"Tens que fazer assim, estás a perceber?" (II)
John Carpenter e Jamie Lee Curtis na rodagem de "Halloween" (John Carpenter, 1978)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
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“As grandes montanhas são vistas à distância, as pequenas é preciso aproximar” Antonio López
Para quem estiver a ler este texto, perderá e muito a pertinência transmitida por Irene M. Borrego neste seu concebido filme, até porque, para tal experiência é importante desconhecer qualquer indício de existência de Isabel Santaló. Primeiro, como mote ao tema latente - o esquecimento que paira nesta artista - e segundo, a inquietude e a indefinição da existência da mesma.
A realizadora confronta diversas vezes Santaló, da sua memória e da sua auto-percepção enquanto artista, fala-se em subvalorização ou até negligência por parte do núcleo artístico madrileno (acrescenta-se sexismo), de outra maneira entendemos a uma síndrome “Norman Desmond” no preciso momento em que a anciã debate com a realizadora (do qual somos informados tratar-se da sua sobrinha) sobre a sua própria relevância. Aí o filme joga no campo da ilusão e da incerteza, o espectador é embarcado nessa dúvida que metamorfoseia em algo à parte do mero biopic ou obra-tributo. Longe do resgate que poderia suscitar neste gesto, este “La Visita y un Jardín secreto” é uma confrontação com "fantasmas interiores”.
Para Borrego, as comparações com a sua tia, ouvidas vezes sem conta nos seus “verdes anos”, a perseguem, assombram-na como sinal de imprecação lançada pelo oculto conservadorismo às mulheres que desejam a emancipação. A realizadora guarda para si essa ambição e igualmente essa resistência em deserdar qualquer maldição ou espectros agarrados. O resultado, possivelmente, é esta “desavença” com a pessoa que a mais lhe assemelha, a sua tia “maldita”, a “artista da família”, a única, Isabel Santaló. Obviamente que o “inimigo” é fabricado, Isabel não é a antagonista na história de Irene, mas antes a sua dura inspiração. O destino hoje deparado, em que a idade é uma vilã tendo como aliada a solidão, invoca o maior temor de Irene.
Dito desta forma, “A Visita e um Jardim Secreto” é uma farsa de filme, encosta-se como um “filme de artista”, mas é mais que isso, um filme sobre buscas internas em divãs proporcionalmente cinematográficos. Irene M, Borrego inconscientemente concretizou um filme sobre ela própria (se bem que os artistas falam deles próprios através do seu ofício). Isabel, o seu esquecimento (curiosamente, contamos com um voz-off de António López, o pintor de “El sol del membrillo” ["O Sol do Marmeleiro"] de Victor Erice, o único artista que declaradamente se lembra dela), a sua força enquanto mulher e artista, os seus quartos “secretos”, revelam-se como parte dessa tela.
“Serás como a tua tia Isabel”
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A ação de “Black Adam” ocorre num país fictício, algures no Médio Oriente [Kahndaq]. O sítio, de História gloriosa, é hoje uma réstia decadente e ruinosa do seu espectro milenar. Uma imagem televisada da região para o Ocidente. Por breves momentos e sem profundidades sociopolíticas, é informado ao espectador de que a sua capital encontra-se tomada por forças estrangeiras, mercenários ou entidades sem jurisdição que fazem a sua vontade, a sua lei. Povo oprimido, aguarda desconsolado por uma figura sebastiana para que, por fim, possam “libertar”. A promessa acontece, esse Adão Negro é despertado após um “sono” milenar, tornando-se no defensor de Kahndaq, e igualmente numa ameaça ao seu exterior.
O anti-herói, aqui interpretado por Dwayne Johnson igual a si mesmo, combate os seus mais diferentes inimigos (e possíveis aliados), no meio daquela cidadela antiga, superpopulada e “terceiro-mundista”, os embates são vistosos, deixando tudo ao redor em cacos, escombros e poeira. Destruição é um acréscimo a este cenário. Depois de cada luta, sequências de ação imperativamente computadorizadas e pirotecnia estrondosa (no sentido de poluição sonora e não o superlativo adjetivo entretanto associado), a população que após contemplar o espéctaculo sobrehumano regressa aos seus respectivos quotidianos como se nada tivesse extraordinariamente acontecido.
