Alan Arkin (1934 - 2023)
A real loser is someone who's so afraid of not winning he doesn't even try."
Little Miss Sunshine (Jonathan Dayton & Valerie Faris, 2006)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
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A real loser is someone who's so afraid of not winning he doesn't even try."
Little Miss Sunshine (Jonathan Dayton & Valerie Faris, 2006)
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Em janeiro de 2020, a poucas semanas do confinamento... sabíamos lá nós no que é que iríamos meter... antecipava-se mais um Festival de Roterdão. Esse ano contaríamos com uma presença, em parte, portuguesa - "Desterro" - obra da brasileira Maria Clara Escobar, a disrupção de um seio familiar e matrimonial, uma mulher em fuga e Trio de Odemira em baile.
A realizadora concordou em encontrar-se comigo para uma conversa sobre este seu trabalho e de certa maneira foi disso que tetamos restringir, mas as assombrações contemporâneas pairavam entre nós - do outro lado do Oceano Atlântico, Bolsonaro era o representante máximo do Brasil e Roberto Alvim, porta-voz da cultura, havia solicitado, em jeito Joseph Goebbels, uma aliança da arte com os valores defendidos pelo governo em atuação.
Passados três anos, resgato esse diálogo, essa incerteza vivida diversas vezes, relembrada pela existência de um filme eclético, pujante e autodestrutivo como "Desterro", hoje disponível na plataforma Netflix, ou em sessões especiais em mostra e cineclubes como é o caso do Alvalade Cineclube e o seu ciclo "Família é Família" [ver programação aqui].
Começo com esta pergunta trivial e meio informal, como se sente em ir a Roterdão com o seu filme?
As pessoas que trabalharam e tiveram comigo tanto tempo no projeto vão ser reconhecidas de alguma forma e vão também poder estar lá. Mais por eles e primeiro do que por mim. É importante esse tipo de reconhecimento porque, de alguma forma, combate um discurso que está sendo feito de que os filmes que estão sendo feitos nos últimos anos do Brasil são ruins ou não interessam a ninguém. Então, de alguma forma, é uma conquista política também lá estar.
Mas buscando essa parte da conquista política e tendo agora os últimos envolvimentos acerca da nominação ao Oscar [“Democracia em Vertigem” de Petra Costa como Melhor Documentário], ao Brasil, também há de uma certa parte quase um esforço em vão, este reconhecimento mundial, mas em território nacional, pelas altas patentes, não é reconhecido e por isso completamente desprezado. Não há certo sentimento em vão?
Acredito que não, porque toda conquista é uma conquista. E de certa forma, isso responde. Não quer dizer que vá resolver a paralisia que estamos a viver atualmente no cinema, mas responde e mostra que estamos em diálogo com o mundo e com as coisas. Portanto, não é em vão. Existe algo muito valioso nisso, que é a minha única esperança, na verdade, em relação ao Brasil. As pessoas aprenderam a falar, aprenderam que podem falar, podem fazer coisas, podem fazer filmes, podem publicar coisas, podem escrever na internet. Isso é algo que acredito que não voltará atrás. Existe uma potência de resistência nisso. E, bem, isso nos liberta para ter confiança em falar sobre as coisas, não é mesmo? Poder falar sobre o nosso presidente, sobre a situação do Brasil e, claro, a Petra [Costa] ainda mais, no Oscar, que é também um lugar reconhecido por essa parte da população brasileira, que está muito ligada à humanidade dos Estados Unidos, à América do Norte, e assim por diante. Portanto, é um reconhecimento muito importante.
Voltando ao “Desterro”, gostaria que me falasse sobre a sua criação, da ideia ao argumento que escreveu em colaboração com a atriz Carla Kinzo [a protagonista].
Eu comecei a escrever este argumento quando ainda estava a concluir o meu documentário "Os Dias com Ele" (2012), que fiz com o meu pai. Acredito que em algum momento descobri que estava interessada em abordar algo irreparável, algo que também está presente no documentário, que fala sobre a tortura e a Ditadura Militar. Havia, por um lado, o desejo de abordar o comportamento de uma classe média brasileira que, naquela época, jamais imaginaria que iria desembocar na situação em que nos encontramos hoje. Era uma forma de se ausentar um pouco, de evitar conflitos e dizer "enquanto não falarmos sobre isso, enquanto não chegarmos a isso, isso não existe". Mas as coisas estão a acontecer, essa estrutura familiar está a repetir-se historicamente.
Não é por acaso que quando chegamos à votação do impeachment da Dilma, todos votam em nome das suas próprias famílias. Esse era um ponto de partida, de certa forma, para refletir sobre o que isso significa. No final das contas, acredito que a resposta para mim é destruir a casa, destruir a ideia de casa. Foi assim que o vimos. Ao longo do processo, que durou cerca de oito anos, desde o início até agora, trabalhando em conjunto com a equipa, com a atriz, passamos três anos no quarto, foram sendo descobertas outras coisas.
Muito da sequência do autocarro foi construído em conjunto com as mulheres que surgiram na minha vida ao longo do processo, à medida que o mundo ia mudando e eu também ia mudando. Fui pensando com eles, sobretudo.
Maria Clara Escobar no Festival de Roterdão
Ou seja, o filme representa um processo de mudança e criação. Talvez seja essa a sensação que ficou em mim ao assistir a "Desterro", a de ter presenciado dois filmes completamente opostos. De facto, existe uma clara fissura entre o protagonista no Brasil e a protagonista deixando o país. Gostaria de saber a sua opinião sobre a questão de deixar o Brasil. Apesar de ter mencionado que não possui as mesmas referências que existem no mundo atual, hoje em dia faz mais sentido abordar essa temática. Este filme adquiriu uma interpretação própria.
É difícil falar sobre isso porque não posso falar pelas outras pessoas, mas para mim sair do Brasil não é uma solução. É uma solução de sobrevivência individual para aquelas que pertencem a uma certa classe social. No entanto, cada pessoa tem a sua própria história. Para mim, na verdade, trata-se mais de uma questão de território, no sentido simbólico de deixar um determinado espaço, um certo território, e conseguir se transformar ou se reinventar em outro tempo, em trânsito, na verdade. A questão do trânsito é mais importante do que simplesmente sair do Brasil... É claro que estou falando a partir do Brasil, mas não acho que seja uma questão exclusivamente brasileira. É um reflexo da nossa sociedade familiar e patriarcal.
Até saindo do lado politizado, é um lado compreensivelmente existencial.
Sim, acho que é mais nesse caso. A ideia de atravessar uma fronteira, que no exemplo do filme, é física, e igualmente simbólica, o ato de não ter mais para onde voltar.
Até porque a personagem principal é completamente amarrada a certas questões morais, a própria ideia estabelecida de que uma mulher na sociedade deve restringir a casa, família, filhos, casamento, etc. O momento em que ela realmente se libertou foi naquele não-lugar, uma área de serviço que é uma mistura de bomba de gasolina ou discoteca. Gostaria que me falasse dessa determinada cena e na escolha da música [“Ana Maria” dos Trio de Odemira].
É genial a banda, porque tem uma coisa muito racional e ao mesmo tempo muito passional. O filme é brasileiro, é português e é argentino, por isso a música realça essa identidade portuguesa presente. Só em Portugal alguém consegue ser tão apaixonado e tranquilo ao mesmo tempo. A música transmite algo muito forte. Ele está em desespero, mas canta a rir. E no videoclipe é ainda melhor.
