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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Falando com Carla Maciel, de "Légua" à condição de atriz: “temos que resistir, resistir, resistir, resistir, resistir”

Hugo Gomes, 22.06.23

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Légua (João Miller Guerra & Filipa Reis, 2023)

"Sou uma atriz com os pés assentes na terra", assegurou-nos Carla Maciel, uma atriz presente no "mercado" (vamos chamar-lhe assim) há mais de 30 anos, recorrendo às mais diversas formas de arte, seja num palco ou num pequeno e grande ecrã, vivendo sem ilusões, mas com ambições em relação à sua performance e ao seu compromisso artístico.  E é com "Légua", a nova longa-metragem da dupla João Miller Guerra e Filipa Reis (a estrear dia 19 de junho nos cinemas portugueses), que finalmente encontra um papel de protagonista, embora não de forma unilateral, uma vez partilha o holofote com a "não-atriz" Fátima Soares, numa espécie de bailado de corpos em decadência. Aceitando o convite do Cinematograficamente Falando…, Maciel participou numa conversa sobre esta sua experiência, abordando temas que vão desde o performativo até às questões geracionais e sociais, bem como o seu percurso enquanto atriz. Mais uma vez, destacou o seu caminho, que foi trilhado a custo de muito trabalho, resistência e sensatez.

A Carla encontra-se neste território [o Cinema] há anos, mas só agora é que se tornou protagonista, isto sem contar com a curta assinada por João Lopes - “Luís” - onde dava ‘corpo’ ao Camões.

Sim, de facto. Acredito que, após 30 anos, finalmente conquistei um papel principal. Mudar no cinema não é fácil e depende muito dos realizadores não assistirem aos filmes de outros realizadores. Por padrão, acredito também que os realizadores não frequentam muito o teatro, pois veem o teatro de uma forma ... Não é que não gostem, mas não se identificam com a sua linguagem. Normalmente, consideram os atores como detentores de uma interpretação exagerada, pois é uma linguagem distinta a do cinema. A menos que o teatro seja um pouco mais intimista. Portanto, não costumam ir muito ao teatro para ver, nem repescar os atores. Acredito que isso tenha sido uma das coisas que desmistifiquei neste filme, inocentemente digamos. Porque o João e a Filipa preferem trabalhar com "não-atores" ou "atores não profissionais"...

Sim, eles preferem esse termo, “atores não profissionais” …

E a juntar isso, o facto de trabalhar maioritariamente com elementos documentais. Acredito que os convenci de que há atores capazes de fazerem excelentes trabalhos de forma subtil, leve, como eles desejam, e também, ao mesmo tempo, de forma livre, estando disponíveis e abertos ao que os realizadores pretendem. Normalmente, eles têm sempre a ideia de que o ator vem completamente preparado para o papel, definindo as suas regras e limites. Isso depende dos atores. Portanto, é necessário fazer castings ou conversas com os atores para perceber se estão disponíveis para o projeto em questão. Para o que estão a fazer. E sim, este é o meu primeiro protagonista e estou mesmo muito feliz por ter, pela primeira vez, conseguido estar num filme do início ao fim [risos], o que é muito importante para um ator, poder sentir o filme, sentir o papel, sentir a evolução, o arco dramatúrgico. Foi muito libertador trabalhar nesse sentido.

Neste papel, vai contracenar com uma "não profissional", que é a Fátima Soares. Ao falar sobre a sua liberdade enquanto artista, gostaria de referir que este é um filme muito performativo, culturalmente performativo. Começamos "Légua" consigo alegremente a cantarolar "Fruta Fresca", e depois temos um vislumbre do seu corpo jovial em contraponto com a decadência da Fátima. Existe uma consistência corporal presente. Também é importante destacar o facto de contracenar com uma "não profissional", como fez, e trabalhar nesse seu papel.

Quando aceitei verdadeiramente este projeto, a Filipe e o João foram muito específicos e abertos, demonstrando muita sensibilidade. Tornou-se claro que estaríamos disponíveis para explorar várias versões e abordagens. Estudei profundamente o papel, questionando-me sobre como retratar essa mulher inspirada na pessoa que trabalhou na casa do João Miller. Realizei uma imersão, trabalhando tanto o estado físico quanto emocional da personagem. Sempre tive em mente a Celina, a pessoa que me inspirou, mas também quis imprimir o meu toque pessoal. Em suma, desejei emprestar a minha essência à personagem, usando as minhas próprias experiências e vivências. Como ator, é isso que fazemos: utilizamos as nossas ferramentas para dar vida à personagem e servi-la da melhor forma possível.

Trabalhar com a Fátima foi como embarcar numa montanha-russa, nunca sabendo o que esperar. Foi um desafio para mim, pois nunca tinha trabalhado com uma pessoa “não-profissional”. Essa experiência também me permitiu ser menos metódica, não ficar presa a pensamentos excessivos sobre as cenas, já que era a personagem principal e desejava interpretá-la da melhor maneira.

Permite-me ter liberdade e deixar-me levar pelas indicações do Miller e da Filipa, assim como pela própria Fátima. Foi importante perceber e escutar atentamente, pois isso faz parte do trabalho de um ator: escutar o outro. Estive sempre muito atenta, e acredito que essa atenção tenha se refletido na minha interpretação. A personagem servia intensamente a outra personagem, e acredito que, de forma inconsciente, também fiz isso na realidade, durante a interpretação. Estive sempre a servir a Fátima e o filme como um todo, por meio das ações. O "Légua" realmente destaca essas ações, mostrando os cuidados que uma mulher tem com outra, com delicadeza, poesia nos movimentos e amor dedicado a essa relação entre duas mulheres, uma mais velha e outra mais nova.

Acredito que alcançamos esse objetivo, e digo isso sem falsa modéstia, pois é a realidade. O filme realmente conseguiu destacar esses cuidados de forma bela e poética. Trabalhar neste filme foi extremamente gratificante para mim nesta fase da minha carreira, com 30 anos de experiência. Foi um novo desafio deixar de lado a preparação prévia detalhada e mergulhar completamente na atmosfera daquela casa no campo.

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Légua (João Miller Guerra & Filipa Reis, 2023)

Além disso, já tive experiências anteriores relacionadas ao tema, pois minha mãe foi cuidadora de pessoas mais velhas. Cresci imersa nessa linguagem do cuidado, pois ela trabalhava como auxiliar no Hospital São João e, mesmo após se aposentar, continuou a cuidar de idosos. Portanto, esse filme é uma homenagem à minha mãe, que infelizmente já não está mais aqui. Ela faleceu durante a pandemia e foi uma grande fonte de inspiração para mim. Ela costumava dizer que ninguém quer cuidar dos idosos e que as pessoas não têm paciência para eles. Essa mentalidade é prejudicial para o futuro, afinal, todos nós vamos envelhecer e planejamos nosso próprio futuro, não querendo nos tornar um fardo para os nossos filhos, considerando eventualmente a possibilidade de ir para um lar. Infelizmente, os lares ainda não são devidamente valorizados; falta amor e carinho neles. Os idosos são frequentemente desvalorizados devido a preconceitos sobre possíveis odores desagradáveis que possam ter.

