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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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O "bom" populista?

Hugo Gomes, 31.03.23

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Após a saída do visionamento de imprensa de “La Straneza”, decidi rever aquele que é possivelmente mais interessante dos filmes de Roberto Andó, realizador italiano de altos e baixos, mas que se mantém coerentemente numa certa tradição de crónica política. O filme em questão intitula-se “Viva La Libertà”, apresentado em 2013 (e com honras de abrir a Festa do Cinema Italiano do seguinte ano), era na altura vista como uma comédia de farsas e dotado de tamanha ingenuidade, porém, esse dito lado inocente adquiriu ao longo destes anos um outro tom, até porque “populismo” entrou fortemente no nosso vocabulário e hoje é uma reflexão sem causa nem efeito.

Viva La Libertà" aposta numa dupla interpretação de Toni Servillo (o ator celebrado sob a luz de Paolo Sorrentino, e que pouco a pouco se lançava em projetos díspares a esse mesmo universo, muitas vezes trazendo resquícios destes consigo), aqui encabeça gémeos, de um lado, um líder político vencido por uma crise existencial, e por outro, um filósofo delirante recém-saído de um hospício. Quando o primeiro “desaparece”, possivelmente em “busca” da sua “Grande Beleza”, o segundo toma o seu lugar, e a sua imprevisível natureza eleva o seu partido, anteriormente em estado de decadência, num dos fortes candidatos a governo em Itália. Isto porque o "irmão louco” faz política de afetos, de “verdades” e lança de cabeça para a consensualidade do seu eleitor e não o oposto, aqui abandona a ideologia e disfarça esse vazio com o “bem da vontade do povo-freguês". Digamos que por aqui paira uma certa sombra à lá Silvio Berlusconi (curiosamente, Servillo iria ser o incontornável ministro numa falsa-biopic assinado pelo seu "compincha" Sorrentino, em 2018), nessa jogada politizada de aproximação com as populações, recorrendo à incoerência discursiva equivalendo-a gestos humanizados e identificadores.

Ao sabor da sua estreia, “Viva la Libertà” seria encarado como um exercício recorrente à velha fórmula de “troca de papéis" sob um cenário de política (o equivalente italiano e menos simplista de “Dave” de Ivan Reitman), onde facilmente caímos que "nem tordos" na valsa do impostor. Hoje, com tantos peões populistas a acenarem à liderança da contemporaneidade do discurso político, prometendo fundos e mundos em diálogos vazios, aquelas “verdades” que muitos juram ouvir e que não passam de delírios provenientes de um “povo” cansado dos mesmos truques, acabando por “cair” em outros velhos truques, "lobos em vestes de cordeiro". Contudo, talvez influenciado por estas mudanças repentinas na esfera política, Roberto Andó inconscientemente incentivou o debate: será que existem bons populistas, ou tudo se resumo no fruto das nossas próprias convicções?

Preencher um silêncio em "Os Faroleiros": uma conversa com o compositor Daniel Moreira

Hugo Gomes, 30.03.23

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"Os Faroleiros" (Maurice Mariaud, 1922)

Realizado, escrito, produzido e protagonizado por Maurice Mariaud, “Os Faroleiros” (1922) foi durante tempos considerado um dos projetos mais ambiciosos concretizados em solo português. O “drama-documentário”, desta forma descrito, apresenta-nos um trio amoroso rompante entre “ondas de paixão e de ódio”, decorrendo numa vila costeira “guardada” por um pujante farol. Aqui, uma bela órfã, Rosa (Abegaida De Almeida), é acolhida pelo tio, o faroleiro João Vidal (o próprio Mariaud), que nutre sentimentos por ela. Contudo, o coração da moça também é disputado por António Gaspar (Castro Neves), o outro faroleiro, sedento de uma mortal obsessão. O filme culminará num confronto entre os dois homens, “barricados” na “torre luminosa” e lutando pela memória de um amor perdido, tentando com isto sobreviver numa prisão marítima algures entre o espiritual e o delirante. 

“Os Faroleiros”, raridade preservada (estando várias décadas desaparecido, até ser reencontrado em 1993 no Palácio do Bolhão, no Porto) e restaurada no âmbito do FILMar, projeto operacionalizado pela Cinemateca Portuguesa, parceira e impulsionadora desta iniciativa, com o apoio do programa EEA Grants 2020/2024, encontra nova vida nos grandes ecrãs. Primeiro no Batalha [Porto] e depois em Lisboa na Culturgest [31.03, pelas 21h00], num concerto orquestral conduzido e originalmente composto por Daniel Moreira e interpretado ao vivo pelo quarteto de cordas The Arditti Quartet.  