Mas acho que a escolha coincide com o filme porque vai dando pistas. Ela aborda toda a representação da mulher que já foi feita, ou que ainda é feita, em argumentos, em livros, em filmes. Como pensamos e enquadrámos uma mulher e tentamos colocar isso em questão. Então ela está lá no auge, tem um tipo a chamá-la... Enfim. A dizer tantas "coisas ruins" sobre uma mulher quando, de repente, não é essa imagem que vemos. Essa desconexão faz parte da natureza de "Desterro".
A música é praticamente solta para a sequência em si. É como se fundisse dois ferros de diferentes estruturas numa única peça. E é curioso, a própria protagonista em transe naquela cena.
Eu acredito que o filme em si é construído dessa forma. Sempre foi um desejo meu. Por exemplo, durante a edição com a Patrícia Saramago, eu costumava dizer: "Se está parecendo bom, vamos fazer o oposto". Não no sentido de ser bonito, agradável. Se o filme está parecendo confortável, acho que devemos tentar o contrário. Porque desde o início, o filme trata também de ir contra uma certa tradição do cinema de ser excessivamente realista e ter que fingir que você não está assistindo a um filme, para que as pessoas acreditem que elas vão sentir algo, entende? Elas precisam se distanciar e acreditar que aquilo é apenas um filme.
Portanto, há sempre um desejo de construção em memória de que este filme existe, ele é um filme, e apesar de ser um filme, ou talvez por ser um filme, sentimos coisas e estamos imersos nessa ... Acho que isso está relacionado com o conflito das questões e aprofundá-las, e sentir mais, ter consciência das coisas. Então, havia esse desejo de desconforto presente durante a construção dos atores e atrizes, na estética, na edição posterior, e também nas músicas.
Outra questão a abordar, algo que está muito em voga, inclusive com a influência dos Oscars e do filme "Marriage Story", é a deterioração amorosa que leva ao divórcio. No seu caso, é uma separação, independentemente dos bens. No entanto, é curioso que as únicas cenas em que esse casal se comunica ocorrem durante o “café da manhã” [pequeno-almoço]. E mesmo assim, a comunicação é superficial, consistindo em conversas triviais e de certa forma desconectadas das emoções. Além disso, é interessante notar que nessas sequências a Maria Clara utiliza o falso raccord.
Tinha o desejo de repetição, mas também de desconexão. Na verdade, o segundo “café da manhã” é filmado através de um espelho, o que causa tanta confusão, porque constantemente há uma alteração de eixo. No entanto, acredito que há um forte desejo pelo novo. Para essa sensação de conexão, pensamos muito em como criar um sentimento de estar gradualmente desconectado, mas ao mesmo tempo não deixar claro a consequência do ato. Não é um problema, é mais uma questão de surpresa. Não ficamos pensando "Ah, olha, estão fazendo isso dessa forma". Sempre ficamos com uma certa sensação.
Para mim, a gramática é o primeiro sistema, certo? A primeira organização sistemática. E as palavras são uma forma de conflito. Usar palavras, falar, sempre vai gerar algum tipo de conflito no sentido de que o outro nunca vai entender exatamente o que se está a dizer. E vai tentar responder a algo e, acho que o espírito vai permanecer nessa desarmonia, como diz a personagem. Então, de certa forma, eles não estão realmente ali. Eles não estão mais em relação.
E a palavra, talvez a partir desse ponto de vista, deixe de fazer sentido para eles dois, como se eles estivessem apenas repetindo coisas. Apenas ensinando que a paz é uma ilusão na vida deles.
De certa forma, o casamento é uma encenação?
De certa forma, o casamento é uma representação. É verdade! Eles estão ali cumprindo os seus respectivos papéis. O filme também aborda isso. Quando a personagem do Júlio (Rômulo Braga) entra em cena, ele de certa forma repete um modus operandi, assim como ela repete um padrão de comportamento ao substituir apenas o ator dos meus papéis, sem questionar muito. Para mim, tudo é uma encenação de alguma forma. Mas é importante sempre manter um diálogo com o que se sente, com o que se é, com o seu mundo, com essa encenação que realizamos. Caso contrário, ela se torna apenas uma representação vazia, algo que ninguém mais deseja assistir ou que não faz mais sentido algum. Não traz transformação. É como encenar uma peça antiga.
No seu filme é nos incutindo um poema - “ O Útero é do Tamanho do Punho” de Angélica Freitas - que por sua vez tem uma “história” com os deputados da extrema-direita de um estado brasileiro, quer-nos contar essa história?
Este poema é um dos poemas mais... como posso dizer... impactantes que li nos últimos tempos. Acredito que há algo central no filme é tentar compreender o que é e como pode ser uma mulher em movimento. Estamos acostumados a "congelar". A pensar "esta mulher é assim, esta mulher é assim". As pessoas, de um modo geral, mas especialmente as mulheres, são historicamente obrigadas a serem julgadas e terem outras pessoas definindo o que são, escrevendo sobre elas, fazendo filmes sobre elas. Então, este livro aborda muito a impossibilidade dessa mulher. A mulher que se desvia um pouco do que é considerado puro, que é tida como suja, bêbada, má. Não há lugar para ela.
E o poema é extremamente violento, mas ao mesmo tempo muito preciso, muito correto. E sim, essas coisas que acontecem, os filmes demoram a serem feitos e não têm qualquer relação com o governo, com este poema em particular, sequer. No Brasil, para ingressar numa universidade, é preciso fazer um “vestibular”, uma prova abrangendo todas as disciplinas em geral, depois são realizadas provas específicas.
E há leituras obrigatórias, livros que devem ser lidos para realizar essas mesmas provas. E um dos livros que é obrigatório é o dela. Acredito que seja em alguma área específica, como ciências humanas, literatura, letras, algo assim. E então o governo, julgo que seja do estado dela, que é do sul [Santa Catarina], tentou proibir, afirmou que era um absurdo a existência desse livro, que ofende a moral religiosa. E de facto, o livro pode ser ofensivo em algum sentido, mas isso só significa que a nossa sociedade mantém um vínculo muito patriarcal e machista.
Eu senti assim, como se estivesse em diálogo com as pessoas certas, porque é sobre isso, é sobre desconstruir essa ideia da mulher confinada em casa, preparando a comida para o marido. Essa imagem está muito ligada ao catolicismo, ao conservadorismo religioso. E isso se estende também a outras religiões.
E o casamento é uma questão existencial, não é apenas uma prisão existencial, mas também uma limitação da própria possibilidade de subjetividade. Acho que se trata de como uma mulher se vê, como vê o seu horizonte, e como um homem se vê, que horizontes consegue vislumbrar. Como a subjetividade é mais restrita para as mulheres e como isso as afeta.
E quanto a novos projetos?
Estou de momento a trabalhar em dois filmes. Um é um documentário ficcionalizado. Não sei bem como descrever, mas estamos a trabalhar com uma amiga nossa que é empregada de limpeza, ou melhor, diarista, como ela se refere. Ela sempre teve o sonho de cantar. Então, decidi fazer um filme em que ela pudesse ser cantora e experimentar isso. No filme, ela se transforma numa cantora e gravamos um álbum com ela. Ainda está em processo, falta a montagem e dinheiro para finalizar. Também estou a escrever outro filme chamado "O teu silêncio não te protegerá". Mas está ainda numa fase inicial, é apenas um esboço.