Eu mesma costumava pensar dessa forma: de que os idosos cheiram mal, enquanto os bebês cheiram bem. Essa ideia estava enraizada em mim, baseada nas experiências e referências da minha vida pessoal, e isso foi algo que entreguei à personagem. O trabalho no campo também foi algo que vivenciei quando adolescente, por meio de uma amiga que vinha de uma família de agricultores. Passei minhas férias de verão ajudando-a no campo. Portanto, eu tinha essa conexão com o campo também. Esse papel realmente foi... Se não fosse para mim, teria que ser para alguém que tivesse essas referências. Era necessário que fosse alguém que soubesse do que estava falando. 

Quando li o guião, pensei: "Eu faria isto muito bem". E isso é algo raro de acontecer para um ator. De repente, olhas para um guião e pensa: "Uau, eu faria isso muito bem, nem precisaria me esforçar tanto". É algo natural, não forçado. Claro que não disse isso diretamente à Filipa e ao Miller, obviamente, mas senti essa conexão ao ler o argumento. Identificava-me com aquilo, conhecia esses sinais, essas rotinas, esses detalhes do cuidado com uma pessoa mais velha, porque também cuidei do meu pai quando ele estava doente. Portanto, todas estas ações estavam entranhadas em mim de forma instintiva e espontânea.

Pegando nessa frase da sua mãe, "ninguém quer tomar conta de velhos", e sabendo que “Légua” presta uma homenagem aos cuidadores voluntários, também aborda a história de três gerações diferentes de mulheres e os valores que as separam. No seu caso, por fazer parte da geração "do meio", a sua personagem torna-se uma espécie de mártir. Ela é consumida pela gradual não-existência de Fátima, mas, ao mesmo tempo, o filme dá-lhe a liberdade de manifestar a sua própria presença. Pode-me falar destas presenças e das suas respectivas relações com o mundo que as rodeia?

Essas mulheres estão a desaparecer. As mulheres que cuidam das casas. As mulheres possuíam um espírito de sacrifício, partindo de um ensinamento antigo. Cresci com uma mãe e um pai que nos ensinavam a seguir os nossos sonhos, a fazer aquilo que gostamos, mas advertindo que existem momentos em que temos de fazer sacrifícios pelos outros, ou seja, olhar para o próximo. Muitas vezes, em prol do outro, prejudicamo-nos. Aprendi isso muito bem e tento transmitir essas lições aos meus filhos. Não é que eles devam prejudicar-se ou fazer isso frequentemente, pois isso criaria um culto de vampirismo em relação a certas pessoas, e esse não é o propósito. Mas sim, quando sentimos que, por mais que falemos da história, que a personagem da Fátima tenha sido má (porque assim foi construída), a personagem da Ana não a quis abandonar. Ela poderia ter tido uma vida melhor com o marido lá fora. Podia ter ido com ele, mas acabou por abdicar da sua própria felicidade para cuidar dela, porque também se envolveu nessa situação.

A gratidão é, de facto, muito importante, não é verdade? São valores que estão a perder-se nos tempos de hoje, também como o espírito de sacrifício e até mesmo o amor pelo próximo. Estes valores estão a desvanecer-se à medida que as pessoas se tornam mais individualistas, mais centradas em si mesmas. Parece que dizem: "Não me importo com os outros, só quero avançar e ir mais longe". Estes ensinamentos têm um significado profundo para a Ana, e ela deseja transmiti-los à sua filha, mas esta não os compreende completamente, uma vez que pertence a uma diferente geração. Uma geração que já não dá tanta importância a possuir uma casa, já que vivem em vários lugares. O tema da família já não é tão valorizado como antigamente. São gerações que ainda desejam ter uma família, mas estão mais focadas na construção pessoal. Assim, existem aspectos positivos nessa evolução, mas também se perdem valores fundamentais nas relações com os outros.

Quanto à Ana, apesar de mártir, ela também encontra a sua emancipação no preciso momento em que recusar ir com o seu marido para a França. Ela gosta de ali estar, daquele sítio, que lhe faz bem, e entre ir limpar “a merda dos franceses”, como diz a certa altura no filme, e ficar ali a tomar conta da ‘velha’. Ela acaba por escolher a ‘velha’, porque esta sempre lhe fez algo, a ajudou durante muitos anos a criar os filhos enquanto o marido estava na França. Não pretende deixá-la sozinha, portanto, é uma questão de lealdade e de princípio ético. Ela também não a quer porque ela gosta do cão, gosta das flores, de estar naquele sítio que a faz sentir bem.

E, portanto, há aqui uma tomada de posição da Ana. Ela decide, tem o poder de decisão ali. Isso também é importante no filme, pois para ela, como mulher, é um passo acima, está a evoluir de alguma forma. 

Conversei com o João Miller Guerra em três ocasiões diferentes, e m todas elas me falava de um projeto sobre o fim da ruralidade. Ou seja, a desertificação destas áreas. E neste caso, você é a mulher cujo marido vai para outro país e a filha muda-se para a cidade, contudo, a sua posição é ali. O plano final do filme é da agência imobiliária pendurando na fachada da casa, naquele campo de batalha, uma placa de “Vende-se”. Por outras palavras, indiretamente, “Légua” é o tal desertificação rural …

Para dizer a verdade, eu agora coloco em causa esse “fenómeno”. Tenho notado que muita gente da cidade está a procurar um cantinho rural. Houve uma altura em que pensávamos que essa tendência ia desaparecer, mas depois da pandemia comecei a perceber que muitos gostam da vida no campo, e não só pelo bem-estar psicológico, mas também como uma espécie de investimento, uma forma de poupança. Se algo acontecer, sempre teremos uma casa com algum terreno. Acredito que a pandemia não acabou com a ruralidade como pensávamos. Quanto às pessoas cuidarem das casas, acho que já não há muitas disponíveis para alugar. Os chamados caseiros estão em extinção. 

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Légua (João Miller Guerra & Filipa Reis, 2023)

Mas isso não poderá ser causado com a gentrificação de algumas cidades?

Sim, é verdade. Lisboa está a empurrar os seus habitantes para “fora”, e estes “deslocam-se” para as periferias. Por sua vez, as periferias estão a ficar cheias, e as pessoas acabam por encontrar um cantinho mais afastado. Mais de 90% dos jovens estão a perceber que se sentem bem lá, na verdade. Daqui a uns anos, Lisboa pode estar vazia. Não sabemos, mas é o mais provável, considerando as dificuldades em encontrar ou alugar uma casa neste momento, especialmente para os jovens. Por isso, que estes veem a casa como algo flexível. Não é um lugar fixo, como costumava ser nos anos 90, ou como os meus pais viam nas décadas de 60, 70, 80 e 90. Agora, com as oportunidades no estrangeiro, os jovens não pensam mais "ah, vou sair da faculdade e comprar uma casinha". É difícil. Por isso, talvez não seja o fim da ruralidade como pensávamos. O que achávamos que ia acontecer.

