
O medo está em todo o lado, desenganem-se aqueles que pensam que o medo está só nos thrillers, filmes de terror e suspense, o medo vive até nas comédias mais românticas, ou acham que em “Love actually”, a personagem de Colin Firth não sentiu medo de falhar, enquanto caminhava por um típico bairro Lisboeta, para declarar o seu amor?
O medo vive entranhado nas nossas vidas e arrisco a dizer que até o mais feroz dos vilões, ainda que na ficção, o sentirá em grande escala, ou acham que os pesadelos do próprio Freddy Krueger, são mais leves que os das crianças que sonhavam com ele? Dada a circunstância da personagem, não me parece. Freddie Krueger tem medo, medo de si mesmo, medo de não trazer medo suficiente para a sua vingança, ele tem medo da sua própria história.
E o medo de não sentir medo? Bom, sobre esse atrevo-me sempre com muito cuidado, porque o medo é também ele uma medida exímia que nos livra muitas vezes de tantos males. Por hoje fico-me pelo medo debruçado no cinema, porque quando a tela se apaga e as luzes se acendem, posso voltar tranquila para o meu quotidiano sereno e feliz, mas onde tantas vezes insisto para que seja efusivo, dramático e belo como aquele que aprendi a ver nos filmes.
*Texto da autoria de Mia Tomé, atriz, voice artist e criadora, foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian para estudar no The Lee Strasberg Theatre and Film Institute, em Nova Iorque. É licenciada em Teatro pela ESTC, e Mestre em Educação Artística pela FBAUL, onde investigou o tema “Cinema e Educação”. Foi autora e apresentadora do programa “Querem Drama?” no Canal Q, mas também do “Por uma Canção” na Antena 3. Atualmente tem em mãos “Projeto Natália”, que celebra o centenário de Natália Correia. Desde 2021 que está a desenvolver um projeto no Arizona, sobre as mulheres do Oeste Norte Americano.
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A morte saiu à rua num dia assim
Naquele lugar sem nome pra qualquer fim
Uma gota rubra sobre a calçada cai
E um rio de sangue dum peito aberto sai
“A Morte Saiu à Rua”, música de Zeca Afonso (dedicado a José Dias Coelho)
Com base na obra autobiográfica de Margarida Tengarrinha (1928 - 2023) - "Memórias de uma Falsificadora" - "Clandestina" parte da mórbida ideia de uma repetição histórica, em prática exagerada, mas em tese pensada como um "desejo ao vertigo", perante esse eventual retorno (vindo dos mais pessimistas dos pessimistas), quase como um exorcizar de espíritos oriundos de outras eras.
O filme é, então, a conjugação de duas realidades; a primeira, o texto de Tengarrinha, fantasmagoricamente citado e refletido como uma cápsula de um tempo não muito distante - a fase clandestina da autora enquanto falsificadora de documentos e na redação do jornal Avante, entre o período de 1955 a 1961, data fatídica do assassinato do seu companheiro, José Dias Coelho, pelas mãos da PIDE - e as imagens, reconstituídas numa contemporaneidade identificável. É pintar o moderno no passado, é construir uma ponte sobre as duas memórias, uma real, a outra abstratamente fabricada (há uma influência de “A Metamorfose dos Pássaros” nessa mesa de mistura imagética), de forma a gerar uma só realidade: a realidade da resistência. Portanto, a primeira longa-metragem de Maria Mire (“Parto sem Dor”) é essa continuidade do ativismo, tentando, com isso, e fracassadamente, equiparar-se ao relato de Tengarrinha. O ativismo de hoje, e felizmente, no nosso país, soa-nos como voluntariado, sem as consequências obtidas na luta em estados novos (ou antes, velhos).
"Clandestina" resulta desse exercício de escuta às histórias de coragem, bravura nas sombras, esse exército obscuro que não arredou pé perante a opressão, enquanto o visual, esse manufaturado, por mais interessante que possa ocasionalmente atingir, enfraquece com uma tendência atualizada de unir todos os "punhos erguidos" numa só luta. É uma visão politizada, essa, não correspondida às lutas travadas pela autora daqueles enredos. É um filme dotado de boas intenções, boas condições e bom material, mas demasiado ingénuo na sua posse; enquanto isso, há aquela elipse final ao som do grande Zeca Afonso, numa melodia que Tengarrinha nunca esquecera.
"A Morte Saiu à Rua", e a clandestina exilou-se fora daquele jazigo em forma de país, levou o seu combate para outras extremidades, a partir daí a história tornou-se outra.
