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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Até aposto que foi o mordomo ... fantasma!

Hugo Gomes, 25.09.23

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Existe muita boa gente que admira a saga Poirot-Branagh, da minha parte, tendo em conta os dois primeiros livros adaptados (“Murder on the Orient Express” e “Death on the Nile”) fiquei com a impressão de assistir a tentativas pops e altamente pretensiosas dos jogos de “cluedos” de Agatha Christie. Os fatores são muitos, aliás, mas é na chegada de “A Haunting in Venice” que entendo um certo arrojo visual-planificado. 

Narrativamente é a fórmula christiana do costume, o belga Hercule Poirot (novamente um “afrancesado” maneirista Kenneth Branagh) é convidado ao “local do crime” antes de ele tornar-se num e previamente assumir-se como um teatro de vedetas (e vendettas), o cenário é um palazzo (várias vezes mencionado) numa das ruas fluviais de Veneza, de historial macabro e  assombrado que em breve dará lugar a uma sessão espírita. A Lei de Murphy à vista de todos. As personagens são-nos apresentadas numa entropia espacial; existe claustrofobia nos planos apertados, mas acima disso são os planos picados que prevalecem, um olhar constante de cima para baixo como se o espectador se posicionasse num terreno astral oposto aos deste leque de vítimas e assassinos. Há uma história de fantasmas a povoar por lá, Poirot, cético, desacredita de todos aqueles troços sobrenaturais, mas a câmara continua marcando o seu zénite, testemunha oculta que até mesmo nos supostos grandes planos se mantêm posição de “julgamento” do além, ou seja, sempre em modo picado. 

A gímnica força essa farsa até à chegada da médium, aqui interpretada por uma Michelle Yeoh pós-Óscar, que embate com brevidade no detetive em uma picardia de crenças. Porém, existe um momento logo após em que ambos sobem uma escadaria em direção à sala de convidados; a câmara aproxima-se de Poirot, novamente em grande plano picado, salientando o brilho da sua testa suada e o olhar angustiado de quem prevê uma "desgraça", automaticamente, "corta" para Yeoh, em grande plano [close-up], captando o seu exotismo naquele cenário sombriamente veneziano, nada de picados aqui, tudo "normalizado", a esquadria corrigida. Será o facto da suposta “lady” falar com os mortos e desta forma estar ao seu nível, ao seu terreno? Não sabemos de momentos as ideias de Branagh no simbolismo desta decoupagem e duvido que a imprensa americana faça questões a este respeito sem ser a do entretenimento básico. 

No entanto, o filme prossegue nesta linha, apertado cenicamente, arroçado planificamente, as personagens são principalmente captadas através das suas expressões e não pelos gestos, e a perspectiva, principalmente perseguindo Poirot, na sua “caça ao espírito” de cima para baixo é fiel a esse espectador do oculto. Possivelmente mais interessante visualmente do que os seus antecessores, é também o capítulo mais atento à sua investigação, levando a audiência a concentrar-se nela e a “interagir” (sob distância higiênica obviamente) ao mesmo nível (ou não, tendo em conta o talento nato do protagonista) que o seu investigador, ao invés de cortes matreiros e condensações para dar palco à ação física na conquista de um público mais irrequieto. 

É a proeza num dos clamados “livros menores” de Agatha Christie (Tina Fey, aqui vestida enquanto heterónimo da autora na sua própria ação, lança igual “posta de pescada”), o de transformá–lo num whodunit hollywoodesco arguto, atmosférico e de uma realização arriscada (Kenneth Branagh tem muito de Poirot no que requer a egos inflamáveis). O resto, bem, é genérico … não se pode ter tudo!