Sobre essa frase que proferiu há bocado - “sou uma atriz com os pés assentes na terra” - gostaria lhe colocar uma questão, talvez mais abstracta mas isso poderá a abordar por onde quiser, e do facto de estar presente, há vários anos (devemos salientar) nas três plataformas - cinema, teatro e televisão - como é ser atriz em Portugal?

Há muita resistência. Como a Nina diz na peça de Tchekhov - "A Gaivota" - “temos que resistir, resistir, resistir, resistir, resistir”. Não é fácil, como costumo dizer aos jovens que estão a começar e a trabalhar comigo, se realmente gostas disto, tens que resistir. Agora, com o aumento das plataformas, das redes sociais, tudo está a mudar rapidamente, é tudo muito mediático, tudo gira em torno dos seguidores. Mas quando queres fazer um trabalho consistente, começas pelo teatro, vais gradualmente entrando no cinema e na televisão. São todas linguagens diferentes.

Acredito que o teatro amador contribuiu muito para esta época. Comecei muito jovem, a cantar, tinha um grupo de música popular e fazia teatro amador com o meu pai nas freguesias. A ideia de atuar nas freguesias e nas coletividades pode parecer um pouco modesta, mas não é. Isso nos dá força, porque percebemos o quão difícil é ser ator em Portugal. Ou atriz em Portugal, especialmente para as mulheres, quando queres seguir um caminho sério e mostrar o teu trabalho, sem ter um nome conhecido, sem seres filha de alguém famoso, sem ter sangue azul, sem ter conexões especiais.

Portanto, quando és uma pessoa completamente desconhecida e decides sair da tua zona de conforto e aventurar-te, a regra é nunca desistir. Não vou dizer que foi fácil. Em 2000, deixei o Porto e vim para Lisboa. Tentei de tudo, fiz revista, explorei todas as oportunidades. Sou uma atriz versátil e posso orgulhar-me disso, a vida me ensinou a ser assim. Tive que me desenrascar, porque não tinha dinheiro nem recursos. Não pude estudar em Londres ou na França, como gostaria, se tivesse ido para lá aos 18 anos, hoje certamente não estaria aqui. Tenho consciência disso e sei o meu valor. Daqui a 30 anos, não subestimarei as minhas capacidades. Trabalho muito, escuto muito, e gosto de colaborar com pessoas que me estimulam e me desafiam. Nesta fase da minha vida, não tenho tempo para más vibrações. Prefiro envolver-me em projetos onde também seja valorizada, porque valorizo muito os projetos em que me envolvo.

Sou alguém que se entrega a 200%, e quem trabalha comigo pode confirmar isso. Vim do Porto para Lisboa em 2000 e enfrentei inúmeras adversidades, fiz cerca de 400 audições e consegui apenas uma. Às vezes, quando os jovens dizem "tantas audições, tantas self-tapes", eu só posso dizer: "Antes, os castings eram presenciais. Eu fazia viagens constantes entre o Porto e Lisboa para castings e esperava meses para saber se fui escolhida ou não."

Comecei de forma humilde e olhava para as novelas com admiração, sonhando em trabalhar com atores talentosos. Eventualmente, consegui oportunidades de trabalho e fui progredindo na minha carreira. Sempre perseverei e segui os meus sonhos, mesmo quando as condições eram difíceis. Tive altos e baixos, mas continuei a lutar.

Além disso, sou casada com um ator [Gonçalo Waddington] e temos o desejo de construir uma família. Tenho dois filhos, um deles começou a faculdade em Roterdão recentemente. Quando se quer constituir uma família e ter uma vida decente, as coisas ficam (ainda) mais complicadas, especialmente em Portugal. A minha filha está a estudar Belas Artes e ficou impressionada com as instalações da universidade em Roterdão, que estão num nível completamente diferente do que temos no nosso país.

Encorajei-a a seguir os seus sonhos no estrangeiro, porque aqui as oportunidades podem ser limitadas. Tanto eu como o meu marido trabalhamos arduamente e produzimos os nossos próprios projetos. Não dependemos do nome dos nossos pais. A minha filha também não quer depender do nosso nome.

Hoje, com 49 anos, continuo a fazer self-tapes, a preparar projetos e a submeter guiões. Precisamos criar o nosso próprio trabalho e sermos versáteis. Comecei na música e atuei em musicais, revistas e muito mais. Quando vim para Lisboa, o meu primeiro trabalho foi na revista no ABC, onde desempenhei funções de liderança. Ninguém me conhecia na altura, e era uma altura em que o Porto e Lisboa estavam bastante distantes no mundo das artes. Foi um processo de conquistas constantes e muita resistência. Muitas vezes, pensei em desistir ou mudar de profissão, mas continuei. A incerteza financeira é uma constante, mesmo hoje em dia, mas é algo que faz parte deste caminho.

Já que menciona a idade como um fator, lembro-me de uma entrevista com Luís Miguel Cintra, durante a apresentação da cópia restaurada de "Ilha dos Amores", de Paulo Rocha, em Cannes. Questionei-o sobre a falta de personagens mais velhas, e a sua resposta foi: “Portanto, se a pessoa envelhece provavelmente tem um destino diferente. Mas vamos esperar o quê? Que os mais novos inventem personagens de velhos?  Não conhecem. Não têm conhecimento de como funciona um velho. Portanto, a imaginação deles não vai para velhos. Por isso temos de nos resignar, como em tudo na vida.

Agora, cada vez mais, vemos mais representatividade das gerações mais velhas nas novelas. Há uns 4 ou 5 anos, senti que os idosos estavam a ser esquecidos na indústria. As personagens mais velhas existem na vida real, na ficção e em todas as áreas. Felizmente, começou a haver uma maior procura por atores mais velhos, até mesmo nas próprias televisões. Estão a reconhecer a importância de manter os artistas a trabalhar, o que é fundamental. É triste e desrespeitoso quando um artista é esquecido após uma longa carreira. Muitos desses atores foram incríveis em tempos e ainda podem continuar a sê-lo.

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Luís (João Lopes, 2012)

Claro que hoje em dia se escrevem menos textos longos, porque as pessoas têm outras capacidades e nem todos conseguem decorar texto de um dia para o outro, especialmente os mais velhos. No entanto, atores talentosos e experientes podem contribuir muito para o cenário artístico em Portugal. É importante escrever mais papéis para personagens mais velhas.

Curiosamente, acho que a faixa dos 30 anos é mais desafiadora do que a dos 40. No meu caso, não foi um percurso fácil. A partir dos 45 anos, comecei a ter mais oportunidades de trabalho e maior visibilidade. No entanto, a competitividade entre as atrizes mais jovens, na faixa dos 20 anos, é intensa, pois há uma abundância de personagens disponíveis para essa faixa etária. O período entre os 30 e os 40 anos é um território incerto.