O vento que dá nas canas do canavial
E a foice duma ceifeira de Portugal
E o som da bigorna como um clarim do céu
Vão dizendo em toda a parte o pintor morreu
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Cannibal Holocaust (Ruggero Deodato, 1980)
Se não há horror maior que o do desconhecido, a ficção terrorífica há de ser o ponto onde as certezas da ciência e as aplicações da lógica se desvanecem perante os mundos temerários onde fragilizados humanos vão meter-se – muitas vezes sem o terem desejado, mas em outros momentos por pura “cusquice”. O mundo dos mortos é particularmente apelativo – o reino do invisível onde seres que eram supostos ficarem mortos decidem… não ficar. Por vezes dão-se a conhecer apenas em fenómenos telecinéticos; em outras se materializam em cadáveres que saem de caixões ou debaixo da terra para atazanar os vivos.
Em dimensões mais próximas, no entanto, os humanos podem meter-se em apuros a frequentar locais “exóticos”. Há mais de 100 anos a literatura deslumbrava-se com o cada vez mais (des)conhecido mundo de florestas verdejantes que podiam esconder criaturas estranhas e, em casos mais elaborados, até tornado credíveis por teorias “científicas” – como o anfíbio de “Creature of Black Lagoon” (1954), um ser de outras eras que tinha miraculosamente escapado à extinção e que podia ser explicado pela lei da evolução.
Hoje sabemos que os humanos destruíram, de facto, todas as possibilidades de seres gigantescos ou pouco conhecidos terem sobrevivido. Há episódios notórios como a ocupação da Austrália há 60 mil anos, onde a chegada por mar de homenzinhos aparentemente muito pouco apetrechados em termos tecnológicos “coincidiu” com o espantoso e maciço desaparecimento de uma vasta fauna de animais de grandes dimensões.
Quando o cinema resolveu dar vida, com os devidos valores de produção, à uma destas aventuras pelos trópicos – mais especificamente ao clássico de sir Arthur Conan Doyle, “The Lost World”, de 1911 – foram chamados os inovadores serviços de William O’Brien, o homem que popularizou o “stop motion” para oferecer ao público de 1925 uma leitura visual destas estranhas paragens; oito anos depois, ele estava de volta com ainda mais recursos para descrever as lutaradas colossais entre um macaco gigante e um mundo de bestas jurássicas em “King Kong”.
Mas o cinema de terror é a perda inocência e poucos haverão como os italianos para absolutamente forrar de “ketchup” praticamente todos os subgéneros nos quais tocaram a partir dos anos 60 – a começar pelo popularíssimo “Mondo Cane” (esse de fabrico próprio, os “mondo films”) e uma fornada de zombies, canibais, “serial killers” e a mais sensacional palete de atrocidades com que tentavam faturar em cima dos modelos americanos.
Entre antecipação e consequência, talvez não haja na história do cinema de terror uma iguaria mais satisfatória do que “Holocausto Canibal”, um filme a que já se começa a assistir com medo dada a sensacional fama adquirida e aos processos jurídicos que ultrapassaram as estratégias espertas de “marketeiros” engenhosos: Ruggero Deodato, o líder do gangue, foi efetivamente a tribunal dar conta dos atores que tinha pago para desparecer e que o deixaram em grandes apuros.
No filme, a partir da chegada à Amazónia da missão para resgatar outra expedição, desaparecida um ano antes, começam os calafrios: conforme exposto acima, ninguém que se tenha posto nestas andanças poderá alegar ignorância. E o que segue a partir daí é um pesadelo infernal, onde matanças, esfolamentos, empalamentos, esquartejamentos, incêndios postos e a famosa execução em direto de uma tartaruga gigante, não deixam nada por desejar.
No interior de tamanha simbiose entre expectativa e entrega, poderia não ser de mau tom reciclar o célebre aviso de Carl Laemmle no primeiro filme designado como “horror movie”, “Frankenstein” (1931): “I think it will thrill you. It may shock you. It might even horrify you. So, if any of you feel that you do not care to subject your nerves to such a strain, now’s your chance to uh, well, - we warned you!”
Por fim, em meio à danação total, o sardónico comentário do filme sobre os “media” e a violência, aparentemente a justificar-se, soa irrelevante. Nesta experiência visceral, as palavras podem apenas danificar o festim.
*Texto da autoria de Roni Nunes, jornalista, editor do site CulturaXXI, colabora com o C7nema, encontra-se de momento a desenvolver um livro sobre cinema de terror.