Mas já tem título!?
Na verdade, é uma frase de uma feminista chamada Audre Lorde. Mas acho que, de certa forma, pelo título, já dá para perceber que o filme segue em frente no pensamento da mesma questão. Está relacionado com tudo o que falamos, sobre a palavra, sobre a política …
Ou seja, também será um filme politizado?
Sim. Com certeza.
O facto de também ter agora dois projetos em mente e este medo de não haver financiamento para filmes brasileiros …
Tal como o “Desterro”, serão co-produções.
Gostaria que me falasse sobre esse medo, e o resgate da coprodução assim dizendo, e o que é que poderíamos esperar pela sua ideia de cinema brasileiro do futuro. Acrescentar, acho que foi ontem que um dos representantes da cultura brasileira [Roberto Alvim] fez um discurso muito "goebbels" acerca do cinema …
Aí precisa de letras "Goebbels", ele cita o "Goebbels", é assustador. É complicado falar sobre o futuro, porque nós não sabemos. A verdade é essa. Neste momento, o cinema está paralisado. A ANCINE funciona com uma diretoria colegiada que precisa de pelo menos três diretores, e dois para que qualquer decisão seja tomada. Acho que mais ou menos há um ano, o Bolsonaro não nomeia ninguém para ser o segundo diretor. Então, nada pode ser decidido. Enquanto isso, cortes estão sendo feitos não só na cultura, mas também na educação e na saúde, o que é fundamental para a existência do país e também para a cultura, para que as pessoas possam viver. É um governo contra qualquer ideia de pensamento, que declarou uma guerra, suposta guerra, contra esse inimigo que é aquele que pensa. Eles acham que quem pensa é o que atrapalha. Então, neste momento, não dá para saber o que vai acontecer, quanto tempo esse governo vai durar, o que virá a seguir. Eu acho que provavelmente serão vários anos de incertezas que teremos à nossa frente. E as pessoas vão ter que buscar dinheiro à Europa novamente.
Existem uma série de fundos, alguns fundos que existiam e nos quais o Brasil era contemplado anteriormente, porque era um país pobre e ao longo do seu desenvolvimento económico foi excluído. Fundos que vão para a África, vão para a América Latina. Talvez ele volte a fazer parte desses fundos agora que sua economia está em queda. Não sei, vamos ter que reinventar de alguma forma. Não sei se os filmes vão ser feitos da mesma forma, acredito que será mais difícil fazer filmes.
Acho que filmes como "Desterro" não serão produzidos nos próximos anos. Mas também não quero fazer um discurso derrotista. A indústria cinematográfica é uma classe privilegiada, assim. Então, também não acho que todas as pessoas vão parar de fazer filmes. Agora, o pior é para as pessoas jovens que estavam a começar. Mulheres negras fazendo filmes no Brasil, ampliando a visão do nosso país e promovendo reflexões. Essas provavelmente serão as primeiras a serem excluídas por falta de recursos, por falta de conexão com a Europa, por exemplo.
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De fedora e chicote em punho, acompanhado pelo célebre tralálá sonoro, o single de muitas infâncias e aventuras imaginárias, Harrison Ford assumidamente envelhecido leva-nos ao choque das nossas memórias, é nostalgia em bruto que reina aqui. Bom pacote para as audiências, e igualmente uma incerteza do que poderemos esperar das nossas recentes produções …
Com “Dial of Destiny”, o quinto feito do popularizado arqueólogo / mercenário (há tanta veia nele), três questões me perseguiram ao longo das duas horas e meia de jornadas pelo “macguffin da semana”. A primeira, como havia beliscado, é esta lógica de nostalgia mercantil (um sintoma da escassa criatividade in local). Ora, revisitar passados não é um ato altamente condenável e, como aconteceu em alguns casos, poderia servir como atualização ou upgrade desse mesmo legado. Trago à memória “Top Gun: Maverick”, que para além da sua gulosice saudosista é uma aprimorado técnico, altamente físico do episódio pop de 1986. No caso de “Indiana Jones”, a sua persistência leva-nos defronte a uma construída fórmula, consciente ou acidentada (tal propósito entra na moral do seu realizador).
Segundo ponto, é a deserdação do material. A Lucasfilm parece ter vendido a alma ao Diabo (neste caso Disney, sem sentido pejorativo, somente figurado), depois de “Star Wars”, o mais importante franchise da produtora, ter sido arrancado das unhas de George Lucas e transformado num universo (ainda mais) expansivo, emancipado do seu próprio criador, e aí sim, deparamos com uma formalização do formato (no caso interestelar, um formato sobretudo anónimo). Já “Indiana Jones”, agora órfão de Spielberg, que depois do amontoar de críticas ao quarto e infame filme (subvalorizado nesse registo de entertainment), segue para a batuta do muito competente James Mangold (nisso não há que negar ). O resultado é uma espécie de copycat às façanhas spielbergianas das aventuras anteriores, sem com isto criar algo personalizado ou distinguível dos restantes (aliás, a mando dos responsáveis da 'herança', não sairemos dos trilhos familiares). Realização competente para efeitos de “blockbuster”, coloquemos a ‘coisa’ neste prisma, porém, a competência por competência resultará num prolongado vazio (mas o que se há de fazer?).
Terceiro ponto, talvez o mais pertinente, é o esmiuçar na tendência secular de Hollywood em não perdoar o envelhecimento, ou como neste caso ostentando jigajogas para retardar essa mesma inevitabilidade, seja por vias do facilitismo do CGI sob o código de-aging (medonho e artificial Harrison Ford rejuvenescido naquele prólogo), ou na reforma cada vez mais interdita, como esperado, o filme acena a futuras continuações (aquele plano final, o melhor de toda a obra salienta-se), e como temos visto no primeiro ponto, com ou sem Ford a “vaca voltará a ser ordenhada”. Em Hollywood não há exclusividades, tudo e todos tem um preço!
Mas a questão de interesse ao leitor é se vale ou não a pena ver o “novo” Indy, como se a resposta desta parte condicionasse a ida a um cinema ou contrariasse os milhões de marketing investido até então. “Indiana Jones and the Dial of Destiny” é um modelo arqueológico de aventura cinematográfica, fascinado pelo exotismo à lá americana, restaurada e remodelada à vontade destes novos tempos. Temos Harrison Ford, temos Mads Mikkelsen e temos a Phoebe Waller-Bridge, sem dúvida alguma não sairemos defraudados nesse aspecto. Agora, esperar pela evolução do espectáculo, isso sim, é outra conversa …
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Arachnophobia (Frank Marshall, 1990)
Il Fantasma dell'opera (Dario Argento, 1998)
Naked Lunch (David Cronenberg, 1991)
Warlock: The Armageddon (Anthony Hickox, 1993)
Gothic (Ken Russell, 1986)
A Room with a View (James Ivory, 1985)
Romasanta (Paco Plaza, 2004)
The Loss of Sexual Innocence (Mike Figgis, 1998)
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Caranguejos pensantes, frutas que gemem de prazer, sereias, uma entidade que nos acompanha dentro e fora da tela, elementos, alguns dos quais devemos acentuar, que confirmam "Super Natural" como uma experiência sensorial exploradora das virtudes da sala de cinema. Num tempo em que o streaming domina e o espectador de cinema se torna sedentário, quase eremita da sua própria domesticidade, filmes requintados e estranhos assumem-se como um desafio, não apenas para os corajosos, mas para aqueles que desejam escapar da realidade que os “aprisiona”. Filmado na ilha da Madeira, é natural (e super, aliás) que Jorge Jácome tenha avançado para o formato de longa-metragem. No entanto, suspeitávamos que o faria através de um projeto eclético, inclusivo, visualmente criativo na sua abordagem e linguagem. Descrever "Super Natural" é uma tarefa e tanto, mas é a sua passagem, tanto corporal como espiritual, que no nosso papel enquanto audiência nos marca. Marcando pela diferença.
