"És tu o responsável por esta 'passarada'?"
Alfred Hitchcock nos bastidores de "The Birds" (1963)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
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Alfred Hitchcock nos bastidores de "The Birds" (1963)
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The Thing (John Carpenter, 1982)
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Beau (Joaquin Phoenix) vive num constante amontoar de medos; o medo da sua genética (reza a sua árvore genealógica que nenhum dos “machos” viveu além da noite de núpcias), o medo de viajar, o medo do seu bairro, dos vizinhos, de água, de relações, do sótão e dos monstros que o albergam, do psiquiatra, das pessoas em geral, mas no topo disso, a sua mãe, recentemente falecida, com o corpo a esfriar, aguardando a apropriada cerimónia fúnebre, esta, apenas validada pela presença do próprio Beau, que se encontra impedido devido a forças maiores que a dele (assim crêem). Poderemos desta maneira, resumir o quanto basta a nova incursão de Ari Aster - realizador da angústia e do medo, particularmente da sombra maternal, e em consequência o desmoronamento da ideia tradicional de família - sem ferirmos a susceptibilidade da “cultura no spoiler” propagada pela extensão das produções instantâneas de streaming.
Desde as sua demanda no formato curta (resalvamos “The Strange Thing About the Johnsons”), o seio familiar é um espaço demente, em pleno conflito e de ódios extremados, porém, reprimidos quanto à base divinal do seu conceito, esses ecos que elevaram “Hereditary”, a primeira longa e ainda imbatível fábrica de tenebras atmosferas. Em “Beau is Afraid”, Aster faz do uso de Phoenix, do seu corpo decadente e desbotado como maquete de dor e de penosa existência, mas é na sua mente que reside o espectro, ora fantasmagórico, ora desdobrado nas dualidades entre personagem e realizador, quase como um ajuste de contas, um heterónimo (sabendo que o realizador assume-se adepto de Fernando Pessoa e dos labirínticos reflexos entre personagens e identidades criadas de raiz enquanto satisfações pessoais, ou meras necessidades existenciais), uma carta endereçada, selada e remetida ao seu grande MEDO, a responsável da repulsa, a responsável da cadeia e da soma de tudo o resto.
Vejamos, Phoenix “sai-se bem na fotografia”, como sempre, entrega-nos o desempenho esperado, aludido à martirologia, ao comprimido humano, imprevisível e igualmente identitário, e por sua vez, Aster revela-se um engenhoso adornista de climas lucernários, aqui, concebendo uma espécie de “Alice nos País das Maravilhas” degolado, uma malapata reforçada e fortalecida no seu “miserabilismo-privilegiado”. “Não bate a bota com a perdigota” a última e adjetiva conjugação, mas também não interessa, porque passados umas, sensíveis, duas horas de thriller teatralmente orquestrado (impressão minha mas Shyamalan é referência na logística destes pesadelos confinados), a cortina cede, voltando a içar para um terceiro e epifânico ato, como o velho jingles das “pilhas Duracell”, dura e perdura.
A raíz do mal é decifrada pelo espectador faz tempo, só que a partir desse “renascimento” o significado deixa de ser decifrável e passa a ser umbiguista, redecorando os anteriores passos como lições dadas, e de dedo riste e apontado ao antagonista afronta-se numa psicanálise visual. “Eu”, “eu” e “eu”, são as palavras de ordem que ruminam nesta narrativa, o filme deixa de ser um filme (digo partilhável, é claro), e passa a ser uma longa terapia de choque. Se tal como a escrita, a velha máxima de que os escritores escrevem sempre sobre eles próprios, no cinema, consideremos os filmes à imagem do seu autor.
Aster realizou e escreveu, assinante da imagética e do conceito, da ideia e da repreenda. Mas a terapia também serve para estas ‘coisas’, evitar que sejamos torturados por três horas de perturbadoras confissões e divãs freudianos (cores edipianas à baila mais uma vez).
