Em 2006, Gisberta Salce Júnior, descrita por quem a conheceu como uma “mulher radiosa”, entraria em destaque nos noticiários de todo o país, e não por felizes razões. O corpo desta mulher-trans é encontrado num poço de um edifício abandonado do Porto, tinha 45 anos na altura. Contudo, foi a natureza do caso que “alimentou o mediatismo noticioso” e suscitou debates sobre a relação de Portugal com a comunidade transexual, até porque a autópsia revelou tortura ao longo de vários dias, e os culpados rapidamente foram identificados, tratando-se de um grupo de 14 jovens entre os 12 e os 16 anos.
Passados 16 anos, o caso continua a ecoar na nossa sociedade, mantendo-se como uma das bandeiras nas anuais marchas de luta pelos direitos LGBT. Paulo Patrício, diretor de animação, retorna ao caso com a recolha de depoimentos de ambos os lados desta história - os agressores e as vítimas desses “crimes de ódio” – num processo de inibição do visual do real e substituindo-a por uma animação de rotoscopia-avatar que afasta o documentário da mera estrutura “talking head” e se apresenta como uma experiência estética e de conexão emocional com o espectador. Mas são os testemunhos, os ditos desabafos, ora cansados, ora emocionalmente devastados, a história recontada, entre outros, a servirem de contornos deste “O Teu Nome é”, um filme que opera mais que um tributo, um olhar a uma mulher de vida efémera, a sua martirologia e as reflexões aí extraídas.
O Cinematograficamente Falando … falou com Paulo Patrício sobre o processo, a ideia, a vivência e o subestimado poder da animação.
Gostaria de começar com a seguinte questão, ou diria melhor, pensamento. Passados 16 anos desde a morte de Gisberta, o que mudou ou que ainda está para mudar na nossa sociedade [referindo à realidade portuguesa] em relação à comunidade transexual?
Legalmente, sendo que o caso também contribuiu para isso, mudou muita coisa e a comunidade conseguiu, de facto, adquirir direitos que permitem uma maior integração. Infelizmente, as leis não resolvem tudo. Daí que, socialmente, tenha muitas reservas em relação a mudanças concretas e plenas.
Desde logo, o estigma persiste. A percepção que temos pode não ser essa, mas os casos de violência directa e indirecta (sobretudo esta) continuam. O olhar de lado e a laracha mal-intencionada ainda fazem parte do quotidiano desta comunidade. As políticas públicas são risíveis, já os serviços sociais – e vou generalizar – podiam estar melhor preparados para lidar com questões de género ou identidade. Um plano de tolerância zero em relação à discriminação dentro das escolas, está muito longe de ser verdadeiramente cumprido. Faltam políticas de formação e esclarecimento. No que diz respeito à saúde mental, um aspecto que me preocupa muito no que toca a esta comunidade, os apoios são pouco efetivos. A vulnerabilidade, descriminação e a opressão, por muito que tudo tenha mudado, continuam lá e por resolver. Isso só acontecerá com um trabalho contínuo e coletivo.
Como lhe surgiu a ideia para este filme e o porquê de reunir os “dois lados da moeda” em termos de testemunho (falo obviamente da inclusão dos relatos dos agressores)?
Se eu sou plural, a curta-metragem também tinha que o ser. A minha única preocupação foi essa: pluralidade de vozes e pontos de vista. A inclusão dos testemunhos dos agressores encaixa-se aí e é crucial para um melhor entendimento do caso. Não é uma tentativa de normalização ou desculpabilização, mas uma contribuição para um debate mais alargado. A brutalidade e o preconceito fazem parte do que aconteceu, mas o falhanço redondo, entre outras coisas, das instituições, da malha e suportes sociais também. Sem esses testemunhos, isso não seria compreensível e o resultado seria outro, provavelmente engajado ou polarizado. Coisa que não faz o meu feitio.