E juntando ao envelhecimento o factor mulher?

Exatamente. Para as mulheres, é ainda mais complicado. Porquê? Porque parece que é esperado que estejam sempre jovens. Não concordo com isso. As pessoas devem envelhecer naturalmente. Não vou contra isso e não farei cirurgias para parecer sempre jovem e manter a aparência de alguém com 30 ou 40 anos. Claro, cuido de mim com uma boa alimentação e exercício, mas isso também faz parte do meu trabalho. Não tenho a ambição de parecer jovem para sempre. Quero ter papéis aos 50, 60 e 70 anos. A partir de agora, parece que as pessoas estão a mudar a forma como veem os "40". No último ano, tenho sentido como se tudo o que fiz ao longo dos anos finalmente estivesse a ser reconhecido. O cinema trouxe visibilidade, é verdade, mas o teatro também, pois tenho trabalhado com diversos criadores e encenadores. A minha busca constante é aprender e conhecer pessoas, especialmente compreender a mente dos encenadores e como eles dirigem. Gosto de ser dirigida por diferentes pessoas. Devemos continuar a escrever mais boas histórias e a criar bons filmes.

Acredito que a sociedade atual está muito centrada na imagem. Tudo tem que ser belo, perfeito e impecável. Parece que nada pode estar fora do lugar. Mas o mundo real não é assim. Existem pessoas com diferentes aparências, algumas podem não ser consideradas bonitas à primeira vista, mas são incríveis atrizes e atores. A beleza ainda é muito valorizada e tem um grande poder nesta indústria.

Essa questão da beleza é igualmente própria da televisão.

Sim, é verdade. No cinema, vemos muito disso também. Chamam muitas celebridades populares, o que atrai audiências e faz sentido, desde que estejam comprometidas com a indústria cinematográfica. No entanto, é importante lembrar que não deve ser "tudo ou nada". Existem pessoas que trabalham na área há muitos anos e merecem reconhecimento. Falo, não apenas por mim, mas por pessoas que têm formação, experiência e que dedicam suas vidas a esta arte, e de repente, são esquecidas. Isso acontece mesmo com artistas mais jovens. Há muitos jovens talentosos que saem dos conservatórios e não conseguem oportunidades. Por quê?

Vivemos numa sociedade demasiado preocupada com a estética?

Posso falar do caso português, e sim. Noto que quando vemos produções nórdicas ou sul-coreanas, por exemplo, acreditamos na existência daquelas pessoas, por parecem-nos exatamente isso, pessoas. Claro que vemos atores que cuidam da sua aparência e podem fazer alguns ajustes, mas sem exagerar. O culto da beleza e da perfeição é cada vez mais evidente. 

Em Portugal, parece que se dá demasiada importância à imagem superficial, como o carro que se conduz, a casa onde se vive, a roupa que se veste, e as pessoas são frequentemente julgadas por esses critérios. Infelizmente, este foco excessivo na imagem muitas vezes leva as pessoas a negligenciar o seu crescimento interior.

As pessoas não leem tanto quanto deveriam, não procuram enriquecer os seus horizontes e não buscam conhecimento. Se dedicássemos mais tempo a isso, talvez nos sentiríamos mais realizados e não sentiríamos a necessidade de nos expormos de forma tão exagerada. É importante frisar que a verdadeira riqueza está nas nossas experiências profundas e na nossa capacidade de crescer enquanto seres humanos, ao invés de apenas focar na superfície.

Dentro dessa ideia, podemos dizer que o “Légua” é um filme contra essa estética?

Não sei explicar, mas não é a beleza exterior convencional. É mais uma beleza que se manifesta nas ações, nos movimentos, na performance, de alguma forma, e sim, vindo da Natureza.

Cavalos de Guerra

Hugo Gomes, 21.06.23

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Seguindo os trilhos da América Profunda, deparamo-nos com um cruzamento onde se determina o destino da estreia americana da britânica Andrea Arnold ("American Honey") com "War Pony", não apenas unificada pela presença da atriz virada realizadora Riley Keough, mas é dela partido essa ramificação. Conta-se que durante as filmagens dos "meninos perdidos" em terras indomáveis, a estrela conheceu dois figurantes de origem Lakota [Franklin Sioux Bob e Bill Reddy], criando assim uma amizade possivelmente impulsionada pela ancestralidade da própria Keough (neta de Elvis Presley, cujo próprio músico tinha ligações, do lado da mãe, com nativos da tribo Cherokee). No término das filmagens, de forma a manter o contacto com os seus "novos" amigos, ela visita a reserva onde ambos residem. Para além das experiências, é aí que as sementes de "War Pony" são devidamente colhidas.

O filme recorre a um realismo desengonçado, dito e formalizado em muito do cinema norte-americano independente - a linguagem instável que oferece ao espectador uma voraz inquietação com o seu ambiente de violência social. Joga-se em duas histórias cruzadas, em infâncias negligenciadas e juventudes roubadas, fruto do desespero do seu próprio estatuto e das fracassadas políticas, quer de integração ou de reconstituição do nativo americano nos EUA. No entanto, esta panóplia de personagens são figurantes olvidadas, acima do white trash (esses seres humanos mal-amados e restringidos à “porno-miséria”, seja social ou até moral), persistindo na sobrevivência pelos seus escassos meios, desonrados ancestrais e às místicas entidades (o bisonte, que surge como alucinação, é a réstia dessa dignidade, a memória de uma ligação natural, desvanecida pelos vícios do capitalismo).

Portanto, "War Pony" é um filme que anseia captar as “vibrações” de uma miséria condenável, sem condescender os seus "peões" (era o que faltava!), mas a sua constante ficção “salta-pocinhas” faz com que se perca esse retrato, incentivando o espectador a conectar os dois pontos narrativos que nos são apresentados ao invés de “vislumbrar” pelo ecossistema aí registado (possivelmente funcionaria como documentário, mais do que qualquer outra ‘coisa’). É um regresso à comunidade, e ao que isso permite e insiste. Keough (com a sua amiga e argumentista Gina Gammell creditada na co-realização) revela-se emocionalmente dedicada à sua causa e às suas experiências materializadas, uma visão que lhe garantiu a Caméra D'Or para melhor primeira obra em Cannes, igualmente sustentando a tese de uma "fórmula" de simulacro realista (ou o que achamos ser realismo) que muito desse cinema tem vindo a apostar como a sua ofensiva indie e alternativa às produções megalómanas.

Novos olhares, o Cinema de sempre! Vem aí o 19º FEST - New Directors New Films Festival.

Hugo Gomes, 18.06.23

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Mais um ano, mais um FEST, automaticamente, mais descobertas cinematográficas a caminho do nosso cardápio. De 19 a 26 de junho, todos os ‘mirones’ do Cinema em Portugal estarão apontados à cidade de Espinho, onde concretizará a 19ª edição do Festival de Novos Realizadores, uma congregação de algumas das primeiras e segundas obras mais badaladas do ano, uma mostra lado-a-lado com um centro de pitching, hubs e masterclasses, para aliciar experiências e motivar novos cineastas.

