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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Pedro Henrique: "Se não nos dedicarmos a subverter e a transformar o mundo, de que é que vale a pena?"

Hugo Gomes, 31.01.23

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"Frágil" (2022)

Chegamos ao tão pretendido *Club*, a ambição acima do humanamente possível que o protagonista Miguel (Miguel Ângelo Santarém) deseja concretizar, como último desejo da sua juventude de abanões e abandonos. Esta é a premissa, ora rasurada, ora minimizada de “Frágil”, um dos mais falados filmes portugueses de 2022 (graças aos protestos na sua sessão de apresentação no Indielisboa), a primeira longa-metragem de Pedro Henrique (sob o nome artístico de João Eça), que marca presença no calendário de estreias comerciais no primeiro mês de 2023. 

Convidado pelo Cinematograficamente Falando … para responder a algumas questões sobre a sua obra, sobre a sua órbita e sobre o estado formal e intelectual do cinema poruguês, eis as suas respostas e quiçá, statements

Gostaria de iniciar, não como uma questão limitada à génese deste projeto, mas dando uma festa ao “elefante na sala” [o protesto na sessão de apresentação do “Frágil” no Indielisboa e no Festival de Turim], como tal gostaria de fazer a pergunta desta maneira: o que pretende atingir com o seu projeto?

Nunca é demais lembrar a máxima que diz que o processo é mais importante do que a meta. Na verdade, só há uma “meta”, no sentido em que falamos de um “fim”, porque vivemos num sistema que nos dita que as coisas têm, forçosamente, de acabar. Ou seja, o “fim” ou a “finalidade” não são existências ontológicas do mundo, são sim efeitos políticos e performativos do discurso e das nossas práticas. 

É perfeitamente possível imaginar um mundo alternativo em que umx cineasta poderia trabalhar num filme o tempo que quisesse, justamente porque não haveria estruturas nem instituições económicas e políticas que estabelecessem e/ou regulassem os seus poderes através da performatividade da meta e do prazo: “tens de acabar isto até dia X, senão vais fora!” Ora, esta lógica do poder só existe, no fim de contas, fruto dos mecanismos de competição que devem definir xs vencedorxs em prole dxs vencidxs (é justamente porque vivemos num sistema de vencedorxs a que chamamos o capitalismo que devemos competir a todo o custo). A competição (em primeiro lugar económica, mas não só) entre indivíduxs (isto é, entre átomos sociais) veio substituir outros tipos de hierarquização e distribuição do poder: a linhagem de sangue e o sistema de vassalagem feudal, por exemplo; os sistemas de castas; certas práticas religiosas de beatificação ou canonização…

Foi justamente contra esta ideia de competição que dirigimos o nosso protesto-performance no IndieLisboa, ou seja, contra o facto de os festivais de cinema nos obrigarem a competir contra xs nossxs amigxs e colegas de profissão(e não apenas de forma directa e violentíssima, como também tornando essa competição num espectáculo performativo de massas). Mas, para além desse facto mais evidente ao qual nos opusemos de forma clara no nosso discurso e ações, há outras coisas (também elas fruto da competição) que temos criticado para nós mesmxs com veemência: por exemplo, toda a pressão que implica termos de estar ali, naquele momento de apresentação do filme, com um objecto absolutamente terminado que deve ser considerado melhor que os outros. O que a competição e a lógica da vitória produzem é a quase total obliteração da liberdade de experimentação, do erro, da criação partilhada, do trabalho que dure no tempo, da possibilidade da crítica construtiva, da reformulação dos projectos... 

Segundo a regra da competição tudo deve estar pronto o quanto antes, e o melhor possível, claro! Esta pressão do tempo é intrínseca ao capitalismo, porque é de uma verdadeira corrida que se trata. Ora, o que temos pretendido atingir com o nosso “projecto”(como lhe chamas) é, tanto quanto possível, não fazer disto uma corrida. Tomar o tempo necessário (o tempo justo, diria mesmo), seja esse tempo de seis meses ou seis anos. E ir pensando em cada fase do processo (à medida que o próprio processo se vai desenrolando) para que possamos tomar, com calma e justiça, as decisões que nos deixem num espaço político e artístico confortável. É evidente que algumas destas decisões são de uma enorme complexidade: por exemplo, queremos estrear o filme comercialmente, ou não queremos? E se queremos, estamos dispostxs a estreá-lo em qualquer cinema, ou queremos escolher o “tipo” de sala? Quais as implicações políticas em estrear um filme (sobretudo um filme como o nosso) num multiplex, provavelmente situado dentro de um centro comercial e que o público irá consumir da mesma forma que consome fast food ou um produto estandardizado de supermercado? Etc., etc., etc. 

As perguntas, as dúvidas e as decisões, claro, são infinitas. Mas temos de fazer o esforço (político, ético) de ir tentando respondê-las uma a uma, mesmo que muitas vezes possamos não estar inteiramente certxs das respostas. Assim sendo, a minha resposta à tua pergunta é esta: o que pretendemos é adquirir o máximo de controlo sobre o nosso filme e sobre o seu destino e isso envolve preocuparmo-nos menos com uma qualquer meta final e mais com o processo e a forma como ele é conduzido. Talvez não tivéssemos esta consciência quando começámos a rodar o filme (eu pelo menos não tinha), mas foi algo que fomos adquirindo com o processo de o fazer e, sobretudo, de o mostrar.

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“Greed'' (Erich von Stroheim, 1924)

Este processo envolve não só a forma como lidamos uns e umas com xs outrxs (as pessoas que trabalharam no filme), mas também a forma como lidamos com as instituições. Os nossos protestos no Indie ou em Turim falam por si mesmos: não só queremos dizer um “NÃO” à competição e ao elitismo dos festivais como também queremos aproveitar o momento de visibilidade que implica estar em cima de um palco a apresentar um filme para denunciar a violência subjacente ao “fazer-cinema” em Portugal (e no mundo, claro, mas a nossa realidade é sempre a que conhecemos melhor). Uma coisa que se tem tornado muito evidente para mim é que os filmes, de certa maneira, se tornaram numa espécie de traição ao próprio cinema. Ou seja, justamente porque olhamos para os filmes como objectos fechados (e por isso finalizados; o que é a mesma coisa que dizer: como fins em si mesmos) tendemos a esquecer todo o processo que existiu por detrás: isto é, todo o esforço, toda a injustiça, toda a exploração. 

