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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Um Filme em Forma de Assim ... e de assado

Hugo Gomes, 30.04.22

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Sempre foi do conhecimento público o fascínio que João Botelho nutre pela poesia de Alexandre O'Neill (1924 - 1986), não vá por outra razão a sua longa-metragem “Um Adeus Português” (1986) tenha sido assim intitulada, uma homenagem a um poema dessa autoria. Mas anos após anos de presença no nosso cinema, o realizador e apóstolo induzido de Manoel de Oliveira, quebra o seu registo de obras ao serviço do Plano Nacional de Literatura para se refugiar nas rimas e estrofes de O’Neill, num filme cata-vento quanto ao sabor das suas palavras. Estes textos, agora vencidos pelo tempo, aproveitados e contorcidos como “bem apetecer” no domínio de um realizador que esfrega constantemente as palmas de suas mãos para os deter, conservar e preservar em filme, o seu reino e reino à parte da criação de O’Neill

Para isso, regressa a Azeitão a um outrora abandonado armazém de um hectare onde filmou “Os Maias: Cenas da uma Vida Romântica” (2014). O artificialismo aí instalado e acompanhando ocasionalmente a sua obra marca-se como dó predominante neste ziguezague por ruas e ruelas à mão de semear. É neste estúdio improvisado que nasce uma Lisboa de cartão, com habitantes “faz-de-conta”, e no seu seio mal-amparados, fatalistas e eternamente sofredores do campo romântico brotam. Botelho resgata O’Neill e o divide pelos seus heterónimos (poeta errado, mas caminho certo para nunca ceder à biografia convencional), seja Pedro Lacerda, seja Cláudio da Silva, ou até mesmo Crista Alfaiate, pedaços da mesma alma, e um todo do mesmo fragmento. Mas para além da citação e da reinterpretação do trabalho do homem-tributo, “Um Filme em Forma de Assim” conquista-se pela destreza técnica em cumplicidade com o seu jeito contrarrevolucionário à trajetória do cinema português. 

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Muitos clamarão - “cinema de velho” - outros com infame desprezo gritarão com o simples e pejorativo “teatro filmado”, mas esquecerão da existência de uma tradição na farsa à portuguesa, Botelho sempre desejara mostrar e romper as meras ilustrações (aliás, ilustrar têm sido, infelizmente, o seu modus operandis nos últimos tempos) em vénia ao seu mestre desejado, porém, dominá-las tem sido um “bicho-de-sete-cabeças”. Em “Um Filme em Forma de Assim”, sente-se uma liberdade e por sua vez fluidez em percorrer os campos terrenos, esses becos e quarteirões materializados, como o de passear pelo espaço do onírico (sonhos ou visões performadas na narrativa como uma peça vicentina), onde cada travelling, turístico digamos, convida-nos a entrar neste imaginário, nesta projeção lisboeta que apenas vive e revive nas nossas fantasias, encostar as nossas orelhas às conversas nas mesas de clubes privados, afastando-se repentinamente após o primeiro sinal de exaltação. “Disparate”, grita o miope encarnado por Cláudio da Silva (o Fernão Mendes Pinto e o Fernando Pessoa de Botelho) obrigando-nos a distanciar da sua figura, à espera que os ânimos acalmam enquanto Crista Alfaiate tenta ocultar o seu riso trocista, de quem provocou voluntariamente o específico stress. 

É uma fantasia à lá Botelho, com coros, literatura e lendas, e sobretudo danças, não esquecer das danças, techno e juventude a desafiar as leis pandemicas. Pede-se no final que abaixe as cortinas, desaparecendo destes, peões, bonecos descaracterizados ao serviço da poesia, do anormal-quotidiano assim descrito. João Botelho arriscou no seu mesmo universo, ou lá o que isso seja, e talvez tenha aqui o seu filme, a “criatura de Frankenstein", aquilo que sempre desejou. O seu poema. A sua mais pessoal criação.   

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Quem? O infinito?

Diz-lhe que entre.

Faz bem ao infinito

estar entre gente.

 

-Uma esmola? Coxeia?

Ao que ele chegou!

Podes dar-lhe a bengala

que era do avô

 

-Dinheiro? Isso não!

Já sei,pobrezinho,

que em vez de pão

ia comprar vinho...

 

-Teima? Que topete!

