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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O Rei Pelé no Cinema (1940 - 2022)

Hugo Gomes, 29.12.22

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Com Renato Aragão em "Os Trapalhões e o Rei do Futebol" (Carlos Manga, 1986)

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Na rodagem de "Os Trapalhões e o Rei do Futebol" (Carlos Manga, 1986)

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Vinheta promocional de "Os Trombadinhas" (Anselmo Duarte, 1979)

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Com Sylvester Stallone na promoção de "Escape to Victory" (John Huston, 1981)

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"Escape to Victory" (John Huston, 1981)

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Hot Shots (Rick King, 1987)

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"Os Trombadinhas" (Anselmo Duarte, 1979)

Mais que canibalismos ...

Hugo Gomes, 29.12.22

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Ruggero Deodato

Foi num banco de jardim em frente ao Cinema de São Jorge, no qual tive a oportunidade de conhecer Ruggero Deodato, no meio dos festejos do MOTELx o qual se sintetizava como o ilustre “Mestre Vivo”, em 2016. 

Era uma “entrevista às três pancadas” arranjada pela equipa de comunicação do festival, mas curiosamente foi através daquele acaso, improvisado momento, que tornou-se especial, uma conversa maioritariamente educada numa noite amena que só o início de setembro consegue-nos dar. Lá estava eu, ao lado do meu colega Roni Nunes (ambos cobrindo o festival para o site C7nema) questionando o realizador por vias de trivialidades, até que num ato de fúria, insurge-se perante as comparações a Umberto Lenzi, conterrâneo seu também "especializado" em exploitation canibal (“Ma che cazzo, sempre Umberto Lenzi! Ma per che? Non posso piú!”). 

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Ruggero Deodato na rodagem de "Cannibal Holocaust" (1980)

Para Deodato, "Cannibal Holocaust”, a sua “obra-prima”, o seu filme-currículo, era mais que um objeto de selvajaria, era um choque entre o civilizado e o silvestre, e portanto, a questão permanente sobre o verdadeiro “bárbaro”? O nativo da floresta tropical ou o índio da selva de asfalto? São pertinências que pouco se atribuem a Deodato, salientando o preconceito em relação a um género e a um estilo, mas a verdade é que o seu filme, brutal e visceral (até hoje motivo de polémica pela crueldade animal, mantida no corte final), é uma comichão àquilo a que tornamos. Civilizados só de nome, somos mais selvagens que os próprios “selvagens”, porque aprendemos a destruir e a viver da destruição, e mais que isso a venerar essa mesma destruição. Narrativamente ou fora dela, “Holocausto Canibal” parte do pressuposto horror para nos aliciar a olhar, como um atrativo circense, e indignados ficamos no final da jornada dirigindo agressivamente ao realizador, porém o espelho está voltado a nós, não fomos obrigados apenas tentados ao apelativo engate dessa sedenta - Horror. 

Ruggero Deodato viu o pior de nós e disso fez uma obra. Hoje, tal criação concentra-se como uma Caixa de Pandora, como se a raiz desse mal residisse num mero “objeto” (neste caso filme). Talvez sentimo-nos melhores por isso, enganosamente melhores.

Ruggero Deodato (1939 - 2022)

Os Melhores Filmes de 2022, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 28.12.22

Em 2022 pude constatar a queda anunciada do cinema norte-americano, por mais que se tente rechear as nossas salas comerciais com produções à lá Hollywood, pouco ou nada saem deles para além de fórmulas, refilmagens sob selos de novidades, produtos direcionados ao streaming e super-heróis com fartura (demonstrando a sua regra equacional a servirem para universos partilhados).

Num ano em que “Avatar” chega com a soberba atitude de experiência de sala, um “Top Gun”, outra aguardada sequela, abre caminho por via do físico a possibilidade sensorial em sala, isto num ano em que a Academia decidiu promover um filme de streaming (“CODA”, que num estalar de dedos caiu no esquecimento). Se existe filme de Hollywood a merecer destaque neste ano, então Maverick e Tom Cruise (de difícil desassociação) levam a medalha. Porém, também foi o ano em que Michelle Yeoh pode finalmente brilhar nas terra-yankee graças ao frenesim entre o parvo e de genial que fora “Everything Everywhere All at Once” de Dan Kwan e Daniel Scheinert, ou das memórias cinéfilas de Spielberg em “The Fabelmans”, ou do terror de mãos dadas para com o seu legado cinematográfico - “Nope”, de Jordan Peele e “X” de Ti West