O cinema, dada a sua dimensão industrial, é uma arte especialmente violenta e o cinema clássico (americano e não só) tentou esconder isso a todo o custo: a permanente associação do cinema ao sonho, as mitologias por detrás das grandes stars de Hollywood, as narrativas heróicas e escapistas, os happy endings... Mas por detrás disto tudo temos o Irving Thalberg a remontar o “Greed”, do Stroheim, de 8 horas para 2 horas e meia; temos a Judy Garland medicada (barbitúricos, anfetaminas, sabe-se lá mais o quê) pelos próprios estúdios para perder peso e ter energia; e, claro, todxs xs tarefeirxs anónimxs a trabalharem em dias de 11 horas, com 1 folga por semana, a filmarem durante 3 meses fora da sua cidade, senão mesmo fora do seu país (são estes os horários de trabalho no mundo do cinema neste nosso Portugalinho de hoje em dia...). 

De alguma forma, habituamo-nos a que os filmes invisibilizassem o próprio cinema, isto é, a forma como se faz cinema. Ou seja, o objecto-filme esconde ou dissimula o processo-cinema.Por isso, poderíamos mesmo dizer que cada filme é uma espécie de mentira sobre a forma como foi feito: uma verdadeira traição! Há poucxs realizadorxs que procuraram dar a volta a isso (Godard é, sem dúvida, um delxs, especialmente no período Dziga Vertov). Acho que o que tentámos fazer com os nossos protestos foi tornar visível esta violência que geralmente é invisibilizada, isto é, tornar essa violência num assunto público. Mais do que fazer bons filmes (isto é, objectos “finais”, perfeitos ou imaculados, portanto,objectos que sejam um resultado ou uma meta em si mesmos) queremos transformar os processos de fazer cinema. E não vejo como poderia ser de outra forma. Porque, no fim de contas, o cinema é muito mais importante do que os filmes.

Mas quanto aos protestos, e sabendo que hoje [com a estreia do filme em circuito comercial], será difícil dissociar a sua ação do filme. Publicidade gratuita? Ou uma maldição para o mesmo?

A ideia de que aquelxs que protestam são “uns ou umas desesperadxs em busca de atenção” é uma ideia muito comum entre gente mesquinha e sem grande horizonte de sentido (crítico e sobretudo autocrítico). Ora, curiosamente, umas horas antes de responder a esta entrevista estive a ver o vídeo do protesto da Keyla Brasil, artista trans e prostituta que interrompeu a peça “Tudo Sobre a Minha Mãe”, no Teatro São Luiz, denunciado o facto de uma das personagens trans ser interpretada por um actor cisgénero (dessa forma ocupando o palco de um dos teatros mais famosos de Portugal enquanto ela e outras artistas trans têm de se prostituir na rua para conseguirem sobreviver economicamente). Ora, no post de Facebook da página do Expresso (como sabemos, um jornal de direita) era assustador reparar (para além da falta de sensibilidade e evidente transfobia dos comentários) no quão frequentemente se atacava o protesto da Keyla pelo ângulo do mediatismo. Basta citar alguns desses comentários:

«A julgar pelos contornos e desenvolvimentos do episódio, sou levado a crer que toda esta situação foi "armada" para publicitar a peça teatral em questão. Nos dias de hoje, o marketing pela polémica tem muita força e alcance.»

«5 min de fama!!!!! Pior é quem dá crédito a isto.»

«Um mero golpe publicitário. Já que a peça é o que é...e o público anda desinteressado...»

Numa sociedade onde a purga do conflito se tornou um imperativo moral (tout va bien, como diz o título de um filme do Godard) qualquer sobressalto, crítica ou disrupção será visto como um “chamar à atenção”, ou seja, como um golpe publicitário ou de mediatismo. Na verdade, quão mais se insiste na ideia de que o importante não é o conteúdo crítico, mas sim o gesto (individualista, narcísico, etc.) dx performer que comete o acto disruptivo, mais atenção se dá a estx últimx. Ou seja, aquelxs reaccionárixs que pretendem desmontar o interesse (supostamente cínico)de quem fez o protesto acabam por contribuir para a causa que criticam: ou seja, não param de chamar a atenção sobre a figura do performer, mesmo quando pretendem o contrário. Ora, a meu ver, essa “publicidade gratuita” (citando atua pergunta) é absolutamente irrelevante perante a dimensão do protesto. O que importa que o nome de Keyla Brasil seja agora conhecido por mais algumas centenas, senão mesmo milhares de pessoas? O que importa é a dimensão, ou o conteúdo,implicado pelo seu gesto e creio que ela estava absolutamente consciente dessa dimensão (política, estética, histórica, performativa...). 

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A atriz trans Keyla Brasil interrompendo a peça "Tudo Sobre a Minha Mãe" no Teatro São Luiz, em protesto à representação "trans" do espectáculo / janeiro de 2023

O resto (o mediatismo) vem logicamente por acréscimo e será sempre tão instável como qualquer ideia de sucesso ou de fama ao longo da história da humanidade (pode durar 5 segundos, 5 anos ou 5 séculos...). De qualquer modo, quem somos nós para dizer que Keyla Brasil não merece agora um pouco mais de reconhecimento, diríamos mesmo, um pouco mais de “publicidade”? Não foi o gesto dela muito mais artístico do que qualquer coisa que em muito tempo tenha estreado no São Luiz? Porque segundo esta lógica retorcida do ressabianço daquelxs que integram o status quo, uma performer merece sucesso e reconhecimento se estrear uma peça num palco de renome e se xs críticxs forem lá dar muitas estrelinhas (cumprindo assim toda a expectativa normativa, institucional e burguesa em torno do “fazer-arte”), mas uma performer que faça um gesto verdadeiramente artístico (porque verdadeiramente disruptivo e político) como o de Keyla Brasil, aí só está à procura de publicidade gratuita?!! Ora, para quem quer que ocupe lugares de visibilidade para fazer protestos políticos, sejam eles o palco do Indielisboa, do São Luiz ou o Ministério da Habitação (por exemplo, em várias acções em que participei ao longo dos anos com o colectivo Stop Despejos), é evidente que o mediatismo é um factor importante. 