Novamente com Fernando Vasquez, diretor e programador do evento, aceitou o convite do Cinematograficamente Falando … para nos resumir as novidades e as recomendações destes próximos sete dias, recheados de Cinema. 

Mais um ano, mais um FEST. Começo com a, possível, grande novidade desta edição que é a reunião musical intitulada de “FEST – Music Walk With Me”. Como surgiu esta iniciativa? Os critérios para a seleção de artistas e que espera conseguir com esta fresca “secção” (chamaremos assim)?

A ideia surgiu no seguimento de uma iniciativa que já tínhamos começado no ano passado, a criação do FEST – Sound & Music Hub, um conjunto de debates e palestras sobre o trabalho de som em cinema. Foi uma forma que encontramos de valorizar e salientar a importância do som no Cinema e como é perigoso negligenciar esses processos. É curioso, mas na minha opinião a revolução digital não teve um impacto muito positivo no que toca ao som. É frequente encontrar filmes ou obras audiovisuais em que os diálogos são imperceptíveis, enquanto os efeitos sonoros estão frequentemente desequilibrados em relação ao resto dos trabalhos. Esse é também o feedback que recebemos de alguns peritos na matéria que passaram pelo FEST em anos anteriores. Sinceramente já se trabalhou muito melhor esta questão. Em parte isso acontece porque a temática do som não tem muito espaço de debate e troca de perspectivas, praticamente que não se toca no tema, por isso é natural que o crescimento na área seja mais lento. Nesse contexto, uma iniciativa desta natureza só poderia enriquecer o mundo do cinema. 

Obviamente que esse evento já contemplava espaço de debate sobre produção musical para cinema, mas pareceu-nos que podíamos e devíamos ir mais longe. A composição musical para cinema precisava do seu próprio espaço. E assim nasceu o FEST – Music Walk With Me, um conjunto de performances musicais e encontros que criam uma nova ponte entre o mundo da música e o mundo do cinema. A seleção foi feita por um painel que para além de incluir membros da nossa equipa, incluiu também a Academia de Música de Espinho, que é uma instituição de referência a nível nacional, e o colectivo Salitre, que pretende desenvolver a cultura musical underground na região. Abrimos uma chamada internacional para músicos interessados em mostrar o seu talento a produtores e cineastas, e os resultados superaram em muito as nossas expectativas.

Como entretanto criamos o Music Walk With Me, o Sound & Music Hub será mais curto este ano e com um foco maior na produção e mistura de som daqui para a frente. Temos já confirmados formadores como Eddy Joseph, uma figura lendária na área, que trabalhou muito com o Tim Burton, o Alan Parker e os próprios Pink Floyd; a canadiana Kle Savidge, que tem tido um percurso notável na área; e profissionais como Tristin Norwell e John Rogerson.

Sobre os convidados deste ano? O que pode dizer sobre eles?

Voltamos a ter um conjunto de convidados eclético e de grande peso, e igualmente importante, nunca tivemos tantas mulheres em destaque no nosso programa. É inevitável destacar a presença de quatro realizadores de peso. O Carlos Reygadas era já um objetivo há muito tempo, afinal de contas é um dos autores de culto mais relevantes da nossa era. Pessoalmente fico muito contente com a presença da peruana Claudia Llosa, que não só estará em Espinho para dar uma masterclass, como ainda vamos fazer uma retrospectiva do seu trabalho. Ela é uma figura fundamental da cena latino-americana contemporânea, e foi uma das pioneiras no que toca à representação da mulher indígena no cinema, por isso este é o momento ideal para oferecer todo o destaque possível a esta autora. E temos ainda a presença de Lone Scherfig, autora de uma das últimas obras do movimento Dogma 95, o “Italian for Beginners"; e algo inédito na história do FEST, uma animadora, Brenda Chapman, a primeira mulher a realizar uma longa-metragem de animação num grande estúdio de Hollywood, “The Prince of Egypt”

Voltamos a dar grande destaque ao mundo dos atores, através da presença da grande Noomi Rapace, a atriz sueca que rapidamente se tornou numa das figuras mais enigmáticas dos últimos anos, e claro está, o nosso Nuno Lopes; para além das Diretoras de Casting Nancy Bishop, Jo Monteiro e Caprice Crawford. Na área da pós-produção há um cruzamento com o ano passado. Após a presença de Gaspar Noé em 2022, este ano contamos com um dos seus mais fiéis e relevantes colaboradores, Marc Boucrot. Mas temos ainda a Melody London, editora muito conotada com o trabalho de Jim Jarmusch, em filmes como o “Down by Law”; e o grego Yorgos Mavropsaridis, uma das mentes por detrás do enorme sucesso e influência da chamada Greek Weird Wave, já que editou a grande maioria das obras que associamos ao movimento, incluindo o filme que começou tudo: “Canino” de Yorgos Lanthimos.  

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Past Lives (Celine Song, 2023)

Passeando pela Competição, o que destacaria este ano?

Este ano, entre as 10 longas de ficção de documentário em competição, é inevitável destacar 3 obras que competiram em Berlim em fevereiro passado. O “Disco Boy” do italiano Giacomo Abbruzzese é um dos filmes fundamentais do ano e uma experiência sensorial inesquecível. É uma espécie de trip psicadélica e surreal que funde os mundos da Legião Estrangeira e de guerrilheiros anti-exploração petrolífera no Delta do Níger, tudo regado por uma banda sonora original de Vitalic que ainda vai dar muito que falar. Outro é a segunda longa-metragem da mexicana Lila Avilés, “Totem”, que acabou por vencer o prémio do Júri Ecuménico em Berlim, e é um filme profundamente tocante, e que nos apresenta a uma família que faz de tudo para evitar lidar com uma tragédia iminente. E temos ainda “Past Lives” de Celine Song, uma das obras mais badaladas na última edição dos festivais de Sundance e Berlim.

Porquê de não vermos produções portuguesas a competir pelo Lince de Ouro?

Já aconteceu várias vezes no passado, com filmes como “Irmãos” do Pedro Magano, ou a primeira longa’ do Pedro Pinho, “Um Fim do Mundo". Temos vários exemplos, mas são bastante menos frequentes do que queiramos. Existe um conjunto de razões que não são muito favoráveis para que isso aconteça. Por um lado existe uma pressão para termos estreias nacionais dos filmes em competição. Infelizmente, por questões de financiamento, essa pressão não pode ser ignorada. E existe uma tradição na nossa indústria que leva a que os filmes portugueses que estreiam em festivais acabem a estrear sempre nos mesmos sítios. Ao mesmo tempo, o contexto de apoios à produção e distribuição de cinema português também não ajuda nesse processo, ao não contabilizar as exibições em festivais para os dados oficiais de audiência, o que significa que exibir filmes com contratos de distribuição em festivais é demasiado arriscado para as distribuidoras. E os fundos Europeus agora dificultam também a quantidade de obras nacionais que podemos exibir, porque têm como objetivo pô-las em circulação pela Europa fora em detrimento dos mercados nacionais, o que a longo prazo é bom para a nossa cinematografia. 