Quem se julga ele

se um tigre acabou

nesta sala em tapete?

 

-Para ir ver a mãe?

Essa é muito forte!

Ele tem não tem mãe

e não é do Norte...

 

-Vítima de quê?

O dito está dito.

Se não tinha estofo

quem o mandou ser

infinito?


Alexandre O’Neill ("De Porta em Porta")

Tarifa 3 para Nova Iorque ...

Hugo Gomes, 28.04.22

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Focada na temática do trabalho, quer através do programa Novas Oportunidades que serviu de estudo em “Vida Activa” (2014), quer pelo peso e experiência da maternidade no percurso profissional da mulher (“Tempo Comum”, 2018), Susana Nobre, sem nunca desviar do trajeto, recorre ao seu zeitgeist, o taxista a passo da reforma Joaquim Calçadas para a dirigir em novas andanças.

Figura, ora passageira, ora fulcral na sua filmografia, Joaquim ou Jack (para os amigos) é um homem que não esconde a sua ansiedade em chegar à reforma, mas para isso terá que proceder perante burocracias e uma espera sobretudo demoroso. No entanto, Nobre dá-lhe palco, o nosso motorista que passou anos a conduzir um táxi nas ruas de Nova Iorque, é um orador fascinante e patusco quanto aos seus detalhes. “No Táxi do Jack” segue na boleia desse discurso e obviamente na sua presença para indiciar um paralelismo para com o homem a ser encostado à “box” e com a desindustrialização de Vila Franca de Xira, onde o nosso protagonista vive.

Diversas vezes, Jack faz uso das comparações rocambolescas entre a cidade que o acolheu enquanto emigrante e a cidade que o “abraçou” enquanto repatriado, dessa conexão nasce um filme que mantêm um pé no passado e outro no angustiante presente, manejando o tempo como um só veio, o que resulta em flashbacks diluídos na ação, com os seus quê de voluntária artificialidade e na recusa da representação exata (há uma convergência para com o recente filme de Spike LeeDa 5 Bloods: Irmãos de Armas – ambos renegando esse truque de rejuvenescimento cinematográfico). Por outras palavras, o nosso Jack mantém-se intacto na deriva das suas memórias e na espera do seu digno fim.

Susana Nobre deparou-se com um “achado”, infelizmente não consegue extrair toda a sua tragicomédia, levando-a, por momentos, a dispersar do seu “objeto estudo”, até por fim se reencontrar uma costela algo camp do cinema de máfia norte-americano. Contudo, Joaquim, nobre figura, merecia um palco mais abrangente do que este sentimento de expansiva curta-metragem.

Por uma chapada apenas ...

Hugo Gomes, 25.04.22

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I'm for the Hipopotamus / Io sto con gli ippopotami (Italo Zingarelli, 1979)

Que fácil seria se tudo resolvesse por via de uma mera chapada. Não de luva branca mas de dedos calejados. Uma chapada apenas, que não deixasse marcas, o remédio de todos os santos perante os malfeitores, seja eles bandidos, larápios ou de colarinho branco, megalomaníacos dignos de uma enésima missão de Bond, delinquentes arruaceiros ou até mesmo caçadores furtivos de ecossistemas selvagens. Todo esse rol cedido a uma palma em colisão, produzindo um efeito proustiano aos tempos dos severos castigos atribuídos pelos progenitores. Tão simples, “dolor”, porém simples. Mas no “mundo real” (entre aspas para cairmos em absolutismos em definições exatas e incontestáveis), o processo triunfal estes males, grande ou pequenos, deve-se mais a um efeito de construir uma impenetrável  “parede”, uma defesa enriquecida para que o nosso “agressor” não trespasse. 

Contente pela vitória de Macron, um “mal menor” acima de uma eventual ameaça pela democracia liberal e do dito projeto europeu, sem falar das artimanhas, muitas delas inconstitucionais (como fez relembrar o atual e reeleito Presidente francês no anterior debate, com cerca de três horas, com a sua adversária) e fora do campo ético e humanista. Assim se ganha, como igualmente se perde, 42 % nunca poderá ser um bom presságio, as velhas políticas parecem não encontrar mais lugar nesta atualidade, o radicalismo viabiliza-se como o caminho mais direto à emocionalidade dos seus eleitores. 

