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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Ida e volta morettiana

Hugo Gomes, 30.09.23

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Não venham apontar o “Il sol dell'avvenire" como um regresso de Moretti à sua 'original' forma; nada disso, vejam-no como uma transição, ou um rito de passagem, como preferirem. Depois, há o 'novo Moretti' a emergir após a queda do 'antigo Moretti', e qual melhor maneira de apresentar essa diferenciação do que um lado a lado com dois dos seus posters desenhados: um do filme recente e outro do seu 'clássico', “Caro Diario” (1993). Enquanto num deles notamos o autor e protagonista numa Vespa à moda italiana, prosseguindo na sua direção, de costas voltadas, em velocidade e agressividade, em “Il sol dell'avvenire” é a inversão de marcha representada numa trotineta, um veículo movido pelo esforço físico, o tipo de mudança que ele pede. Isto para dizer que Nanni Moretti regressa aos seus temas antigos, velhas fórmulas e até mesmo velhas irritações, mas a visita serve apenas como desculpa para um “move on".

Moretti, amico, i cinefili sono con te!

A.I. por A.I., no que é que o cinema "original" se tornou?

Hugo Gomes, 29.09.23

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É na atualidade pertinente (com uma greve sindicalista de argumentistas e atores à mistura) que nos chega um filme como "The Creator", uma produção distópica apropriada pela Disney (uma vez que a 20th Century Studios, sem a Fox, é apenas uma fachada), que viabiliza uma luta entre uma sociedade militarista, mas humana (EUA, quem mais?) e uma nação mista com androides de A.I. nas lides de uma insurreição. "A A.I. é 'amiga'", lê-se nas entrelinhas, encontrando refúgio num super-país multicultural situado em territórios asiáticos não definidos (só que reconhecíveis). Oriente contra Ocidente e vice-versa... Que leituras geopolíticas, bem como sociais, podemos fazer aqui!?

Apesar de poucos recursos e financiamento, mas com ideias e cautela em abundância, Gareth Edwards passou de "Monsters" (2010) - um "darling" indie de ficção científica com extraterrestres girafídeos a invadir o nosso mundo e um drama intimista como pano de fundo - para milionários capítulos de sagas duradouras (ora "Rogue One", uma versão lobotomizada de "Star Wars" agraciado excessivamente pelos adeptos, ora "Godzilla", o reboot à americana com espírito nipónico-trash), embarcando posteriormente no meio-termo naquilo que tem sido catalogado como uma distopia original, o que levanta algumas questões quanto aos termos a serem usados, e muito mais nas consequências pós fenómeno “Barbenheimer” ainda por apurar.

A verdade é que é através da sua não-originalidade que "The Creator" transmite uma sensação de frescura, uma mera máscara facial, tal como aquela "vendida" aos seres sintéticos que “sonham com a ovelha elétrica” (saudação a Phillip K. Dick, porque em nenhum momento “Blade Runner” abandonou a minha mente), inspirada por lugares exóticos, como a Ásia vista através de postais ou em coletivas memórias oriundas do nosso século passado (é difícil não pensar no Vietname, sob os seus signos cinematográficos, quando assistimos às inúmeras intervenções militares dirigidas por uma ácida Allison Janney). Nesse sentido, o seu lado não-franchisado - se for bem-sucedido no teste do box-office - poderá promover uma nova onda de produções em Hollywood (a revenda de produções recicladas como "originais", matando a sede de um público em tremenda secura criativa). No entanto, o Cinema não deve ser apenas visto como um negócio, mas também como um veículo de ideias, e, como a ficção científica é um género repleto delas, esperava-se mais do que simplesmente o mero emaranhamento dos velhos tópicos. As ideias estão apenas soltas como borboletas, orbitando em torno do seu objeto graciosamente, porque a maior parte do filme consiste (e insiste) em lugares-comuns, presos a um esquemático mundo construído, e de nariz empinado (ai, “cinema adulto para massas”, julga ele).

São clichés até à quinta casa, reunião de elementos básicos para o espectáculo global, previsivelmente priorizando a emoção (manipuladora) em detrimento da razão, ou, melhor dizendo, da ideologia (escondida naquele molho de choraminguices). E para um filme que aborda questões pertinentes, esperava-se mais discernimento do que instinto contido, mais do que plataformas messiânicas ou sacrifícios heróicos, e acima disso, além de um dominante belicismo. Em suma, "The Creator" fala sobre a humanidade nas A.I. (uma convergência de "espécies", como é referido em certo momento), mas soa como se fosse criação da mesma, seja a nível argumentativo (e narrativo), seja a nível técnico (é preciso ir além do "bem filmado" e considerar que tipo de personalidade, vulgo simbolismos, as imagens nos trazem). É um barrete disfarçado, com mais fama que proveito.