Mas este 2022 a congregação de 10 filmes foram para mim difíceis, o que automaticamente me deixa agradado com o turbilhão de novas vozes e novos movimentos que florescem por este Mundo fora, do Japão ao Irão, da França à Suíça, da Noruega ao México, da Coreia do Sul a Portugal. E falando em território nacional, destaco 12 meses recheadas em variadas e diversificadas produções; o rural novamente motor de inspiração ("Alma Viva”, “Restos do Vento), um João Botelho livre e fluido (“Um Filme em Forma de Assim”) e uma surpresa na realização (“Revolta”), já em temática de festivais [ainda sem estreia comercial], as questões identitárias e geracionais com deslumbre encanto ("Périphérique Nord”, “Super Natural”, "Frágil", “A Visita e um Jardim Secreto”, “O Que Podem as Palavras"), mas apesar desse leque de possibilidades, a minha escolha nacional cedeu à melancolia, à incerteza, ao fim da juventude retratado no misterioso “28 ½” de Adriano Mendes

Segue os dez filmes do ano, segundo o Cinematograficamente Falando e respeitando o calendário de estreias nacionais (sala ou plataforma de streaming):

 

#10) 28 ½

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“Doloroso, é verdade, de igual forma que deparamos com a nossa impotência perante o “mundo em cacos” o qual tentamos ignorar - a sequência do comboio, o momento mais hitchcockiano que o nosso cinema português já produziu (e não por decorrer no interior de uma carruagem, mas pelo trabalhado “suspense” oferecido a um espectador com conhecimento suficiente, por exemplo, de que a personagem de Anabela Caetano tem destreza física e experiência para lidar com tão incomoda situação). E são estas constatações, este peso concentrado que nos faz duvidar de tudo e de todos. Perdemos a inocência, fiquemos só a aguardar pelo inesperado, com a fé de este “incógnito” resgate-nos deste estado de existencialismo passivo.” Ler crítica

 

#09) La Civil

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“Por entre guerras de cartéis, Mihai espelha uma descida infernal de uma “inocente”, um mero dano colateral, que cuja contaminação com este ambiente a transforma numa espécie de impiedoso anjo da vingança. Tudo isto lido entrelinhas, de câmara à mão, orbitando de volta à ação e sugerindo mais do que expondo. “La Civil” escapa dos lugares-comuns pela sua imposição de poder, descortinando as vozes silenciadas de uma disputa moral.” Ler crítica

 

#08) A Hero

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“Através deste “regalo”, somos induzidos a um confronto entre razões e uma proposta de desconstrução arquitetónica (cada com a sua perspetiva) à definição de “herói”, o indivíduo máximo da moralidade na sociedade. O retorno ao Irão é propício a esses dilemas, uma sociedade “estranha” aos olhos ocidentais opera como uma distopia possível sobre as mais variadas questões morais e éticas. Como tal, “A Hero” é uma “caixinha” de tópicos para um debate pós-sessão, e Farhadi feliz para que isso aconteça.” Ler crítica

 

#07) In Front of your Face

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“E aí está o trunfo deste enésimo filme, um Hong Sang-soo amadurecido, elegante e delicado na sua estética (sem com isso ceder a “makeovers” radicais), que nos fala sobre vida, morte e promessas vencidas e embebidas em álcool, por sua vez de “pinga envelhecida", sem nunca descrer da sensibilidade desses mesmos temas, com quem encara o encerramento já visível do outro lado da esquina. Deste lado o cético que testemunhou um milagre, pequeno mas que basta, num cinema que sempre fora mais preocupado em alimentar o seu culto do que verdadeiramente interrogar as suas próprias emoções.” Ler crítica

 

#06) Onoda, 10 000 nuits dans la jungle

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O Cinema é também memória, não em jeito memorialista e intimista, mas antes de uma lembrança do que esta arte foi e do percurso percorrido até à sua presente forma. Embora “Onoda” seja uma produção atual, é um filme hoje impraticável pelas mais diferentes razões. Não se trata de resumir ou mencionar gestos de outros e de distantes tempos, Arthur Harari persiste numa vinheta histórica para aludir ao “coração das trevas”, abraçando a selva como a mais eterna inimiga dos Homens. Tropicalismo? Exotismo? Nada disso, esta floresta que albergará os últimos resíduo de uma Guerra desvanecida assume-se como uma armadilha, um labiríntico cativeiro, onde o tempo estagnou num cruel sigilo e a carne está predestinada à sua regressão natural. Harari cumpriu, onde muitos falharam, o de trazer de volta um Cinema físico, protetor da sua herança e com ela a possibilidade de avançar “mato a dentro”. 