Um filme é um processo, e na maioria das vezes, não acaba como começa. Há uma personagem que desabafa, “como é que foi possível?!”, mesmo que tenhamos progredido, olhando para o que vai acontecendo em termos sociopolíticos, a questão que ela coloca em relação aos crimes de ódio continua a ser muito pertinente. Inicialmente, a curta estava centrada na violência e qual era o ponto sem retorno, mas com o tempo, desviou-se para os diferentes pontos de vista das personagens, das experiências, contradições e memórias que cada uma delas tem sobre o caso, mas também sobre questões como discriminação, condição social, preconceito e pobreza. Ou seja, o ponto de vista passou a ser mais importante que o ponto sem retorno.
Foi de fácil acessibilidade a recolha destes testemunhos? Houve resistências da parte de algum dos lados?
Ainda que por motivos diferentes, a resistência partiu desde logo dessa coisa muito humana que é evitar remexer e reavivar memórias e emoções. Também foi pedido o anonimato, como é óbvio. Foi muito complicado e muito espaçado no tempo, aproveito para – mais uma vez, porque nunca é demais – agradecer o trabalho da jornalista Ana Cristina Pereira, sem ela teria sido quase impossível conseguir estes testemunhos.
O porquê da sua opção em abordar esta pós-história numa animação?
Bem, esta resposta prende-se com a anterior: inicialmente seria um híbrido, imagem real com animação, como a maioria dos entrevistados não queria ser filmado, a animação ocupou o lugar da imagem real. Durante as entrevistas não fiz qualquer recolha ou registo, portanto, aquelas personagens não são de todo representações de quem estava à minha frente. Por outro lado, vem no seguimento de outra curta de animação documental, “Surpresa”, onde também é abordado um tema nada fácil.
Repescado um filme ainda presente nas nossas salas - “Flee” - que prossegue num idêntico modus operandis de transmitir o seu conteúdo documental em animação, como encara essa possibilidade de transferir o terreno animado do mero “recreio para crianças” para uma forma expressiva de dinamizar as vivências dos mais marginalizados?
Com toda a naturalidade, porque não sou paternalista em relação à animação. Serve para tudo e é tão legítima como qualquer outra forma ou expressão artística.
Sente que o seu filme tem a capacidade de conscientizar? Foi esse o fundamental propósito do filme?
O cinema não muda o mundo, muito menos a realidade. Quando muito, com sorte, pode mudar uma pessoa. Uma coisa é certa, se temos a cabeça redonda, não é para ter ideias quadradas. E o cinema pode, eventualmente, ajudar a isso.
Sobre a animação, e vincando no panorama nacional, gostaria que me salientasse as dificuldades de trazer este registo ao nosso país e de trabalhá-lo. Acrescento que durante o Festival Monstra, o qual o seu filme também integrou a programação, foram ouvidos diversos desabafos de que a Animação em Portugal é encarada injustamente como uma segunda divisão do audiovisual. Subscreve?
Pior: há até quem ache que a animação não é cinema, mas um género ou coisa equivalente. Entendo de onde vem isso da segunda divisão, porque a maioria da animação, de facto, raramente entra na esfera do político ou tem pertinência social. E quando entra e tem, não é levada muito a sério, parece que foi obra do acaso.
Apesar das dificuldades, estamos muito abertos a produzir este e outros géneros de animação, temos bons filmes e colhemos frutos em festivais nacionais e internacionais. O nosso problema é que tirando algumas bolsas de resistência, eles não chegam ao grande público nacional, o que é de lamentar.
E quanto a novos projetos?
Agora estou dedicado a fazer circular “Sweet Spot”, uma performance de cinema expandido ao vivo, realizada em parceria com Jorge Ribeiro, onde estabelecemos um diálogo recorrendo a diversos meios e técnicas, cruzando música ao vivo, projecção vídeo, animação, pintura e desenho ao vivo e em tempo. Para o ano, terei uma mini-documentário experimental e de baixo orçamento, sobre os pequenos negócios de imigrantes que tentam florescer à margem das lojas turísticas. De resto, estou a desenvolver um outro sobre dança contemporânea.