Não foi Dumbledore que nos deixou, foi Michael Gambon

Hugo Gomes, 28.09.23

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The Cook, the Thief, His Wife & Her Lover (Peter Greenaway, 1989)

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Gosford Park (Robert Altman, 2001)

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The Singing Detective (Jon Amiel, 1986)

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Layer Cake (Matthew Vaughn, 2004)

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A Dry White Season (Euzhan Palcy, 1989)

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The Good Shepherd (Robert De Niro, 2006)

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Sleepy Hollow (Tim Burton, 1999)

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The Beast Must Die (Paul Annett, 1974)

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The Insider (Michael Mann, 1999)

 

Michael Gambon (1940 - 2023)

Moretti 8 ½

Hugo Gomes, 27.09.23

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De “não-filmes” a “filmes incompletos”, é dessa forma que o universo de Nanni Moretti é povoado, e em “Il sol dell'avvenire” conta-se um falso retorno ao seu estado original, à comédia sardónica e ao cunho altamente pessoal (por vezes roçando o autobiográfico ou simplesmente o alternativamente biográfico). É desses fantasmas que o autor exorciza numa espécie de ritual criativo, é novamente a ausência, seja de que forma seja, ou que manifeste a apresentar o seu rascunho, ora entendido como pauta para o filme a seguir. 

Entre “Caro Diario” (1993) e “Aprile” (1998) - a ruptura com o seu alter-ego Michele Apicella e o momento de se assumir imerso na sua própria ficção - existia um hipotético musical de um pasteleiro trotskista dos anos 50, uma ideia, uma fixação e por vezes uma produção ficcionalizada na qual Moretti regressa quando convém, servindo de cela existencial para o tema indexado. Em “Mia Madre” (2015), era a mantra de um filme desgovernado por uma realizadora em crise familiar e um ator-vedeta convencido em sequestrar a produção, enquanto o 'verdadeiro' filme estava a ser construído fora dos bastidores dessa ficção dentro da ficção; era a despedida de uma figura maternal, o restante era apenas um escape, ora dançante, ora conduzido em vívidas alusões. Estes filmes (ou supostamente) enriquecem o campo do vazio/ausência que o cinema de Moretti traz como garantido punhado. Basta revisitar o “e se” em “La stanza del figlio” (2001), o mais óbvio dessa tese do vácuo e como lidar-lo, onde o filme, metaforicamente, segue uma narrativa inexistente, realidade como quiserem chamar, uma materialização dessa mesma ausência, o luto disfarçado e acorrentado nas asas libertadoras da imaginação. 

Já em “Il sol dell'avvenire”, o criado filme aproxima-se do quotidiano de Nanni (Moretti sendo ele mesmo, quem mais?), envelhecido, cansado e à sua maneira reacionário, incapaz de lidar com as transformações que a sua vida experiencia uma e outra vez. Talvez é nesse intuito que aqui o filme muta, já não é mais um espelho de quem não consegue “olhar de frente” para o trajeto da sua existência; é antes uma determinação e quiçá uma superação. Descrever esta obra como um “feel good movie”, “gringamente” falando, está para além do ser redutor, é antes ir à vértebra ferida de Moretti, porque até o convicto cede, e a cedência faz parte desse crescimento (ou amadurecimento, vá lá). Em “Il sol dell'avvenire”, é a transição de um Moretti hirto a um Moretti vencido, mas não derrotado, apenas revigorado. 

Veremos o que espera no pós deste “Fellini 8 ½” concretizado e de menores proporções? Mas assim o quis, talvez para fazer jus à sua natureza morettiana. Quer dizer, não se deixem enganar, temos Moretti sendo Moretti, surdamente erudito como profano, de retiradas iradas de Estaline às causas comunistas (dentro e fora do ficcionado filme dentro do filme, até porque o “filme é seu” como deixa expresso), à sua manifestação / revolta pela violência cinematográfica, gratuita ou necessária (a questão torna-se unilateral porque a visão de Moretti triunfa sobre tudo o resto, refletir, autoritariamente “sugere”, ao invés de terminar o filme alheio), e a Netflix - o gag certeiro como “coelho retirado da cartola do mágico” … 190 países (!), na supremacia de um “cinema” de formatos e algoritmos. “Se eles dominarem, o Cinema morre”, expressou Rodrigo Teixeira (o produtor de “The Witch”, “Frances Ha” e “Call Me By Your Name”), e sem dúvida alguma acredito que o Moretti partilha da mesma crença.