O Pinochet vai nu

Hugo Gomes, 22.09.23

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No decorrer do Festival de Veneza, deparei-me com um texto, supostamente crítico, em que um jovem entusiasta presente no Lido referia múltiplas vezes, na sua impressão de “El Conde” de Pablo Larraín, o desconhecimento pela figura histórica de Augusto Pinochet. O facto de esse mesmo texto estar integrado num site que se apresenta como cobertura de um festival de cinema levanta dúvidas quanto à seriedade da crítica de cinema nos dias de hoje, ou até mesmo reflete na opção de alguns meios de comunicação optarem pela quantidade ao invés da qualidade dos seus “escribas”. Porém, são questões e debates fora deste parâmetro, mas é a partir desse pormenor, cada vez mais frequente personalidades históricas marcantes do século passado encontrarem nestas novas gerações uma certa abstração, contornos aproveitados por Larrain neste seu regresso ao Chile, em mais um “e se” a fazer sombra ao anterior “Neruda”, o qual reimaginava o poeta num policial à paisana.

Em “El Conde”, o realizador propõe uma hipotética, e sobretudo fantasiosa, história sobre a vida e morte do ditador, colocando-o nas vestes draculianas de um vampiro qualquer, ser nefasto e hediondo levitante noite fora em busca de corações frescos, solução única de preservação da sua imortalidade e rejuvenescimento. Uma metáfora fácil ao vampírico regime de Pinochet e à “seca” com que o país foi deixado após a despedida do Poder em 1990 (tendo falecido em 2006), deixando um legado, apoiado pelos EUA (deve-se sublinhar), de morte de milhares, corrupção e um golpe contra um governo democraticamente eleito na fatídica data de 11 de Setembro de 1973 (um outro cineasta chileno, Patricio Guzmán, possui um dos considerados documentários definitivos desse dia e das suas consequências - a trilogia “La batalla de Chile: La lucha de un pueblo sin arma” [1975 - 1979] - fica a recomendação). Portanto, não existe ciência nesta fantasia grotesca, Larrain, após Hollywood, volta ao ponto de partida munido de crucifixo e água benta, enfrentando, por fim, o “monstro” de frente. Desta vez, sem alusões, sem contextos históricos; uma sátira como a maior das estacas apontadas ao coração. 

Pinochet (Jaime Vadell, habitual colaborador do realizador) é uma anedota em forma de besta, envelhecido, velhaco e semi-desdentado, desejando a morte como “prego no caixão” ou o corpo a abarrotar de juventude da sua suposta carrasca (Paula Luchsinger). Já não é mais uma figura histórica; é, ao invés disso, uma criatura mitológica, nascida dos relatos incoerentes que só o seu espectro parece sobrevive no imaginário de todos; é o “papão” propriamente dito. Em outras palavras, Larrain esvaziou Pinochet, condizendo-o à estética do “espaçoso” que prevalece nos seus últimos trabalhos (enraizando uma ideia de vazio, ruinosa e algo esquecida pelo tempo, veja-se os “palacetes” artificializados de “Jackie” e de “Spencer”). Aqui, o “conde”, título inglório e blasfémico para quem cobiça realeza, é o “rei vai nu” num palacete decadente no seio de nenhures. Destino, esse, o do esquecimento, o pior que pode acontecer à sua ambição; eis o castigo de Pablo Larraín ao seu “nobre de lata”. Contudo, no limite do seu trajeto, entra mais um peão em cena, reforçando a intenção da obra, a de troçar do defunto (ou defuntos), a de acidamente distorcer figuras históricas em prol de uma causa, essa, a de despir simbolicamente o medo e, por consequência, uma ideologia. Infelizmente, “El Conde” vence como exercício, e esperneia por atenção enquanto obra política. 

Voltando ao ponto de arranque, se não sabem quem é Pinochet, não será com “El Conde” que vamos finalmente “aprender”, mas convém reafirmar que o Cinema não traz respostas; apenas nos inquieta com mais perguntas.

