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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Sorri, estás a ser "amaldiçoado"

Hugo Gomes, 29.09.22

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Ri, e o mundo rirá contigo. Chora, e o mundo chorará contigo”. Oldboy (Chan-wook Park, 2003)

Poderia ser motivo para sorrir, mas não o é, até porque em matéria de maldições, creepypasta e correntes, os japoneses demonstraram fazer tal com “uma perna às costas”, enquanto os americanos debatem pela credibilidade da sua sobrenaturalidade, prescrevendo a direito com a ideia, sem perceber que a linha reta leva-os a pisar nas mais variadas minas. Nem o “Minas e Armadilhas” resolveria a situação, “Smile” é terror industrial, bafiento na sua concepção (e nunca persistido), um embrulho amaldiçoada para nos apresentar os mesmos “rodriguinhos”, as mesmas personagens e obviamente as mesmas situações, que nos faz questionar se anos e anos de terror auto-referenciar conscientizou alguma coisa.

Dirigido por Parker Finn, esta sua primeira longa-metragem e grande aposta da Paramount Pictures para o competitivo mercado do cinema de terror (e 2022 tem-se revelado bem forte nessas forças), é uma consolidação aos seus anteriores e curtos trabalhos (“The Hidebehind” e “Laura Hasn’t Slept”, nesta última resgata a atriz Caitlin Stasey, o qual possui papel-chave na longa’), um sintoma de uma "tendência", estabelecendo a curta-metragem numa espécie de pitch para futuros projetos (aconteceu o mesmo com  Andy Muschietti [“Mama”] ou até David F. Sandberg [“Lights Out”], para referir dois casos neste universo de terror). 

Portanto, “Smile” prefere a extensão, confundindo isso com a densidade dramática das personagens (ou melhor, personagem, a de Sosie Bacon), acidentalmente inseridas num atormentado vórtice, onde o exercício de terror é limitado a uma só sequência (a mais próxima da dita curta), de sorrisinho amarelo prossegue para o amontoado de “jumpscares”, previstos e revistos, e acolhe o CGI como convidado de honra para o clímax (mais uma vez, o terror a pretender a artificialidade do que o textural - que saudades dos anos 80).

No fundo é toda uma experiência que não nos deixa sorridente, apesar de Parker Finn ter “olho” para transições e continuidades, sabe-nos a pouco perante o terror aqui adereçado (aviso à navegação, será tematicamente comparado a “It Follows”, de David Robert Mitchell, porém sem a sua evidente alusão a doenças venéreas).

Um cruzeiro chamado Europa

Hugo Gomes, 28.09.22

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A Palma de Ouro soa-nos cuspida, mas em certa parte entende-se os dilemas que aquele júri enfrentou ao indiciar o seu premiado máximo. Ruben Ostlund é um provocador, incita inquietação no espectador enquanto o obriga a debater com os seus próprios medos sociais, um declínio da sociedade ocidental com os seus ritos padronizados como algo garantido. 

Em “The Square”, o “dedo na ferida” levou-nos aos limiares das fronteiras artísticas, no qual, segundo a sua tese imposta por sketches, o limite da arte ou a existência dela (“o que é a arte?”, essa questão que nos assombra), é de mera subjetividade, o cerco encontra-se na nossa própria consciência. O ensaio, em si, rendeu-lhe a primeira Palma em Cannes, atribuída por um júri presidido por Pedro Almodóvar (o que posteriormente confessou preferência no “120 Battements par Minute” de Robin Campillo), mas é à segunda distinção na Riviera Francesa que começamos a delinear um perfil quase patológico, o fazer do cinema, ou o formato de metragem, nas suas “tirinhas cartunescas", episódios de aguçadas lâminas lançadas aos espectros de um decadente ocidente. 