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"He was 17, I was 18, we kind of looked at Jesse and called him slow, today you'd call him mentally retarded. They claimed Jesse raped and murdered a white woman by the name Lucy Fryer. They put Jesse on trial, and he was convicted by an all-white jury, after they deliberated for only *four* minutes. I was working across the street at the shoeshine parlor, and after the verdict, the mob grabbed Jesse, put a chain around his neck and dragged him out of the courthouse. I knew I had to hide... where I was, the shoe parlor had a window up in the attic, and I could see the crowd, they marched Jesse through the streets, they stabbed him, and beat him, and finally in a bloody heap, they held him down in the street - and cut off his testicles ... Police and city officials were out there watching him, they cut off his fingers, and threw coal oil all over his body. They lit a bonfire, and raised and lowered him over these flames over and over, and over again... The man, a photographer by the name of Gildersleeve, he came and took pictures of the whole thing, those pictures were later sold as postcards." BlacKkKlansman (Spike Lee, 2018)
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Yul Brynner na chegada à premiere de "The Ten Commandments" (Cecil B. DeMille, 1956)
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Um filme-simoso … a palavra, essa, pura invenção do seu autor - José Cardoso Pires - após sofrer um derrame cerebral que o “atirou” para um “branco limbo”. Em jeito poético, resume-se a um escritor que esquece de ser escritor e por sua vez o seu mundo, dessa forma, tenta (re)identificar objetos quotidianos, entre giletes ou óculos e o que sai é “simoso”, sem uso algum devido à sua inexistência gramatical.
Esta adaptação de “De Profundis, Valsa Lenta”, obra literária algures entre o existencialismo biográfico e o experimentalismo ensaísta, objeto de “profunda” construção a partir da sua vivência em 1995 (o tal AVC), é fruto ficcional para Fernando Vendrell, produtor e ocasionalmente realizador, que havia tentado outro escritor e em outro espectro, 5 anos antes, com “Aparição”, sobre Vergílio Ferreira. Portanto, simoso é um estado, uma ideia, uma pluralidade, um gambuzino, e por outras andanças uma via para a criatividade, infelizmente “Sombras Brancas” debate-se para com a sua própria existência ao invés de persuadir na construção de uma, deseja ser uma biografia disfarçada, algo retrospectiva ou introspectiva, e por outro um forro surrealista e experimental, saindo o tiro pela culatra nesse mesmo alvo, no meio um retrato algo dissipado de um Lisboa intelectual e igualmente boémia, amantes do néctar da juventude interna, ou da (a)provação do “minete” (bem haja, em memória de Rogério Samora), ambiências que o próprio Cardoso Pires decidiu enveredar [com "Alexandra Alpha”] como contradição à tradição do ruralismo literário.
Sendo assim, tudo nos é desfragmentado, curiosamente seria essa a mais valia de “Sombras Brancas” (filmado durante a pandemia), uma entropia cerebral e narrativa, mas a confusão aí endereçada nada de refrescante nos traz, existe um sintoma de episódio-piloto em todas as sequências, como fossem esboços ou aperitivos para aprofundar em uma possível conversão de seriado televisivo. Ainda contamos com outro sintoma, não tão propício a enfartes mas de algum incómodo para com a sua natureza, uma sensação de coletivo, o que contraria aqui esse eventual e convidativo intimismo ou vertigem de morte, um índice vivente povoado de personagens em passagem e faces “desenhadas” num ensurdecedor eco. Um “simoso” nunca cumprido … daremos desta maneira uso à não-identificável palavra.
Fernando Vendrell fica-se pela competência em trazer um livro infilmável (assim classificado, ao contrário de “Delfim”, a considerada obra-prima de Cardoso Pires, que contou com conversão fílmica de Fernando Lopes em 2002), sem romper as apropriadas vestes nem os seus estilos definidos, distanciando-nos do escritor regredido, interpretado aqui pelo muy generis Rui Morrison, porém, em matéria de desempenhos, a aliada contra a branquitude voraz, Natália Luiza (em dicotomia temporal com Ana Lopes), merecem os destaques e uma retirada das sombras (mesmo quão brancas sejam). A mulher, a mártir do ego desmesurável e dos pecados originais de quem é escritor, seja de raíz ou de causa, e de quem escritor nunca deixará de ser, mesmo que a vida prega as suas maliciosas partidas.
“Como é que tu te chamas?”
“Eu? Edite. (...) E tu?”
“Parece que é Cardoso Pires”
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Descolonização: palavra de muita celeuma, proporcional a revanchismo, ou a descortinamento a um mito constantemente perdurado, consistindo na ambiguidade histórica. Descobrimentos? Nada disso, substituiremos por expansão marítima, isto para não prosseguirmos no acréscimo vilipendiado do “colonial”.