Porque estacionar em Lisboa é uma *bitch*

Hugo Gomes, 20.09.23

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Indiscutivelmente, (tentar) estacionar no bairro de Campo de Ourique é um pesadelo que por si só adquire contornos burlescos. Em “Vórtice”, curta-metragem de Guilherme Branquinho, é quase uma instalação dessa situação quase dantesca, uma escadaria de Penrose, em que numa noite qualquer, o descanso 'merecido' é adiado por um constante rodopio quarteirão acima, quarteirão abaixo. Trata-se de um exercício que condiz com a sua duração (15 minutos e chega bem), onde o espanto conduz de forma fluída, nunca 'escondendo' o jogo, nem nunca revelando o baralho na sua totalidade, mas entendendo do que está em cima da mesa, e com isso mantendo refém a atenção do espectador num artifício de fácil codificação e difícil explicação. Metafísica, quântica, ou somente a 'piada' recorrente transformada em episódio “Twilight Zone”, expondo um know-how convincente, se não fossem também as peças devidamente encaixadas.

Narrativamente estamos conversados, quanto à atmosfera nem há para muito discutir, é um desespero paranoico, ensurdecedor perante o silêncio habitual da madrugada naquela 'witching hour' (julgo que por cá chamamos “hora da bruxa”, não tenho a certeza), e no seu centro, ou melhor, vórtice, Cristóvão Campos, ator que nos últimos tempos tem tão bem exposto uma angústia vertiginosa sem perder um pio ao identificável (fora do Pôr-do-Sol”, devidamente satírico, há que espreitá-lo em “Revolta” de Tiago R. Santos para perceber do que falo).

Quanto à curta, poderão vê-la na Filmin aqui.

De tripas de fora, o meu coração transforma ...

Hugo Gomes, 19.09.23

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Em coro, noticiamos um filme que se impõe numa vertente fabulista. Uma dívida de carne cometida por uma mãe vitimada pelas ameaças de uma “comedora de lobos”, criatura nefasta que se metamorfoseia em tudo o que mata, e que, num determinado dia, 'invade' o seu domicílio. O preço era a criança que segurava nos seus braços sob o olhar aterrorizado da progenitora, um pacto de sangue feito e cumprido… quer dizer, nunca chegando a esse propósito, visto que a criança, uma menina, é posteriormente mantida em segredo numa gruta, longe dos olhares humanos e sob a proteção da natureza perante aquela semi-bruxa disfarçada. 

Dezasseis anos passaram, a menina cresceu numa bela jovem (Sara Klimoska), animalesca como seria de esperar pelo incompreendido exílio, desconhecendo o mundo para além daquelas paredes cavernosas, a galeria rochosa que recebiam ocasionalmente a sua mãe, agora mulher obsessivamente paranoica. A fortaleza é previsivelmente 'desfeita' pelo pico da maioridade, a 'criatura' que há mais de uma década prometeu recolher o seu “prémio", chega sob a forma de uma rapina, atenta e astuta. A jovem é então “libertada” da sua progenitora biológica e adotada como cria desta figura-bruxedo, ensinando a morte como quotidiano e o isolamento como regra de ouro para a sua subsistência, e como recompensa, a transformação como parte do seu desígnio. Durante dezasseis anos a gruta foi tudo o que ela conhecera, a sua Caverna de Platão, agora a sobre-informação deste novo ambiente a leva ao extremo da curiosidade, ao incompreensível e nesse signo, a sua 'infiltração' na comunidade humana. 

Através destes golpes e apropriações identitárias e corporais, visto que é parte da visceral matança que a agora criatura assume a forma da sua presa, a protagonista vai incorporando lições de género naquele simplório estatuto social. Primeiro a mulher - aqui Noomi Rapace bailando nos ritmos da loucura numa liberdade performativa impressionante - assumindo a sua opressiva forma de ser, ordenada às lides caseiras e maternais, contando com a comoção de outras mulheres e a objetificação do seu bruto marido. Mais tarde, o homem - Carloto Cotta, no seu estado delirantemente natural - gozando de um poder imenso posicionado na sua genitália e igualmente esmagado pela pressão do patriarcado, o qual afigura. E, por fim, a criança, o crescimento e o ritmo fluidamente natural com que parte, é através desta perspetiva que o equilíbrio dos seus anos perdidos, aqueles remotamente figurados na fortaleza natural enquanto berço de dezasseis anos. 