Trata-se da banalização do armagedão (o fim do mundo já se converteu numa imagem tão recorrente, que o seu impacto bíblico foi desvanecido), da profecia, dos entes divinos ou assemelhados, é o sintoma de que muitos destes códigos, que abundam no cinema norte-americano para massas e com foco no tão formalizado subgénero "super-heróis" se tornaram. Sem consequências, sem causas, nem adesão a tratados de algum tipo - barulhos, efeitos e explosões formaram o circo do vulgar. E tal como as pessoas de Kahndaq, o espectador adquiriu esses anticorpos, já não se trata de um evento-cinematográfico, e sim, de mais um episódio a um seriado, o cepticismo rompido ao ver “um homem a voar” (essa frase-feita em tempos de “Superman” de Richard Donner), é hoje um bocejo vindo de uma audiência anestesiada.
“Black Adam”, assinado por Jaume Collet-Serra (“The Orphan”, “House of Wax”), realizador sem grandes ambições para além de se confundir com a indústria da sua contemporaneidade, é esse exemplo de desnorteada fórmula, cansada, prolixa e planeada até à exaustão dos seus clichés. Viremos a página …
“We're here to negotiate your peaceful surrender.”
“I'm not peaceful. Nor do I surrender.”
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The Last Detail (Hal Ashby, 1973)
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"Il Buco" (2021)
Em agosto de 1961, ocorre a primeira expedição ao Abismo Bifurto, situado ao sul de Itália, naquela que é considerada uma das mais profundas grutas do Mundo. Michelangelo Frammartino extraiu dessa história, não só o relato, como também uma experiência, tentando com isso reproduzir a descida e "convidar" o espectador a participar nesta descoberta a um mundo subterrâneo governado pela escuridão e pelo ensurdecedor silêncio. “Il Buco”, o “buraco”, é esse filme-sensorial que merece o escuro do cinema e o misticismo do seu espaço. Pode não ser “storytelling” nem estética desconstrutiva, mas é entre os seus ecos que a experiência cresce, definitivamente, obrigando-nos a olhar para cima, para a luz que nos abandona gradualmente. Bem-vindo ao submundo!
Conversei com o realizador sobre o projeto na sua vinda a Portugal, durante a antestreia da Festa do Cinema Italiano, uma tentativa de decifrar o mistério da “gruta viva” e do cinema aqui praticado.
Não gostaria de começar esta conversa com a pergunta “de onde surgiu a ideia para este filme?”, ao invés disso, com o que o “levou a concretizar um filme desta maneira”?
Quis com este filme prosseguir, ao invés de descobrir, pretendia construir. Ou seja, seguir no trilho da profundidade de uma gruta não é, para mim, um ato de descoberta, antes um gesto de construção ou até mesmo de instituição. Através daquela gruta criei toda uma condição espacial, dimensional, de luz e até de pensamento, isto, baseado na própria natureza. Na escuridão da gruta deparamos com uma feixe de luz, o que condiciona o nosso olhar como também o motiva a construir uma imagem sensorial. Tentei levar à sala de cinema essa mesma imagem alegórica, a de olhar para o feixe luminoso, traduzida no crepúsculo vindo da cabine de projeção, uma imagem-construída e não uma imagem-descoberta.
Tal como o seu anterior “Le Quattro Volte" (2010), “Il Buco” partilha a mesma essência, a busca por um naturalismo e com isso encontrar uma "vértebra" mística. Há algo de além-físico nos seus filmes.
Tento proporcionar no meu cinema, que as ‘coisas’ falem por si, e não obrigá-las a “falar” - captar o seu naturalismo e não forçá-lo - e com isto também retirar a figura humana do centro desta paisagem fílmica, posicionando-a igual para igual com a Natureza no qual embarco. Aquilo que poderás chamar de misticismo, é antes uma comunhão entre tecido, a dos Homens com as ‘coisas naturais’. A espiritualidade não é mais a diluição de todos os materiais terrenos; humanos, animais, vegetais ou minerais.