Em preparação com o espectáculo a decorrer na capital, conversei com o compositor e investigador musical sobre esta encomenda, e ainda abordando a relação Herrmann / Hitchcock e a escassa tradição de banda-sonora à portuguesa. 

A minha primeira questão soará um bocado “vaga”, mas gostaria de entender a sua relação com o Cinema e com a Música. Se foi através da Música que se relacionou com o Cinema, ou se pelo Cinema se relacionou com a Música?

Desde há muito que tenho uma forte relação com o Cinema. Embora seja músico, de formação e de profissão, costumo dizer que gosto tanto do Cinema como da Música. E na verdade isso possui uma dimensão pessoal, o de gostar de ver filmes e de conhecer o que se faz no mundo do cinema, como também reflete no meu trabalho - porque para além de ser compositor sou também investigador em música, em áreas mais teóricas - cujo foco principal é a música de cinema e a relação entre música e o cinema. 

Tenho projetos, sobretudo, sobre o trabalho de Bernard Herrmann, principalmente com Alfred Hitchcock, e sobre a noção de musicalidade dos filmes do David Lynch. Do ponto de vista da composição, na verdade, este projeto foi fantástico, porque desejava essa experiência de escrita musical para cinema. Tinha alguns projetos que infelizmente não chegaram ao fim, e este é o primeiro que efetivamente chega a concretizar-se.

Queria que me falasse um pouco sobre esse seu trabalho acerca do Bernard Herrmann e até que ponto não podemos desassociar o compositor do cinema de suspense do Hitchcock?

A minha investigação sobre Bernard Herrmann começou pela sua colaboração com Hitchcock, e o que se encontra publicado circula entre os seus trabalhos em torno de “Vertigo” e de “Psycho”, enfim, hoje soam como exemplos previsíveis e supra-estudados, possivelmente os filmes mais estudados dentro do Cinema, não apenas dentro da sua área musical. Mas ao fazer essas investigações e sobretudo a do “Psycho”, acabei por sentir a necessidade, também fui encorajado na altura pelo editor da revista em que o artigo foi publicado, abranger mais sobre o trabalho do Bernard Herrmann no cinema, e não restringi-lo a somente Hitchcock. Este aprofundamento permitiu-me reconhecer particularidades do estilo-modelo, e a partir do último ano, tal estudo começou a abrir outras portas. Encontro-me, atualmente, numa fase de tentar conhecer todas as bandas sonoras da autoria de Herrmann, o qual contamos com por volta de 50 partituras, e com isto desenvolver uma pesquisa mais transversal, porque embora ele seja reconhecido pelas colaborações com Hitchcock, que contabilizam 6 ou 7 obras, ele ainda trabalhou com muitos outros realizadores, e em outros géneros, como filmes de aventura, e de ficção científica.

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Daniel Moreira / Foto.: Culturgest

… e trabalhou com Orson Welles em “Citizen Kane”.

Com o Orson Welles também. Essa colaboração também é muito importante. E depois tem filmes assim, soltos, que na minha opinião possuem uma música igualmente fantástica, por exemplo, “Sisters”, do Brian de Palma, uma banda sonora extraordinária, ou até mesmo "The Day The Earth Stood Still" de Robert Wise. E, portanto, agora estou numa fase de perceber um ‘bocadinho’ melhor o seu trajeto artístico, e muito fora de Hitchcock. Embora, a partir de certa altura, essa ligação tenha sido tão marcante que alguns realizadores desejaram trabalhar com ele devido essa referência de colaboração com Hitchcock

Portanto, é incontornável essa colaboração, até porque transformou o cinema do Hitchcock. O seu cinema não seria mesmo sem essa colaboração.

Em relação a Brian De Palma, há todo um sentido nessa repescagem, visto que Hitchcock era em grande parte o seu modelo de Cinema.

Sim, obviamente.

Tinha uma lógica de seguir essas pisadas. Agora, passando aos “Os Faroleiros”, gostaria que me falasse um pouco deste trabalho. Estamos a falar de um filme mudo, hoje considerado uma raridade, e que durante vários anos esteve perdido, tendo sido posteriormente recuperado, e remasterizado.

Certo.