Quanto a “Triangle of Sadness”, outra geometria, envolve-nos no seu solipsismo umbiguista, apronta-se como uma viagem de cruzeiro, cuja embarcação dá-se pelo nome de Europa, não no sentido literal, mas figurativo. Que Europa é essa? A Europa da "culpa branca”. A Europa conformista que brama “igualdade” perante a sua própria indignação. Uma Europa de luxos. Uma Europa de castas. Uma Europa dividida em ideologias e  com constante receio de que as mesmas se materializem em naufrágios. Uma Europa comandada por um embriagado (tão metaforicamente representado por Woody Harrelson, talvez o único que tenha realmente se divertido com isto tudo). A Europa é por si o tema, a dissecação, a satirização, a crítica ácida nesta balbúrdia repugnante, de risos forçados e embaraçosos, de dicotomias diluídas que qualquer mãe facilmente rejeitaria (chora-se pelo cadáver e simultaneamente lhe rouba as jóias). São aproximadamente duas horas e meia de cuspidelas para o ar que nos atingem na própria face e que, mesmo assim, adoramos apelidar de “chuva”. Fora isso, é um filme de um ritmo atroz, o "Triângulo" não possui lados idênticos, afunda-se à primeira oportunidade (falo novamente sob uma luz figurativa e literal), a “terra à vista” opera como a “morte do seu artista” (até aqui já percebemos a cerne crítica, não era necessário esticar ainda mais a “corda” narrativa). 

Contudo, isto faz-nos pensar como as Palmas de Ouro são geradas. Serão frutos da nossa contemporaneidade? Talvez sim! Com uma pandemia que nos conscientizou ainda mais sobre os nossos privilégios e na díspar distância entre classes, seja normal que Ruben Ostlund tenha conquistado, e novamente tal estado de graça, perante o grupo de jurados (desta feita, presididos por Vincent Lindon). Foram diálogos diretos que os obrigaram a olhar para os seus respectivos umbigos, num exercício seguido pela observação dos seus arredores, do contraste culmina o ressentimento. Eis uma comédia risivelmente negra sobre o nosso estado. 

Uma dona de casa desesperada ...

Hugo Gomes, 26.09.22

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"What is the opposite of progress? Chaos. Chaos, an ugly word."

Não te preocupes querida, os dramas de bastidores são apenas isso mesmo, dramas, que servirão futuramente para fortalecer mitologias envoltas dos seus filmes. O que era do “Apocalypse Now” sem as suas badaladas histórias de produção? Ou “Last Tango in Paris” sem a sua controvérsia, ainda hoje debatida e polémica? “Don’t Worry Darling”, a segunda aventura da atriz Olivia Wilde na realização é um thriller distópico que tem beneficiado das suas historietas e conflitos internos, muitos deles inflacionados pela viralidade das redes sociais, para se assumir algo à parte do que realmente é. 

E o que realmente é? Wilde abandona a estrutura “After Hoursteen cheio de maneirismos, mas investido com delicadeza que fora “Booksmart” (2019) e aposta num, agora como é vulgarmente descrito, episódio rejeitado da antologia “Black Mirror”, com inspirações numa história imaginada pelo mesmo argumentista de “Titanic II” [Shane Van Dyke]. Porém, não desfazendo a equipa criativa, é bem verdade que já vimos este enredo algures, até mesmo o seu conceito. Por um lado, é a reprodução de “The Stepford Wives” de Bryan Forbes (1975) mais uma vez, a reutilização do modelo de quotidiano americano dos anos 50, onde os conservadorismos patriarcais de mão dada com o capitalismo serviam como resposta agressiva aos movimentos sufragistas que por aí se manifestavam. 

A obra de culto em questão embebia dessa fórmula ritualista para expor uma sociedade centrada na figura masculina e com as mulheres subjugadas a uma passivo-submissão ao matrimónio aí idealizado. Título adequado e irónica aquele que recebera em terras lusas - “Mulheres Perfeitas” - e que mais tarde partilhado pelo remake de 2004, assinado por Frank Oz, e com Nicole Kidman e Glenn Close no elenco (mas isso é história … ou outras histórias, visto que a rodagem desse filme não fora de todo muito pacífica), já que no universo materializado por Olivia Wilde, o signo “mulheres perfeitas” é sinal de abundância. 