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High Anxiety (Mel Brooks, 1977)
Sem conflito não há nada a contar. É o conflito que faz despoletar uma sucessão de eventos passíveis de configurar uma história, uma trama ou um ensaio.
Quando olhamos para a linguagem que o cinema nos apresenta, é o medo que está na base dos grandes conflitos. É normal associá-lo a géneros como o terror, o suspense ou o thriller, mas o medo apresenta-se sob várias formas, quer estejamos conscientes disso ou não.
Na primeira vez em que me senti completamente amedrontado, em frente a uma tela de cinema, as imagens eram coloridas, a música apaziguante e a personagem principal não passava de um veado fofo, mas foi a primeira vez que senti a inevitabilidade da morte e o quão democrática era. O “Bambi” provocou em mim um efeito equivalente ao “Pesadelo em Elm Street” uns anos mais tarde, livrando-me da minha prezada paz de espírito e da inocência, que esbofeteou sem tréguas.
Mas esquecendo os traumas de infância, que apenas abundam pela descoberta natural da experiência humana, podemos encontrar manifestações do medo em virtualmente todos os géneros cinematográficos.
Há quem defenda que a diferença entre a comédia e o terror é a música que os acompanha. O embrulho de uma tragédia vai ditar se rimos ou tememos, e a verdade é que não são raras as vezes onde uma comédia nos apresenta as atribulações motivadas pelo medo de uma personagem, ou de um conjunto de personagens, das quais somos motivados a rir pelo simples distanciamento. Caso o ponto de vista fosse transferido para os olhos dos protagonistas, talvez partilhássemos a ansiedade e o medo por estes vividos. Dos Irmãos Marx ao “Sozinho em Casa”, a agressão física é apresentada como a centelha para o riso, mas acreditem ou não, estar no lado receptor dessa agressão é uma experiência dolorosa e ser o emissário pressupõe defesa ou intenções nefastas.
Com isto dito, não há juízos de valor a fazer. Só é verdade no cinema porque também o é fora dele. Nada me provoca mais o riso do que uma queda bem aparatosa e planeada, ou uma desinteria de proporções bíblicas. Se as queria para a minha vida? Adianto que não, mas à distância parece hilariante.
É também fora do cinema que encontramos uma série de medos que não reconhecemos como tal no confinamento do ecrã. O medo de falhar, o medo de não conseguir pagar as contas, o medo de ter filhos, ou de não os poder ter.
É no género catalogado como “Drama” que surgem todos estes temas. Um género tão cruel e explorador que faz qualquer filme da franquia “Saw” ou “Hostel” parecer um aperitivo num banquete de desgraças. Mas o que leva a exploração da dor existencial a ser tão mais bem vista do que a exploração da dor física? A componente visual terá algo a ver com a resposta, mas não podemos deixar de excluir o masoquismo da empatia, de querermos ver o outro passar pelo mesmo que a vida já nos obrigou a sentir, ou de passar por uma versão controlada das adversidades pelas quais esperamos nunca passar. Se apanharmos com uma boa dose de validação intelectual nessa experiência, melhor um pouco.
O medo move todos os seres vivos e tem tanto de fascinante como de repelente. Sendo o ser-humano provido de raciocínio, somos capazes de o representar e somos naturalmente movidos nesse sentido. Uma das primeiras filmagens da História é a morte de um elefante por eletrocução, mas também o foi o corpo nú de uma mulher. O paralelo entre o sexo e a morte é lenha para outra fogueira. O cinema vai continuar a ser o veículo para os artistas moldarem o medo e para o público o poder sentir sem passar pela massada de sofrer. Digo tudo isto com o maior sorriso nos lábios e na ânsia da próxima sessão que me deixe de coração nas mãos ou a conter as lágrimas, a baba e o ranho.
* Texto da autoria de José Santiago, nascido em Coimbra, licenciado em Comunicação Social pelo Instituto Superior Miguel Torga. Em 2007 junta-se à Rádio Universidade de Coimbra (RUC), onde fez parte do departamento de informação, programação e foi também presidente. Foi também na RUC que participou em vários programas relacionados com o cinema (“Sala de Pânico”, “Os Suspeitos do Costume”, “Spinoff”), começando a escrever crítica de cinema no jornal universitário "A Cabra" e mais tarde na plataforma on-line Arte-Factos. Profissionalmente tem desempenhado funções de gestão de marketing em empresas relacionadas com distribuição de vídeos e artes digitais, sendo também curador da iniciativa Passos no Escuro, exibindo cinema de terror e culto, no Porto.