E sobre “Os Faroleiros”? Teve alguma referência sobre a sua composição musical ou criou algo em termos de raiz?

Sim, foi uma questão que me levou a ter muita reflexão no início, mas em relação a este filme não se conhecia nenhuma banda-sonora autêntica e original da época. Penso que nunca há tido. Soube até, por falar com outras pessoas que têm investigado isso, que na altura dos anos 20, em Portugal, alguns filmes tiveram composições originais. “Os Lobos” de Rino Lupo, por exemplo, teve uma partitura original. 

Consultei algumas dessas partituras para tentar perceber o tipo de música que se fazia na altura no nosso país. Não sei se isto teve uma influência muito direta na música que escrevi, mas constatei que era habitual na década de 20’, quando havia música previamente composta para filmes, eram sobretudo formações de música de câmara e não tanto para orquestra. Por exemplo, quinteto com piano, o quarteto de cordas convencional com piano, ou por vezes formações parecidas com essas, mais um ou dois instrumentos. E desse ponto de vista, achei curioso que a encomenda vinda do Batalha, no Porto, tenha sido uma proposta de escrita para quarteto de cordas. Uma ligação, digamos, à tradição, pelo menos ao tipo de formação existente em Portugal na época.

E, portanto, essa referência foi para mim importante. Na verdade, fiquei satisfeito, em medida que fui avançando no processo, que tivesse seguido para uma formação de câmara e não para uma formação mais larga de grande ensemble [pequeno agrupamento de intérpretes que pode englobar instrumentistas e/ou cantores] ou de orquestra, porque acho que um filme como este … que em certa maneira, é um drama de câmara no mesmo sentido que os filmes do Bergman. Não é que seja muito bergmaniano, é, contudo, bastante focado, pelo menos da maneira na relação entre três ou quatro personagens. Aliás, há uma parte substancial do filme em que até só temos duas personagens. E portanto, pareceu que ter um ensemble relativamente pequeno casava melhor com essa atmosfera do que ter um ensemble muito maior.

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"Os Faroleiros" (Maurice Mariaud, 1922)

Esse último ato que você falou, quando as duas personagens estão “aprisionadas” no farol, num perverso jogo de “mata-mata”, julgo ser o ponto auge do filme.

Tem uma dimensão quase expressionista, não é? Muito forte, claustrofóbica e violenta, na verdade. Que, musicalmente, foi muito desafiador e para alguém como eu que gosto de Bernard Herrmann e das emoções mais sombrias que era tão exímio ao retratar musicalmente, tais nuances foram inspiradoras. O filme é interessante, porque reúne atmosferas bastantes diferentes, se no final alberga esse tom quase expressionista, o início é-nos muito diferente. Essa diversidade atmosférica converte-se num ambiente sugestivo para a música. Ao mesmo tempo que se tem esta noção de que atmosfera vai para além da música que se cria, do mesmo modo que esta vai-se definindo consoante a composição musical criada. Se impusesse outra partitura, ou até mesmo outro compositor, a atmosfera nunca seria a mesma. Uma das vantagens em ver cinema mudo musicado do que sem música alguma, as experiências são díspares. 

Até à data desta conversa, o Daniel conduziu a sessão do Batalha, e encontra-se pronto para o da Culturgest. Ficaremos por aqui nesta experiência de composição para cinema ou existe um “bichinho” para continuar?

Vou dizer que SIM [risos]. Só que não depende de mim, e sim das instituições que a promovem. Mas sim, foi uma experiência e tanto, e muito gratificante, a de compor uma música para um filme raro e histórico cuja sua partitura original desconhece-se, foi um processo enriquecedor. 

E quanto a banda-sonoras de filmes contemporâneos?

Sinceramente, gostava de avançar numa proposta dessas se alguma oportunidade surgisse. Tenho a consciência que fazer música para um filme sonoro seria muito diferente para um mudo, por várias razões, uma delas é que não tive que negociar a música com o realizador [risos] … por razões óbvias, não é? Enquanto num filme sonoro teria, o que significaria menos liberdade mas que me daria um grau de colaboração o qual gostaria de experimentar. Por outro lado num filme mudo, à partida, o único “som” que se ouvirá será o da música que compus, e num ‘sonoro’ teria que aliar-me a diálogos, sound design e sonoplastia. 