Aliás, o termo seria outro, cada vez mais em desuso - “donas de casa” - longe do desespero, mas perto da sua ignorância, uma que rima com felicidade oca. São mulheres dedicadas aos seus maridos, cujas lides de casa são devidamente “amanhadas” como rotina diária, e a estética é toda ela centrada como ostentação aos mesmos do que propriamente desígnios de auto-estima (o que é isso neste mundo?). Luxos e luxuosos cativeiros esses, que mantêm as mulheres suburbanas procurando companhia na cumplicidade de “cela” numas e outras, falando de trivialidades, descendência e acima de tudo, dos esposos e dos seus “misteriosos” empregos (o que será que os faz mover todos os dias para fora dos seus lares). 

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Nesse Reino de além dor, reluzente e aromatizado, o incomodo é um convidado discreto que o espectador primeiramente sente, depois decorre a distopia, ou mais concretamente o elemento distópico. Um “bug” que ameaça uma realidade, feito espelho em estilhaços, e o reflexo dá-se pelo nome de Florence Pugh, a “mulher perfeita” que se debate com a sua própria carnalidade e existência, não de um foro psicanalista ou teológico (mesmo que a personagem de Chris Pine opere como uma espécie de pastor sob o sermão “Vitória, Família e Harmonia"), mas de forma conspirativa ("Midsommer" mais uma vez?). A sua paranóia causa comoção, as perguntas são agressivamente colocadas, as respostas, essas, são ocultadas até mesmo pela pessoa que mais confia … o seu marido (Harry Styles a tentar romper na atuação).

Olivia Wilde presta-se a concretizar uma atmosfera de um positivismo sufocante, até que a harmonia ali desenhada ceda a representações de caos, seja por via de montagens rápidas, seja pelas falsas elipses que contribuem para a artificialidade do cenário e da narrativa que aí embarga. Não vamos longe com a loucura, mas a protagonista (Florence, quem mais seria?) encaminha-nos por atalhos credíveis. Naquele e neste mundo, ela é o filme, o resto é adorno, visto e revisto, modelizado a uma nova linguagem, ou melhor, a uma nova contemporaneidade perceptiva (o foco trazido pela obra de Bryan Forbes é revitalizado, porém de mensagem mais escancarada do que uma mera alegoria). No fundo, “Don’t Worry Darling” é um remake não assumido de “The Stepford Wives” e talvez seja melhor assim, para não ficarmos presos a legados. 

Enquanto isso, não te preocupes querida, aquelas tramas alegadamente ocorridas nos bastidores virarão em “lendas”, e o verdadeiro desafio será a própria ou não emancipação do filme. Só o futuro dirá se foi bem-sucedido ou não nesse “assunto”.   

"Somos todos o Senhor do Adeus". Um ciclo em memória de João Manuel Serra no Alvalade Cineclube

Hugo Gomes, 21.09.22

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O Alvalade Cineclube demonstra-se motivado em recuperar a cinefilia lisboeta, se não o seu espectro, e uma das bem-sucedidas tentativas foi com a iniciativa Salão Lisboa, em que foram projetadas 4 diferentes produções portuguesas em recintos próximos a antigos cinemas da capital. Porém, o trabalho para com esta memória, não tão longínqua, não para por aqui. 

Um novo ciclo surge-nos, desta vez recordando uma das figuras mais emblemáticas da “cidade cinéfila” - João Manuel Serra, ou carinhosamente O Senhor do Adeus - que nos deixou em 2010, sem antes nos mostrar como se deve combater a solidão. A arma? Filmes e tertúlias, assim como um gesto de esperança, o aceno propriamente dito, a todos que seguissem de passagem. 

E é sob essa homenagem que o Alvalade Cineclube parte, da última obra-prima de Francis Ford Coppola - “Tetro” (2009) - para outros hipotéticos “filmes prediletos”, estreados após o seu desaparecimento mas que a programação acredita na existência de suposto amor sentido por parte de João Manuel Serra se tivesse tido a oportunidade de uma “deslumbrar”. O tributo prossegue com “About Endlessness" (Roy Andersson, 2020), “In Transit” (Christian Petzold, 2018), “The Best Years” (Gabriele Muccino, 2020), Cold War” (Paweł Pawlikowski, 2018), “Thelma” (Joachim Trier, 2017)

Para o Cinematograficamente Falando …, mais uma vez, a programadora Inês Bernardo falou-nos sobre o ciclo que arranca já neste dia 22 de setembro, e sobretudo, sobre a figura homenageada em grande ecrã. 