"Olhar o Medo" no Fórum Fantástico 2023

Hugo Gomes, 27.09.23

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No dia 1 de outubro, às 15h15, estarei no Fórum Fantástico, que decorrerá na Biblioteca Orlando Ribeiro, a convite dos autores António Araújo e José Carlos Maltez, para apresentar e moderar uma conversa sobre o seu livro "Olhar o Medo". A entrada é livre.

Para mais informações sobre o evento, consulte aqui.

Para adquirir o livro, clique aqui.

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Arranca o 6º BEAST IFF, da Eslovénia cinematográfica a finais (nada) felizes: "uma procura por novas fórmulas, por novos destinos e por novos caminhos"

Hugo Gomes, 26.09.23

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I Miss Sonja Henie (Karpo Godina, 1971)

A Eslovénia torna-se assim no centro geocultural desta sexta edição do BEAST IFF, o Festival Internacional de Cinema que acontecerá já no dia 27 de setembro, estendendo-se até ao primeiro dia de outubro em vários pontos da cidade do Porto. Este ano, para além do país homenageado e do melhor cinema do leste o qual tem dedicado com coração, poderemos contar (e continuar a contar) com um enorme foco feminino - com especial destaque para argumentista e figurinista Ester Krumbachová, uma das parceiras da “mãe” Věra Chytilová nos seus devaneios que lançaram a nova vaga checoslovaca para o holofote do mundo - e uma forte aposta no cinema queer originário das Balcãs. Sem esquecer Karpo Godina, um dos nomes maiores do cinema esloveno, que marcará presença numa retropectiva à sua figura.

É "no happy ever after" a inundar a cidade invicta nestes cinco dias, mas apesar do slogan pessimista, o BEAST IFF promete ser um festival "feliz", porque Cinema haverá, logo a felicidade é garantida. Só que esta felicidade está nas longitudes longínquas das utopias e dos "we are the worlds" hollywoodescos. Mas deixemos de descrições baratas e passemos aos nossos diretores e programadores - Radu Sticlea e Teresa Vieira - que, respondendo ao convite do Cinematograficamente Falando …, desvendam a rota desta edição.

Ao chegar a uma sexta edição do festival, e olhando em modo retrospectivo, quais os objetivos atingidos e o que poderá ainda atingir?

Radu Sticlea: Acredito que com cada edição conseguimos curar com sucesso um programa que não só mostra o trabalho de realizadores de renome, mas também dá destaque a talentos emergentes. Esta abordagem permitiu-nos nutrir e promover a próxima geração de realizadores da Europa de Leste, enquanto nos estabelecemos como uma plataforma única.

Como festival, a nossa missão é a seguinte: construir uma plataforma dinâmica para colaborar e fazer networking entre Portugal e a Europa Central e de Leste, enquanto simultaneamente desafiamos e desfazemos estereótipos associados à região. Nós acreditamos que um programa reflexivo e provocante não é só um testemunho da nossa dedicação para os talentos cinematográficos, mas também é uma oportunidade para expor a diversidade e densidade criativa do cinema da Europa de Leste. Ao abraçar conteúdos provocativos e quebrar barreiras, temos como objetivo incentivar conexões significativas e contribuir para uma compreensão mais extensa desta paisagem cinematográfica vibrante.

Sobre a Eslovénia, o país-homenageado, o que poderá dizer sobre a sua cinematografia e como resumi-la para o seu Focus. Que impressões os espectadores terão com esta viagem?

Teresa Vieira: Todos os anos, o BEAST dedica-se à criação de uma programação focada no panorama cinematográfico de um país, apresentando trabalhos de realizadores de renome e realizadores emergentes, num leque de diferentes temporalidades (das marcas do passado, ao presente e apontando para um futuro). Este ano, a escolha do Foco na Eslovénia surgiu por diversas razões. Desde logo, por sentirmos uma falta de representatividade do país - ou um certo desconhecimento da sua cinematografia - no panorama nacional, procurando criar um espaço para uma mostra mais aprofundada de produções passadas e presentes. A tal adicionado o facto de ser o primeiro país pós-comunista a legalizar a adopção e o casamento entre casais do mesmo sexo, o que se liga à nossa atenção para com as questões queer na Europa Central e de Leste

Em termos de programação específica, decidimos alterar o modelo de selecção para a cerimónia de abertura (que, ao longo da história do festival, se concretizava com a exibição de uma longa-metragem do País em Foco), seleccionando três curtas-metragens de três realizadoras da Eslovénia. Consideramos esse gesto representativo do festival de diversas formas: o formato de curta, sobre o qual trabalhamos um pouco por toda a programação, como forma de lançamento do mote para esta 6ª edição; e a escolha de três obras realizadas por mulheres, que traduz a nossa atenção para com questões de género na programação. 