De certa forma, o meu trabalho com “Os Faroleiros” também serviu para compensar essa falta de sonoplastia, dar essa sensação através da música, essencial num filme tão forte nesse ponto de vista, com todo aquele ambiente marinho invocado e os muitos planos expressivos do mar. Não de maneira direta, mas o que tentei fazer foi, através dos instrumentos, sugerir os sons que poderíamos ouvir naquela atmosfera. Obviamente que num ‘sonoro’, a música iria ter essa função, só que estaria em permanente diálogo com os outros elementos sonoplásticos. 

Outra diferença, é que num ‘mudo’ a música necessita ser quase onipresente, se o filme tem duração de 80 minutos são 80 minutos de música ininterrumpida. Já o ‘sonoro’, os outros elementos seriam destacados, por vezes ganhando prioridade sobre a música, ou, por vezes dispensá-la. Outro factor é a gestão dos silêncios, o ‘sonoro’ trabalha o silêncio, coisa que o ‘mudo’ não faz de maneira a não quebrar o seu vínculo musical / visual. 

Pegando novamente na banda-sonora de filmes “falantes”, e num prisma português, não pude deixar de reparar, salvo algumas excepções, que o nosso cinema é pobre em partituras originais. Novamente friso, salvo algumas excepções como alguns trabalhos do Rodrigo Leão, mas tenho notado as enésimas colectâneas de clássicos presentes em muitas das nossas obras, nomeadamente a quantidade de vezes que ouço o “Moonlight Sonata” de Beethoven a tocar. De um modo geral, não possuímos uma tradição de banda-sonora cinematográfica?

Não conheço tão profundamente o universo, mas existem várias excepções, recordo, por exemplo, da colaboração de Manoel de Oliveira com João Paes nos anos 80 e que foram responsáveis pelo original e fantástico “Os Canibais” (1988), um filme de ópera absolutamente único no Mundo. Mas fora mesmo desse registo operático, tens também o “Francisca” (1981), com uma partitura bastante original … e pelo que sei o Daniel Bernardes tem colaborado com o Botelho. Ou seja, as excepções são muitas, mas é verdade que existe essa prática em abundância, o João César Monteiro recorria maioritariamente à música clássica pré-existente … quer dizer, não só clássica, e sim pré-existente. O que também é toda uma arte fantástica, crítica uma obra dessas é como crítica uma obra-prima do Kubrick

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"Os Canibais" (Manoel de Oliveira, 1988)

Claro, claro, não estou a criticar o gesto em si, nem a música selecionada, estou com isto a constatar essa baixa tendência em criar bandas-sonoras próprias. Visto que falou do João Paes e do Oliveira, também gostaria de colocar na conversa o rock progressivo de António de Sousa Dias no badalado “Os Abismos da Meia-Noite” de António de Macedo, que julgo ter sido posteriormente editado em álbum. 

E quanto a novos projetos? 

Sobre investigação posso falar à vontade, já os de composição deixo em abstracto porque ainda não foram anunciados publicamente. Os de investigação são mais aos menos as duas alíneas referidas. O primeiro, que é o de compreender o estilo e influência de Bernard Herrmann (que talvez origine um livro daqui a uns anos) e segundo, não mais sobre um compositor, e sim de um realizador, David Lynch. Uma ideia de musicalidade envolto nos seus filmes, e nas séries televisivas, é um pouco pegar no que ele acredita, ou seja, segundo Lynch as suas obras são como partituras musicais, e isso é comprovado através deles. Na verdade ainda estou em fase, de levar os meus artigos a conferências, com isto recolher feedback das pessoas desse campo, tendo a ideia máxima de transformá-lo num livro.

Do ponto vista da composição, tenho várias ‘coisas’! Sou de formação clássica contemporânea, logo todos os meus projetos não são todos necessariamente relacionados com o cinema. Tenho um projeto que envolve coro e orquestra, e talvez eletrônica, e ainda existe outro que coloca ópera e ecrã. Peço desculpa, mas tenho que ser muito abstrato aqui. [risos]   

Masmorras, dragões e Hugh Grant!

Hugo Gomes, 30.03.23

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A legião de adeptos do homónimo jogo de tabuleiro poderão respirar de alívio perante a megaprodução deste novo “Dungeons and Dragons”, de forma a esquecer a primeira tentativa, em 2000, um pré-Senhor dos Anéis que ficou infame pelo desempenho caricato de Jeremy Irons (segundo o “mito”, o ator aceitou o papel para poder comprar um ‘castelo’). Porém, apesar do agrado e das suas potencialidades comerciais, “Honor Among Thieves” é um resquício daquilo que parece restar à indústria hollywoodesca cada vez mais órfã de filmes adultos, recorrendo à incentivação de novos franchises e o apelo à nostalgia.