Foquemo-nos na conversa com o realizador, nos diálogos sobre um evento, estranho como tudo, mas ainda assim um evento puramente cinematográfico.
Eu vi "Super Natural" no "Indielisboa" de 2022, ou seja, um ano antes da sua estreia comercial. O que permaneceu foi o espectro do próprio filme, que proporciona uma grande experiência em sala. Mas vamos agora voltar à génese do projeto... Foi uma espécie de encomenda, que inicialmente não tinha como objetivo tornar-se um filme, mas acabou por se transformar nisso. Como é que foi esse trajeto?
Exacto! A história começa com o "Dançando com a Diferença", sediada no Funchal, uma companhia de bailarinos de dança que reúne pessoas com e sem deficiência, e que costuma trabalhar com outros criadores, normalmente, de dança, que são os bailarinos, e artistas provenientes das artes performativas. Convidou o Teatro Praga para, em conjunto, desenvolverem uma peça para palco.
Entretanto aconteceu a Covid e rapidamente começaram a perceber que iria ser muito difícil este projeto avançar, principalmente nas condições de apresentação. Então o André Teodósio, do Teatro Praga, lembrou-se da possibilidade de, em vez de trabalharem num projeto para palco, ponderarem a possibilidade de fazer um filme, vamos chamar-lhe assim. E foi então que o André me convidou para integrar esta combinação criativa. O que aconteceu a partir daí foi que estivemos duas semanas na Madeira a filmar, a recolher imagens, a recolher ideias, a trabalhar em conjunto com os bailarinos da companhia e pouco a pouco este projeto começou a transformar-se num que viria a ser agora esta longa-metragem que estamos a apresentar.
Curiosamente, este é o seu salto para o território das longas-metragens! Você trabalhou em muitas curtas, sendo que nesta passagem preserva um certo estilo, especialmente em comparação com o seu anterior "Past Perfect" (2017). Mas falando agora sobre o Funchal, Madeira, e a exploração da própria ilha, é verdade que esta foi a sua primeira vez na região? Quanto ao filme, neste caso a temática do mar, das paisagens e da ribeirinha, como foi feita a escolha desse tema e sobre o que exatamente se trata? E se esses elementos de certa forma também prestam uma homenagem à própria ilha ou assumem um teor diarístico na sua descoberta a esse espaço?
Então, a ilha da Madeira surge naturalmente porque é onde a companhia está sediada. No entanto, mesmo antes de irmos para a Madeira, começamos a considerar o próprio território da ilha como uma possível personagem para o filme ou um espaço criativo para a narrativa em si, como queiram descrever. Isso ocorre porque a Madeira tem esse lado exuberante, mas ao mesmo tempo instável, como o próprio filme faz referência constantemente. Para mim, a experiência de estar na Madeira é estar sempre em um lugar que parece prestes a desmoronar. Existe um confronto entre o que foi construído pelos seres humanos e o que já era inerente à ilha, o que considero bastante impactante. É uma experiência... Quase uma experiência sensorial nesse embate entre esses dois elementos. As vias rápidas que atravessam e perfuram a ilha já eram uma ideia que procurávamos explorar em "Super Natural", que é esse confronto entre o que é humano e o que é não-humano. E essa ideia de "Super Natural" surgiu antes mesmo de eu entrar no projeto.
Jorge Jácome na Berlinale, em 2022
O conceito da peça originalmente já continha muitas das ideias que acabaram sendo incorporadas no filme, e quando falo em ideias, refiro-me mais aos conceitos filosóficos que estão por trás do filme. Como é possível transformar esses conceitos em ideias cinematográficas? Como esses conceitos podem ser transmitidos através de imagens, situações, paisagens e sons? Como tudo isso pode ser construído para criar algo que funcione de uma perspectiva cinematográfica?
Visto que fala nesse conceito de “Super Natural”, gostaria que me falasse sobre isso mesmo, o título. “Super Natural”, por exemplo, no Brasil é sinónimo de sobrenatural, o paranormal, enquanto no português de Portugal resume-se a algo extraordinário.
A mesma ideia aqui: O que defendemos é a ideia de que o conceito de "natural" não existe. E aqui, em língua portuguesa, o termo "natural" abrange diferentes significados, mas principalmente se divide em duas vertentes. Por um lado, temos o natural como tudo aquilo que está relacionado com a natureza, o que nos rodeia, ou o que precede o humano. Por outro lado, temos o natural como uma questão de representação, seja no cinema ou no teatro, referindo-se à ideia de um ator representar de forma "natural" ou "naturalista". No entanto, não acreditamos nessa noção, pois não é possível dizer a alguém: "muito bem, agora age natural" ou "age naturalmente". Portanto, ao recusarmos a ideia do natural, decidimos refletir sobre esse conceito. O que queremos fazer é amplificar essa ideia do natural e transformá-la no supernatural. Onde todas as coisas, tanto humanas como não-humanas, estão incluídas nessa noção do que consideramos ser ou não natural. É uma reflexão para pensar sobre isso.
Um ponto muito interessante do seu filme, que já havia abordado numa entrevista e que é um dos elementos omnipresentes em "Super Natural", é a “voz”. Associamos uma “voz” e essa universalidade da linguagem artificialmente criada. Julgo que mencionou nessa mesma entrevista que o filme poderia ser exibido na Alemanha com legendas em alemão, poderia ser mostrado em Itália ou na China com legendas em italiano ou mandarim, respectivamente, mas aquela “voz” indecifrável tornava-se muito pessoal para todos. Fale-me sobre essa “voz” e esse conceito de universalidade, e sobre essa “personagem invisível”, se podemos chamar-lhe assim.
Durante o processo de montagem, e com um texto definido, já tínhamos conhecimento de que seria essa “voz”, a sua natureza. Na realidade, essa "voz" é o próprio filme a comunicar connosco. Por exemplo, se estamos no cinema, é a tela que dialoga connosco; se estamos na sala de estar, é a televisão; se estamos a assistir ao filme num telemóvel, é o próprio dispositivo que está a comunicar. Uma "voz" que assume uma natureza imaterial.
No entanto, a questão do que é o "super natural" torna tudo bastante complexo, pois quando é o filme a falar connosco, assumimos que um filme é composto por vários elementos, várias "coisas", e acredito que é isso que define essa mesma "voz". Se perguntarmos a diferentes espectadores o que eles acham que essa voz representa, certamente receberemos respostas completamente distintas. No início de "Super Natural", é a escuridão da tela que dialoga connosco, mais tarde, são as luzes, e sequencialmente um caranguejo ou um golfinho de plástico. E essa entidade não apenas inicia uma conversa com o espectador, mas também com os próprios intérpretes, assumindo, por exemplo, o "papel" de uma planta e dialogando com outras plantas. O filme cria essa camada que une todas as "coisas", incluindo o espectador, e convida-os a se comunicarem com todas as outras "coisas". É uma espécie de utopia comunicativa.