À partida, diríamos que ninguém faz um protesto para que ele morra no momento em que acontece. Mas daí a extrapolar para uma espécie de oportunismo parece-me apenas uma contra-estratégia muito baixa (e muito fácil) por parte de quem não é capaz sequer de criticar o conteúdo político do protesto em si. Quando os meus filmes não tinham estreado em nenhum festival e eu passava a vida a criticar a competição e o mundo do cinema, havia quem me chamasse ressabiado porque ainda não tinha tido nenhum sucesso (do tipo: “ele só diz mal dos festivais porque os filmes dele nunca foram seleccionados para nenhum”). Agora que um dos meus filmes, este “Frágil” de que aqui falamos, de alguma forma foi “reconhecido” pelo sistema, há quem venha questionar (como na tua pergunta) se o nosso protesto não foi publicidade gratuita... 

Bom, o que isto quer dizer é que não podemos ter nenhum gesto político hoje em dia porque há sempre alguém que vem dizer que ou somos ressabiados (porque ainda não fomos aceites pelo sistema) ou somos oportunistas (porque estamos a usar a crítica ao sistema para entrar no próprio sistema, ou seja, para nos valorizarmos)! Se calhar devíamos passar menos tempo a tentar rebaixar ou desmascarar aquelxs que ousam criticar o status quo e dar mais atenção ao conteúdo das suas críticas, que é o que realmente importa.Mas é sempre mais fácil a tentativa do rebaixamento pessoal... especialmente para quem não tem muito jeito para a argumentação política ou para quem ao longo da sua vida muito pouco tem feito para mudar seja o que for.

Quanto à segunda parte da pergunta, não percebo em que sentido é que o protesto poderia ser uma maldição para o filme. O protesto é, na verdade, um prolongamento necessário do próprio filme e dos seus temas mais evidentes: ora, troque-se o “Club” do filme por um festival de cinema e o resultado político é mais ou menos o mesmo.

“Frágil” foi automaticamente apelidado de “OVNI no Cinema Português” pela crítica antecipada e pelo público recorrente do Indielisboa, este termo provoca-lhe alguma “aflição”? Ou é um sintoma de uma cinematografia que durante anos envolve-se nos mesmos temas, estéticas e pensamentos? O que realmente pensa do cinema português atual?

Ser um OVNI é sempre bom. Significa que não estamos a seguir uma manada, para usar uma expressão muito bonita do Saramago. Sobre o cinema português, acho que há pouca gente que esteja realmente a experimentar novas formas cinematográficas: ou fazem-no durante um tempo, quando são jovens, antes de se acomodarem ao sucesso e às fórmulas que “resultam” (porque vendem, porque dão boas críticas, porque dão prémios: veja-se o caso do Pedro Costa, de quem gosto muito de alguns filmes, mas que já não é capaz de arriscar em nada, portanto, que já não é capaz de mudar a própria “fórmula” segura que encontrou com o tempo). Contrapomos o “cinema de autor” ao “cinema mainstream”, o que é uma forma fácil de evitar grandes questionamentos sobre como mesmo a “autoria” está sujeita à reprodução acrítica de fórmulas, de tiques, de maneirismos. O facto de haver certas linguagens ou certas formas de fazer cinema que “vencem” (por exemplo: o cinema do Oliveira, do Pedro Costa, do César Monteiro) faz com que surjam uma série de imitadorxs menos interessantes. Não digo que essa “imitação” seja consciente, até pode não ser, mas o que ela revela é que acabamos por nos subordinar, ainda que inconscientemente (o que até é mais perigoso, de certa maneira), aos modos vitoriosos de fazer cinema, isto é, aos modos que triunfam nos festivais, na crítica, etc. Mas sobre a questão que falava a propósito do cinema tardio do Pedro Costa, é muito frequente que quando umx cineasta faz um ou dois ou três filmes aclamados se acomode de repente a esta coisa tão fácil que é fazer pastiches do seu próprio cinema. 

É como se umx cineasta já não tivesse nenhum objecto de reflexão ou de interesse a não ser uma ideia formatada do que deve ser o seu próprio cinema, como se não pudesse senão repetir ad infinitum aquele filme ou dois que o tornaram famosx. Neste caso, já não são cineastas a imitar outrxs cineastas, mas cineastas a imitarem-se a si mesmxs (basta ver os filmes mais recentes do Tarantino ou do Woody Allen, óptimos exemplos desta decadência para o pastiche quase caricatural da própria obra de umx realizadorx). Há alguns e algumas cineastas portuguesxs de que admiro os primeiros filmes, mas que depois cedem a esta pressão “maneirista” de se repetirem (e de se esvaziarem) até à exaustão.

Fora estas questões mais estéticas (mas que em todo o rigor também são profundamente políticas), o que me deprime mais é o elitismo e o tribalismo do fazer cinema em Portugal. Há uma fragmentação muito grande das produtoras e é muito difícil conseguir os grandes financiamentos do ICA (porque são demasiado poucos). Por isso, as produtoras só apostam em projectos de alguém que já tenha um certo currículo: ou seja, ganho um prémio, circulado em vários festivais, recebido este ou aquele financiamento. Isto conduz-nos a um ciclo vicioso: precisamos de financiamento e de uma produtora para fazermos um filme, mas, veja-se o paradoxo!, o financiamento e as produtoras só vêm se já tivermos (não se sabe bem como) arranjado forma de fazer um filme antes (e, claro, se ele tiver tido algum sucesso!). Ou seja, para conseguirmos fazer um filme de maneira convencional (isto é, com financiamento, produtora e com possibilidade de pagar decentemente à equipa e actores ou actrizes...) temos de já ter um BOM (seja lá o que isso for...) filme para exibir no currículo. Ora, como é que se sai deste imbróglio? Anda-se seis anos a fazer um filme sem financiamento e quase sem dinheiro, com a boa-vontade de um grupo de amigxs e colegas de profissão, esperando que um dia se consiga acabar o filme e que alguém tenha a paciência de lhe dar um pouco de atenção. 