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Věra Chytilová e Ester Krumbachová

Aquilo que o público poderá esperar, após esse ponto de partida, é uma viagem por diferentes pontos: uma retrospectiva de curtas metragens dos anos 60 e 70 de Karpo Godina, realizador de renome (aqui num ponto de passado estabelecido e fortemente marcado na história do cinema); duas sessões de trabalhos de duas escolas de cinema (criando uma mostra dos futuros nomes da cena cinematográfica, dando também um espaço para estas produções circularem noutros territórios e contactar com outros públicos); uma sessão especial de LGBT_SLO_1984, parte do programa queer do festival, para um maior entendimento dos movimentos artísticos, activistas e históricos associados à evolução dos direitos LGBTQIA+ do país; uma retrospectiva de video-art, um formato que foi (e ainda é) marcante da cena artística do país, e que consideramos fundamental para um maior entendimento das abordagens artísticas e cinematográficas da Eslovénia, procurando ao mesmo tempo enfatizar o nosso ângulo de criação de espaço para “outros formatos”, por vezes afastados das salas; um cine-concerto de “No Reino Do Chifre De Ouro” (“In the Kingdom of the Goldhorn”, 1931), com o artista sonoro Ivo São Bento, em que exibiremos a primeira longa-metragem realizada na Eslovénia acompanhado por um trabalho musical e sonoro original e exclusivo para este evento.

Procuramos, no fundo, apresentar uma seleção diversificada de múltiplas formas - e despertar todos os sentidos do público pelo caminho.

Em BEAST IFF existe uma “apetite”, chamaremos assim, em se focar num cinema feito por e para mulheres, descortinando nomes emergentes como a de Tereza Nvotová [“Nightsiren”] ou de heroínas como Ester Krumbachová, colaboradora de Věra Chytilová, ambas representadas nesta edição. Gostaria que me abordasse esta abordagem, se é algo coincidente ou uma convicção político-social-artística do festival?

TV: A resposta poderá passar pelas duas partes: surge de uma convicção político-social-artística e aconteceu igualmente (de forma não coincidente mas) natural - sendo que tal advém, desde logo, por exemplo, de escolhas em pré-criação de programação. A nossa atenção para com questões de representação de género está presente, em primeiro lugar, na constituição da equipa do festival: procuramos ter um grupo de vozes diversas, o que de forma natural influencia os resultados nas escolhas curatoriais e na programação. 

Não tendo uma maioria de programação cis masculina, implica que, regra geral, a questão (necessária, urgente, fundamental) que tem de ser muitas vezes apresentada e reforçada noutros contextos - e firmada constantemente -, de atenção para com a representação de género, se tornou quase “redundante” no nosso processo colectivo de trabalho. No sentido em que, enquanto pessoas que não fazem parte de uma categoria de “privilégio”, tal implica inevitavelmente um posicionamento individual e colectivo - um olhar - que carrega em si estas questões de forma contínua - é a nossa vida, a nossa luta, a nossa história. Faz parte de nós e a programação reflecte isso mesmo. 

Relativamente a elementos de secções não-competitivas, o caso do programa de retrospectiva de video-art da Eslovénia poderá ser ilustrativo: após a selecção de grande parte das obras que vão ser agora exibidas ao público, foi possível observar que o programa, de si, já representava uma maioria feminina. Assim, foi mantida a programação exatamente como estava após essa análise. Em relação a outros programas temáticos (fora de competição e do Foco Eslovénia), dar destaque a Ester Krumbachová é dar uma atenção para o trabalho criado por uma mulher mas também para uma pessoa cuja função não recaiu somente na realização. É igualmente um posicionamento do festival de que é necessário criar e fortalecer espaços de foco em áreas além da realização e produção: o caso da Ester, multi-facetada e fundamental set designer, costume designer, guionista da New Wave Checa, é uma forma de demonstrar essa vontade.