 

#05) Azor 

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““Azor”, primeira longa-metragem do suíço Andreas Fontana, marcou presença na edição de 2021 da Berlinale na secção Encounters, um thriller assombroso que tece um universo que bem poderia ser extraído dos enésimos “filmes sobre Máfia” ou dos gestos calculados e maturados de Costa-Gavras. Aqui, nesta Argentina dos anos 80, sem nunca condicionar a um evento histórico preciso, o silêncio é de ouro e a meticulosidade poderá garantir a nossa sobrevivência nesta descida ao inferno capital.” Ler entrevista ao realizador

 

#04) Un Monde

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“Não olhemos para as crianças como um poço de inocência, mas antes como “peregrinos” que desbravam “novos mundo”, claramente “novos” diante dos seus respectivos olhos, e é esse “mundo, a palavra transportada do título original (“Un Monde”) que Laura Wandel concretiza um tratado experiencial num biótopo a nós familiar, e igualmente distante.” Ler entrevista com a realizadora

 

#03) Vortex

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O tempo destrói tudo”. Gaspar Noé "pavoneou" esse lema ao longo da sua filmografia, todas elas indiciadas no ato de provocar. Enfim, o tempo ameaçou destruir, até porque Noé, perante uma  hemorragia cerebral que o quase levou às “portas da morte”, desliga-se dos aspectos xamânicos e místicos, ou da crueldade exaltante em ira, que testemunhamos nos seus filme para se partir numa claustrofobia formal e existencial. Protagonizado por Dario Argento, demonstrando-se decadência física (ontem, um “maestro” do terror, hoje, uma vítima do terror pendular da sua expirável “carcaça”), “Vortex” veste-se de negrume desumano, discreto, e acutilante a um quotidiano vencido, corpos arrastam-se e mentes dilaceram perante o voraz apetite do tempo. Em jeito de “split-screen”, amantes que depois do seu coro distanciam, mais e mais, até que os vestígios do seu último sopro temporariamente instalam-se nos lençóis usados. Morte, fim, nada de digno, nada de romântico, Gaspar Noé parece saber do que fala.

 

#02) The Worst Person in the World

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The Worst Person in the World” é de uma manobra arriscada em pleno século XXI que é o de dar uma oportunidade a estas mesmas personagens de recontar as suas vivências, e demonstrar que ainda há espaço para elas, sem as glorificar ou as vitimar. No fundo, aquela pessoa “horrível”, a “culpa europeia branca sentada no sofá”, é um fruto social que revolta-se silenciosamente contra esses parâmetros. Ler crítica

 

#01) Drive My Car

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“Poderíamos dizer tanta “coisa” sobre “Drive My Car”, poderia e posso, mas é ao terceiro visionamento que percebo, emocionalmente, a cerne de toda aquela palavra (Hamaguchi contou-me o quanto a palavra se tornou no motor do seu Cinema) não está na conquista dos sentimentos, mas as tréguas para com as nossas mágoas, aquilo que nos endurece perante um “mundo em chamas”. Talvez o meu "refúgio de cartão” esteja no Cinema, como disse em tempos, este parece comunicar comigo, ou é somente a manifestação do seu lado zeitgeist, e nós não somos tão “especiais” assim. Conforme seja a verdade absolutista, um facto é que “Drive My Car” vive entre nós, é um filme do nosso tempo projetado para quem olha para ele com desconfiança.” Ler Texto

 

Outras menções: Everything Everywhere All at Once, Nope, Top Gun: Maverick, Memory Box, Flee, The Girl and the Spider

"A Culpa não morre solteira": o ano terrível para o Cinema Português

Hugo Gomes, 24.12.22

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"Km 224" (António-Pedro Vasconcelos, 2022)

2022, mais um ano, mais lamentações a caminho. O Cinema Português, essa formalizada instituição que muitos adoram cuspir, resiste face aos números vergonhosos nas bilheteiras nacionais, mesmo que, muitos deles beneficiam de “boa imprensa”, de críticas esplendorosas, artigos requintados e o esforço hercúleo por parte das suas distribuidoras e produtoras em os promover. 