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"Frágil" (2022)

Aconteceu com o “Frágil”, é verdade, mas conheço casos de filmes maravilhosos (que demoraram 5 anos a ser feitos) e que não tiveram a mesma sorte no processo de distribuição (ou seja, que praticamente não foram vistos em festivais, nem tiveram estreia comercial, nem sequer qualquer atenção por parte da crítica...). O processo de começar a fazer cinema depois de sairmos da escola é especialmente ingrato, violento e muitas vezes desesperante. Há muita gente que faz um filme e depois desiste, há mesmo quem não chegue a fazer nenhum.Por outro lado, aquelxs que triunfam tornam-se nas divindades bem-apetecidas das produtoras, sobretudo porque o ICA valoriza de forma absurda o currículo dxs realizadorxs, em vez de se focar na proposta artística dos projectos, como acontece com os outros financiamentos de menor escala (GDA, Gulbenkian, SPA). 

Isto conduz a um fechamento das produtoras nestx ou naquelx realizadorx e só contribui para aumentar o tribalismo e o exclusivismo, bem como a lógica atomista da competição. Resultado: o cinema português (de sucesso) resume-se a estx (grande) realizadorx a competir contra aquelx outrx (grande) realizadorx, cada umx delxs apoiadx pela sua produtorazinha mascote... Já imaginaram o que seria se um puto saído da Escola de Cinema se virasse para o Pedro Costa e lhe dissesse que queria corealizar um filme com ele? O Costa nem lhe respondia: virava-lhe a cara e fechava-se outros seis anos a fazer o seu próximo filme numa solidão quase masturbatória. E, no entanto, o que é que há assim de tão estranho nesta ideia? Quer dizer, de que miúdxs e graúdxs pudessem colaborar uns e umas com xs outrxs. De que não houvesse esta divisão absurda entre o sucesso e o insucesso, entre a experiência e a falta dela. Vivêssemos nós num mundo onde a cooperação e a solidariedade fossem a norma...

Em 6 anos de concepção de “Frágil”, sentiu que durante esse período a noite lisboeta e dos noctívagos “transformaram-se” (não referindo apenas ao contexto pandêmico)? Que o retrato, mesmo que meio abstrato e satírico desse mundo nocturno, é hoje reconstituição histórica do seu filme? Ouvi após uma sessão de “Frágil” que os “afters” já não existem mais, apenas os resquícios … 

As minhas ressacas são a prova de que os afters estão tão vivos quanto antes. A noite de Lisboa mudou muito, é verdade... os afters não diria tanto. O que posso dizer é que dantes o meu grupo era mais afunilado, basicamente a malta toda que aparece no filme e mais umas quantas pessoas. Também o que é certo é que na altura conhecia muito menos gente (na verdade, comecei a sair à noite “a sério” em 2015 e o filme foi filmado em 2016/2017: foi tudo muito rápido, muito vertiginoso). Hoje dou-me com mais grupos distintos, por isso é evidente que algumas coisas mudaram nas dinâmicas sociais. Mas o core (dos afters) continua o mesmo. Quanto à noite em si, creio que a pandemia veio piorar a situação toda. Houve espaços que ficaram em grandes dificuldades financeiras com os lockdown se por isso se viram forçados a aumentar os preços de entrada: espaços onde o acesso era gratuito e onde agora se paga um valor à porta, ou espaços associativos onde a quota subiu exponencialmente de preço. 

Outra coisa que aconteceu foi alguns espaços terem mantido os horários pandémicos e agora fecharem às 2h ou mais cedo em vez de fecharem às 4h, como antes da pandemia. O que isto significa é que a oferta geral (sobretudo a preços acessíveis) diminuiu bastante e, em contrapartida, os espaços foram invadidos por turistas. Havia lugares que dantes eram “meeting points” e que agora deixaram de o ser. A cidade ficou com uma energia meio centrífuga e dispersa, não sei, parece meio deserta às vezes. É preciso ir-se para a porta do Lounge para tentar encontrar alguém... E é evidente que se arranja sempre alguma coisa, mas lá está, muito mais em casas de amigxs do que propriamente na noite. 

Festas fixes há muito poucas: os espaços fecham cedo, estão mais caros, cheios de turistas e a malta já não vai lá como antigamente.É uma espécie de gentrificação da noite que não passa necessariamente pelos espaços fecharem, mas pela sua reconfiguração, encarecimento e turistificação. O que é bastante triste, na verdade. E pronto, lá continua o “Club” de Lisboa, à beira rio, hegemónico como sempre...

Há um outro filme português - “Verão Danado” de Pedro Cabeleira - que fora das suas “festividades” e “viciosos néctares" [álcool, drogas, e mais] contemplamos uma juventude no seu limite, mal-amparada, precária e sem sorrisos guardados para o futuro. Encontrei isso no seu filme, excepto a “juventude fora-de-prazo”, mas esse silencioso desespero de esbarrar num “beco sem saída” e cujas festas e seus ingredientes servem de escapismo. 

Apesar das inspirações ao Cinema dos Safdie e do Korine que o filme tem suscitado entre os demais, é certo, que reprova esse cinema como sua influência, tendo em conta as entrevistas dadas nos mais diferentes órgãos, o qual responde com muito do clássico e fora da entropia juvenil e febril que associamos a muita produção atual.

O cinema contemporâneo interessa-me pouco. Um dia, com mais tempo, hei-de escrever algo sobre isso, mas assim esquematicamente creio que uma série de fatores históricos e políticos vieram um bocado arrumar com a “sétima arte.” Não se trata de dizer que “antigamente é que era bom”, isso é um discurso reacionário para o qual não tenho paciência. Mas a ideia oposta (de que as coisas nunca mudam, de que é sempre tudo bom) é uma ideia que recusa a própria noção de História (e, por isso, de transformação do mundo). Ou seja, a meu ver, há de facto momentos e períodos específicos da história humana que permitem e permitiram certos acontecimentos estéticos, formais e, sem dúvida, inovadores. 