Assim, chegamos à devolução de artefactos museológicos aos seus países de origem (por vezes, negligenciando as fracas condições de preservação dos mesmos, ou até o desinteresse de muitas recém-formadas nações), à queda e destruição de estátuas homenageadas a vultos precisos desse referido processo ou na negação de qualquer embarque memorialista que não seja a sua antagonização. Falar de colonialismo, hoje em dia, é uma tarefa árdua e demarcadamente unilateral de forma a vincar e pregar a justiça um tanto negada. Contudo, descolonizar é também dialogar, retirando das sombras velhos traumas, basculho ocultado nos sótãos daquelas heranças não declaradas. É aquele ex-combatente, por exemplo, recusando confessar crimes ou experiências, apropriando como suas e apenas suas, crenças e cicatrizes, fantasmas aliás, dançantes na sua perturbada imaginação. A descolonização serviu como desculpa para esta abertura, a apuração de factos ao invés de consequências, mas os saudosismos mantidos em cativeiro, por vezes, falam por alto nas imediações das suas fragilidades.
Carlos Conceição, angolano de raiz, comenta através desses mesmos fantasmas, e o faz por via do território do thriller, isso, se quisermos enjaular em géneros definidos e fechados, como manda a mais nefasta indústria, sem as honras da diluição. Eventualmente, é nessa feitoria narrativa, elaborando não apenas metáforas, e sim fábulas sobre as feridas esquecidas. A esteticidade supra de “Um Fio de Baba Escarlate”, uma conversão do terror e do desejo erotizado, é superado pela noite tourneana, dos mortos-vivos pálidos e amaldiçoados por “causas perdidas”, meras manifestações de loucos delirantes da Fantasia Lusitana, pela guerra perduradora que une Atlântico e Índico, infamemente catalogado como “Ultramar” (palavra atualmente “proibida” devido, a isso mesmo, descolonização).
Nesta demanda, segredos são incorporados em corpos jovens, meninos convertidos a soldados com ordem para matar em nome de um país longínquo. Eles mantêm a “paz”, diversas vezes ameaçadas por um "inimigo invisível" oriundo do outro lado da muralha, uma secreta muralha para lá do permitido, decretando o fim das suas divagações. São as crianças perdidas da Terra do Nunca, sendo que essa Terra’, é igualmente uma construção, uma fabricada alegoria que preserva a raiva, a dor e as ilusões. É o sinal do derrotismo, o projeto de um sonho não concretizado, caído no calor do 25 de Abril. Esta colaboração entre Conceição e o seu muso (João Arrais), “Nação Valente” revela-se numa cápsula temporal abanada e abalroada pela sede de desconstrução que estes novos tempos requerem.
Com isso, nesta insuflação de masculinidade embrionária, é no desejo, palavra de ordem no cinema do realizador, que derruba cercos quase zoológicos e assume uma estância freudiana (a mãe ... sempre a figura maternal). Por outras palavras, este é cinema para irritar conservadores devidos ao impacto para com as memórias estabelecidas, porém, desvia-se do suposto panfletarismo, porque, enquadrando nos muitos propósitos cinematográficos, o insere numa narrativa e … convenha-se afirmar … com os seus ares shyamalanos, nem que seja na aposta do twist, na revelação em modos do “Como um Sonho Acordado” de Fausto, a contemplação da mentira (e que mentira!), que essa Nação, pátria amada, os egoistamente enclausurou . Soldados, vítimas dos devaneios de outros.
A esta altura do campeonato, solicitar provas de valentia de Carlos Conceição não é mais um pedido aceitável, não há mais a provar, temos realizador (não só de agora). E se “Nação Valente” indignar alguém, então eis a vitória bélica para o nosso autor do desejo, porque o Cinema é também inquietar. Cinema confortável, este mundo anda cheio, e mais que isso, cansado.
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"Mommy's with the maggots now."
Podemos dividir por dois grupos as pessoas desta vida: as que preferem “Evil Dead”, o original de 1981, terror prático e estapafúrdio (classicamente falando), e as que optam pela sequela / refilmagem “Dead by Dawn”, em 1987, que implantou (ou será melhor induzir a palavra “assumiu”), a paródia no seu estilo grotesco e revanchista do cinema de terror 80’s. Portanto, ambas as facções poderão guerrilhar qual destas duas nuances é mais apropriada a esta mitologia, enquanto que Hollywood, ordenhando a sua “vaca milionária” (como costume), explora o filão, ora com remakes como a localizada em 2013 sob a assinatura de Fede Álvarez (sujeito acidental que conquista uma certa admiração numa igualmente certa fatia cine-intelectual), que funcionou numa padronização da sua fórmula, ou nesta releitura intitulada de ”Evil Dead Rise”, a espécie de sequela / reboot / reformulação que ninguém pediu mas que nos chega com um certo fulgor nostálgico.