Esta “voz” transgride a quarta parede e ao mesmo tempo não a quebra, é como se houvesse uma quinta dimensão neste filme [risos], algo em jeito transversal ou transcendental, como bem entender.
Existe a ideia de um narrador... vamos chamá-lo de narrador para tentar encontrar uma palavra que consiga caracterizar essa "voz"... que aparenta conhecer tudo e todos. Parece estar a tentar explicar, discursando sobre os elementos mais densos e complexos (e até mesmo duros), como se quisesse simplificar-nos a origem de todas as "coisas".
Para onde o mundo está a caminhar? Do que são feitas as histórias? Do que são feitos os corpos? E assim por diante. Existe de facto uma tentativa de estabelecer um contacto com quem está a assistir.
Sobre os intérpretes e os seus corpos, gostaria de falar sobre o meu trabalho com eles. Houve espaço para improvisação ou o projeto já estava pré-estruturado através de um "storyboard", por exemplo?
A melhor maneira de falar sobre o filme é dizer que ele se foi construindo. “Super Natural” não existiria da forma como existe neste momento se não fosse também pela participação criativa dos próprios intérpretes do "Dançando com a Diferença". A maior parte das contribuições criativas do filme surgiram a partir das suas improvisações, sugestões de locais de filmagem, personagens que gostariam de interpretar e roupas que gostariam de usar. Foi uma acumulação criativa, onde o meu papel como realizador consistia em reunir, observar e compreender como seria a forma final deste filme. Acredito que o trabalho do realizador não se limita apenas a implementar um argumento pré-escrito, mas também a ter tempo para observar o que nos rodeia, trabalhar com pessoas próximas e, a partir daí, o filme vai surgindo. Esta abordagem reflete muito o meu trabalho com as artes performativas, onde o processo criativo de acumulação e a oportunidade de compreender o que se vai fazer são mais evidentes do que num processo cinematográfico convencional, onde geralmente se escreve um argumento, filma-se o que foi escrito e depois se edita o que foi filmado.
Durante este processo de adaptação para a tela, surgiu a ideia de transformar isso em uma instalação? Ou o próprio filme já é uma instalação?
Neste momento, o “Super Natural” é uma obra cinematográfica, por isso é que também é tão importante hoje o filme estrear comercialmente em sala. Serve quase como uma reivindicação política a sua presença nas salas comerciais de cinema. Este filme, com estes performers, feito desta forma, pode e deve estar em salas de cinema comerciais. Não me lembro se alguma vez começámos a pensar no filme como uma instalação, mas acho que não. Quando começamos a perceber que a duração do filme estava a ser prolongada, durante a montagem, comecei a perceber que tinha muitos minutos de material. Nós percebemos então que era uma longa-metragem, um filme para ser visto no cinema.
Ou seja, não estava planeado sequer ser uma longa-metragem …
Não, não estava. Nem sabíamos o que se iria tornar.
Acidentalmente, tornou-se a sua primeira longa-metragem [risos].
Totalmente. E isso também é muito interessante porque há muita pressão em fazer a primeira longa-metragem, e as minhas curtas-metragens já tinham tido algum sucesso. Então, muitos realizadores e realizadoras sentem essa pressão de "qual será a minha primeira longa-metragem?" No meu caso, tive a sorte deste convite e de um filme que me orgulho muito, que gosto de ver, mostrar e falar sobre, acabar por ser acidentalmente a minha primeira longa-metragem.
Pega na sua aclamação de há pouco, “o seu filme nas salas de cinema é uma reivindicação política”, e sabendo que “Super Natural” foi concebido como um experiência de sala, pergunto, de forma hipotética, se haveria o mesmo impacto de ver este filme num computador. Ou seja, sobre esta posição de ver um filme em sala, sobre a questão de ser sensorial e será que este filme ganharia uma nova vida numa outra plataforma? Ou seria uma espécie de experiência unicamente de sala?
Não, o filme foi feito para ser visto em sala, porque a própria sala de alguma forma influencia a experiência do filme que estamos a ver. Se a sala cheirar a mofo, se as cadeiras forem desconfortáveis ou se a sala for clara em vez de escura, tudo isso vai afetar a forma como vemos o filme. Essa voz de que estávamos a falar também nos convida a olhar à nossa volta, a sentir a respiração dos outros espectadores. A sala de cinema faz parte da experiência cinematográfica.
Agora, algo que não consigo controlar, e é bom que seja assim, é que os filmes têm um ciclo de vida e uma trajetória, por isso é possível que seja disponibilizado em plataformas de streaming, na televisão ou em canais de televisão. Não consigo controlar onde o filme será visto. Após o período de exibição nos cinemas, se houver interesse, existe a possibilidade de ser visto em outras plataformas. O espectador então escolhe se quer assistir no telemóvel, no computador ou na televisão.
Nesse aspecto, o de ver “Super Natural” em sala … e aqui vou usar um termo que não gosto … como “venderia” um filmes destes, designado por OVNI em muita da imprensa e espectadores, ao público?
É muito desafiador atrair os espectadores para assistir a qualquer filme nas salas de cinema. Se já é difícil convencê-los a assistir os outros filmes, então experimentem este. Porque a experiência pode valer a pena, mesmo que seja apenas pela oportunidade de experimentar algo o qual nunca se viu antes ou ver algo de uma maneira diferente. O filme também brinca com os diferentes estilos cinematográficos, diferentes abordagens de filmagem e diferentes formas de conectar ideias. Portanto, a nossa maneira de apelar ao público é simplesmente dizer: "Venham".
Há pouco, falou-me na "pressão da curta para a longa". Gostaria de perguntar se já sentiu essa pressão e o porquê de continuar a encarar o formato curta como um tubo de ensaio para a longa-metragem?
Nunca tive essa pressão, mas também posso gabar-me de ter a sorte dos meus projetos desenvolverem-se gradualmente e também de nunca encarar a curta como um cartão de visita cinematográfico com vista a transitar para o formato longa. Essa nunca foi a minha perspetiva em relação às curtas. Aliás, estou a mostrar esta longa-metragem agora, mas já estou a trabalhar numa nova curta. Gosto desse ping pong de formatos e ideias, gerenciando-os gradualmente, sem pressas, e que tenham um corpo que me interesse. Não tenho pressão financeira, nem artística para fazer diferente do que já faço.
Pode falar-me dessa nova curta-metragem?
Posso. Esta curta, de uma forma sucinta, reunirá cogumelos “mágicos” e pombos-correio. Também estou a preparar uma nova longa-metragem, inspirado nos fenómenos do Entroncamento. [riso]
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Légua (2023)
Conta-se que é uma história de três gerações de mulheres, representadas no soneto de uma morte anunciada. No entanto, em "Légua," encontramos também uma instalação performativa onde corpos dançam ao compasso dos dissabores do tempo que lhes resta. Aqui, Ana (Carla Maciel), uma mulher dividida entre a oportunidade e a gratidão, converte-se numa mártir e igualmente num testemunho à decadência da sua congénere, Emília (Fátima Soares), vencida pela previsível decadência e a sua gradual não-existência.