E este ano temos uma enorme presença de filmes nacionais no nosso Grande Prémio Nacional, com 23 obras no total, incluindo várias estreias de peso, o que limitou as possibilidades de filmes portugueses estarem presentes na competição do Lince de Ouro. Dito isto tudo, o nosso comprometimento com a cinematografia portuguesa é muito significativo, e o crescimento do Grande Prémio Nacional é a prova disso. Acontece porque temos feito um trabalho árduo nesse sentido. Acreditamos que cada vez mais os novos cineastas portugueses olham para o FEST como uma das suas casas naturais e uma paragem relevante para os seus trabalhos. Em breve esperamos que ele dará frutos também na competição de longas.

O que o futuro reserva? Quanto às extensões por Lisboa e Porto? Foram abandonadas?

Como estamos a dias do início desta 19ª edição é difícil estar a falar do futuro, seria sempre prematuro. O FEST vai fazer 20 anos em 2024, o universo do cinema está muito diferente do que era, e há condicionantes que estamos inevitavelmente a avaliar, e que continuaremos a estudar no final desta edição. Por isso ainda não é o momento oportuno para falar disso. Mas é garantido que haverá muitas novidades, diria até algumas muito surpreendentes. As extensões em Lisboa e Porto que fizemos em 2020 e 2021 foram resultado da pandemia e da inevitável necessidade de levar o evento à audiência, que estava muito restrita a nível de mobilidade, já para não falar na limitação da lotação das salas. Dito isso acreditamos na importância de continuar a fazer neste mundo pós-pandemia. E até ia mais longe, igualmente importante seria fazê-las noutros pontos do país.

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Veja a programação completa e mais informações aqui.

Portugalidades em movimento

Hugo Gomes, 16.06.23

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Um ambicioso projeto da produtora/estúdio 'Sardinha em Lata' que enriquece esse universo tão pouco falado entre nós, a nossa animação portuguesa. Deveríamos declará-lo como um género à parte, mas fiquemos com as proezas, neste caso com “Os Demónios do Meu Avô”, a nossa primeira longa-metragem em stop-motion, arte resolvida com muita persistência (e paciência), aqui entendida com muita 'portugalidade'

Mas vamos por partes, após a 'propaganda' do seu estilo, o espectador poderá entrar desiludido por um início computadorizado, onde somos acolhidos pela protagonista, Rosa (Victoria Guerra), uma citadina workaholic e deveras solitária (sem admitir tal), que decide partir em direção às suas raízes após a notícia da morte do seu avô, que a criou, e que gradualmente se afastou, e um descambar da sua 'aparente' e sonhada vida. De volta à ruralidade, tenta vender a casa albergante das suas memórias de infância, sem antes a tentar reconstruir e solucionar o problema de água existente no Vale de Sarronco - uma maldição segundo a crença dos habitantes e vizinhos do falecido parente, um agouro trazido por demónios e outras criaturas nefastas. Na transição da animação digital para o stop-motion (como uma espécie de salto a duas dimensões opostas - urbana e rural), o barro em abundância acrescenta uma rugosidade rústica e austeridade que posicionam aquele meio proto-transmontano numa espécie de falso-faroeste com caretos e parentescos. 

Digamos que é um estilo artesanal de inegável identidade portuguesa na sua alma, tradicionalmente guiado por essa identidade folclórica, cujas criaturas são abstrações dessas lendas oriundas de regiões remotas e do resquício pagão. De estética maneirista, aliando-se à sua sonoridade, desde o trabalho vocal dos atores até à banda sonora rompante composta pelo alarido folclórico dito transmontano, enraizado em gaitas-de-foles, bombos ou sanfonas (da autoria de Carlos Guerreiro e Manuel Riveiro, em colaboração com os Gaiteiros de Lisboa), que conectam a narrativa com a sua aura ancestral e fantástica, “Os Demónios do Meu Avô” é um mimo técnico (e não devendo limitá-lo a uma condescendência nacional) luso-fabulista para deleite do espectador. Já no seu argumento, a narrativa afasta-se da batida ternura imposta por uma Disney ou dos estúdios mainstream, aqui, a ambiguidade é o motor reconhecível, sem perdões epifânicos, de igual forma que nunca romantiza os habitantes rurais, retirando-os do estereótipo de 'humildade imperativa a seu estatuto precário', em voga desde regimes passados. 

O grande senão da animação de Nuno Beato é a sua abstrata noção de tempo, difusa e empapada em um ritmo acelerado (também, convém afirmar os recursos da animação, dispendiosos aos diferentes níveis, humanos, monetários e produtivos). Nesse termo, “Nayola” de João Miguel Ribeiro joga em melhor posição.

O multiverso para cada multiverso!

Hugo Gomes, 15.06.23

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Na sala ao lado, há um “Spider-Man: Across the Spider Verse" a conquistar multidões, e a temática do multiverso é moda em tudo o que é canto e até mesmo ganha óscares, portanto o que de mais ambicioso poderemos esperar deste “The Flash” é que se identifique como o filme terminal desta onda de multiversos atrás de multiversos, o merecido prego no “caixão”. Só que, pelo andar da "carruagem" (o dito “aranhiço” já anunciou sequela), não o veremos como carrasco nem sequer o desconstrutor, ao invés disso, um genérico filme de super-heróis (que dentro da sua linha é mais bem simpático que o costume) que promete teorizar o porquê do universo partilhado no qual se insere seja visto como um "cadáver ambulante”. 

Uma produção atribulada (foram mais aqueles que “saltaram” do que os “ficaram”) e uma estrela problemática [Ezra Miller], levaram a este capítulo numa aposta arriscada para uma Warner desesperada com o destino dos direitos da DC. Se por um lado, o descarrilamento da continuidade (e quão importante é a continuidade para o espectador contemporâneo!), por outro o malabarismo de tons à moda do freguês (é Zack Snyder para quem quiser e é marvelesco para quem puder), fizeram com que James Gunn assumisse as rédeas da saga e reiniciasse, “The Flash” assume, com alguma ingratidão, as reticências do velho modelo, atando os nós deixados pela visão Snyder e consolidando os desvarios e deslizes de dez anos de proclamada DCEU. É um filme neutral nesse conflito de fluidades. Mas deixemos de linhas de montagens e posicionamentos na alavancas episódicas e passemos à questão - o que esperar de “The Flash” enquanto filme? Tentarei ser rápido.