Numa tentativa de resgatar a aura cinéfila de Lisboa, visto que a iniciativa Salão Lisboa incumbia em devolver cinema aos antigos cinemas da cidade, chegou a vez da invocação de um espírito tão querido na nossa comunidade. Quem era verdadeiramente o “Senhor do Adeus”? E o porquê da sua influência na nossa memória lisboeta?

Na verdade, o Senhor do Adeus – ou Senhor do Olá, como ele preferia ser chamado – era o João Manuel Serra, um cinéfilo luminoso com quem todos nós cruzávamos no Saldanha ou no Restelo, a dizer olá a quem passava. Ao contrário do que muitos julgavam, João Manuel Serra era oriundo de uma família abastada e foi um homem com uma vida recheada de viagens e arte. Teve o seu primeiro emprego aos 73 anos, a comentar filmes para o Canal Q e povoa ainda o imaginário de muitos que ainda passam no Saldanha e olham à volta, procurando um sinal do seu adeus. Era um cinéfilo feliz, que amava o cinema enquanto prática semanal, como quem vai ao café. E depois escrevia sobre isso. Claro que não nos lembramos disto (porque muitos não sabem) mas lembramo-nos sim da personagem que nos acenava, a todos, de sorriso genuíno, sem segundas intenções, como se a vida fosse simples. Talvez a memória venha daí, dessa invulgaridade. Terá sido o Senhor do Adeus a última grande personagem do imaginário da cidade? Temos o cinema para discutir isso. 

Este ciclo parte de um filme que aclamou [“Tetro” de Francis Ford Coppola] para se seguir numa hipotética escolha de filmes que chegaram depois da sua existência. Quais os riscos que esta seleção traz à sua memória e como procedeu esta mesma escolha? Conseguiram decifrar o gosto de João Manuel Serra através deste ciclo?

Felizmente - através do carinhoso e cuidado trabalho do Filipe Melo e do Tiago Carvalho - as opiniões do João Manuel Serra estão registadas em blog e em livro e podemos, através desses relatos, saber o que ele pensava sobre os filmes mas também sobre muitos outros assuntos. Os filmes eram um pretexto para falar também da sua vida, do que gostava e do que o emocionava. Sim, pensamos que conseguimos uma seleção interessante que o próprio gostaria. Partimos de um filme que ele viu e criticou – “Tetro” – e passamos por filmes que abordam temas que o fascinavam: a segunda guerra mundial – que ele se preocupava muito que caísse no esquecimento – a elegância que ele via nos italianos, o suspense ou terror. Claro que é sempre arriscado programar a pensar em alguém que não está, mas é um desafio, ao mesmo tempo. Era muito mais seguro mostrar apenas filmes sobre os quais ele escreveu, mas pareceu-nos redutor. É muito mais interessante perguntar: como veria João Manuel Serra estes filmes hoje (a partir do que sabemos dele)?

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Tetro (Francis Ford Coppola, 2009)

Pergunto se os seus companheiros nas “peregrinações” ao Cinema - Filipe Melo e Tiago Carvalho - auxiliaram, ou contribuíram, de alguma forma, para o ciclo?

Sim, tivemos um diálogo próximo com o Filipe e o Tiago para a criação deste ciclo. Desde logo, foram eles os grandes companheiros do João Manuel Serra aos domingos, quando entravam no Cinema Monumental e escolhiam os filmes. O importante neste ritual não seriam tanto os filmes em si mas a conversa e o convívio entre eles, que se lhes seguia.

Uma questão envolvendo o universo do “Senhor do Adeus”, e tendo em conta que o blog se encontra ainda ativo (porém, sem atividade para além da sua existência), existe alguma possibilidade de recuperação dos seus textos para memória futura? Ou quem sabe, conceber um novo “ciclo” a partir dessas crónicas?

Recuperamos os textos para este ciclo e o Filipe e o Tiago já fizeram um trabalho muito  importante na fixação destes textos em livro. 