Mas o cinema nacional demonstrou-se alheio aos planos do grande público, que o diga o veterano António-Pedro Vasconcelos e o seu drama de custódias “Km 224” que terminou com uns “míseros” 4.128 espectadores (tendo em conta a sua ambição comercial, 830 sessões contra, comparativamente, as 161 de Lobo e Cão de Cláudia Varejão que arrecadou, até ao momento, valores mais acima), ou o que dizer a estreia de Tiago R. Santos e o quarteto de luxo [Ricardo Pereira, Teresa Tavares, Margarida Vila-Nova e Cristóvão Campos] com “Revolta”, filme que em outros tempos chegaria, na pior das hipóteses, aos 5.000 espectadores, apenas arrecadou 1.719. Melhor posicionado esteve “Salgueiro Maia: O Implicado” de Sérgio Graciano [16.777], o qual convém referir a importância ainda memorial da sua figura-alvo, e a dupla rural “Restos do Vento” de Tiago Guedes e “Alma Viva” de Cristèle Alves Meira [11.685 e 7,537].

Nem mesmo João Botelho, possivelmente o realizador com mais imprensa por metro quadrado nos seus filmes, que nos trouxe uma das suas melhores obras em muito tempo (“Um Filme em Forma de Assim”), não escapou à derrota nessa estrangulada luta nas bilheteiras [2.208], e num ano em que contou com retrospetiva integral na Cinemateca, novamente promovida em todos os meios, mas igualmente captada pela indiferença do seu público-alvo. Cinema português e bilheteiras são um eterno fado e que nada descura da qualidade de muitas destas obras. 

Já os restantes autores propriamente ditos; "Fogo-Fátuo" de João Pedro Rodrigues a exibir a sua legião de adeptos [3.533 espectadores], com cerca do dobro do atendimento, Marco Martins e o seu “Um Corpo que Dança - Ballet Gulbenkian 1965 - 2005” demonstraram adesão ao documentário português (enquanto o mais visto nessa categoria foi “Cesária Évora" de Ana Sofia Fonseca com 7.057 espectadores). Números longínquos para com uma Rita Azevedo Gomes, por exemplo, cujo O Trio em Mi Bemol levou até ao momento 467 espectadores, mais que o tríptico de Joaquim Pinto e Nuno Leonel acolheram [“Pathos Ethos Logos / 178 espectadores]. Comparativamente, com menos promoção e imprensa, a segunda longa-metragem de Adriano Mendes - “28 ½ - concretizou 725 espectadores, em 43 sessões, menos que as projeções do filme da Azevedo Gomes, ainda em cartaz [62 até à data].

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"O Trio em Mi Bemol" (Rita Azevedo Gomes, 2022)

Estes trazidos números serviram para mostrar um só propósito - o constante desfasamento entre o público e o seu cinema - um fenómeno latente à dissertação das salas pelo conforto do ambiente doméstico sob a febre das “novidades do streaming”, ou a cada vez mais “exigente” seleção do que realmente ver numa sala de cinema … a aspas são pertinências visto que o cardápio parece fundamentado em redor de super-heróis ou franchises duradouros. Contudo, quando o tema é cinema português, a discussão resume-se na própria qualidade destes do que no gosto do espectador. Anos a fio a ouvir os mesmos queixumes, enfrento-o esses argumentos com os iguais números.  