Um objeto com um pé assente na dita estranheza e outro no igualmente formulaico. Uma corrida contra o tempo em que o tempo vence o velocista e não o oposto, porque as ideias irreverentes ou outras (que tão repescadas seriam de um H.G. Wells e a sua "Máquina do Tempo”) são engolidas pela massificação da sua produção. Por entre o “estranho”, nem falemos das gags roçantes no limite da “decência” (segundo os padrões que a Disney normalizou como “family friendly”), desde a precipitação de monstruosos bebés até à escatologia em primetime, como também da exaustão de CGI “artificialoide até à quinta casa”. Algo que este cinema de super-heróis tem acelerado é a degradação da qualidade dos seus efeitos visuais, as verdadeiras “corridas contra o tempo” para cumprir agenda (são reportados condições de trabalhos miseráveis com prazos apertados), assim como o facilitismo com que se recorre à computarização, criando moldes uncanny valley. Assustador no mínimo. Como se pode evidenciar, é uma chuva de pirotecnia, glitter e faces digitalizadas, o envelhecimento desses efeitos será curto tendo em conta a sua falta de perfecionalismo, ao que parece!

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Agora, o que “The Flash” tem a seu favor, e verdade seja dita como grande parte do DCEU, são os seus intérpretes, desta feita, Ezra Miller, o terrível (e não neguemos o quão perturbadora a sua presença é para os que não conseguem separar a personagem do ator), a provar que é “menino” de costas largas no que requer a entertainment, um “looney toon” humano e suis generis. Já o retornado Michael Keaton, a sua presença que equivale a ouro aos corações de fãs mais amadurecidos, é mais uma prova das incompletas promessas a Iñarritu (feitas em “Birdman”), que de super-heróis não é suficiente veloz para fugir. E falando em vestir de super-herói, Sasha Calle a merecer o holofote kryptoniano. O resto são cameos, passagens e acenos, “bonecos à pancadas com outros bonecos”, como disse, e muito bem, Michael Shannon quando questionado sobre o seu retorno à saga. O habitual, a tendência, o espectáculo em moldes hollywoodianos. Nada de novo a Oeste, sem ser aquela “piadinha” final, surpresa deste lado (confesso), marcando o tom com que os envolvidos encararam o projeto - fiquemos pela brincadeira. 

Enquanto isso, a prova viva de “The Flash” (automaticamente dirigido por Andy Muschietti) será nas suas bilheteiras, até à data deste texto ainda não poderemos falar as consequências, mas estimar que ele será o indicador de; a) do grau de preocupação do público com o comportamento das suas estrelas (Ezra Miller é um caso a estudar); b) se o cinema super-heróis continua a ter fôlego nas bilheteiras (com os indicadores apontam um abrandamento e alguns fiascos pelo meio, indicando uma fadiga da relação para com o público; c) se o "cadáver ambulante” merece (algum) amor, ou desprezo, ou é a nota de suícidio e a carta branca para a dinastia James Gunn

Como vêem, pouco consigo falar do filme e do seu cinema, de demasiado voltas para o seu franchise, o seu mercado e a sua exaustiva  produção. Estamos mal quando isto acontece … estamos muito mal!

Fica a minha homenagem: Os Filme!!

Hugo Gomes, 14.06.23

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A Filha da Mãe (João Canijo, 1991)

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Recordações da Casa Amarela (João César Monteiro, 1989)

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Pesadelo Cor de Rosa (Fernando Fragata, 1998)

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Rosa Negra (Margarida Gil, 1992)

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O Sangue (Pedro Costa, 1990)

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O Convento (Manoel de Oliveira, 1995)

 

Teresa Ferreira (1940 - 2023) colorista 

Sempre lhe invejei o cabelo!

Hugo Gomes, 13.06.23

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The Eagle Has Landed (John Sturges, 1976)

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Flashpoint (William Tannen, 1984)

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Hollywood Ending (Woody Allen, 2002)

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The Phantom (Simon Wincer, 1996)

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Once Upon a Time in America (Sergio Leone, 1984)

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Dead Heat (Mark Goldblatt, 1988)

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Smooth Talk (Joyce Chopra, 1985)

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Hair (Milos Forman, 1979)

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Prince of the City (Sidney Lumet, 1981)

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Deep Rising (Stephen Sommers, 1998)

 

Treat Williams (1951 - 2023)

Do Sagrado ao Primitivo

Hugo Gomes, 13.06.23

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Partimos de encontro ao bíblico - a história que todos conhecem e recitam (Cristo e os seus seguidores, a crucificação e o nascimento de uma religião) - profanando-a para com o divino graças a uma reconstituição (porque não chamá-la de desconstrução?) para lá do existente relato, fundido como ferro neste “Magdala”, quarta longa-metragem de Damien Manivel (“Un Jeune Poète”, “Les enfants d'Isadora”)

Na exposição está Maria Madalena (interpretada pela fiel colaboradora Elsa Wolliaston, longe do senso-comum da figura), representada como a mais fiel dos apóstolos de Jesus, que após testemunhar o seu Senhor (romanceado seja) torturado e sentenciado, auto-exila ao remoto, escondendo-se no “coração” da impenetrável floresta, subindo ao cume mais íngreme ou, por fim, ocultando-se na mais profunda e tenebral caverna, a mesma que receberia tempos atrás a ressurreição e a ascensão aos bravos Céus. Uma cartada ao naturalismo austero a roçar um primitivismo que o Cinema nunca atingira durante a sua trajetória histórica, até porque esse minimalismo produtivo, a câmara enquanto único recurso moderno a captar elementos como bem vieram ao mundo, é uma fabricação do cinema moderno, uma obsessão entre pares para igualar a arte à pureza da sua natureza, despindo-a de megalografia industrial (poderemos afirmar que há qualquer ‘coisa’ de político nesta determinação). 

Assim sendo, “Magdala” recorre ao tempo, ao gesto desdenhoso para com o mesmo, testando a paciência do espectador, colocando-o no embalo da sua cadência (esculpindo, como diria Tarkovsky). Mas não deparamos aqui ao enésimo exercício tarkovskiano contudo, o que vemos é a nudez da maquinaria, o recolher do luzimento oriundo da isolada vela na inversa Caverna de Platão (o mundo da claridade é aquele que desejamos abandonar, regressando às trevas), ou dos corpos decadentes das suas heroínas, banhadas pelas mágoas do seu amor incompreendido e apagado pela crueza da doutrina. Se Jesus pairou pelo deserto, 40 dias como está escrito, enfrentando as forças demoníacas das tentações incentivadas pelo “bastardo”, Maria Madalena reflete no selvagem oposto a fim de arrancar o seu coração, e como oferenda ao seu Deus, reduzir-se ao Nada, aguardando os anjos que a busquem para a sua redentora paz. 

Esse pacto com o divino, a sacra desconstruída e refeita, é a tentativa de Manivel, ao nível dos mais celebrados conquistadores do primitivismo-moderno (contraposição, mas essa obsessão tem sido muito mais de agora) como Albert Serra nos seus “verdes anos” ou o destino de muito cinema galego a brotar na nossa contemporaneidade (Oliver Laxe ou Lois Patiño, dois a contabilizar a equação), de penetrar num cinema “carne-viva”, onde o místico é resgatado do mero mundano (seja gesto, pessoas ou quotidiano na sua original forma). 