O que este ciclo poderá trazer às novas gerações de cinéfilos, principalmente para  aqueles que foram alheios da sua presença?

Resgatar a memória do Senhor do Adeus é, precisamente, pensar nas “novas gerações de cinéfilos”. Por vezes existe a noção que os mais jovens são desinteressados e vivem no seu próprio contexto, mas a nossa experiência no cineclube diz-nos que são dos espectadores mais curiosos e sensíveis, que verdadeiramente aceitam o jogo de descobrir uma personagem que lhes é estranha. Ainda por cima este não era um cinéfilo qualquer. Não era um crítico, ou especialista, ou profissional do meio. Era uma pessoa como todos nós, que tinha a generosidade de nos acenar desde a sua solidão e história. E acenava-nos olá e não adeus. E gostava de histórias bem contadas, de suspense, da beleza e do estilo, da preservação da memória. Conhecer estes filmes pelo olhar do João Serra é uma oportunidade única para todos, nova ou velha geração. Somos todos o Senhor do Adeus.

Caretos e caretices

Hugo Gomes, 21.09.22

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Não menosprezando a “A Herdade” (2019), filme que por vários momentos parece atingir o teto da cinematografia portuguesa no que requer a contrair uma linguagem universal e intermediário nas duas “facções” (cinema comercial sem a capacidade alarvo-televisiva), é uma obra cuja narrativa corresponde ao formato quase aristotélico. Ou seja, de “A” passa para “B”, com o encaminhamento do “C” [o terceiro e último ato]. Esta equação, que devo salientar nada contra, atribuiu um tom convencional ao trabalho de Tiago Guedes, o que por sua vez não encontramos em muita da sua obra, de “Coisa Ruim” (2005) ao “Entre os Dedos” (2008), da “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas” (2019) e, o qual não devemos de todo esquecer, “O Coro dos Amigos” (2014) - essa curta-metragem que nos reservou um dos melhores split-screens do nosso cinema. 

Aqui, nesta nova jornada sob a alçada de Paulo Branco (colaboração que o levou a pisar a passadeira vermelha de Cannes na 'Sessão Especial') seguimos numa aldeia transmontana, de localização indefinida, na pisada de uma tradição pagã. O arranque demonstra esse serpentear por rituais, praxes e hinos à masculinidade tóxica legitimada por estas pregadas “entidades divinas”, um cerco de rapazes com rapazes para rapazes, sustentado por violência e desejo de posse. Este evento assume como a cerne dos homens daquela aldeia, uma herança milenar, um pacto de cuspo e sangue, de pauladas e de máscaras de serapilheira. Porém, a nossa introdução naquele mundo termina num acto de marginalização. 

Dá-se uma elipse, um corte abrupto e vários anos passaram num “ápice”, esses marginais, agora “homens feitos” adquiriram novas faces, e bem conhecidas para nós, aliás. Albano Jerónimo, o outrora latifundiário orgulhoso de “A Herdade” é despromovido a “louco da aldeia” (quase como uma peça vicentina, com direito ao seu lugar na Barca do Paraíso), um errante protegido por uma matilha de cães bravios de nome Laureano. Os seus possíveis amigos? Talvez. Do outro lado, mais bem-sucedido, deparamos com Nuno Lopes, Samuel, a figura-chave, de tom corleonesco, daquele sítio. Dois homens, distintos, unidos por uma tradição passada e que em breve serão confrontados pela mesma, reunidos por um crime, um misterioso “whoddunit” que despertará rituais há muito adormecidos. A hibernação terminou.

Os Restos do Vento” passeia-se num campo de minas, de géneros, bem poderemos dizer, aliciados perante nós como aromas primaveris. Ora o folk horror ali … sente-se … o thriller acolá … reconhece-se o tom … e o policial frustrado … soa quase burla, mas “andiamo”. O resultado é um filme resolvido em dar-nos um “universo” (que palavra tão em voga!) a ser explorado, sugerido e imaginado (que becos esconderá estas ruelas?), tal como fora “Coisa Ruim”, essa panóplia de lendas e de folclore num embrulho de cinema de género, cuja narrativa não parte do facilitismo, é uma criatura disforme, não linear, que simplesmente passeia pela sua mostra de “antiguidades”. Ambas as obras apostam maioritariamente no seu ambiente, ou atmosfera, criando um clima temperado e de fluidez moralista (mesmo em resquícios de ambiguidade quanto aos seus meios). Nesse aspecto, “Os Restos do Vento” afasta-se de “A Herdade”, não ansiando a convencionalidade, o novelesco como parece entender. 