Filmado em Légua, uma aldeia situada no concelho de Marco de Canaveses, esta nova longa-metragem da dupla João Miller Guerra e Filipa Reis, estreada na Quinzena dos Realizadores em Cannes, é uma amálgama de experiências pessoais e desejos de transgredir o real e a ficção, unindo atores profissionais e não profissionais, corpos jovens e envelhecidos, humanidades e animalidades, ruralidade e a sua iminente extinção.
Conversei, mais uma vez (diga-se), com o realizador João Miller Guerra, antecipando a estreia comercial no nosso país da sua obra conjunta, no abrigo da Cinemateca, num quente dia de junho, explorando vivências, gerações e escolhas.
Primeiramente, gostaria de fazer um ponto de situação desde a nossa última conversa, que ocorreu no âmbito de "Djon África". Referiu-se a mim nessa conversa, mencionando que a morte do seu pai teve um grande impacto em si. Pude constatar, numa entrevista concedida à SIC Notícias, que este filme de certa forma se tornou uma experiência pessoal para si. Isso também tornou mais difícil separar a sua pessoa daquela ficção.
Sim, ou seja, as coisas estão interligadas, não é verdade? O facto de "Djon África" ser sobre um descendente cabo-verdiano em busca do pai, e como conversamos na altura, eu ter perdido o meu pai, e de repente olhar para o Miguel Moreira, com quem já tinha feito três documentários e que considero um amigo, e perceber que ele não conhecia o seu, foi o ponto de partida para a aventura com "Djon África". Aqui, foi igualmente pessoal, e efetivamente está relacionado com a morte do meu pai. Acredito que todas essas experiências são maneiras de lidar ou manter um contacto com a memória do meu pai, que obviamente era muito querido para mim, mas também era uma pessoa muito especial para a Filipa, na nossa relação que tem continuado ao longo destes anos.
Havia também este lugar, fruto dessa relação, para onde eu ia desde pequeno, praticamente desde que nasci, uma casa de família, essa, onde decorre o filme "Légua". Portanto, a Filipa também tinha uma ligação forte com este lugar, sobretudo durante as férias, e em determinado momento, ambos discutimos a possibilidade de passar mais tempo ali e de criar algo que nos permitisse permanecer lá por mais tempo.
Poucos meses depois, não consigo precisar exatamente quanto tempo passou, talvez tenha sido um ano, a senhora que cuidava da casa, desde os tempos da minha bisavó, adoeceu. Quem a acolheu foi outra senhora que também ajudava nas tarefas da casa. Esse gesto foi o ponto de partida para o filme "Légua", ou seja, esse olhar um bocado implicado, sentindo-me também como dono e responsável daquele lugar e vivendo esse momento com impotência. Portanto, esse gesto de grande amizade por parte da senhora mais nova, ao acolher a senhora mais velha, um bonito gesto deve-se dizer, foi crucial para a génese da nossa história. Depois, tal como aconteceu com o Miguel em "Djon África", o filme é uma ficção.
Antes de avançar para "Légua", permita-me fazer outra ligação com a nossa última conversa. Quando lhe perguntei sobre novos projetos, mencionou um filme que seria rodado no norte de Portugal, abordando o fim da ruralidade, ou melhor, a resiliência face ao declínio da vida rural. No filme que estamos a discutir, principalmente através da personagem mais jovem que se muda para o Porto juntamente com outros que emigram, vemos a reflexão sobre esse tema da ruralidade. Em suma, de certa forma, essa projeção transformou e levou-nos ao “Légua”?
Sim, é isso mesmo. Este filme também parte dessa ideia de transformação. Há o fim de algo, mas também o início de algo novo. Gostaria de me concentrar um pouco mais neste outro aspeto que era muito importante para nós retratar: a ideia das três gerações de mulheres a viverem, não todas na mesma casa, mas ligadas a essa casa de alguma maneira. Principalmente a Mónica (Vitória Nogueira da Silva), que está ligada à Emília (Fátima Soares), como se fosse uma tia. Em relação à Ana (Carla Maciel), visto que o marido estava frequentemente ausente devido à sua vida de imigrante, contou sempre com a sua grande amiga e fiel companheira de trabalho, Emília, para ajudar a cuidar dos filhos. Nesse sentido, voltando à ideia das três gerações, Emília representa alguém que ainda segue o regime feudal, aceitando desde muito jovem servir e cuidar de um património que não é seu. Servir os senhores. Já a Ana encara isso como uma profissão. Basta verificar que a Emília vive na casa e a Ana não, constituindo família e tendo os seus momentos, como vemos no filme.
João Miller Guerra e Filipa Reis
Quanto à Mónica, efetivamente estudou e possui um curso superior, equivalente ao dos donos da casa, e um dia desejará o mesmo para si. A vida da Ana também não se prevê que seja de forma alguma semelhante à da Emília, servindo e aceitando a subserviência. O filme também aborda o fim desse regime feudal e a transformação. O fim é sempre uma transformação. O filme também enfatiza a ideia de ciclo, o ciclo da natureza, as quatro estações, e a transformação da Ana que ocorre com a morte da Emília. Talvez a Ana tenha encontrado a si mesma ao aceitar cuidar da Emília e decidir ficar, em vez de seguir a vontade dos seus filhos e marido e emigrar.
No seu filme, como mencionou anteriormente, aborda também a questão da transformação dos corpos. A primeira sequência do filme, com Carla Maciel a cantar "Fruta Fresca", mostra o corpo dela, ainda “jovem” em comparação com o corpo que Fátima apresenta durante a sua própria decadência. No final, vemos Vitória / Mónica, a figura mais jovem numa festa de transe, e o movimento do seu corpo sincroniza-se com o das outras duas [Carla / Ana e Fátima / Emília]. Portanto, a minha dúvida é se há uma tese subjacente a essa questão dos corpos e de como ela se relaciona com a existência da pessoa? Porque sabemos que há um ponto em que a Fátima parece ter deixado de existir, embora ainda esteja o corpo no terreno.
Sim, há. Quase como uma transferência de poder. Vejo a festa de transe como uma espécie de ritual de iniciação, marcando a passagem da vida adulta de Mónica, exatamente no momento em que Emília falece ou "passa para o outro lado", por assim dizer. Para nós, os corpos eram de extrema importância, assim como os gestos de trabalho. Essa ênfase nas diferenças de idade sublinha ainda mais o ciclo da vida. Nascemos, crescemos, envelhecemos e eventualmente partimos para o outro lado. Essa narrativa foi cuidadosamente planeada desde o início do guião. Recordo-me, por exemplo, da nossa colega que colaborou na escrita do guião, a Sara Morais, mencionar a comparação que se poderia fazer entre a rugosidade das pedras e todo o granito ao redor, e essa transformação que também ocorre no nosso corpo e na nossa pele ao longo do tempo, à medida que nos transformamos, entenda-se envelhecer.
Mas certamente, falando dessa rugosidade, da questão mineral do filme, julgo que o “Légua” também reforma a sua questão animalesca. Há muitos animais, e de variadas espécies, neste filme, o que também contrasta um pouco com essa questão humana.
Sim, os animais têm um papel importante no filme, servindo como representações da transformação da natureza. Eles desempenham um papel fundamental na transmissão da ideia das estações, marcando o tempo ao longo do filme. Além disso, eles simbolizam um retorno à vida quotidiana que Ana havia perdido. No final do verão, ela, de um certo ponto de vista, recupera a liberdade e deixa de se sentir na obrigação de cuidar da filha.