O cinema soviético dos anos 1920 é qualquer coisa de inigualável: um momento maravilhoso para a humanidade! Mesmo o clássico americano (mas também o francês, por exemplo), com toda a sua formatação e aparente simplicidade produziu alguns dos filmes mais arrebatadores da história do cinema (é preciso não esquecer que, fruto do nazismo, houve centenas, senão milhares de realizadorxs, técnicxs e actores/actrizes que fugiram da Europa para o core do studio system americano: basta mencionar o caso de um dos meus favoritos de sempre, o Fritz Lang!). Ou seja, o clássico americano, por causa de um acontecimento histórico (o nazismo e a segunda guerra mundial), foi invadido pelo “crème de la crème” do cinema europeu de vanguarda (pelo que o clássico nunca foi, em todo o rigor, inteiramente clássico...). 

Mas regressando ao cinema contemporâneo: acho que o cinema está cada vez mais formatado pelas linguagens televisivas e agora pela internet; mas, sobretudo, acho que o começo do reinado do blockbuster nos anos 1970/1980 veio destruir esta merda toda. A lógica no interior do studio system sempre tinha sido a do dinheiro, é verdade, mas ainda assim havia uma competição (mesmo entre os estúdios) que era também ela artística. Isso perdeu-se com os rios de dinheiro que os blockbusters começaram a fazer, mas principalmente porque o tipo de filme que dá dinheiro se modificou e se veio a focar cada vez mais na lógica do efeito especial e do estímulo sensorial imediato. 

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"After Hours" (Martin Scorsese, 1985)

Paradoxalmente, ao mesmo tempo que o “efeito” (e não o drama, a narrativa ou a forma) se tornou preponderante sobre tudo o resto, os filmes não pararam de ficar mais realistas. Uma verdadeira seca: filmes cheios de monstros, mas onde tudo é o mais real possível... O realismo (ou a convenção do que é o realismo) implica a destruição da arte. Vivemos uma crise da imaginação e poderia escrever páginas sobre isto, mas de forma muito resumida acredito cada vez mais que quão menos a imaginação for estimulada, menos opções ou alternativas a este sistema vão surgir. Tudo isto é profundamente político, portanto: refiro-me à ditadura do realismo (que não é apenas um realismo artístico ou estético, é todo um sistema ideológico a que o Mark Fisher chamou “realismo capitalista”). Nos anos 1930, ’40 e ’50 havia cinema mainstream bom, isto é, a produção dominante era muitas vezes desafiante, arrojada, crítica, estimulante (e isto apesar de toda a censura, formatação, etc.). Hoje em dia isso não acontece. Claro que há cineastas que me interessam, mas é quase impossível ver os filmes delxs. 

Falando sobre o caso americano: onde é que eu consigo ver um filme da Deborah Stratman ou do Jon Jost numa sala de cinema? Tenho de esperar que a Cinemateca se lembre de fazer uma retrospectiva... Mesmo "sacar" os filmes desta gente é difícil, às vezes impossível. Resultado: raramente vejo um filme contemporâneo que me interesse. Os que estreiam no cinema são já formatações do que deve ser o cinema “sério”, de autor, o cinema que resiste ao mainstream. Mas também isso é já uma produção industrial, ou seja, uma reprodução de uma ideia dominante e burguesa de fazer cinema. Filmes de festivais, poderíamos dizer. E a maioria deles mais secas realistas. Não tenho paciência... Dêem-me os lagos do James Benning.

Ora, como já disse noutros lados a comédia musical, a paródia e o slapstick foram os géneros ou estilos “clássicos” que inspiraram o “Frágil”. Mas falar em clássico é sempre enganador porque, justamente, estes géneros (ou estilos) eram os mais disruptivos (o musical porque fazia suspender a narrativa, mudava a função dos objectos ou introduzia a abstracção do gesto coreografado, entre tantas outras coisa, claro; o slapstick porque fazia emergir as situações mais absurdas e disruptivas no interior da expectativa dramatúrgica; etc, etc, etc.). Estou a simplificar tudo isto, como é óbvio, podia escrever um livro sobre a radicalidade da comédia musical no interior da formatação do studio system. O que quero dizer é que aquilo que me inspira no clássico é justamente o quão moderno ele consegue ser. 

Vivemos na pós-modernidade (peço desculpa pelo chavão) e por isso não posso deixar de me interessar pelas zonas de intersecção, ou seja, por tudo o que ponha em causa os dualismos fáceis e as oposições confortáveis. A comédia musical situa-se numa zona de intersecção entre o clássico e o moderno. Creio que é esse o território que o “Frágil” ocupa, porque esse é um território necessariamente lúdico, de experimentação entre várias formas e modelos. E o mundo que nos propomos a filmar é também ele um mundo lúdico, um mundo de intersecção entre várias oposições: a noite e o dia, a festa e o mundo das obrigações, o imaginário (infantil) da brincadeira e a expectativa (adulta) da normalidade… No after, tal como na comédia musical, a “narrativa” (dominante) é suspensa temporariamente e podemos dar asas a um mundo onde tudo pode ser reconfigurado. A citação da Alice no País das Maravilhas (o guarda-roupa do Miguel na cena dos ácidos) não é por acaso... 

Ora, um musical em ácido em que descemos cada vez mais fundo pela toca do coelho da Alice, não é isso que são os nossos afters? 

(Espero que sim, senão é porque não andam a ter afters de jeito.)

Senti em “Frágil” um espírito muy “After Hours” de Scorsese, ambos os filmes seguem a simples premissa de uma tarefa aparentemente fácil (no filme de 1985 o protagonista apenas desejava regressar a casa, aqui, o desejo de ir ao *Clube*), mas impossíveis de serem executados devido a um intenso malapata. Pertinente, gostaria de trazer à tona a longa gestação desta obra com esse conceito de tarefa “impossível”…

O filme do Scorsese é, sem dúvida, uma influência. Embora com o passar do tempo vá gostando menos do filme, confesso que acho a premissa extremamente sedutora. De qualquer forma, esta concentração temporal da narrativa numa única noite ou, pelo menos, num bloco aparentemente sequencial não é uma invenção do Scorsese. Mas é algo que funciona extremamente bem neste registo alucinado pois, como é evidente, a sucessão de peripécias é ainda mais acentuada quando o tempo aparece concentrado ou, pelo menos, o mais contínuo ou linear possível. Nesse sentido,para mim sempre foi bastante claro que a ação do “Frágil” deveria decorrer no seguimento de uma única saída (estendida, como acontece muitas vezes, ao longo de um fim-de-semana inteiro...). 