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"You Won't Be Alone" (co-produção australiana, inglesa e sérvia) é, usufruindo do seu folclore macedónico, uma reflexão à Humanidade, repartida nos seus valores sociais, identitários e de género. O que valida ser humano? Goran Stolevski dirigiu e escreveu este tratado no seu território fantástico, violentíssimo reconto das infraestruturas humanas que intensifica enquanto filosofar vivente (não há absolutismos, só dúvidas gerando mais dúvidas), porém, aquilo que foi aqui descrito poderá abrir o apetite a recém-visitantes, só que a execução é preguiçosamente encostada a um efeito autoral miope, ou seja, o filme segue o registo malickiano (ou maliquices taradas); voz-off, sequências desconectas e longínquas de um natural raccord, a quasi-ausência de diálogos entre personagens, subserviente à tese ao invés da ação. É uma viagem com princípio na lenda e com percurso agreste naquilo que a autoralidade é confundida, neste caso, a noção autoral (apesar de tudo, uma tendência tão americanizada) de um Malick emprenhado e embelezado. Chamemos um exorcista para expulsar tal espírito malevolente!

Uma pena, que perante estas escolhas artístico-narrativas se sacrifique uma 'criança' com bastante potencial. Daqueles exercícios que preenchem teorias, só que desengonçados na sua prática.

"A Semente do Mal": entre manos e manias, é tudo família ...

Hugo Gomes, 16.09.23

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Parece novela, mas dois gémeos se encontram passados 30 anos, separados devido a circunstâncias misteriosas. Edward (Carloto Cotta) parte de Nova Iorque à descoberta do que resta da sua família, possível graças a um teste de DNA oferecido pela sua namorada, Riley (Brigette Lindy-Paine), cujo resultado o conduz para Portugal, mais precisamente para um casarão 'perdido' no meio da floresta transmontana, onde reside o seu “perdido” irmão (novamente Cotta) e a sua desfigurada mãe (Alba Baptista / Anabela Moreira). Um reencontro há muito esperado que desvendará alguns segredos macabros e perversos.

Ora, como é possível verificar, é Carloto Cotta a dobrar num prometido regresso de Gabriel Abrantes à longa-metragem (cinco anos depois de “Diamantino”), resultando numa produção competentíssima, aliás, das mais universalmente competentes no que se refere às nossas 'aventuras' pelo género... isto, falando num senso comum de mercado. E é aí que “A Semente do Mal” (“Amelia’s Children” para os ‘amigos’ gringos) mais falha, o de não conseguir prosseguir enquanto exercício personalizado, visto que é o nome Gabriel Abrantes a surgir nos créditos. É Abrantes, sim, como poderia ser outro qualquer 'sujeito' e o resultado seria o mesmo: num profissionalismo embrulhado em semiótica reconhecível e pior que isso... algo que não perdoo nesta “altura do campeonato”... o uso fácil dos jumpscares, isso, ao invés da aposta atmosférica (sendo o material frutífero para tal e muito mais). Onde se nota o cobiçado 'toque-abrantes' em todo este cenário é na tecnologia enquanto alavanca narrativa, neste caso o mecanismo e a respetiva aplicação de DNA, a possibilidade e a impossibilidade unidas em futurismos como mandou parte do cinema do realizador (aqui menos delirante e mais propenso a montar um filme de terror seguindo as instruções de um manual).

Talvez esteja a ser injusto, ou até incapaz de gerir desilusão perante uma pintura assinada por Gabriel Abrantes. Este "cruzamento" entre "Suspiria" (o último ato leva-nos a esse território) e "X" de Ti West vai agradar 'gente', mas é um caso “Rabo de Peixe” da Netflix, não detém expressão, simplesmente confunde-se com o habitual.

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