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Digo até, que vamos ao (re)encontro da genuína essência de Guedes, do seu cinema de perguntas, e não de respostas, do seu “storytelling” camuflado na portugalidade (seja rural, seja urbana [“Entre os Dedos”], seja geracional [“Tristeza e Alegria na Vida das Girafas”]), espírito ruminado e pendurado como exibição. Como tal, a história, a sua percepção, é o que menos importa, porque os ditos encontram-se lá, entendidos nos silêncios, nas insinuações, no segredo levado a cabo e porventura decifrado por todos. Por outras palavras, o “whoddunit” que vos falei (“quem matou quem?”) é transcrito para segundo plano, é um elemento instigador da trama, o seu meio, mas nunca o seu derrame, o que interessa é saber de onde esta narrativa vem e para onde vai. Destino? À entrega de uma moral impiedosa. 

Contudo, Tiago Guedes em conformidade com o seu “cúmpliceTiago Gomes Rodrigues, apresentou-nos um argumento nunca cedido ao novelesco, mas que infelizmente trai a sua ideia base - o culto aos “caretos improvisados” como fulcral elemento para a “caçada” - o espectro da violência mundana levado a cabo como quotidiano e sistema de hierarquização. Para essa ligação com a “genese”, faltou-lhe a reencenação da simbologia da mesma, a espinha dorsal vinculada nessa ‘coisa’ de rapazes com os negócios destes agora formados homens. Portanto, a densidade com que esta comunidade rural subjugada a um animado ritual é também ele o nó na corda no clímax do filme. E a prova disso, é a previsibilidade do ato ao invés da sensação de impotência no espectador (caindo no conto do mártir).

É uma outra “festa na aldeia”, retirando o rural da sua ingenuidade ignóbil e ao mesmo tempo não mergulhá-la na selvajaria provinciana. Uma aldeia como tantas outras, onde Lisboa, esse prometido oasis, é adiado por via de tragédias que movimentam a sua obscura História. Novamente, Guedes procurou em “Os Restos do Vento” as “coisas ruins” de um Portugal oculto, sem com isto deixar-se encantar pelos mesmos. Género ou não, é a passagem como rito de emancipação, o filme que reivindica o cinema seu depois do “A Herdade”.

Quando Jean-Pierre Léaud lê ...

Hugo Gomes, 18.09.22

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OUT 1: Noli me Tangere (Jacques Rivette, 1971)

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La Nuit américaine (François Truffaut, 1973)

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Masculin Féminin (Jean-Luc Godard, 1966)

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Rosa Mystica (Eva Ionesco, 2014)

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Domicile conjugal (François Truffaut, 1970)

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La Chinoise (Jean-Luc Godard, 1967)

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Baisers volés (François Truffaut, 1968)

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La Maman et la Putain (Jean Eustache, 1973)

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400 Coups (François Truffaut, 1959)

Reprodução interdita

Hugo Gomes, 15.09.22

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"A Man" (Kei Ishikawa, 2022)

A Man” abre e fecha sob a atenta presença de “La réproduction interdite” / “Not to be Reproduced", o célebre quadro da autoria de René Magritte, o qual vislumbramos um homem de costas voltadas ao espectador mas voltado a um espelho que somente reflete as suas costas (a imagem unicamente vista por nós daquele sujeito). A sua identidade é um puro mistério aos olhos do lado de lá da “quarta parede”. 