Desta feita, os argumentistas de “Spider-Man: Homecoming” (John Francis Daley e Jonathan Goldstein, que também assinaram a realização da comédia “Game Night”) não tem mãos a medir do que criar um sucessor espiritual dos serões destes “freaks and geeks”, satirizando o seu lado 'tutoralesco' por entre masmorras intermináveis e antagonistas a saltar de qualquer esquina (e um dragão obeso … sim, um dragão obeso!). Depois de uma saturação do dito e dominante cinema de super-heróis (até à data, os recentes episódios das franquias de capa e super-poderes encontram-se estagnados no box-office), “Dungeons & Dragons: Honor Among Thieves” auto-voluntária-se em apontar o caminho a seguir, não é o mais “espinhoso” e arriscado, é somente o atalho feliz, sem chatices (Hugh Grant num papel de vigarista, é como peixe dentro d' água) e de pouca comoção.

Humor, fantasia (“rios” dela, sem imperatividades de mitologias próprias) e “brincadeiras parvas” pelo meio, ingredientes para a criação do filme-entretenimento, genérico e esquecível para o resto da História. Segundo Steven Spielberg, Tom Cruise e o seu “Top Gun: Maverick” salvaram a indústria, mas no fundo ela mantém-se a salvo na sua passividade. Voltemos a lançar os dados.

Na valsa com o chacal

Hugo Gomes, 25.03.23

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Comecemos pelos seguintes e básicos fact-checks:Nayola” tem como base uma peça teatral da autoria de Mia Couto e José Eduardo Agualusa, é um filme sobre a História recente da Angola, da Guerra Civil até à sua inquieta e frágil “democracia”, e acima de tudo, resume-se como a primeira aventura de longa-duração de um dos grandes “peões” da animação portuguesa - José Miguel Ribeiro (“A Suspeita”, "Estilhaços"). Todos estes elementos que vos deixo poderia antever-nos a uma produção mimada através da sua narração e quem sabe pela importância, quase pedagógica, em difundir um cenário histórico para quem, como muitos europeus, desligam-se da realidade africana em geral, reduzindo-a a pontos habitués de telejornal na hora de jantar. Poderia, mas não é especificamente essa alusão. 

Nayola” é um teste à sua própria técnica, até porque a animação portuguesa presta contas à sua cobiçada etapa, o formato de longa-metragem. Juntamente com “Demónios do Meu Avô” de Nuno Beato (composto por 80% de artístico stop-motion), estes são, algumas das primeiras obras de longa duração do seu género no nosso país (há quem debata para considerar “João Mata Sete” de António Costa Valente, Vitor Lopes e Carlos Silva como o pioneiro), porém, é fácil encontrar motivos logísticos na sua narrativa para que José Miguel Ribeiro reduzisse o seu todo numa somente curta, a opção da sua real natureza leva-nos a desfrutar a possibilidade e capacidade da sua estética, aqui alicerçada ao tempo como um brilharete técnico (o espectador é conjugado a sentir a respiração, os gestos e os olhares dos seus personagens, enquanto que a animação reage a esse tempo esculpido como um desafio da sua arte). Por isso, em jeito para totós, “Nayola” espremido não é mais do que um pequeno “conto”, e isso não o impede de conquistar o detalhe, de ajeitar a cadência, e de como evitar que o grafismo acalenta amarguras, ao invés disso são acentuadas essas mesmas dores (a carnificina, a degradação civilizacional, o infortúnio em eventos-irmãos que em tempos Ari Folman salpicou no seu esplendoroso "Waltz with Bashir”) . 