Além da Natureza, existe em ambos os seus filmes uma figura humana central, apesar de tudo. Em “Le Quattro Volte” como em “Il Buco”, temos um pastor, o qual suponho que seja um vínculo entre Homem e o natural, ou seja mais do que uma personagem, um alternativo “ser místico", curiosamente não-atores. Não pude deixar de reparar, também, que o pastor é o único “humano” que filma em grandes planos neste filme. Isto tudo para lhe pedir que falasse sobre a sua relação e o seu processo de trabalho com os “não-atores”, e o facto de serem peças centrais na sua filmografia.
O protagonista de “Le Quattro Volte” e o pastor do “Il Buco”, que chama-se Nicola [Lanza], foram frutos de uma intensa procura. Quanto a Nicola, que já não está entre nós, não era uma pessoa dirigível durante as filmagens. Não conseguíamos dizer-lhe rigorosamente nada. É um problema recorrente em não-atores, principalmente daquela idade, a sua incapacidade de relembrar deixas e gestos para os filmes chegava a ser caricato.
Michelangelo Frammartino e a argumentista Giovanna Giuliani na estreia de "Il Buco" em Veneza
No caso do Nicola, notava-se, e nota-se em “Il Buco”, uma ligação fortíssima com aquele mesmo ambiente, com aquele lugar, com aquele “buraco”, coloquei essa presença como prioridade no filme, acima da minha intervenção na sua persona, porque como disse, pouco ou nada conseguia fazer dele, ou deixava tudo correr naturalmente ou teria que constantemente verbalizar com ele, o que seria uma tarefa hercúlea. Recordo de pedir-lhe num determinado momento para olhar para o horizonte - “Nicola, olha para ali” - automaticamente me respondia- “Não vejo nada” [risos]. Ou da cena em que o médico o visita, e supostamente a sua "personagem" encontrava-se numa fase de comatose, Nicola rompia o seu “papel” para informá-lo que estava bem [risos].
Se optasse por esta segunda opção, o de dirigi-lo ao máximo das minhas forças, provavelmente “Il Buco” seria completamente distinto, e possivelmente sem a ligação pretendida aquele lugar e aquela naturalidade. Nicola é como uma montanha, simplesmente longe de mim moldá-la.
Quanto à questão do enquadramento, se bem reparaste, os espeleólogos são filmados como um só corpo, uma só existência, Nicola, por sua vez, é emancipado, livre e soberano. Esteticamente, encontramos algo topográfico no seu rosto envelhecido, mais um ponto em comum com aquele território montanhoso e manifestamente resultante do tempo e da Natureza. Enquanto os espeleólogos exploram a caverna, a nossa câmara explorava a face de Nicola, que da mesma forma que a gruta tinha impressa nela toda uma história ainda por contar.
Ao ver “Il Buco”, tive a impressão que estamos perante um filme cuja rodagem seria ela própria um filme à parte. Foi arriscado a sua rodagem nesta gruta?
Chamam-lhe “gruta viva”, porque é uma gruta que constantemente altera o seu estado ao longo do ano. Tem ligação a um rio subterrâneo, o que nos possibilita entrar nela apenas em agosto ou em períodos mais secos, e quando começa a chover, temos exatamente uma hora para sairmos dali, visto que ficará novamente inundada.
Em junho de 2019, fizemos uma repérage lá, e repentinamente começou a chover, e a equipa ficou “presa” no seu interior. Fomos resgatados, um momento que chegou a figurar no telejornal nacional. Durante as filmagens éramos uma equipa de sete, todos com licença e preparação para descer a gruta, juntamente com mais sete espeleólogos que serviriam de segurança. Para além das condições agrestes do ambiente, lidamos também com um delay temporal. Imagina, para chegarmos a 300 metros demorávamos 5 horas, o que nos garantia apenas 1 hora de filmagem. A imagem, que provinha de uma pequena câmara trazida pelo diretor de fotografia, estava ligada à superfície por via de um cabo de fibra, eu supervisionava as mesmas de um pequeno ecrã no topo. Facilmente a escuridão apoderava-se da área, a luz era uma incógnita, pelo que diversas vezes teria que mudar um diafragma.
Naquele processo de filmagens, eu não era só o realizador, teria que também ser o futuro espectador daquele futuro filme, e como sentia-me impotente, porque a única intervenção que poderia fazer era somente a mudança do diafragma. Então a comunicação entre a superfície e as profundezas era quase impossível. Estava refém daquilo que o diretor de fotografia conseguia captar e registar.