Uma questão pertinente, visto que o festival foca este ano numa mostra de cinema Queer (ou simplesmente de temática LGBTQIA+), o qual decorrerá em simultâneo com o Festival Queer Lisboa e posteriormente com a extensão no Porto. Existe diálogo entre os dois festivais, ou há um sentimento de concorrência?

TV: O BEAST tem dedicado ao longo de diversas edições um espaço para programação de cinema queer. Este ano, o festival decidiu criar um título para essa secção: “How to Care for Cosmos”. Um título que surgiu, entre outras coisas, de inspiração a partir de “Modern Nature”, de Derek Jarman. Uma ideia de um jardim que tem de ser cultivado, com flores que representam o “tudo”, o “universo” - o “nós e es outres”. É um programa que procura o cuidado, a atenção para com questões que consideramos urgentes, de forma a procurar um futuro melhor para todes. 

Este foco transparece uma identidade queer que não é somente uma secção: faz parte do ADN do festival, composto maioritariamente por pessoas da comunidade LGBTQIA+. O programa desta secção, este ano, resulta em grande parte de colaborações com dois festivais de cinema queer da Europa de Leste: Sunny Bunny (Ucrânia) e FFi (Eslováquia). O Sunny Bunny é o primeiro festival de cinema queer da Ucrânia e teve este ano a sua primeira edição. Exibir estas curtas-metragens ucranianas neste momento é também um statement do BEAST, que tem reforçado o seu foco - já existente em edições passadas - no cinema ucraniano durante este período de guerra, com uma vontade explícita de dar voz aos cineastas do país - e, este ano em particular, à comunidade queer. A colaboração com o FFi resulta de uma preocupação para com a situação sócio-política do país: em 2022, duas pessoas da comunidade LGBTQIA+ foram assassinadas à frente de um bar (safe space para pessoas queer). 

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Before Curfew (Angelika Ustymenko, 2023)

Mostrar curtas-metragens da Eslováquia é também uma forma de demonstrar o nosso apoio para com a comunidade do país, e uma procura para um alerta de movimentos de ódio que ainda (ou desde sempre) acontecem na Europa. Os programas que serão apresentados foram criados colaborativamente: uma selecção que uniu diversos olhares de diferentes pontos geográficos - todos a partir de perspectivas de indivíduos queer.

Esta resposta passou, primeiro, por uma mostra do gesto programático desta secção: colaboração, diálogo e trocas. Não foi por acaso: serve de ponte para aquilo que poderá ser dito em relação ao Queer Lisboa e a sua extensão no Porto. Não só não existe qualquer concorrência entre festivais, como almejamos que existam cada vez mais e mais espaços para vozes, visões e identidades queer - algo que consideramos crucial. Felizmente, nos tempos que correm, é possível ver cada vez mais a presença de cinema queer em programações não dedicadas exclusivamente ao cinema queer

No entanto, a existência do Queer Lisboa/Porto, que têm notoriamente das identidades mais firmadas e estabelecidas no panorama de festivais nacionais, é algo que consideramos absolutamente fundamental, insubstituível e de um valor imenso. A sua linha de programação denota preocupações partilhadas - desde logo, por exemplo, exibindo filmes que relatam as questões da Guerra na Ucrânia - , também com produções de países como a Roménia, o Kosovo, mas também de múltiplas regiões além-Europa (filmes da Nigéria, do Brasil, da Colômbia, entre tantos outros). Partilha de preocupações, um olhar atento para com as questões da comunidade LGBTQIA+ e uma selecção de excelência a nível de qualidade de produção cinematográfica são ingredientes para a receita perfeita para aquilo que diremos de seguida, em jeito de conclusão.

O Queer Lisboa e o Queer Porto são festivais que respeitamos, que admiramos, com quem claramente partilhamos (para além das datas de calendário entre Queer Lisboa e BEAST) uma simpatia imensa e com quem obviamente gostaríamos de um dia colaborar (se elus nos quiserem também ;) ).

O que poderá destacar na programação, dos filmes aos convidados?

TV: Um dos destaques inevitáveis da programação é a retrospectiva de Karpo Godina, realizador que marcará presença no festival. As obras produzidas entre os anos 60 e 70 por esta figura incontornável da história do cinema são uma magnífica amostra da originalidade, frescura e a abordagem satírico-politizada (com uns óptimos travos musicais e de humor à mistura) que marcam o espólio deste cineasta e um pouco do seu trajecto inicial no universo cinematográfica - essa descoberta que podemos ter dos primeiros passos que o realizador deu nessa sua própria (e única) viagem.