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Há um percurso em Nayola [a personagem] - mulher que procura o seu desaparecido marido na frente de batalha, deixando para trás  a sua filha nos cuidados da avó (mais tarde, o seu rebento, Yara, viraria rapper e ativista anti-regime) - que é convidativo a acompanhar-nos para lá do deslumbramento, encontrando neste formato visual uma alegoria ora humanista, ora xamânica, de existencialidade condensada do Homem como uma “má piada” atirada por entes divinas. Desta forma, como “ninguém volta da Guerra”, frase ouvida e ecoada tempos em tempo, ‘chocamos’ como  maquinistas sem comboio que aclamam o Fim do conflito no mesmo espaço-tempo com que apontam a direção do vento e o chacal, animal acostumado a guiar almas defuntas e perdidas no Antigo Egipto, adquire novo cargo nesta Angola bélica, servindo-se de “coelho carrolleano” (mas nunca atrasado), em que conduz a nossa acidental guerreira à sua enfeitiçada epifania. Facilmente este seria o (outro) País das Maravilhas o qual Alice se perderia, por entre chapeleiros-loucos a rainha de copas com ânsia em decapitar … poderia, mas a Alice aqui é outra, chama-se Nayola, filha da Guerra, e não tão afortunada como a ‘menina’ do famoso conto. 

A Guerra feita por Homens que de maneira alguma nada lhe serve, apenas os confunde - “Porquê que estás a lutar do lado errado? / Mas que história essa do lado errado?” - idêntico ao castigo proferido por Deus, lançado aos “construtores” da Torre de Babel, cada um com a sua língua, não-comunicativos e em desacordo inconsciente. Felizmente esta animação nos deixa respirar … e além disso, dá-nos tempos para conquistar e não saquear-nos. Valeu a pena esperar por “Nayola”, mais uma certidão de que a animação portuguesa sempre fora GRANDE, o país é que sempre fora pequeno. 

A crítica em marcha de retirada

Hugo Gomes, 25.03.23

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That’s what a critic is, not necessarily an expert or an authority, but a companion.A.O. Scott

Para muitos estes são os sinais do tempo, para outros as mudanças que vêm para ficar, sendo triste que tudo culmine numa gradual extinção de um cargo, ou mais que isso, num ofício de arte. Tenho debatido, quase incansavelmente, sobre o futuro e a possível natureza resiliente da crítica de cinema, e alguns e defensáveis gestos do qual proponho são ocasionalmente (vá, maioritariamente) incompreendidos como atos radicais (por exemplo, encaro as ‘estrelas’ e as respectivas pontuações como “cancros” e condicionadores do pensamento nesta forma). 

Entretanto, um dos veteranos críticos, A.O. Scott da The New York Times, decidiu abandonar o posto após 20 anos de ativo, e para justificar a sua determinada evasão, a plataforma lança este áudio [conversa preparada, digamos assim] em que explica os fatores que o motivaram a tal cisão. Entre eles, como é de esperar, a transformação do cinema “americano”, com a dominância de “franchises” (Marvel e Disney no centro das culpas, e não é por menos) e a "relevância" cultural ao streaming, como também o divorcio entre público e o Cinema propriamente dita, assim como zombies denominados de “fandom”, pouco democráticos por sinal. Há tanto por onde seguir e refletir, em Portugal, o que “resta” na imprensa especializada encontram-se nos seus “dias contados”, por exemplo, através da cobertura do último Festival de Berlim, no geral fraca, desinteressada em descobertas, ora por culpa dos órgãos que pouco espaço dão a este tipo de matérias, ora por responder a “interesses externos”, poderá ser servido como prova da “tese”. 

Saí do meio “especializado”, porque senti essa pressão, esse desinteresse, e de forma a não perder-me na “vulgarização” ou despersonalização decretei a minha "evacuação". Nesta minha experiência, o que percebi é que ninguém quer saber de Cinema, apenas os regentes "tentáculos" do seu marketing, e desta forma a reprodução e reprodução dos mesmos conteúdos. Encontro isso nos outros “órgãos”, cada um refém desses mesmos fatores.  São dores que parecem não interessar ao comum dos mortais (pudera, existe outros problemas mais importantes, dirão a maioria) e por vezes “falo sozinho” como alternativa em não aguentar as infelizes declarações de que a crítica de cinema serve exclusivamente “para levar as pessoas ao cinema” (não, simplesmente não, é mais que isso). 

A.O. Scott resumiu em 40 minutos de conversa esses Pecados, tão provenientes da crítica americana que se tem alastrado pelo resto do Mundo, e durante esse tempo confortei-me, por momentos, numa companhia agridoce. Não estou sozinho, apesar de constantemente sentir que estou a falar para o “boneco”.