Contudo, fantasio o quão rápido que seria neste mundo se tudo fosse resolvido por via da bofetada, infelizmente, foi com esse clímax que o cinema da minha infância “ensinou”, tendo como professores a dupla “clownescaBud Spencer e Terence Hill. Os, deliciosamente, maus exemplos, fazendo-me crer da simplicidade que seria uma resolução com cinco dedos, ao invés disso, acordei para a pluralidade, racionalidade e a tentativa de compreensão de um ato que seja para o motivo que cada um persiste. Nada é simples e nada é fácil por estas bandas, e nem mesmo o Cinema se quer fácil para retratar o nosso mundo.

 

Um adeus a Jacques ...

Hugo Gomes, 22.04.22

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La Ragazza con la Valigia (Valerio Zurlini, 1961)

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Nuovo Cinema Paradiso (Giuseppe Tornatore, 1988)

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The 317th Platoon / La 317ème section (Pierre Schoendoerffer, 1965)

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The Desert of the Tartars / Il Deserto dei Tartari (Valerio Zurlini, 1976)

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The Young Girls of Rochefort / Les Demoiselles de Rochefort (Jacques Demy, 1967)

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La Ligne de Démarcation (Claude Chabrol, 1966)

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Rémi sans famille (Antoine Blossier, 2018)

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Z (Costa-Gavras, 1969)

 

Jacques Perrin (1941 - 2022)

 

Nós Viemos do nada para o nada

Hugo Gomes, 21.04.22

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Nós Viemos / Nous Sommes Venus (José Vieira, 2021)

Texto escrito a propósito da sessão especial 6.doc (entre 21 e 27 de Abril, no Cinema Ideal).

Se existe uma razão válida (e nada saudosista) para invocar o passado, está no seu uso como diálogo ao presente e “Nós Viemos", a mais recente obra de José Vieira (“A Fotografia Rasgada”), documentarista português radicado na França, é um exemplo dessa “jigajoga” temporal e cautelosamente posicionada. Uma aposta arriscada digamos, essa, de contrariar as inúmeras vertentes populistas e delinear uma convergência experiencial entre os emigrantes portugueses dos anos 60 - muitos deles forçados a exilar para a França, deixando para trás um Portugal cada vez fechado, lançando-se à incerteza do território “estrangeiro” - para com os fluxos migratórios contemporâneos, principalmente provenientes da África e do Médio Oriente, pessoas vistas com “maus olhos” pelas fasquias mais conservadoras.  

“Escavando” e integrando imagens de arquivo (se uma imagem vale mil palavras, eis a prova irrefutável à chamada “Fantasia Lusitana” do Estado Novo) e recolhendo relatos, ao jeito do seu modus operandis (sabendo que o mote da sua carreira encontra-se na sua experiência pessoal, também ele emigrante), Vieira montou uma história coletiva, atada nas suas pontas por uma sinceridade e humildade para com essas memórias e com essas “vidas” (a dignidade que muita delas ostentaram durante os seus períodos de desumanização). Nesse diálogo para com o passado, o documentarista intervém, ou, sem seguir pela via pejorativa do termo, “invade” tais confidências com a atualidade e com os “novos invasores”, através das histórias que desmistificam o mito do sucesso lusitano em terras francesas (a relembrar o seu polémico “Weekend en Tosmanie”, em 1985, cuja “realidade” era negada), encontramos o ponto-comum para com as vivências contemporâneas.  

Refugiados, a condição hoje envergada em “embrulhos nefastos”, instrumentalizados pelo extremismo político, foi em tempos anexado à massa migratória portuguesa, ou seja, só quem viveu nessa pele pode por fim entender o que está em jogo. José Vieira traz com “Nós Viemos”, um exercício de empatia através do identificável. É o que realmente falta, não apenas aos dias de hoje, como também ao nosso olhar distante para com a História.  

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Jamaika (José Sarmento Matos, 2021)

E falando nessa empatia em causas sociais, “Jamaika”, filme de estreia do fotógrafo José Sarmento Matos (a fotografia mantém-se na coluna vertebral deste projeto), recorre a essa aproximação através do "vislumbre" arquitetónico do infame Bairro da Jamaica, no Seixal. Contextualizando os tempos de pandemia, onde o confinamento tornou-se na lei, somos remetidos àquelas pessoas "condenadas" às condições dos seus meios. Um bairro que em “praça pública” é de difícil emanação empática, caindo nas “armadilhas” da dita instrumentalização política. “Jamaika” não esconde a sua intenção de conscientização, mas as suas ferramentas não se ficam pelo uso pornográfico do miserabilismo, e sim da mostra miserabilista para indiciar no mais simples e direto para esta época altamente visual - as imagens acima do seu valor estético, como  também de valor sentimental.