Destaque igualmente para o programa “Post Porn - Radical Visibility”. Criado em colaboração com o Post Pxrn Film Festival Warsaw, surge como resultado de uma curadoria conjunta entre os festivais, de apresentação de uma selecção de curtas-metragens polacas de post porn. O encontro com os diretores deste festival, que estarão presentes na sessão, será uma excelente oportunidade para conhecer melhor o “post-pxrn” mas também a relevância da produção destas - e outras obras -  no contexto sócio-político e artístico particular da Polónia.

Em relação ao programa queer, não só destacamos todas as sessões — Sunny Bunny, FFi e LGBT_SLO_1984 — como também consideramos importante mencionar a Queer Talk que decorrerá durante o festival, onde será possível participar numa conversa com todos os directores desses festivais, aos quais se juntará Romas Zabarauskas, cineasta lituano reconhecido pelo seu trabalho no cinema queer, convidado do evento de indústria do BEAST.

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In the Kingdom of the Goldhorn (Janko Ravnik, 1931)

Por fim, destaque para o regresso da secção CINE-GEOGRAFIA SOCIALISTA | ÁFRICA - EUROPA DE LESTE. Este ano, com um programa em que será exibido um documentário de Traian Cocoș e Răzvan Marchiș “Viagem... longe da África” (1972-194), seguido de uma talk com Iolanda Vasile. Este programa, que conta com o apoio do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, através do projecto EDU-AM, e do Instituto Cultural Romeno, criará espaço para uma conversa que terá como ponto de partida a investigação de Iolanda Vasile sobre as ligações que a República Socialista da Roménia teve com vários países do continente africano entre os anos 1965- 1989. Será discutido como os câmbios educacionais, principalmente no cinema, mas também em outras áreas, contribuíram para as transições políticas no continente Africano colocando as bases do processo de transição pós-colonial.

O festival contará com a presença de realizadores das diversas secções, para além de convidades de indústria que estarão presentes durante esta edição.

Muito deste cinema do leste que aposta enquanto tema do evento é normalmente ignorado pela distribuição comercial nacional. Existe um preconceito para com estes filmes, ou entendimento (provavelmente pelo senso comum adquirido pelo experimentalismo de muitas destas cinematografias) como pouco acessíveis a públicos maiores.

RS: Nós reconhecemos o panorama evolutivo do consumo de cinema português. O público português está a demonstrar um interesse cada vez maior pelo cinema de nicho, incluindo as particularidades únicas e cativantes da Europa de Leste. Esta mudança na preferência do público é encorajadora e sinaliza um desejo crescente por experiências cinematográficas diversificadas, para além dos filmes comerciais mainstream.

Além disso, observamos uma tendência positiva no sector da distribuição. Os distribuidores estão a começar a reconhecer a mudança dos gostos do público português e estão mais abertos a atribuir espaço a conteúdos de nicho, incluindo filmes da Europa de Leste. Esta abordagem progressiva reflete um reconhecimento amplo do valor cultural e do significado artístico destes filmes.

Enquanto festival, esforçamo-nos ativamente para estar na vanguarda desta onda de transformação. O nosso objetivo é tornarmo-nos num ponto de encontro fundamental para os profissionais da indústria, incluindo cineastas, produtores e distribuidores, tanto de Portugal como da Europa de Leste. Acreditamos que a promoção de ligações entre estas duas regiões pode levar a oportunidades interessantes de colaboração e co-produção.

Sobre um eventual crescimento do festival, alguma vez colocou-se em cima da mesa extensões das vossas mostras? Ambições para o futuro?

TV: O festival tem realizado extensões ao longo dos anos, vendo esses momentos como forma de reforçar a presença do festival mas acima de tudo de criar a possibilidade de expansão de visibilidade de obras de cineastas. O BEAST, estabelecido, nutrido e com raízes no Porto (onde se pretende manter) já realizou mostras em espaços em Lisboa, como no Cinema City Alvalade e na Galeria Zé dos Bois (neste último caso, em colaboração com o Cineclube Aparição, com uma mostra de cinema ucraniano - o país de foco em 2021 - e os filmes vencedores da competição desse ano).

Em relação ao próprio festival, apostamos na criação de uma plataforma de networking e colaboração — East, Match, Go! —, que terá este ano a primeira edição. Um evento de Indústria que procura aproximar — e fomentar ligações — entre profissionais de Portugal (com ênfase no Porto) e profissionais da Europa Central e do Leste.