Mas antes disso, há que procurar as causas para esse divórcio? Possivelmente, um dos graduais problemas, como havia sido sugerido, seja a reputação que a nossa produção adquiriu e acumulou ao longo destes anos. As avenças de “Amor de Perdição” de Manoel de Oliveira ou os enterros antecipados a António Macedo (o sketch satírico de Herman José fantasmagoricamente ainda povoa na nossa imaginação coletiva), conspiradas raízes para este boicote orquestrado ou até politizado que hoje fomenta furiosos pedidos de uma renovação de histórias, de estilos, de ritmo, de atores e sobretudo uma “americanização” do nosso cinema, em jeito de encabeçar sem grandes histrionismos um catálogo de um globalizado streaming

Porém, o desejo é diferente dos sucessos, “Dois Duros de Roer” ou Curral de Moinas: Os Banqueiros do Povo, inquestionavelmente amadora televisão descaradamente embutida na tela conquistou espectadores (48.830 e 314.115 respetivamente), muitos deles assinantes dessa “carta de exigências". Com este cenário em conta, para quê continuar a debater sobre o que o cinema português precisa de fazer para “apelar” ao seu público? Claro que não, como todos os divórcios, a culpa não morre solteira. 

Escusado será totalmente imputar a nossa produção tendo em conta que o dito “espectador português” tem demonstrado ao longo destes anos zero paladar no ramo.

Spielberg no horizonte de Spielberg

Hugo Gomes, 22.12.22

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“Art will give you crowns in heaven and laurels on Earth, but also, it will tear your heart out. Art is no game! Art is as dangerous as a lion's mouth. It'll bite your head off.”

De “coming-to-age” com paixões cinematográficas ao barulho, o “inferno” anda abarrotado. Recentemente presenciamos Kenneth Branagh, Paolo Sorrentino, de certa maneira Abdellatif Kechiche e, futuramente ainda teremos Vicente Alves do Ó [com o ainda em produção “Malcriado”], cada um com o seu “Cinema Paraíso”, porém, as propostas não faltam, uma tentativa encontrada para falarem de si próprios através do cinema com conversa direta para com o cinema, a sua paixão e por fim, a função que os acompanhará até se tornarem realizadores feitos. Biografias ou mistelas ficcionais, são remontagens ao redor do seu umbigo, uns mais fascinantes que outros, certamente, mas que não deixam de ser tendências que qualquer um “tropeça” enquanto ambição, egotrip esbarrada na tela para ostentação mundial. Fellini abordava tais campos no seu zênite intitulado de “8 ½” (1963), uma carta-vanitas sobre os seus tramas, os seus devaneios, as suas projeções enquanto autor que solenemente acreditava ser. Todos desejam o seu meio, de um jeito ou de outro, e essa senha calhou a Steven Spielberg

Por isso fica a questão, o que poderá Spielberg trazer a esta já prescrita fórmula em “The Fabelmans"? Talvez nada e ao mesmo tempo tudo, até porque em matéria de Cinema possivelmente não haja mais nada para inventar e simultaneamente ainda existe bastante a explorar. O que aconteceu é que nesses retornos ao passado, o Amor, seja ao ecrã e mais que tudo à projeção - essa luz crepuscular - prevalece como a ferramenta essencial para o efeito rodopiante do filme. 

Spielberg fala sobre esse caso adúltero para com o seu quotidiano através dos olhos de uma criança, ansiosa, que na sua inaugural ida a uma sala de cinema, uma experiência resumida como “O Maior Espectáculo do Mundo” (poderia inserir uma alusão do meu afecto, mas estou realmente a mencionar o filme de Cecil B. DeMille [“The Greatest Show on Earth, 1952”]), é lhe despertado uma obsessão constante em replicar as imagens que tanto lhe fascinaram. Nesse gesto de reprodução nasceu um “hobby”, por sua vez, automaticamente dispensado como tal (“Can you stop calling it a hobby?”), se tornou numa determinação, numa patologia, numa corrompida droga (“We're junkies. Art is our drug.”). Incompreendido, porque este Fabelman (consideremo-lo num pseudónimo do próprio Spielberg) depara na sua arte de criar e de amar a película numa comunhão e um conforto que encurte distâncias, não as geográficas, mas as afetivas. 

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Na órbita do cinema, do seu centro, da sua vórtice, encontram-se relações quebradas ou fraturadas por razões ainda por descobrir, contudo, as suas figuras, peças centrais, pavoneiam como razões próprias - o pai que projeta os seus sucessos, deixando o seu filho sombreado pelo seu seu vulto (um sempre subestimado Paul Dano) e a mãe anestesiada por uma artificialidade de "pronto-e-esquecer" em conexão com os seus fracassos pessoais (uma competente Michelle Williams no seu habitual registo). Desiguais, esses exemplos de progenitores, e essa mesma inconsciência pesa numa balança familiar, desequilibrando-a, exaltando um lar disfuncional e uma família assombrada pelos seus demónios interiores.