Perdido ao "KM 224" ...

Hugo Gomes, 20.04.22

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Ana Varela em "KM 224"

Em todas as vezes que António-Pedro Vasconcelos é convidado a discursar, tertuliar ou meramente expressar, paro e ouço com agrado, mesmo que parte daquilo que será eventualmente dito seja posteriormente contestado. Atualmente, mais que nunca, esse lugar cativo é constantemente reservado, até porque APV (carinhosamente abreviado) é um sobrevivente de um tempo que nos é cada vez mais distante. Contudo, existe uma diferença no homem cronista, cinéfilo e com vontade de “queimar as bases” de sensos-comuns cinematográficos (“‘Oito e Meio’ de Fellini marcou o início do fim do cinema de autor europeu, porque foi a primeira vez que um autor colocou o seu nome no título”, uma das suas teses), e no homem por detrás da câmara, e é sobre esse último que vos trago.  

Popularmente conhecido entre o grande público (um dos poucos que responde às “massas" com alguma “dignidade”), APV é um devoto do cinema com que nasceu e cresceu (Hollywood, Neorrealismo Italiano ou Nouvelle Vague), e nisso reflete nas suas intenções ao invés dos seus atos. Por entre ensaios mais felizes que outros (sou dos poucos que defende “Call Girl” como uma subestimada vénia à série B americana), é com “KM 224”, uma espécie de “Kramer vs Kramer” à portuguesa, que notamos esse estrangulamento de referências com uma vontade de agradar “fregueses”. É um cinema que fala e apela aos sentimentos comuns, o qual faz uso das peripécias de um irresponsável pai (José Fidalgo), uma apropriadamente do muito padronizado arquétipo “child-man” [“homem-criança”], em contraste com a assertividade de uma mãe fria (Ana Varela), como o centro do conflito de um litigioso casos de custódia. 

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José Fidalgo e as crianças [Gonçalo Menino e Sebastião Matias] em "KM 224"

Bebendo do modelo americanizado no tratamento destas personagens, mas nunca restringindo a drama de tribunal, em alternativa assume-se como uma dramédia com sede zeitgeist (APV sempre demonstrou essa ‘tentação’ de ser atual, custe que custar), “KM 224” perde o registo da possibilidade do seu cinema, ou por outras palavras não invoca o suficiente para que aquelas imagens mereçam o privilégio do grande ecrã (em oposição, os drones já se normalizam em demasia no audiovisual que as telenovelas utilizando-as exaustivamente). Com excepção do plano-zenit ao som de Leonard Cohen e o seu “Dance Me to the End of Love”, uma sequência que imprime os sentimentos daquelas personagens e do seu condutor fio narrativo como se a intriga não tivesse essa capacidade de expressão, ou um ou outro travelling, o restante resume-se a uma pobreza técnica, agravado por personagens pouco apetecíveis na sua construção e desenvolvimento (até pouco interessadas nesse aspeto), e uma guarda - essa suposta guerra infernal - que automaticamente escolhe a sua trincheira.

Por um lado é isto: “façam apenas o que eu digo, e não o que faço”. Apesar de tudo, continuarei a ouvir António-Pedro Vasconcelos. Por vezes tal acontece, vermos realizadores mais interessantes que os seus filmes.

"Pai, se possível, afasta de mim este cálice"

Hugo Gomes, 19.04.22

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Neste preciso momento não consigo abordar “Il Vangelo Secondo Matteo" (1964) sem começar por o referir, em modo de provocação, como “carta de trunfo” a um (outro) filme que me impôs um nó na minha garganta, nos últimos dias. 