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Este extraordinário filme de Ti West provoca-me, assim de repente, duas reacções de espanto, sobretudo tendo-me eu como seguidor, minimamente atento, das tendências do cinema de terror norte-americano. Em primeiro lugar, este filme começa muito significativamente "entre muros", com a câmara a mover-se numa casa que poderá ser "a casa do diabo", mas que acabará por se revelar numa antecâmara dessa casa que o título a(e)nuncia. O tradicional master shot é substituído por um plano de interior e é assim, preso à materialidade daquele tempo, algures no passado recente, que "The House of the Devil" nos apresenta a sua protagonista (Jocelin Donahue), uma jovem em busca de casa, em busca de dinheiro para pagar a renda, em busca de um emprego para arranjar dinheiro... e que vai parar àquela morada assaz suspeita.
No percurso até lá, a mesma câmara vai saboreando cada instante desse seu tempo incerto: não estamos no século XXI, nem tão-pouco nos anos 90... cenário a cenário, as roupas e os objectos vão-nos "deslocando" temporalmente para, no limite, meados dos anos 80; para, enfim, outra América e outros cinemas. É retro? É, mas sem grande deslumbramento. São os anos 80 filmados como se fossem 2011, mas num processo de degustação material muito lento, isto é, muito pouco contemporâneo - ou num ritmo que se impõe contemporaneamente, quando o melhor cinema de velhos masters of horror, tais como Carpenter, de Argento e de Hooper, nos deixa nostálgicos? Enfim, a reflexão sobre o tempo, a capacidade (maturidade mesmo) que Ti West revela em não se prender ao filme-homenagem-de-um-tempo-em-que-os-filmes-de-terror-eram-assim é notável.
Outra coisa espantosa: como em "Halloween", os sinais gráficos do género tardam em chegar ao ecrã, fazendo reverter todos os códigos pr(é)escritos do género institucionalizado do filme de terror CONTRA as próprias expectativas do espectador. Isto é, a certa altura, "The House of the Devil" leva-nos a interrogar: será isto mesmo um filme de terror ou um filme de terror que apenas (pré-)existe na nossa cabeça? "Halloween" continua a ser o mais radical objecto cinematográfico a explorar esta fronteira entre o género e a sua impossível, ou desnecessária, concretização, mas "The House of the Devil" é, dos filmes de terror contemporâneos, provavelmente o que leva mais longe esta ideia, ao ponto de a certa altura eu ter julgado ver pela primeira vez realizada uma das minhas mais velhas fantasias: um filme de terror sem verdadeiros sustos, sem violência ou sangue, um "quase" filme de terror, ou seja, um objecto propositadamente falho - isto é, treslendo em toda a linha as receitas do género - que apenas explore a paranóia do espectador de cinema, ela em si mesma material de sobra para se aguentar hora e meia de suspense puro, de um "what if?" angustiante, que, no final, soçobra. Isto é, como seria "The House of the Devil" sem os seus minutos finais? Ainda melhor, estou certo.
*Texto da autoria de Luís Mendonça, doutorado em Ciências da Comunicação na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCSH) com uma tese publicada em 2017 pela Edições Colibri, "Fotografia e Cinema Moderno: Os Cineastas Amadores do Pós-Guerra". Publicou recentemente "Majestosa Imobilidade: Contributo para uma Teoria do Fotograma" pela Edições 70. É coeditor do site À Pala de Walsh, programador na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema e docente-precário na NOVA FCSH.
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Jigsaw morreu... não é "spoiler", como exige a tradição da "virgindade" do espectador, sabemos disso desde o terceiro filme [2006]. No entanto, ao longo de uma saga que esticou, e esticou a “corda” na sua continuidade, a frase "longa vida a Jigsaw" foi relembrada e proferida constantemente. Um sétimo capítulo surgiu em outubro de 2010, seguindo um padrão semelhante a de um outro assassino de peso - Freddy Krueger ["Freddy's Dead: The Final Nightmare" de 1991] - quando também se proclamou um fim em vestes nos esquecíveis júbilos das três dimensões.