Sobre a ideia do filme como tarefa impossível, creio que o que (quase) impossibilita (ou poderia ter impossibilitado) a concretização do mesmo é este sistema doentio que montámos para nós mesmxs. Um sistema de elites e de exclusão, de vencedorxs e de vencidxs, de frustradxs e de invejosxs, de gente sozinha com os seus filmezinhos. O cinema devia ser uma festa, uma coisa colaborativa e de aprendizagem mútua, uma forma de nos relacionarmos com e de transformarmos o real. Em vez disso, tornou-se numa coisa de egos, de competição, de narcisismo e de solidão. E de alienação, no fundo. Estamos separadxs uns e umas dos outrxs. Mais impossível que acabar um filme, é superar esta separação fundamental. Ou seja, reconfigurar toda a forma como fazemos cinema.

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"Frágil" (2022)

“Acho que é preciso corroer a academia a partir de dentro”, disse numa entrevista à “À Pala de Walsh”, acrescentado que se encontra no meio de um doutoramento. Deseja ser professor para subverter e desafiar os próprios moldes acadêmicos? Acha possível o fazer num futuro próximo? 

Se não nos dedicarmos a subverter e a transformar o mundo, de que é que vale a pena? Quero muito vir a dar aulas porque apesar de estar muito consciente da estratificação e da rigidez da academia acredito bastante no poder de umx professorx, não enquanto figura autoritária, mas enquanto figura de autoridade (autoridade no sentido descrito pela filósofa Marie-José Mondzain no seu livro “Homo Spectator”: a autoridade, distinta do poder, seria uma forma de reconhecimento: por exemplo, x alunx que reconhece a sapiência de umx professorx e que quer, de forma voluntária, aprender com elx; e isto é uma coisa bastante distinta da forma disciplinar como funciona a academia e a relação com o ensino e xs docentes). 

Por mais que possamos ter detestado a escola ou a faculdade creio que toda a gente teve pelo menos umx ou mais professorxs que nos cativaram (pelo menos eu tive). Às vezes basta umx para mudar a nossa vida. Apesar do meu cinismo e descrença relativamente às instituições, acredito neste poder tão humano que é o de uma pessoa querer aprender com outra. E acho que, nesse sentido, umx bom ou boa professorx pode ser capaz de criar na sala de aula uma zona temporária autónoma, para usar a expressão do Hakim Bey, ou seja, uma zona onde as hierarquias são suspensas ou contornadas e onde as estruturais institucionais podem, e devem, ser questionadas. No fundo, acredito que uma sala de aula pode constituir-se como uma bolha à parte, ou à margem, no core mesmo da academia. Posto isto, quero demorar o meu tempo a terminar o doutoramento, não tenho pressa de me tornar professor já. Tenho muita coisa para aprender eu mesmo, antes de assumir esse papel. E quando o fizer, quero fazê-lo bem feito. Se calhar na altura vou ter de aprender a fazer menos afters. Vamos ver.

Gostaria que me falasse sobre o “We Live In Fear”, o qual tem declarado em diferentes meios como o seu “primeiro filme com um financiamento a sério”?

Se falar agora sobre o filme, depois perde a piada! A paciência é uma virtude. A única coisa que posso adiantar é que, tal como o “Frágil”, vai demorar o seu tempo. E ainda bem.

Hollywood, o jardim suspenso da Babilónia

Hugo Gomes, 23.01.23

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Dias de loucura. Festas intensas com um improvável “amanhã” em consideração. Uma orgia vinculada em poder, luxúria e fantasia, esta, projetada em consensuais sonhos de glória - é com tais imagens que respondemos aos tempos pré-código hayes - a balbúrdia do oeste, onde a película serve de impressão para os projetos fabulados, os filmes, o Cinema, essa dimensão do imaculado. Quero acreditar que o Cinema, não a instituição, e sim a Ideia concentrada, encontra-se acima do seu próprio processo de fabricação. Transferindo a “linguagem” para as outras artes, não demonstramos o mínimo interesse em saber, por exemplo, com quantas pinceladas “As Meninas” de Velázquez foi concebido, ou com quanto tempo levou a ópera “Il sogno di Scipione” de Mozart a ser composta, ou com quantas marteladas o “David” de Michelangelo foi moldado (acrescentar ainda “de que forma”, e de que método), por isso, porquê esperar do Cinema a apreciação da sua trajetória ao produto final, ao invés de contemplar somente o Filme? 

O resultado excede a toda essa manufatura, ao making off (voltamos à “linguagem” cinematográfica), logo “Babylon” de Damien Chazelle (“Whiplash”, “La La Land”), um caos controlado e igualmente raivoso reverte-se num processo menor em comparação a tudo aquilo que ele defende, em jeito epifânico, o Cinema como algo maior que a nossas próprias vidas. Deste filme, com mais de três horas de duração, consigo reter duas sequências importantes dentro dos seus excessos e dos quais vão ao encontro desse mesmo manifesto. Seguindo o percurso cronológico, após um festejo de proporções babilónicas (álcool, sexo à discrição, estupafacientes e até um elefante como “ostentação de luxo”), dois desconhecidos são acidentalmente repescados a integrar a produção hollywoodescas. Estamos ainda em período mudo e antes dos estabelecidos majors (arquitetonicamente falando), o cinema norte-americano é maioritariamente filmado ao “ar livre”, em cenários de cartão e num “mar de gente”, uma batalha campal, um caos em terreno baldio, no qual o Cinema era visto como um fim impossível de ser procriado aí. 