Quanto ao cão branco que leva as meninas a presenciarem o ritual da coruja, a interpretação é aberta, sendo que cada pessoa poderá interpretá-la de acordo com a sua perspetiva pessoal. Na minha, é que a coruja simboliza a Emília, alguém que talvez, ao passar por essa transição ou passagem, tenha se fundido com a coruja ou já esteja presente de alguma forma no corpo da coruja. É uma interpretação interessante e aberta à interpretação pessoal de cada espectador.
Voltando àquela entrevista da SIC, foi referido que o João e a Filipa tiveram ideias diferentes sobre o projeto, e o filme foi fruto dessa diplomacia. Gostaria de perguntar, a título pessoal, se houve alguma ideia que achasse que resultaria no filme, mas que tenha sido rejeitada durante o processo de criação?
Não, creio que desde o princípio o trabalho com a realização, com a autoria, é sempre um exercício de grande entendimento. Cada um de nós contribui com as suas ideias, lançando propostas, e o outro também. Às vezes, como a Filipa mencionou nessa mesma entrevista, é necessário confiar. Acredito que sempre tivemos muita confiança um no outro. O que acho que mudou neste filme, e a Filipa também o menciona, é que pela primeira vez olhamos um para o outro e dissemos: "não vamos estar com atenção àquilo que cada um costuma estar. Se um está com mais atenção ao enquadramento e o outro aos atores, desta vez vamos tentar com que ambos atendamos ao enquadramento e igualmente trabalhando junto dos atores" E foi o que fizemos. Houve momentos em que filmamos, como nos filmes anteriores, em que isso era uma questão de atenção. Em certas ocasiões, o nosso diretor de fotografia, o nosso querido Vasco de Viana, ao não ter a certeza sobre qual caminho seguir, adotava ambas as abordagens.
Ele fazia uma versão para a Filipa e outra para mim. Por vezes, essas escolhas só seriam claras na fase de montagem. Poderia sair de uma cena, após a filmagem, convencido de que a minha opção era a correta e, mais tarde, descobrir, como já aconteceu, que a abordagem do outro era a mais adequada. Na edição, em determinados momentos, com o ritmo e a mensagem que queremos transmitir, a versão do outro revelava-se na escolha certa.
Queriam que me abordasse a vossa relação e colaboração com “não-atores” …
Prefiro o termo “atores não profissionais”.
Légua (2023)
Muito bem, o vosso trabalho com “atores não profissionais”, nomeadamente com Fátima Soares, que revelou-se numa das grandes forças de “Légua”.
Fátima Soares é uma pessoa de uma generosidade extraordinária. Sempre me pergunto como seria encontrá-la na rua daqui a alguns anos, mesmo que a sua presença seja diferente. Tenho esta ligação com o cinema, enquanto ela não tinha nenhuma; estava envolvida num grupo de teatro que era uma das atividades que realizava na Universidade Sénior do Marco de Canaves. O facto de ser abordada e convidada a encenar a sua própria morte, relativamente próxima da sua idade (ou seja, mais próxima da idade em que alguém pode vir a falecer, de acordo com a probabilidade, é claro), foi um ato de tremenda magnanimidade por parte dela.
A Carla Maciel também foi uma lição para nós, naquilo que se refere a trabalhar e gostar de trabalhar. Mesmo que inicialmente pensássemos que não seria possível para nós trabalhar com atores profissionais, percebemos que a personagem da Ana precisava da elasticidade que talvez apenas uma atriz profissional pudesse oferecer. Realizamos um casting e encontramos a Carla, ficando absolutamente maravilhados com a duplicidade que desenvolvemos com ela. Demonstrou ser uma profissional de excelência, trouxe novas ideias e esteve sempre no local certo, à hora certa. Repetiu as cenas e contribuiu significativamente para o concepção do “Légua”.
Assim, penso que tivemos muita sorte, tanto com a atriz profissional quanto com a amabilidade da Fátima. Além disso, a dinâmica entre as duas atrizes também foi algo notável. A relação entre elas foi desenvolvida pelo Luciano, um preparador de elenco vindo do Brasil. Isso foi fundamental, especialmente porque trabalhar com atores profissionais era novo para nós, ainda mais, a contracenar com atores não-profissionais. O preparador de elenco desempenhou um papel crucial na criação dessa ligação, trazendo uma grande mais-valia às suas performances.
Já que estamos na a conversar na Cinemateca, deixa-me perguntar como é que Manuel Mozos, o zeitgeist do cinema português, entrou neste projeto?
O Manuel é um amigo nosso de longa data. Ele estava envolvido na Associação Portuguesa dos Realizadores, onde a Filipa também estava, e foi lá que estreitamos a nossa relação para com ele. Em dado momento, estávamos à procura de alguém que pudesse interpretar o papel do padre Guilherme. Queríamos alguém que fosse uma mistura entre um ator profissional e um não-profissional, e estávamos a considerar quem seria a melhor escolha. Tínhamos uma ideia muito clara do que queríamos para a personagem e foi então que a Filipa teve a ideia de convidar o Manuel Mozos.
Sabíamos que o Manuel tinha experiência como ator, embora ele não se considerasse um. Aceitou o desafio, talvez mais amizade do que profissionalmente. Ficámos muito contentes. Na verdade, já estávamos em contacto com ele, pois tinha-nos dado, generosamente, uma lista de atrizes que se encaixavam no perfil que precisávamos para o papel da Ana. Quando percebemos que a atriz que a interpretaria teria que ser uma profissional, o Manuel elaborou-nos uma lista, na qual estava incluído a Carla Maciel.
Contudo, quando falámos com a Carla, percebemos que ela tinha uma experiência pessoal que foi a de cuidar da sua própria mãe, o que a tornou-a uma escolha ainda mais adequada para o papel. Essa experiência, que talvez tenha deixado uma marca no seu corpo, acabou sendo uma grande vantagem para a interpretação da personagem. Mais uma vez, fomos agraciados com muita sorte.
Légua (2023)
Quanto a novos projetos?
O meu próximo projeto é, na verdade, um antigo que estou a retomar. A rodagem foi interrompida devido às filmagens do "Légua", depois houve a fase de montagem e a estreia. Trata-se de um documentário que tenho vontade de deixar-me influenciar um pouco pela ficção. É sobre um rapper descendente de cabo-verdianos chamado Ghoya, que canta em crioulo e é uma espécie de pioneiro do rap crioulo em Portugal. Ele também passou 10 anos na prisão, e eu o conheci antes de ser encarcerado. Nos últimos anos, mantive um contacto contínuo com ele. No ano passado, obtive apoio do ICA para a fase de finalização. Portanto, agora posso continuar a filmar e concluir o projeto. Esse será o meu próximo trabalho.
Quanto à Filipa, tem um filme em mente que ainda está por escrever, e à partida, será um projeto apenas dela. Não sei se terei algum envolvimento no filme ou não. O tema é prazer feminino.
Confessou-me numa anterior entrevista que não fazia distinção entre documentário e ficção.
Sim, há umas ‘coisas’ que eu ainda não filmei e que acho que poderiam colocar o filme mais nesse lugar. Aquilo que tenho, para já, no filme do Ghoya, é mais documental.