Se este é o caminho a seguir, o percurso não está tão longe daquele que vem sendo caminhado pelo realizador, o amadorismo no rigor da sua semântica como aproximação dessa invocada pureza, a iconografia apropriada e regida à rudeza (e quiçá a decadência, tão humana, diga-se de passagem). É o Cinema que procura Deus no Estado das Coisas. 

Meter-se com a família é meter-se com o Cinema. Um ciclo à portuguesa no Cineclube de Alvalade

Hugo Gomes, 13.06.23

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Gipsofila (Margarida Leitão, 2015)

Foi com o muy celebrado “A Metamorfose dos Pássaros” de Catarina Vasconcelos que o Alvalade Cineclube abriu o seu mais recente ciclo, uma mostra de filmes que nos soam familiar até porque Família é Família, como diz o título da iniciativa, e família, por bem ou mal, toda a gente a tem. Serão no total cinco obras que exploram os laços, sejam sanguíneos, sejam fabricados, que compõem esta íntima comunidade, por um lado são um espelho da nossa identidade, por outro são matéria para a criação. O cinema português celebrando “lugares-comuns”, salvo seja, com a intenção de ir mais além do mero álbum de fotografias. 

Em conversa com o programador Bruno Castro, desvendamos pouco a pouco a viagem pelos filmes e as suas respectivas famílias. A não perder no Cinema Fernando Lopes, este ciclo iniciado em 8 de junho e com desfecho (e que desfecho!), ao som de Trio de Odemira, com “Desterro” de Maria Clara Escobar no dia 29 desse mesmo mês. 

Curiosamente, alguém me afirmou numa daquelas tertúlias cinematográficas de que o cinema português “anda eternamente atrás da avó e do avô”, uma clara referência às enésimas temáticas familiares que deparamos neste panorama. O cinema português é no seu maior sumo um cinema que procura encontrar a sua identidade nas suas raízes familiares?

Temos muitas dúvidas sobre o conceito de “cinema português” hoje em dia…. Mas para além disso, o que queremos neste caso é dar espaço a realizadoras e realizadores que andam à procura de si mesmos. A Catarina Vasconcelos fê-lo na "Metamorfose dos Pássaros" ao partir de uma morte e ficcionar uma vida. O António Aleixo vai atrás sim, mas para perceber-se a si mesmo. A família enquanto tema do cinema feito em Portugal não nos pareceu mais do que uma desculpa para estes olhares, que estão longe de outras abordagens sobre os “avós”. Ainda assim, se entrar no espaço de intimidade da família for uma forma de encontrar identidade, então somos portugueses. Estes são cinco filmes para questionar inclusive o conceito de família. Parece-nos que o traço de identidade deste cinema português é a curiosidade e a vontade de fazer perguntas, seja ao avô ou ao bebé.

Tendo em conta esta seleção de filmes, que noção podemos ter de Família? Ou se no seu todo deparamos com uma tese?

Nada de tese! Não queremos ter noções, queremos ter diálogos. Nunca programamos com uma proposta de tese, mas sempre com um móbil de questionamento. E ainda por cima acreditamos piamente que família é o que se quiser. Só não está o Hirokazu Kore-eda neste ciclo porque não nasceu na maternidade Alfredo da Costa.

Um dos filmes selecionados é o “Desterro” de Maria Clara Escobar, que entra neste ciclo em oposição aos demais, é uma obra que deseja destruir laços familiares e não criá-los, e coincidentemente (ou não) é o desfecho da mostra.

É curioso como habitualmente se olha a ideia de família sobre o prisma da construção ou destruição. Como se fosse um edifício, que decidimos erigir ou demolir. “Desterro” surge pela diferença e pela coragem mais do que por oposição. A Maria Clara teve a vontade em assumir que "os dias que correm” podem ser fugas ou desagregações, e que a vida pode ser sair de casa, porque pode existir outra casa lá fora, ao ar livre. É um filme formalmente maravilhoso e de uma coragem surpreendente, pelo contexto de produção (filmado em plena era-Bolsonaro) e porque existe, apesar desta Humanidade. É também um filme que nos permite afirmar de forma bastante clara que família não é um conceito binário, boa vs má, sólida vs frágil, protegida vs exposta. É bastante mais dúbia que isso, e é por isso que fecha o programa. Adoramos zonas cinzentas.

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Desterro (Maria Clara Escobar, 2019)

De alguma maneira, todos nós identificamos com estes filmes de uma forma emocional, diremos mesmo que a Família é uma palavra universal e até que ponto não é um caminho fácil para cinema, principalmente enquanto “primeiros passos” de um(a) realizador(a)?

Boa pergunta para realizadores! E porém, com os que falámos e falamos, dizem-nos que é dos caminhos mais difíceis. É mais próximo, sim, mas comporta maior risco, porque se a ligação emocional do filme não se dá com o espectador, é um “falhanço”. E depois há aquela vontade dos realizadores de ajustarem contas com a sua própria vida. Alguns fazem-nos com zombies. Outros preferem ir almoçar com a avó. São todos humanos (menos os zombies).

Havia algum critério para o ciclo ser uma demonstração do universo português (mesmo “Desterro” ser ambientado e possuir coprodução brasileira)?

Boa pergunta. Na verdade, inicialmente a ideia era existir diversidade de cinematografias, e de famílias. Mas depois os astros alinharam-se de uma forma específica e surgiram oportunidades para ter as realizadoras e realizadores em sala, para discurso directo, e não quisemos perder esse comboio. “Gipsofila", por exemplo, é uma raridade em sala e isso permitirá ter a Margarida Leitão de novo connosco. O mesmo com o António Aleixo, a Catarina, o Jorge Vaz Gomes. Não trocamos uma boa conversa em carne e osso por um taco gordurento da cidade do México, sem chicha ao vivo.

Novas familiaridades … quer dizer, novos projetos para o Alvalade Cineclube?

Podíamos fazer trocadilhos e dizer que o scoop agora vai ser de gelado de limão durante o Verão. Em vez disso, damos mesmo um scoop sumarento: em setembro os olhares têm título bem grosso: “Da Glória das Mulheres em Portugal”, com três documentários sobre senhoras desta terra. Em outubro, o primeiro ciclo participativo, em que os filmes a ver serão votados pelo público a partir das sessões mais marcantes dos últimos anos. Em novembro, o regresso da América 70 com mais cinco colarinhos azuis. Em dezembro, Noites Portuguesas serão três saraus cinéfilos especiais. Pelo meio o arranque do projecto educativo Cinedojo, com paragem pelo Cinema São Jorge. Chega para conversa de Natal no jantar de família? Nós levamos a compota para trocar no quintal.


Todas as sessões iniciam às 21h00 (ver programação aqui)