Para ouvir aqui

Nova Iorque, dentro de horas

Hugo Gomes, 22.03.23

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Mais do que uma peregrinação ao mito, o género tem-se convertido em um constante debate na nossa sociedade, igualmente emancipando-se da consciência da orientação sexual. O cinema, muito dele aliás, alicerçou-se ao fervor da ideia, com vários a desafiar através das suas próprias concepções, uma ginástica e, por si, a diluição da questão de género, como por exemplo Bertrand Mandico (realizador assumidamente não-binário, um dos rostos do ‘Manifesto da Incoerência’) que executou brilhantemente em 2017 no sexualmente febril “Les Garçons Sauvages”. 

Mas outros não ostentam tamanha criatividade em trabalhar os géneros e distorcê-los perante as convenções cinematográficas, grande parte deles e infelizmente saídos de uma determinada escola à lá Sundance têm optado a via do panfleto, mensagens escancaradas na hipótese de “converter” um mundo para essa visão, sem sequer pensar nos cariz sedutor ou nas possibilidades, ora criativas, ora narrativas, que o cinema poderá trazer. Tem sido esse tipo de filmes que proporcionam certos ódios (diversas vezes mensurados) de alguns intelectuais e cinéfilos aos chamados “filmes de agenda”, quiçá sugestivo e redutor título que condena apenas e específicas agendas e não outras. No caso de “Mutt”, também ele saído dessa “tendência apropriada do famoso festival americano” e estreado na Europa através do Festival de Berlim (tendo recebido uma Menção Especial na secção Generation 14plus), a ótica é outra, pertinente e à sua maneira honesta. 

Vuk Lungulov-Klotz, realizador de origens chilenas e sérvias, e que se identifica como trans (aliás a sua carreira orbita sobre esse tema), recorre em 24 horas na vida de Feña (o ator de género neutral Lio Mehiel), homem-trans em plena transição que reside em Nova Iorque. Neste episódio quotidiano, o protagonista aguarda a chegada do seu pai, vindo do Chile, uma conservador “fantasma do passado” que o próprio terá que “esgrimar”, para além de ter reencontrado o seu ex-namorado na anterior “noite de copos”, e a acrescentar à equação o aparecimento da sua irmã mais nova que procura nele conforto familiar. “Mutt” coordena esta trajetória de auto-descoberta numa centrada malapata citadina, ao jeito dos irmãos Safdie, um choque entre acasos e infortúnios que irão culminar num preenchimento pessoal do seu protagonista, sem este se aperceber da sua epifânica jornada. Porém, a desilusão será o destino amassado, nada de repentinamente revelador nascerá daqui, os acidentais trilhos guiarão-lhe ao nada, a recompensa não mora aqui. 

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Lungulov-Klotz não reduz Feña ao vitimismo, nem sequer o banha na condescendência com que muitos retratam a minoria, e muito menos no privilégio cinematográfico (Rúben Alves, estou a apontar para ti), esta personagem é humana até à quinta essência e prova disso é a ambiguidade moral com que “cerra os punhos”, ora transversal nas constantes recaídas e ao mesmo tempo demonstrando resiliência em encontrar soluções que o valha, mesmo que “desenrascadas”, aos seus temporários obstáculos narrativos, mas, mais que isso, é a constatação da sua natureza naquela que é uma das mais subtilmente cruéis desconversas do recente cinema norte-americano: “Eu não te odeio por seres trans, mas sim por seres uma ‘besta’”.

Não podemos culpar o autor desta frase, o realizador não o permite, até porque em matéria de maniqueísmos, não é o padrão da pessoa que o condiciona para uma das “trincheiras morais”, e sim a sua experiência, dentro ou fora do seu género. Por um lado, podemos identificar-nos com essas “bestas”, encarar Feña como um revoltado de uma adolescência expirada (tentando lidar com a sua própria maturação enquanto ‘enfrenta’ a transformação), ou um desencontrado na sua compreensão. O que está entendido é o evidente carinho de Lungulov-Klotz pelo seu Feña (possivelmente há muito do realizador na sua criação) o leva a inseri-lo numa Nova Iorque sem personalidade.

Contudo, “Mutt” funciona como exercício tragicómico aliado à Lei Murphy e tem o trunfo de não se vender pornograficamente à mensagem [leia-se causas], até porque qualquer um consegue-se identificar com as dores do protagonista. Porque ao longo das nossas vidas, em algum momento, já nos sentimos deslocados do nosso lugar (no caso dele, é um “corpo” que não consegue interagir e isso traz uma pendor abstrativo à representação do “nosso lugar”).

Tudo em todo o lado ao mesmo tempo ... menos no cinema!