Abrindo com a mais vulgar das vulgaridades em registo “cabanas da floresta”, finalizando com um gorduroso título do qual o filme se apropria, partimos em seguida para um prédio em semi-abandono, segundo consta a demolição do mesmo está próxima e os seus habitantes possuem apenas um mês para se retirarem definitivamente. Dos que resistem, deparamos com uma família disfuncional, Ellie (Alyssa Sutherland), mãe de três’, cujo companheiro “desapareceu” por conta própria, recebe numa determinada noite a sua irmã, Beth (Lily Sullivan), com assuntos pendentes e “um” no ventre. É nessa mesma noite, tempestuosa, que um misterioso terramoto abala aquele mesmo edifício, convertendo-o numa improvisada masmorra. Um livro sinistro revestido em pele humana surge como “obra de espírito santo” (ou será o contrário?), e uma maldição propaga nos seus corredores, Ellie, outrora mãe zelosa, converte-se numa criatura demoníaca encarregue de levar todos os “sobreviventes” para o quinto dos Infernos.
Lee Cronin (“The Hole in the Ground”) faz deste pré-fabricado universo uma variação diluída nos elementos idiossincráticos do seu cinema oitentista: os efeitos práticos ao gore criativo e os splatters em modo lúdico, apoderando-se de uma atmosfera artificialmente sintética naquela pequena comunidade. Acrescenta-se ainda uma antagonista maliciosamente sedenta de protagonismo para o sucedido, relembrando da invocação ainda presente nos prólogos da maldição em curso, cujos dois jovens convidam a vizinha para assistir uma maratona dos “filmes do Freddy Krueger”, “incluindo os maus” interpela o mais novo, automaticamente respondido pelo mais velho com “não existem filmes maus”.
Ou seja, Cronin aplica as lições de um terror nostálgico, sobrevoando o legado “Evil Dead” e piscando os olhos a “Night of the Demons” (de Kevin Tenney [1988], um dos filhos da saga de Raimi, e dos quais implicou-se em afastar do burlesco que a sequelas / revisões se tornaram), como aventurando-se através de salpicos de “The Thing” (o body horror maleavelmente diabólico) ou, como já fora mencionado, “A Nightmare on Elm Street”, mais concretamente Freddy Krueger, o fala-barato assassino de slasher santificado por Robert Englund, que intimidava as suas vítimas através de espectáculos / encenações de automutilação, sendo demonstrações das duas capacidades corporais, além da mera carne, para lá do seu estado terreno. A monstruosa Ellie não é mais que um embrião desse vulto, usufruindo tamanho bullying para atormentar as suas presas, antes destas conhecerem os seus abruptos fins, apercebendo que a dor, eterna promessa dos infernos dantescos, conforme sejam, é uma “porca” realidade.
“Evil Dead Rise” é essa salganhada arquitetada num tributo a esse mesmo cinema de sustos e arqui-sustos, com os seus esperados calcanhares de Aquiles (as personagens que teimam em tomar as piores decisões em situações limites) e com essa ambição do zero, o de acompanhar o que fora feito e não transgredir iguais territórios. Desta feita, aquele edifício-prisão, imagem persistente no cinema de terror (e não só) enquanto caixas-de-pandora de perdidos e achados, a sua evasão reside na esperança a um horror algo voyeurista, contemplado num angular point-of-view que mimetizar o peeping tom que assume como estética de perspetiva.
Que a verdade não nos coma a língua: ninguém pediu outro episódio de “Evil Dead” (sem ser um regressado Sam Raimi e a continuação do seu anti-herói brutamontes Ash via Bruce Campbell), mas o tendo à nossa algibeira, não deparamos ofensa alguma em saudá-lo. Trata-se de um semi-frio com contas a ajustar a um legado, a um terror que se parece com tudo e igualmente se parece com nada. Com isto, mesmo com formulações e reformulações, existem ideias e execuções mais bem empregues aqui do que na enésima revisão de 2013, nisso, sim, é um feito.
Contudo, devemos salientar que, perante o horizonte em queda de um determinado cinema norte-americano industrial, é no terror que descansamos "as vistas" com alguma vitalidade. “Evil Dead Rise” poderá não ser a quintessência do seu género, mas é fruto desse pequeno esforço.
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Repossessed (Bob Logan, 1990)
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Na rodagem de "Cerrar los Ojos" (2023), o regresso de Victor Erice. O filme será apresentado no próximo Festival de Cannes.
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