Numa semana em que uma tríptica produção de Joaquim Pinto e Nuno Leonel chegava às salas (ou sala, para ser mais preciso), o célebre filme de Pier Paolo Pasolini era reposto no circuito de projeção. Se por um lado, a dupla portuguesa expunha um cristianismo inabalado, martirológico, e com isso, sem releitura para além das interpretações milenares das escrituras, pregadas e pregadas até se estabelecerem em senso comum, na pedra basilar do nosso mundo ocidental (e anglo-saxónico). Esse medo da morte, e dependência do nosso destino (como da nossa Humanidade) nas "mãos" de um ente divino, embatem no “Cavalo de Tróia” construído por Pasolini, uma adaptação fiel ao evangelho mais que decorado, e por sua vez uma reinterpretação aos escritos, ressaltando a veia marxista e ativista de Jesus Cristo, aqui interpretado pelo estudante espanhol Enrique Irazoqui (que na altura estudava Economia em Itália), liderando um elenco de não-atores. 

O anterior poeta, crítico, e até então, realizador celebrado, premiado e constantemente sublinhando a sua veia provocatória (anteriormente havia realizado a curta “La Ricotta”, irando as comunidades religiosas com um desconstrução aos simbolismos cristãos), pretendia um ensaio contrastado com as grandes produções, aliás, apropriações hollywoodescas dos Evangelhos, nesse aspecto, arquiteta uma aproximação ao neorrealismo italiano, filmando uma obra na sua naturalidade; paisagens naturais, pessoas genuínas (a realçar a própria mãe como Maria em alturas de crucificação) e artifícios engenhosos e criativos de recriação dos milagres em tons artesanais.  

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Il Vangelo Secondo Matteo" responde ao apelo que as muitas obras de cariz religioso não fazem, e como Pasolini assumiu-se ateu, mas culturalmente católico, mais impressionante se torna a sua viragem e tratamento nesta “maior história de todos os tempos” (entre aspas como menção a um ambicioso projeto norte-americano que estreava no ano seguinte), fruto do seu fascínio pelo Verbo, ou a poesia escondida (ocultada pelo obscurantismo religioso que prevaleceu) no Evangelho. Novamente frisando, é na sua fidelidade, citando copiosamente a obra-base, que o realizador encontra e enfatiza o tom emprazado nas escrituras. Cristo, não representado aqui como um somente e “mero” Messias, é uma figura politizada que prega a religião das religiões na sua crua forma, ostentando punhos fechados contra burguesias e defendendo o proletariado com tamanha fé e sabedoria, e raramente sem resposta à sua altura. 

Marxista, acusado por muitos, e mais fundamentalizado tendo Karl Marx como um dos ídolos de Pasolini, “Il Vangelo Secondo Mateo” funcionaria na perfeição como uma obra desse campo, algo propagandístico (segundo as más línguas do outro lado da barricada), resgatando o lado franciscano e igualmente preservando a misticidade sem a utilização gráfica implicada à conjugação do misticismo. É num verdadeiro “faz-de-conta”, em paisagens áridas da Calábria (mimetizando a Palestina), com o apoio de planos gerais, conjuntivos, “abraçando” multidões e escadarias em encostas íngremes como se uma pintura babilónica de Pieter Bruegel se tratasse, composição por vezes desafiada por grandes planos dos seus atores, nomeadamente a de Jesus, de olhos fixos e determinados, numa inexpressividade contrariada à grandiloquência musical integrada por Bach, Mozart e cânticos religiosos.  

É um filme atípico, certamente, e o é num sagrado sacrilégio (mesmo que incompreendido pelo seu acompanhamento, erradamente tido passivo, da matéria-prima), tendo reavido o amor, sentimento contrariado pela Igreja ao longo dos tempos, deturpando os ensinamentos do Nazareno em prol da sua sobrevivência institucional. É este tipo de tratamento, acima do mero lisonjeamento, que separa a “religiosidade” existencial de Pasolini com a religiosidade epifânica de Pinto e Leonel. Pasolini não se fixa, interpreta e constrói a sua realidade (“o cinema ao natural”, como dissera uma vez), e nesse seu quadro nasce um dos retratos mais emblemáticos - do Nascimento à Ressurreição - de Cristo no Cinema.  

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PS: sobre a postura algo rebelde de Jesus na obra de Pasolini, é bom recordar (ou descobrir) o polémico “As Horas de Maria” de António Macedo (1977), que se alimenta dos ecos desse tratamento, porém, elevando o seu tom provocatório ao nível de uma denúncia herética. Mas no fundo, é um dos filmes mais impressionantes e acidamente fracturantes da nossa filmografia.   