Estas duas personagens instalam-se de forma caricata e independentes nos seus respectivos “afazeres”: ela (Margot Robbie) foi escolhida como substituta para atuar numa película, e ele (Diego Calva), persuadido por uma estrela maior (Brad Pitt, possivelmente, no seu auge), torna-se um acidentado “assistente de produção” com uma tarefa hercúlea, alugar uma câmara a tempo de captar os últimos raios de sol. As peripécias aí causadas enchem olho e a  narrativa persiste numa constante oscilação consolidando um ritmo frenético que só desbrava entropia, até que no preciso momento, “alguém” (a voz incorporada nos dois momentos distintos) aciona o clássico “AÇÃO”, grito imenso e de tom divino que “congela” toda estapafúrdia envolta … tudo se dirige aos respectivos polos de criação, um filme deve e está a ser feito, o Cinema a ser o altar de adoração. Como é possível que toda aquela confusão nasça essa “magia” de criar algo duradouro? 

Assim, parto para a segunda e referida cena: “Babylon” de Chazelle transcreve-se no período transitório do mudo para o sonoro, com “The Jazz Singer” (1927) a quebrar a tal barreira graças ao seu sucesso e aprovação popular. Com isso, a indústria sem mãos a medir, teve que alterar radicalmente a sua produtividade com objetivo de replicar a tendência. Muitos atores adaptaram-se aos esses novos tempos, outros, nem por isso, nessa última facção encontra-se a personagem de Brad Pitt - Jack Conrad - o galã crente da Arte popular do Cinema contra a sua subestimação, uma versão masculina de Norman Desmond, portanto, que em permanente estado de negação confronta a sua fiel publicista Elinor St. John (interpretado por Jean Smart) devido a um artigo que premonicia o seu término de carreira. Nessa discussão acesa, Elinor fala de um processo natural de início, apogeu e dissipação, do qual descreve como cíclico o percurso artístico e neste caso o de Conrad, à beira do seu precipício. Contudo, salienta a perduração, prevendo se que 50 anos para a frente, alguém iria-se embebedar do cinema gerado pela estrela moribunda, familiarizando com a persona preservado na película, não com Jack Conrad particularmente, mas com alguém criado, “alimentado” pela indústria e “amarrado” pela arte, o outro Jack Conrad, a estrela vivida na suas ficções. Eternizado à sua maneira, mas para isso há que existir o tão indesejado fim. 

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Estas duas sequências que macaquearam a minha mente, revelam não só o espírito absorvido no meio daquele caos, excentricidade e do grotesco que Chazelle espelha neste retrato de época (não é original nesse termo, podendo ainda buscar outras lentes como o pouco referenciado “The Day of the Locust” de John Schlesinger ou o amaldiçoado “Return to Babylon” de Alex Monty Canawati, ambos fortalecendo o cenário de desordem e de libertinagem desses tempos distantes), como também sobre a capacidade de manobrar o pêndulo ao fascínio e a repugna em relação à Sétima Arte. É a purga e igualmente o embelezamento de um “filho prodigioso da destruição”, o Cinema, essa estância persistente ao longos dos anos, inconsciente das suas transformações, das suas transfusões, e Damien Chazelle ao contrário de muitos, está ciente do seu legado e sobretudo da História que muitos desejam mudar drasticamente. Absorve de Hollywood e sem impunidade crítica satiriza uma composição saturada, suada e maquiavélica. O que sai dali é um desejo de investir nas tragédias de uma arte que como todas não nasceu da utópica. Apenas basta gritar “AÇÃO” e voilá, faz-se Cinema, termo que acima de qualquer ideologia não é homogêneo, unilateral nem formalizado a um só tom. É muito, mas muito mais que isso.

Babylon” não trata Hollywood como uma coqueluche a ser bajulada, a dita desconstrução do seu oleado sistema, da, por vezes, denúncia à sua gravidade e presença, são elementos que sem apoderar-se da narrativa e conduzir o filme para vertentes tendenciosas da nossa contemporaneidade, operam como expansões do seu próprio universo. A ascensão de estrelas, queda de estrelas, domínios e quedas de impérios para que servir ao epílogo-tese, nada de complexo, apenas o óbvio, o Cinema não Morre, metamorfoseia-se, e dessa transformação os espectros vagueiam como memórias não reconhecidas. Como acontece com a premonição invocada ao fictício Conrad, conhecemos este mundo, estabelecemos contacto com os seus cantos e lugares, comuns ou incomuns. São nossos, o Cinema é nosso, sem discriminações. Porém, o que Chazelle diz é que esse resultado não é fruto de uma harmonia, e sim, de sangue, suor e sémen. Hollywood é um exemplo, mais que óbvio de indústria, porque fazer Cinema não é Amor, é combater uma Guerra.

Quanto ao nosso contacto com “Babylon”, a sua reação dispar é um sintoma de como Damien Chazelle acertou na mouche, odiar o seu lado “monstruoso” é natural e fortalecedor ao seu conceito, deslumbrar com ele é de igual forma. Um risco de produção, acentuada numa indústria que atravessa a sua crise identitária (não confundir com outras identidades). Julgo que não teremos outro filme assim durante um longo período … Obrigado Chazelle, por mostrares que és o melhor dos dois mundos!

Caminhando entre gigantes: Paul Vecchiali, um homem maior que a vida

Hugo Gomes, 19.01.23

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Le Cancre (2016)

Paul Vecchiali nunca acreditou em fazer parte da História do Cinema, o que não lhe impossibilitava de atormentar as suas próprias bases. Provocador, como muitos lhe apelidavam, digamos mesmo que era um prolífico, um polivalente, um homem de “mangas arregaçadas” no que requer à prática de “fazer Cinema”. 

Crítico como crítico na sua vida, descobri Vecchiali nas oportunidades trazidas pelo Indielisboa [em 2017]. Vi parte da sua obra nesses andamentos, sem a menor resistência. Comecei pela empatia, a empatia em não julgar as suas personagens, de nem sequer persegui-las e “enclausurá-las” nas esquadras da moral e da razão. Desse jeito, olhei para aquela face de piedade que só Geneviève Thénier possuía em Les Ruses du Diable” (1966), um contacto directo a de Harriet Andersson em “Sommaren med Moniks” de Bergman, ambas quebrando a quarta parede e solicitando o julgamento por parte do espectador. Nesse particular momento, aquelas personagens deixaram de ser personagens e transformaram-se em algo “nosso”, da nossa realidade, do nosso espírito, Andersson atravessou essa realidade, seguido pela Thénier num filme em que a sua persona era tudo menos agradável de estar. 