Nicola Lanza em "Il Buco" (2021)
Gostaria de ‘tocar’ na “eterna” luta entre cinema em sala e streaming, referindo que “Il Buco” é definitivamente um filme imperativamente a ser projetado. É uma experiência sensorial, imagem, som, quase nos sentimos presos naquele “buraco”.
Como arquiteto, tenho a percepção que para cada objetivo há que utilizar diferentes materiais. No caso de “Il Buco”, pretendíamos um filme para sala de cinema e desenvolvemos-o para esse mesmo destino. Para outros projetos, poderão ser calculados para outras plataformas, e aí criaremos um filme com “outros materiais”, mas em relação a “Il Buco”, em termos de distribuição, sacrificamos muito para que fosse possível ser visto em grande ecrã. Com a vinda de festivais, como o de Veneza, recusei o uso de links. Praticamente “obriguei” a imprensa a vê-lo em sala para usufruir toda a experiência que “Il Buco” tinha a oferecer. A única excepção foi com os prémios Donatello [prémios de cinema italiano], o qual concordei, de forma a dar mais visibilidade ao projeto, principalmente nas categorias de som, garantir um link de visionamento à Academia.
Mas isso acaba por ser paradoxal, porque ver “Il Buco” em link, é ficar aquém das possibilidades do seu trabalho sonoro.
O problema é que o link de visionamento é um requisito para a candidatura do filme. Dessa forma não o conseguiria candidatar aos prémios.
Percebo, só que metade da experiência desaparece com esse tipo de visualização, a sonorização, que pouco se fala nestes contrastes, torna-se refém da poluição sonora em redor. No fundo, o envio de links para tal categoria, acaba por prejudicar a sua nomeação. É um pouco como o “Memória” do Apichatpong Weerasethakul, o qual o realizador tentou resistir ao máximo às outras formas de visualizações para tentar permanecer intacto a sua experiência sonora. Tal como “Il Buco” são filmes bastante sonorizados.
"Memória" é um filme incrível! Vi em Londres, no Festival, e foi uma experiência indescritível. Mas de qualquer modo, fico feliz que seja os espectadores a guardar a “experiência” de ver “Il Buco” em sala, os votantes são meras formalidades.
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Andy Warhol, Brad Davis e Rainer Werner Fassbinder durante a rodagem de "Querelle" (1982)
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Amanhã, estarei no Cinema Fernando Lopes, em Lisboa, para moderar a conversa numa sessão especial de “Chelas Nha Kau”, um documentário produzido pelo Estúdio Bagabaga e elaborado pelo coletivo “Bataclan 1950”, sobre a relação do bairro com uma juventude em busca de novas oportunidades através da música. Na sessão estará presente Thiago Dantas, montador responsável do filme, Islu e Sandro Santos do “Bataclan 1950” e ainda José Falcão, da associação SOS Racismo. Pelas 21h30, apareçam!
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“Viola Davis de vestes tribais subsarianas, munida de lança e punhal e com insaciável sede ‘matar’ colonos”, dito desta maneira, o filme está automaticamente vendido à minha pessoa, pensava eu após as primeiras imagens divulgadas neste “The Woman King”, prometido épico sobre guerreiras africanas da mesma realizadora de “Love & Basketball” [Gina Prince-Bythewood] … e “Old Guard” para os aficionados em “Netflix & chill”.
Poderia ser o meu consolo após o fracasso virado em leitura televisiva de “Njinga, a Rainha de Angola" do português Sérgio Graciano, poderia, mas não se cumpriu, o desejo ainda permanece aqui. O projeto em si poderia optar por dois caminhos possíveis; o abraçar sem compromissos ao lado “camp” ou a subversão do espéctaculo de género, apesar disso preferiu uma terceira via, imprimindo-se na condensação de todos os “rodriguinhos” hollywoodescos, com subenredos e artimanhas telenovelescas a reproduzir as enésimas esquivas do outro lado do Oceano. A África que esta equipa nos trouxe é de uma pura higienização yankee, digo até mesmo ‘colonizado’, abordando monarquias do continente à luz do medievalismo em moda. É uma disfarçada e anorética “Guerra dos Tronos”, onde nem mesmo Viola Davis, que seria a figura Altas em todo este cenário, consegue mostrar-se interessada no “buraco em que se enfiou”. Pior que um filme desastroso, é um incompetente e procrastinador naquilo que seria as suas expectativas e objetivos.