The Fabelmans” é uma obra pessoal, no sentido em que esse intimismo segue a direito numa catarse, é a História de Spielberg encaminhada para um divã e submetido a uma terapia. De um jeito ou de outro, o realizador comete o pecado de muitos artistas em expor intimamente e emocionalmente numa narrativa orgulhosa em mergulhar nos dois tons, não separando-se da sua aura autobiográfica nem da aura fantasiosa. Nesse campo, “The Fabelmans” não diverge dos seus congêneres, a história mantém-se nos seus parâmetros com uma excepção: Steven Spielberg demonstra o quão exímio é enquanto contador dessas mesmas e de como aproveitar o Cinema e as suas alicerçadas ferramentas nesse sentido. Assim, como o protagonista figurado, cuja câmara é um órgão de manipulação da realidade e da perspectiva, ou até uma alternativa à sua desmoronada vida (a interpretação é deixada a cada um), subjuga-se à sua sensibilidade recorrendo à tela - a esse mundo que o apaixona e o motiva a viver - para induzir um diálogo encantado e por vezes cruel consigo mesmo. 

When the horizon is at the top, it's interesting. When it's on the bottom, it's interesting. When it's in the middle, it's boring as shit! Got it?”, a lição que Spielberg guardou incessantemente e que aqui deixou-nos como um epílogo, um incentivo à decifração de “The Fabelmans” - o que importa não é bem a natureza da sua história, mas sim como a relatar, neste caso e adequadamente, como a filmar. E é por esse fim que Steven Spielberg afasta-se dos demais, através das suas peculiaridades. 

Um Scrooge de nome Aleixo

Hugo Gomes, 21.12.22

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Por minha vontade, pode virar tradição, mesmo que a palavra Cinema seja empregue de modo intermitente aqui. 

Não foi bem expressão da minha autoria, esta, à atribuição de um cariz religioso, mas recordo, após a questão simplória - “gostaste?” - lançada por um dos representantes do filme, respondi de imediato com um “Bruno Aleixo é família”, até porque o rabugento urso (ou ewok, invocando a sua primeira aparição) tem me acompanhado nas mais diferentes plataformas. Uma personagem fecundada pela imaginação de João Moreira e Pedro Santo em 2008, inicialmente nicho numa improvisada "série televisiva", popularizado até se tornar numa marca própria, ou até mesmo um universo partilhado (televisão, webséries, rádios e agora cinema), Bruno Aleixo persistiu numa comédia chico-esperta, bem aportuguesada, rodeada de figuras pitorescas que compõem uma mitologia própria e mais que identificável. 

Se bem sabemos, que é um fenómeno dito português, com poucas inspirações para o mercado internacional (mesmo com a “perninha” dada no Brasil onde arrecada os seus adeptos), um segundo filme, desta feita abraçando (ou não) o espírito natalício, Aleixo apodera-se da velha fórmula do Scrooge, esse conto de natal à lá Dickens, despindo-o de qualquer fidelidade aos seus inabaláveis termos morais, mas sem desdenhar essas mesmas atitudes. Assim sendo, ao invés de fantasmas, alegoricamente e literalmente falando, são flashbacks na vida do protagonista, da infância (ou melhor, das infâncias) até à sua fase adulta, sem esquecer do futuro como derradeira epifania, a persistir como marcadores no enredo reduzido a um extenso gag

Curiosamente, tal como funcionara no filme anterior e inaugural, é nessas brechas narrativas que a criatividade formal ou estética se manifesta - se em 2019 seguíamos de género em género em busca de um filme algures - com o “O Natal do Bruno Aleixo”, cada episódio memorial transcreve numa forma animada, e sob diferentes criadores (João Alves, Pedro Brito, Bruno Caetano, Rafael da Silva Hatadani, Jorge Ribeiro), conjugando uma pequena banda de um mundo tão negligenciado como talentoso que é a animação portuguesa. 

Portanto, não há que ser mesquinhos, Bruno Aleixo é em todo o caso um dos melhores exemplos de comédia transcrita no cinema português, e não por uma “unha negra”, é por grande distância … principalmente de atropelamentos rurais que “deliciam”, inexplicavelmente, públicos.