Nada no cinema de Vecchiali invoca a fácil conexão, porém não se refugia nos seus “mundinhos”, o seu universo, que se vem abrindo, mais e mais, adquirindo um tom acentuadamente mais intimista (“Le Cancre”, “Train de vies ou les voyages d'Angélique”), mas antes disso o gesto da importunação, “nascer para irritar” seguindo a dica vivente do dramaturgo Dias Gomes. Ora, pena de morte, homossexualidade em períodos tabus, carnalidade, entre outros, “irreverentes” satélites que orbitam essa sua filmografia, Paul Vecchiali foi tudo num só, mas pouco valor lhe atribuíram, hoje esquecido, injustamente ignorado ao cânone e por vezes em desuso perante as correntes ideologias. 

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La Machine (1977)

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Once More (1988)

O único produtor francês na atualidade sou eu” declararia em Cannes em 2016, determinado em não deixar morrer a sua presença naquela nefasta indústria, porém, apesar dos constantes punhos erguidos, Vecchiali era um Senhor (o “S” grande é propositado). Pessoalmente, foi com ele que tive uma das melhores conversas na minha (ainda curta) jornada pelo cinema. Aconteceu na Cinemateca Portuguesa [em 2016], por entre as abarrotadas estantes da sua livraria, ao lado do seu livro de apontamentos sobre cinema francês, “acabadinho” de chegar ao estaminé. , falamos um pouco de tudo - aproveitando o pouco tempo dado pela organização do festival - principalmente sobre a sua relação atual com a arte que aos poucos lhe virava costas e dos seus “pecados”. 

Hoje em dia é necessário bater na política de autores”, frase que ecoou em mim ao longo destes anos, a sua insubordinação contra a uma prisão intelectual e impotência crítica, e além de tudo, uma ode à nossa capacidade de pensar. O homem foi um mestre, e eu, por minutos, o seu discípulo, mesmo que a língua tenha sido uma barreira (o meu francês não é dado a vanglórias). Não me julgou, ao invés disso, demonstrou um carinho pelo meu esforço em construir uma ponte entre duas distintas gerações, cujo ponto-comum era sem dúvida as imagens na tela, esse dialeto universal e transmissível. 

Por fim, recordo, absolutamente, de um acenar de cabeça leve e gentil após ter-lhe dirigido um obrigado pelo tempo disponibilizado por mim. E não foi tempo perdido. Aliás, com Vecchiali nunca é tempo perdido.

Paul Vecchiali (1930 - 2023)

Exterminadora Implacável

Hugo Gomes, 17.01.23

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A título pessoal: Em teoria, “M3gan” é uma salada de frutas dos meus medos, a começar pela pedofobia (não assustem com a designação, trata-se apenas de fobia a bonecas), passando pelo complexo de “uncanny valley” (a repugna ao que aparenta ser humano mas que não o é) e terminando na desconfiança tecnológica (principalmente no conceito ainda prototípica do A.I [inteligência artificial]). Ou seja, temos “caldo entornado” para uma experiência de fazer eriçar a pilosidade dos braços.

A título informal: Trata-se de uma histórias de “bonecas de última gama”, cada vez mais realistas e alicerçadas ao que indica ser inteligência por por conta própria (há indícios de consciência dickiana, principalmente quando a sintética antagonista esmiúça sobre a Morte), que se resume à homónima criação. Um experimento, e por sua vez, apropriado por uma grande corporação para o viabilizar como o “next big thing” do mercado - ou “a maior invenção do Homem desde o automóvel”, tal e qual é citado a meio da sua narrativa. Obviamente, que tudo é receita para uma pequena catástrofe.  

M3gan”, apesar das suas hipóteses de terror moderno e consciente, verga-se pela tradição de muito do que é hoje produzido no género em terras yankees, o conceito acima da prática. Esta nova prole de Jason Blum [produtor que assume autoralmente os seus “rebentos”], “bombeado” por um guião assinado por James Wan (não esquecer a direção de Gerard Johnstone, de “Housebound”) - uma versão “Child’s Play” [mais como extensão do remake de 2019 do que o original fomentador da duradoura saga] para novas gerações - apresenta-se como um recital de apontamentos e reaproveitamentos de medos comuns. 

Digamos que dentro desse esquema de produto pré-fabricado, o filme espelha uma ideia há muito cobiçada por Hollywood, envergando e sumarizando os conceitos robóticos incentivados por Phillip K. Dick e toda a nossa relação com “vida artificial”, só que nesta variação, mesmo sendo narrativamente previsível até à medula, a idealização nunca trespassa o papel, preferindo-se mapear do que aprofundar as suas devidas preocupações teóricas e com isso falsear em momentos puramente “camp” ou de júbilo de cariz macabro.

A Blumhouse em parceria com o Atomic Monster [equação vencedora Blum + Wan] poderão ter encontrado a sua “galinha dos ovos de ouro” no que refere a matéria de franchises, até porque a “criatura” frankensteiniana obsessiva (um sinistro "avatar" de Amie Donald) preserva características frutíferas aos mais diferentes ícones do slasher (nomeadamente ao Chucky de Child’s Play, de Don Mancini [pelo menos fica tudo em “família”]), entre as quais a força de centralizar a trama ao redor da sua figura (enquanto que as personagens humanas são tudo menos interessantes e empáticas). 

Um modelo formalizado que garante sucesso com poucos milhões investidos. Low cost ou não, a verdade é que “M3gan” funciona graças à sua modéstia e de ocasional foco às questões fora da sua natureza. Por outras palavras, poderia ser mais cerebral e complexo, mas ficamos com o protótipo oleado.  

A título pessoal: Poderia ser a autêntica materialização dos meus pesadelo ... Poderia, se não fosse a sua leveza e seu jeito “brincalhão” como manda a indústria do qual está inserida. Talvez numa próxima!

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