Nesse sentido de aproximação de Portugal a esta região da Europa, o festival tem realizado a curadoria de programas de cinema português. Nomeadamente, o exemplo mais recente, foi a criação de um programa de curtas-metragens queer portuguesas, que chegaram a diversos festivais da Europa Central e de Leste (como o BRNO 16, o Sunny Bunny, entre outros).

O objectivo do BEAST — como o de todos os festivais — será sempre o de crescer, mas também de amadurecer e de se fortalecer de forma consciente e atenta àquilo que o rodeia, tendo sempre presente a atenção para com a forma através da qual tal evolução poderá ser sustentável e adequada para a manutenção da qualidade e dos valores do festival. Para o futuro é possível dizer que pretendemos criar uma ligação cada vez mais forte com festivais e mostras com quem partilhamos ideais - e ideias -, num gesto de manter activa e em funcionamento a nossa perspectiva de que, através da colaboração, será possível crescermos — equilibradamente — em conjunto.

no happy ever after”, o tema desta 6ª edição, é um reflexo de uma procura por novas fórmulas, por novos destinos, por novos caminhos. É nesse percurso, de construção, de análise, de escuta e aprendizagem, em que queremos — e precisamos de — estar.

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Toda a programação poderá ser consultada aqui

Até aposto que foi o mordomo ... fantasma!

Hugo Gomes, 25.09.23

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Existe muita boa gente que admira a saga Poirot-Branagh, da minha parte, tendo em conta os dois primeiros livros adaptados (“Murder on the Orient Express” e “Death on the Nile”) fiquei com a impressão de assistir a tentativas pops e altamente pretensiosas dos jogos de “cluedos” de Agatha Christie. Os fatores são muitos, aliás, mas é na chegada de “A Haunting in Venice” que entendo um certo arrojo visual-planificado. 

Narrativamente é a fórmula christiana do costume, o belga Hercule Poirot (novamente um “afrancesado” maneirista Kenneth Branagh) é convidado ao “local do crime” antes de ele tornar-se num e previamente assumir-se como um teatro de vedetas (e vendettas), o cenário é um palazzo (várias vezes mencionado) numa das ruas fluviais de Veneza, de historial macabro e  assombrado que em breve dará lugar a uma sessão espírita. A Lei de Murphy à vista de todos. As personagens são-nos apresentadas numa entropia espacial; existe claustrofobia nos planos apertados, mas acima disso são os planos picados que prevalecem, um olhar constante de cima para baixo como se o espectador se posicionasse num terreno astral oposto aos deste leque de vítimas e assassinos. Há uma história de fantasmas a povoar por lá, Poirot, cético, desacredita de todos aqueles troços sobrenaturais, mas a câmara continua marcando o seu zénite, testemunha oculta que até mesmo nos supostos grandes planos se mantêm posição de “julgamento” do além, ou seja, sempre em modo picado. 

A gímnica força essa farsa até à chegada da médium, aqui interpretada por uma Michelle Yeoh pós-Óscar, que embate com brevidade no detetive em uma picardia de crenças. Porém, existe um momento logo após em que ambos sobem uma escadaria em direção à sala de convidados; a câmara aproxima-se de Poirot, novamente em grande plano picado, salientando o brilho da sua testa suada e o olhar angustiado de quem prevê uma "desgraça", automaticamente, "corta" para Yeoh, em grande plano [close-up], captando o seu exotismo naquele cenário sombriamente veneziano, nada de picados aqui, tudo "normalizado", a esquadria corrigida. Será o facto da suposta “lady” falar com os mortos e desta forma estar ao seu nível, ao seu terreno? Não sabemos de momentos as ideias de Branagh no simbolismo desta decoupagem e duvido que a imprensa americana faça questões a este respeito sem ser a do entretenimento básico. 

No entanto, o filme prossegue nesta linha, apertado cenicamente, arroçado planificamente, as personagens são principalmente captadas através das suas expressões e não pelos gestos, e a perspectiva, principalmente perseguindo Poirot, na sua “caça ao espírito” de cima para baixo é fiel a esse espectador do oculto. Possivelmente mais interessante visualmente do que os seus antecessores, é também o capítulo mais atento à sua investigação, levando a audiência a concentrar-se nela e a “interagir” (sob distância higiênica obviamente) ao mesmo nível (ou não, tendo em conta o talento nato do protagonista) que o seu investigador, ao invés de cortes matreiros e condensações para dar palco à ação física na conquista de um público mais irrequieto. 