Uma brincadeira que em tempos Samuel Beckett em cumplicidade com Alain Schneider e o clown Buster Keaton colocaram em prática - “Film” (1965) - emanando a dominância do espectador perante as figuras cinematográficas o qual cruzariam acidentalmente o seu olhar com a audiência [tenebrosa]. Do outro lado, em memória a Godard - o hoje desaparecido - Belmondo falava para com o público descontraidamente natural, o desejo não é o de ser a realidade de um filme, mas antes falsear um filme perante a realidade estabelecida. “Para quem estás a falar?” perguntaria a sua pendura Anna Karina, deslocada daquele comportamento errático em “Pierrot Le Fou” (1965). “Para a audiência”, respondeu o nosso Ferdinand, o Pierrot batizado por improviso. 

Porém, voltando a Magritte, a pintura ignora o seu voyeur, prosseguindo no mistério inabalável da sua identidade. Quem é aquele homem? A génese? O seu intermediário? O seu fim? Sabemos à posteriori, de que se trata de um retrato do poeta e patrono Edward James, porém, a realidade do quadro oculta essa informação, o que vemos nesse reflexo (onde um livro de Edgar Allan Poe pousado na bancada é devidamente refletido), é uma identidade performativa, como se a identidade não fosse outra ‘coisa’, um jogo em plena construção. 

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"La réproduction interdite” / “Not to be Reproduced" (René Magritte, 1937)

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"Film" (Samuel Beckett & Alain Schneider, 1965)

Em “A Man” de Kei Ishikawa, o quadro serve para subliminarmente recordamos o quão maleável é a questão identitária, desde o seu refúgio aos parâmetros sociais, contrariando uma certa ideia regida pelo senso comum ou pelas sociedades panópticas (cada gesto nosso é monitorizado por uma entidade hierarquicamente superior), por outras palavras somos aquilo a que somos impostos, e porque não contrariar isso? O filme parte como um thriller, um mistério ocorrido após uma viúva (Sakura Andô, “The Shoplifters”) aperceber que o seu marido não era bem aquilo que se dizia ser, não um “simples” segredo, e sim toda uma figura. Entretanto, um advogado (Satoshi Tsumabuki, “The World of Kanako”) é contratado e parte numa investigação daquele verdadeiro homem (Masataka Kubota, “First Love”). No seu caminho vai para lá da mera tarefa, tropeçando em questões levantadas à sua própria identidade, adquirindo compaixão por aquele “transgressor”. 

Existem momentos em que “A Man” parece descarrilar pela via de facto, uma delas é trazendo como dispositivo narrativo uma quid pro quo à moda de “The Silence of the Lambs”, perpetuando respostas instantâneas ao suposto "whodunit" (neste caso exerço a criatividade e o apelido formalmente de “whoishe”). O outro elemento fragilizado advém da passagem de testemunho, desta feita de “protagonismo”, colocando a família enviuvada e órfã (o nosso tapete de entrada para a narrativa) para segundo plano, com isto dissipando os seus dilemas existenciais em contacto com aquele imbróglio identitário (“o teu apelido pertence a um homem que não existe”). 

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"A Man" (Kei Ishikawa, 2022)

Ora cortado o vínculo emocional, “A Man” apronta-se a catalisar o dito tema da identidade com pequenos pontos de fuga, sugestões para a elevação do seu discurso, como por exemplo a inserção da arte dos condenados à morte, indicado ao não-serviço de absolvição de culpas mas antes para convidar o espectador a conhecer intimamente o seu artista (um tratado da sua própria vivência). Nessa possibilidade, a artificialidade da identidade esconde uma cerne genuína, impossibilitada de metamorfosear perante os nossos estímulos e vontades. Será essa a verdadeira identidade, ou é somente a chamada existência, o qual devemos desassociá-las e emancipar esta última de qualquer padrão sócio-cultural? 

Obviamente que o filme não capta respostas, nem as queremos. como "Rashomon” de Akira Kurosawa e mais tarde “The Third Murder” de Hirokazu Koreeda que remexem no conceito de ”verdade”, arrancando do seu absolutismo (“o que é a verdade?”, ou “é apenas uma questão de perspetiva?”), “A Man” provoca esse turbilhão conceptual desafiando as suas sólidas bases na nossa sociedade. Já Magritte, o seu último “cameo” na obra, é um memorando do quão possível é essa performatividade em relação à identidade. Recado? Não somos escravos da mesma.

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