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O charme de "Tótem", a segunda obra de Lila Avilés ("La Camarista"), provém da sua (aparente) inércia - os preparativos para uma festa aniversário com a mesma energia de um ritual fúnebre - e no centro desse turbilhão humano, onde os estresses relacionados aos avanços dessa cerimónia se fundem com as emoções contidas (voluntariamente ocultas para não ferir susceptibilidades), reside Sol (Naíma Sentíes), uma menina de sete anos cujo pai (o motivo deste frenesim), encontra-se debilitado por uma doença cancerígena.
Desde o início do filme, deparamo-nos com a pequena protagonista em convívio com a sua progenitora (Iazua Larios), uma mulher de contagiante vitalidade (contrastando com o outro progenitor, de abraços com a morte), pressentimos um certo encobrimento, sorrisos amarelos, forçados como máscaras sociais. A celebração que parece nunca "descolar" do seu planeamento resume-se a uma interminável tortura (pessoalmente) dirigida a esta criança, mantida na ignorância do seu redor, suspeitando das suas adversas características.
Avilés cria um filme de ambientes, de conflitos aligeirados para serem sentidos por "enfants", aliás, é nesse olhar, algo infantil e confuso, que "Tótem" presta serviço quanto à sua formalidade. Sol, "ilumina-nos", entre esconderijos (refúgios improvisados) e a vontade de ver o seu pai, erudito no seu quarto, no seu túmulo guardado pelos totens animalescos. Essas forças místicas (e bem vivas) não deixam o filme em aconchegos. O corvo marca a morte predatória, os anciãos pressentem com clareza os sinais da sua vinda, tentando contrariar o fim abrupto e previamente anunciado com a manutenção (humanamente) possível da vida - o "bonsai" - esse símbolo de prosperidade (com paciência à mistura), é ali mesmo, o combate contra esses alados antagónicos de mau agoiro.
Na sequência final, de rosto iluminado pelas velas do enfim bolo de aniversário, Sol transmite algo mais do que mera inocência infantil, o seu olhar trespassa a quarta parede, por minutos foca-nos [a audiência]. O mistério ali orquestrado foi em vão, Sol sabe e muito bem do “crime” ali ocorrido. Inocência termina, o conflito já se encontrava persuadido na sua mente, como uma Virginia Woolf que em espaços pequenos deambula pelos seus íntimos e perigosos pensamentos.
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Hedy Lamarr, Marlene Dietrich e Bill Wilder na rodagem de "A Foreign Affair" (1948)
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Por que é que a personagem dentro da personagem de Jason Schwartzman queima a própria mão no grelhador? Questionando o imaginário autor, porta-voz do narrador, aqui interpretado por Edward Norton, que responde, sem grande alarido, com a procissão da sua criada narrativa. O “não entender”, não pode, nem deve, ser visto como uma desculpa, seguimos então em frente com o relato. “Asteroid City” cai entre nós como uma “bomba”, um tiro às tendências que resguardam estes tempos em que o streaming e a falsa-sensação televisiva (séries que já não são televisão, nem nunca serão) estabeleceram uma relação tóxica com o espectador, forçá-lo à reger pela continuidade, tudo para este factor e nada contra esse factor.
No cinema, tal feito acarreta nas audiências - fasquias, realismo e o senso do mesmo, prevalecem - deixando a estética, essa, desvanecida, vilipendiada como uma distração, uma maquilhagem ao vazio, ao oco e fútil. Ora bem, vazio não é o que deparamos no cenário desértico desta fictícia Asteroid City, antes disso, uma farsa, um filme a compor-se frente aos nossos olhos, ou diríamos mesmo (utilizando a velha glória teatral “O Mundo é um Palco”, neste caso, aperfeiçoando à sua realidade cinematográfica, “O Mundo é um Cenário”), a ser encenado no nosso horizonte. Tudo está aparentemente “organizadinho”: a mise-en-scène nos trincos (que saudades deste aprumo, que parece não ter lugar no dito “cinema moderno”), os planos conjunto a brindar os olhares, os gestos meticulosamente planeados em cadência dos movimentos de câmara, subtis e sintéticos, os atores reduzidos a bonecos em prol de inventário debitado e materializado.
Contudo, os andaimes estão expostos, entendendo à sua funcionalidade de apoio para a eventual construção, o narrador surge-nos no lugar errado e à hora errada, a desconstrução que dá lugar a um pseudo-making off, um formato de tela que nunca se decide e igualmente estabelece regras nas suas dimensionalidades, tudo na literalidade, há que entreter a audiência sem que esta acredite no que vê. De alicerces revelados, Wes Anderson prova que na fantasia das suas fantasias, criar nunca se resume a “storytelling”, criar, artisticamente falando, é igualmente compor, rebuscar, decifrar, esconder, revelar ou até “pintar”, quadros elaborados para deleite, seja do autor, seja do espectador. Um show de mecanismo e virtuosismo, perfeccionismo e calculismo, a essência do cinema andersoniano. Porém, como o próprio expressou, contra “copycats” e mimetização AI; não é da estética, visualmente desferida, o qual resume o seu cinema, o vazio à pouco invocado como centro formal, é um atalho para a plagiaria, o cinema de Anderson fala com ele próprio e dialoga entre si, aliás, é disso que são feito os autores de cinema, e nós, perante um deserto, precisamos mais de autores.
Isto para insinuar que me perdi em Asteroid City (no bom sentido, é óbvio), e igualmente senti-me enganado após deparar com o embuste que a cidade é, uma criação dentro da criação, um matrioska que Anderson desculpa o seu cinema. É uma peça a fazer-se de peça, a alavanca narrativa para entrarmos em alter-egos e cunhas. Essa, Asteroid City, é um sonho vindo dos que não conseguem dormir, uma alternativa, realidade talvez ou sintética provavelmente, onde estas historietas à sombra dos testes nucleares são relatos de avatares jubilantes, o “body double” referido pela diva caída Scarlett Johansson após o relance de um corpo desnudado (o de não saber se é o dela ou de uma dupla leva-nos à natureza do filme, onde o que se parece não é, e o que é não é o que se parece).
Portanto, podemos dizer que tudo não passa de uma brincadeira, um hobby concretizado, decorativismo gritarão muitos, saindo desfraldados da sala, acompanhadas por acusações de “repetição” estilística, sedentos pelas narrativas A a B, ou da realidade que nos abraça, desejando vê-las representadas nos nossos medias. Sim, “Asteroid City” é um cinema-romântico, o romantismo de que a tela é uma porta para lá das leis físicas do nosso dia-a-dia, de novos olhares e novas fragrâncias. Wes Anderson apresentou-nos desde sempre uma espécie de “casinha das bonecas”, um cinema farsolas, trocista, ingenuamente cruel e com, acima de tudo e acima do resto, familiar. Sim, há um conforto familiar nesta sua estranheza e “Asteroid City” possui pé firme nesse mesmo “vale”.
Terminou! A música anuncia o final, de costas voltadas para o proto-vilarejo que empresta o nome à película, os créditos finais começam a rolar, um papa-léguas, curioso pássaro testemunhante das peripécias ali fabricadas, balança no ecrã, fazendo ”pirraças” a quem vai gradualmente saindo da sala. Aos que ficam, a sua dança vitoriosa vira recompensa. Não quero abandonar este filme, não consigo de todo abandoná-lo. Rastaparta ao realismo!
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