A “vaca” foi abatida, mas o leite estava longe de azedar, tentou-se ressuscitar a franquia com dois spin-offs [“Jigsaw” em 2017, “Spiral” em 2021], havia uma ideia de legado, copycats ou casmurros a esboçar, mas a reação foi morna, a caminhar para o frio, e isso levou-nos aqui, ao “X” (dirigido por Kevin Greutert, assinante de um dos tomos mais interessantes “Saw VI”), no meio da febre das requels e nostalgias cozinhadas como churros. Tobin Bell retorna ao papel, envelhecido, decadente, a idade não perdoa, condizente com a fragilidade que a sua personagem emana. Deseja-se, não um reboot, mas uma inter-sequela, algures entre o original e o segundo (a cronologia é sagrada, a indústria “aprendeu” isso em mais uma vaga ditatorial, desta vez em contornos ‘marvelescos’).
É um capítulo bem mais “sério”, contido naquelas habituais montagens à pingarelho que a saga nos apresentou e construído numa espécie de “build-up” aos dramáticos motivos para tanta carnificina. Ou seja, vende-se gato por lebre, o lado meio canastrão, fruto da pornográfica exploração do filão, é agora banhado em prestígio saudosista. A sensação de “cinema sério”, ou pelo menos nos limites da sua industrialidade, é aqui reunida. Não existem desculpas para não apreciar o esforço ou a vénia ao legado (e só passaram 20 anos! Isto das nostalgias estão a cumprir prazos cada vez mais apertados!). Mas então, o que é que me atormenta nisto tudo?
Não se trata das armadilhas altamente gore que me fazem desviar o olhar (pronto, admito, desviei uma ou duas vezes perante a exaltação por sangue e amputações), e antes no próprio tratamento que Jigsaw recebera desde o twist final engendrado pela dupla James Wan / Leigh Whannell em 2004, uma espécie de superioridade moral como impõe lições de consolidação após o sofrimento infligido, na tentativa de lhe conferir uma beatice puramente cristã (o martírio abre portas do Paraíso) no meio daquela guerra entre corpos em estado de sobrevivência. Jigsaw foi gradualmente pintado, ao longo da saga, como um líder de um culto (e intelectualmente onipresente), primeiro pavoneando doutrina, depois seduz-nos para com a sua visão, e por último, totalmente entranhados nessa via, o seguimos religiosamente (quase inconscientemente), enquanto que outros, no meio daqueles “jogos sem fronteiras” mortais viram carnes para calhão, nada mais importa, desde que o espírito do ‘messias’ em mundo amorais esteja intacto e devidamente pregado uma e outra vez.
É no “X” que contraímos um efeito heroico nesta personagem que se julga “não matar ninguém”, mas que força as suas “vítimas” a executar esse “trabalho” por si. A mente sádica é reduzida a um homem quebrado pelas promessas de uma sociedade utópica e altruísta, acabando por se revelar num ninho de víboras à espreita. Como Jigsaw vira herói do século XXI? Fácil manobra, colocando as “vítimas” como seres abjetos, ou melhor, inverter o papéis, de vilão a protagonista supremo e a vinda de uma vilã com capacidades de sadismo equivalentes (Synnøve Macody Lund). O filme vira confronto, a vítima enganada contra a charlatã insensível e nesse prisma, nós espectadores torcemos pela vitória do primeiro, até porque identificamos com parte da sua dor (em algum momento fomos enganados, de uma forma ou doutra). Voltando à analogia dos elementos cristãos, Jigsaw mantêm-se verdadeiro à sua esperada natureza, falando de cedência como via de uma vida arrependida e satisfatoriamente plena, na exorcização do nefasto que esta nossa passagem mortal pode contrair, e em certa forma, a absolvição dos pecados (e dos mortais também) que ostentamos enquanto coleção, é o panóptico em pessoa, vigiando e punindo. Do outro lado, a personagem de Lund é uma Judas, uma traidora vendida a meras “30 moedas de ouro”, de alma vazia e escrúpulos reduzidos. O messias contra o seu embusteiro.
Nesse prisma é fácil sentirmos manipulados, até porque o foco deste “X” é no assassino em série de duas décadas, demonstrando a sua compaixão e julgamento pela “inocência” ou como determina tal. Caímos assim na armadilha do filme e todo este universo, cedermos ao heroísmo do vilão com a “cartada” de que existe alguém mais vilipêndio do que ele. E o cancro, doença que no audiovisual converteu-se em uma desculpa dramática barata (esteve envolvido nas piores histórias que o Cinema poderia nos dar), é novamente o elemento evangelizador, como se isso bastasse para que Jigsaw orquestrasse os seus mais dementes jogos, fascistas plataformas, e nós [espectadores] caímos na sua mortal artimanha.
É um “upgrade” em relação à saga. É um “downgrade" em relação à ética.
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