A juntar a uma visão demasiado modernizada e acrítica, eis que nos surge um sofrível português falado numas supostas reproduções colonizadoras, fortalecendo ainda mais a ideia de que Hollywood está-se a ‘borrifar’ para diversidades culturais, linguísticas e históricas (a sua África é a sua Europa, e assim sucessivamente, uma massa homogénea que reúne os mesmos estereótipos, lugares-comuns e resoluções narrativas lecionadas até à exaustão). Por outras palavras, é Hollywood feita pelos mesmos e para os mesmos.
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Descobri, ou melhor, fui “relembrado” neste “Olho Animal”, de Maxime Martinot, através da sua formidável colectânea de 250 excertos de cães no Cinema, de que o primeiro animal puramente cinematográfico foi … esse mesmo … o canino. E este “post-it” surge-nos na forma do primeiro “documentado” filme (propriamente dito), a saída dos operários da fábrica de Lyon dos irmãos Lumière [“La Sortie de l'usine Lumière à Lyon”, 1895]. É que por entre aquela vislumbrada massa humana que dá por terminado o seu turno laboral, e antes da carroça e o seu solípede surgirem em cena, um cão, esquivando das passadas de homens e mulheres prontos a deleitar do seu merecido descanso doméstico, apropria-se do plano.
O animal-fílmico, aqui, no gesto de Martinot, é o intitulado “cão-cineasta”. Será ideia inspirada nas provocações de João César Monteiro que tentaria reduzir o seu estatuto enquanto cineasta numa comparação com um canídeo? A verdade é que “Olho Animal” parte, erraticamente, como um “vira-lata” por entre as diferentes teses e temáticas. Seguimos um percurso algo evolutivo, mirando lentes ópticas de chocos e peixes-luas como primeiras estâncias, até percebermos que é Lisboa o nosso cenário e casa, e aí, os cães apropriam-se do filme, da fílmica e da filmagem. Eles coletam memórias, cinéfilas, apoiados nas suas quatro patas, exibindo os seus famosos dotes de fiéis amigos, e, como muito bem mencionado, “devolve-nos o olhar sem expectativas”.
João César Monteiro e o "cineasta-cão"
Digamos que há todo um ensaio eclético, o da colheita [como havia referido], a do intimismo abstracto [a diluição das memórias afetivas a dois cães como ode do companheirismo canino] e por a fim … perdoem-me “amantes de caninos” por achar o foco de maior interesse … um manual de construção de um cinema resiliente e expressivo em Portugal. Ou seja, o dilema que serve e núcleo da obra é imposta por Hugues Perrot e Raquel Scheffer, interpretando realizador e produtora respetivamente, discutindo a criação de um filme de raiz, “pedalando” pelas suas mais diferentes etapas. Nesta suposta narrativa cuja ideia vai culminar no reencontro do hipotético “cão-cineasta”, serve-nos de retrato de como e porquê de fazer cinema em Portugal, sem com isso respeitar (e desrespeitar) os moldes comerciais, exibindo na tela o, somente, nosso mais íntimo desejo. Há uma predominância do “EU” neste tipo de cinema, e é bem verdade que “Olho Animal” está consciente desse elemento na primeira pessoa, possivelmente satirizando na entrega da mais pura declaração: “o Eu torna tudo melhor”. Por entre esta mixórdia de temáticas, é normal, nós, espectadores, sentirmos desnorteados, mas é nessa desorientação do qual somos envolvidos com o filme.
Se “Olho Animal” é um filme-diário antropológico, ou um filme autobiográfico, ou até mesmo um filme-diário animalístico, tal absolutismo não estamos encarregue de decidir, a natureza deste “cinema-animal” poderá ser entendida como um objeto de cura - “Filmar o meu cão para afastar a minha ansiedade”. Ou, quem sabe, atribuir a um filme o que associamos como propósitos de um animal de estimação.
Talvez tenhamos mudado as placas e distorcido as falsas-noções à la Magritte: “Olho Animal” é um cão, enquanto o cão é um filme.
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