É a proeza num dos clamados “livros menores” de Agatha Christie (Tina Fey, aqui vestida enquanto heterónimo da autora na sua própria ação, lança igual “posta de pescada”), o de transformá–lo num whodunit hollywoodesco arguto, atmosférico e de uma realização arriscada (Kenneth Branagh tem muito de Poirot no que requer a egos inflamáveis). O resto, bem, é genérico … não se pode ter tudo!

O Pinochet vai nu

Hugo Gomes, 22.09.23

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No decorrer do Festival de Veneza, deparei-me com um texto, supostamente crítico, em que um jovem entusiasta presente no Lido referia múltiplas vezes, na sua impressão de “El Conde” de Pablo Larraín, o desconhecimento pela figura histórica de Augusto Pinochet. O facto de esse mesmo texto estar integrado num site que se apresenta como cobertura de um festival de cinema levanta dúvidas quanto à seriedade da crítica de cinema nos dias de hoje, ou até mesmo reflete na opção de alguns meios de comunicação optarem pela quantidade ao invés da qualidade dos seus “escribas”. Porém, são questões e debates fora deste parâmetro, mas é a partir desse pormenor, cada vez mais frequente personalidades históricas marcantes do século passado encontrarem nestas novas gerações uma certa abstração, contornos aproveitados por Larrain neste seu regresso ao Chile, em mais um “e se” a fazer sombra ao anterior “Neruda”, o qual reimaginava o poeta num policial à paisana.

Em “El Conde”, o realizador propõe uma hipotética, e sobretudo fantasiosa, história sobre a vida e morte do ditador, colocando-o nas vestes draculianas de um vampiro qualquer, ser nefasto e hediondo levitante noite fora em busca de corações frescos, solução única de preservação da sua imortalidade e rejuvenescimento. Uma metáfora fácil ao vampírico regime de Pinochet e à “seca” com que o país foi deixado após a despedida do Poder em 1990 (tendo falecido em 2006), deixando um legado, apoiado pelos EUA (deve-se sublinhar), de morte de milhares, corrupção e um golpe contra um governo democraticamente eleito na fatídica data de 11 de Setembro de 1973 (um outro cineasta chileno, Patricio Guzmán, possui um dos considerados documentários definitivos desse dia e das suas consequências - a trilogia “La batalla de Chile: La lucha de un pueblo sin arma” [1975 - 1979] - fica a recomendação). Portanto, não existe ciência nesta fantasia grotesca, Larrain, após Hollywood, volta ao ponto de partida munido de crucifixo e água benta, enfrentando, por fim, o “monstro” de frente. Desta vez, sem alusões, sem contextos históricos; uma sátira como a maior das estacas apontadas ao coração. 

Pinochet (Jaime Vadell, habitual colaborador do realizador) é uma anedota em forma de besta, envelhecido, velhaco e semi-desdentado, desejando a morte como “prego no caixão” ou o corpo a abarrotar de juventude da sua suposta carrasca (Paula Luchsinger). Já não é mais uma figura histórica; é, ao invés disso, uma criatura mitológica, nascida dos relatos incoerentes que só o seu espectro parece sobrevive no imaginário de todos; é o “papão” propriamente dito. Em outras palavras, Larrain esvaziou Pinochet, condizendo-o à estética do “espaçoso” que prevalece nos seus últimos trabalhos (enraizando uma ideia de vazio, ruinosa e algo esquecida pelo tempo, veja-se os “palacetes” artificializados de “Jackie” e de “Spencer”). Aqui, o “conde”, título inglório e blasfémico para quem cobiça realeza, é o “rei vai nu” num palacete decadente no seio de nenhures. Destino, esse, o do esquecimento, o pior que pode acontecer à sua ambição; eis o castigo de Pablo Larraín ao seu “nobre de lata”. Contudo, no limite do seu trajeto, entra mais um peão em cena, reforçando a intenção da obra, a de troçar do defunto (ou defuntos), a de acidamente distorcer figuras históricas em prol de uma causa, essa, a de despir simbolicamente o medo e, por consequência, uma ideologia. Infelizmente, “El Conde” vence como exercício, e esperneia por atenção enquanto obra política. 

Voltando ao ponto de arranque, se não sabem quem é Pinochet, não será com “El Conde” que vamos finalmente “aprender”, mas convém reafirmar que o Cinema não traz respostas; apenas nos inquieta com mais perguntas.

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