Como peixe na água ...

Hugo Gomes, 19.12.22

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Foram precisos 15 anos para que o Mundo estivesse preparado para uma sequela de “Avatar”. O tempo, segundo James Cameron, foi necessário para aperfeiçoar a tecnologia, essa, capaz de consolidar com a visão secretamente permanecida na memória do realizador. O feito havia sido cumprido através do primeiro - esse estrondoso êxito já planeado desde 1995 e apenas materializado num CGI sofisticado em 2009 - a passagem de uma nova década de cinema e de onde convém afirmar a época depois de “Avatar” na indústria (o qual nunca mais foi a mesma). 

Durante a promoção deste regresso ao universo que o próprio concebeu de raiz - Pandora - Cameron teceu duras críticas à abundância e à qualidade de muitos efeitos visuais em inúmeras produções hollywoodianas, nomeadamente aos episódios marvelescos (os dominantes do mercado atual), que usufruem as possibilidades do CGI em modo de máquina de montagem. Um facilitismo apoiado nessa tecnologia estagnada, enquanto que o realizador utilizava esses avanços tecnológicos como progressão para a sua própria “ciência”, mantendo-se na crista do constante upgrade. Se houve esse pós-Avatar, obviamente existirá um pós-Avatar 2, esta história tecnológica a passar em frente dos nossos olhos, até porque Cameron sempre assumiu como um catalisador quanto a esse percurso paralelo à forma e às fórmulas - seja “Aliens” (1986), “The Abyss” (1989), obviamente “Terminator 2: Judgment Day (1991) e porque não “Titanic” (1997) - a megalomania das suas produções estabeleceram marcos delineadores no terreno que muitos trilharam para o alcançar. Ignorar “Avatar” nesse contexto, é equivalente a enterrar “Matrix” dos(as) Wachowski como mero frenesim sci-fi, ignorando uma indústria que se moldou à sua imagem (no caso deste novo “Avatar”, muito do CGI brindados nos últimos dez anos, automaticamente tornaram-se obsoletos) .

Quanto à revisitação de Pandora, a experiência cinemática mantêm-se no seu esplendor, é a sensorialidade que continua a motivar espectadores das mais diferentes classes, estirpes, origens e identidades [vi-o numa sessão comercial em pleno dia de estreia, lotado e interagido com o público], é a promessa de algo deslocado às suas realidades que os encanta, é o fazer uso da mais básica “propaganda” das comerciais cadeias de cinema - “levar-nos a mundos diferentes, nunca antes vistos”. Porém, se o primeiro nos prepara esse carris circense com uma longa introdução quanto à sua distopia, da básica carne até à transfusão totalizada num corpo digital, o planeta abundante de selvas que acerca e afaga a narrativa, aqui, neste segundo tomo, somos levados sem anestesias algumas a esse mundo, 13 anos depois. Os nossos olhos não obtiveram aviso prévio para o “mergulho” digitalizado, Cameron confiou em demasia na sua imaginação para nos hipnotizar, basta dar um passo para cedermos a precipício.

Avatar: The Way of Water” será pintado nesse deslumbre na cultura popular, mas revela-se fruto de obsessão do seu criador, meio umbiguista que nos remete aos diversos manuais ou auto-ajuda para que finalmente tenhamos o “gosto” desse seu canto secreto. As selvas dão lugar a recifes esplendorosos, e aí uma nova cultura de raiz entra na “goela” do espectador. Como peixe na água, Cameron nada nessa biosfera que tanto ama, esquecendo por vezes da sua história, da sua intriga e das relações que promete enquanto base da sua programada viagem. Se é verdade, que o próprio nunca vangloriou de ser o melhor “escritor”, a sua arte encontra-se no visual, espampanante visual convém sublinhar, e na sua concepção, também não é mentira alguma que não se trata de um verdadeiro mentecapto em matéria de construir simples e básicas linhas de “storytelling”. A narrativa é de apelo popular, funciona nesses moldes, não necessita de mais, porque “pagou-se” bilhete para distanciar da nossa realidade. 

O azul apodera-se, desta vez, abrindo caminho, e não somente de água, e sim para possíveis sequelas, já pensadas pelo seu autor. Fica a questão do quão tempo iremos esperar, e que novas progressões Cameron irá preparar no futuro.  

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