Hugo Gomes, 21.03.23

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Acredito na existência do grande ecrã, e com isso a defesa de que qualquer filme, indiferente da sua qualidade, merece o seu holofote, a projeção na tão adequada sala de cinema. Assim sendo, a “fava” calhou a Sam Mendes, que desde “American Beauty”, foram consecutivos filmes seus a conquistarem o seu habitat natural [o cinema], até mesmo os mais “pequenos” [“Away we Go”, que olhando em retrospectiva é seja talvez dos seus mais bem sucedidos]. Ironicamente, é com “Empire of Light”, uma obra sobre o Cinema enquanto sala e da “magia” emanada desta, a alcançar meramente o rastilho do desigual mercado VOD. Poderemos conformar com argumentos comerciais em avaliação de imensos factores, porém, é com tais pretextos que questionamos o lugar de quem garante a viabilidade dos títulos para sala comercial e de quem decide o seu destino, usando “videntismo” quanto à sua performance financeira? Se é bem verdade que “Empire of Light” não contém traços que o identificam como um “arrasa-quarteirões” no prisma português (nem no resto do mundo), também seria matreiro duvidar a sua potencialidade numa sala. Acredito até que faria mais ‘dinheiro’ do que alguns dos nomeados aos Óscares

Falando em Óscares, um fantasma sobretudo, aqui enquanto ponto falhado para Sam Mendes, que era visto como uma espécie de “darling” da Academia, e é fora dessa luz [uma nomeação, e somente a de Fotografia para Roger Deakins] que “Empire of Light” se apresenta a nós como um “patinho feio” na filmografia do realizador. Digamos, quase … Ambientado na Inglaterra da década de 80, este é um filme servido na segurança das suas ambições. “Oscar Bait”, como muitos acusam e com alguma razão, até porque “cartas de amor” ao Cinema soam manientos truques hoje em dia, mais, sabendo que Mendes não demonstra qualquer afeição por este “universo”, nem acena ao classicismo (até porque nunca fora desse registo) nem à memória cinéfila. 

É, como a personagem de Olivia Colman [a protagonista], que solicita ao projecionista do seu “Império” - “Eu quero ver um filme” - como se fosse a primeira vez. Mas não encontramos fascínio nos olhos de Colman, refletindo o pouco carinho de Mendes pelo legado, o que fizera (ao contrário de Spielberg e o seu The Fabelmans ou de maneira mais cínica, sem descartar o seu preito, Damien Chazelle) foi uma bandeja para agradar quem no Cinema não vê a sua espiritualidade, a sua transformação, terreno para lá do exibido na “parede”. 

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O “Império” desaba antes sequer de ser um. A artificialidade impera como seu Imperador, sintético e pintado na agressividade das suas luminosidades, as cores confundem-se no brilho do esplendor e da suposta magnificência, um “Edward Hopper” a deparar-se na luz a sua positividade (ou tragédia quotidiana filtrada). “Empire of Light” é tão reluzente que chega a ferir os olhos, literalmente e igualmente figurado, ostentando uma narrativa atabalhoada, de agendas encavalitadas em outras agendas de forma a conquistar o público desta contemporaneidade. Fala de saúde mental, xenofobia, racismo, meritocracia, privilégio, classes sociais, assédio sexual como laboral, misoginia, temáticas servidas como breves “snacks”, e o Cinema permanecendo em segundo plano ao longo deste cenário comunitário (Spielberg, por exemplo, usou o Cinema como via de relacionar-se com a família e Chazelle para incutir nela uma memória histórica). Nem sequer acompanha as tais tarefas hercúleas, repostas em tão pouco tempo. Desta forma, a vertente cinematográfica, a sala, a projeção e o espectador, o embalo que esse território que desejamos identificar, é somente relembrado enquanto epifania, como cura de algo, como na referida sequência.

E é aí que acontece o seu grande Pecado: no preciso momento em que o Cinema é tratado como medicinal, automaticamente deixa ser um “espelho" para as nossas vidas e assume como um produto com prescrição, para um determinado uso e um dito propósito. E a cinefilia é toda uma paixão, não-correspondida por sinal, não um abuso de Poder. Sam Mendes abusou do Cinema para um objetivo apenas, e não o de criar novos laços. 

Todavia, nada disso impede que “Empire of Light” não mereça a sua devoção no devido lugar, ao invés disso é olhar para uma suposta fábula sobre Cinema no conforto do Lar. Só eu é que vejo alarmante este gesto?

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