O grito que desce da Terra

Hugo Gomes, 16.04.22

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É nos seus imundos aposentos, isolado e possivelmente inconsolado, que Deus comete o seu suicídio, esquartejando-se, arrancando pedaço a pedaço da sua carne, aquilo que todo o Homem cobiça como Santo Graal é matéria desperdiçada, aliás descartada como uma mera inutilidade até se esvaziar em sangue. Uma maldição de quem tomou a Criação como garantida e que se despede desse mundo habitado por mortais, não com dignidade, mas com a maior das sujidades.  

A morte de um Deus tem algo de simbólico, e quiçá Nietzschiano, uma realidade sem autoridades divinas que nos possa comandar … porventura, será desta forma que os humanos serão livres, ficando somente com as suas convicções? Porém, é no seu “corpo”, defunto que reparte e gera a sua companheira - “Mãe Terra” - que aproveita os despojos mortais do seu criador para fecundar nova vida, quem sabe uma nova entidade que os sub-endeusados possam venerar. Dessa gestação difícil surge-nos o rebento defeituoso a quem chamaremos “Filho da Terra”, um ente deficiente cuja respiração soa-nos suplício, pedido agonizante para que a sua vida seja retirada, o merecedor descanso, o fim daquela aflição a quem chamam de “viver”. Grotescamente, é a Humanidade a o fazer, a cometer o golpe misericordioso, destruindo, despedaçando, até não restar nada desta Terra, desta Religião, destes intérpretes.  

Contrariando as vozes que me avisaram com antecedência - “não procures interpretação em 'Begotten''' - procurei lê-lo à luz do crepúsculo vindo da ala do projecionista. E como qualquer escritura, ou religiosidade que sobrevive nestes milénios, é a nossa interpretação que orienta como a sua “lanterna”, dela nasce as nossas vontades, aliás, a nossa condição para com este Mundo. Em “Begotten”, obra experimental, que em seu jeito, ou melhor, desajeitado, evidencia-nos uma experiência no limite da sua loucura infernal. Segundo consta, foi em 1989, vindo da Escola de Cinema de Nova Iorque, que o na altura jovem de 26 anos, Edmund E. Mehige, estreava com este ensaio underground orquestrado por um grupo de teatro amador [TheatreofMaterial], o que sairia daqui fascinou nomes de respeito como o crítico Scott MacDonald ou a filósofa e ensaísta Susan Sontag, a sua maior defensora, cujo ávido acompanhamento levou o realizador a responder com uma seguinte homenagem (“Din of Celestial Birds”, 2006).  

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De Mehige, sinceramente, nada de notável brotou na sua carreira (o seu título mais vistoso, "The Shadow of the Vampire”, releitura da rodagem de “Nosferatu”, de Murnau, gozou de temporária bênção), mas é com “Begotten”, o de aventurar nele com prévios avisos de uma perturbadora experiência em sala, um filme que gesticula uma aberrante forma de viver. Até mesmo a sua "apresentação" naquela tela, possui algo de perturbador e de não-natural, um achado arqueológico “desenterrado” por mero acidente, cujo contacto com o presente o desintegra a olhos vistos. O som minimalista de Evan Albam, mimetizando o respirar ofegante e arrastado da “criatura” abatida, no qual revemos como o espelho da nossa ignorante crueldade, que de “mão dada” com a sua imagem deteriorada (voluntariamente dando a sensação de objeto reavivado) paira como uma atmosfera que só graças à nossa mórbida curiosidade nos faz penetrar na sua bizarra tortura.  

Homens contra entidades sobrehumana, ou o natural vencido pela incompreensão dos Homens? O que é certo, que por detrás da sensorial “trip”, inclassificável produto das mais deturpadas imaginações, esconde uma declaração de guerra, não aos Deuses, mas ao nosso rumo enquanto Humanidade dividida, refugiada no obscurantismo dos nossos atos. Sim, como qualquer “filho” do criacionismo (ora Eva e o fruto proibido, ora Pandora e a caixa das desgraças, ora Prometheus e o fogo ensinado aos Homens) desafiei os avisos e atribui um significado a essa performance do grotesco. Atrocidades encenadas, como no Inferno, como no Paraíso, como na Terra. 

As Revoluções não acontecem apenas com intenções ...

Hugo Gomes, 13.04.22

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"Há diversas modalidades de Estado: os estados socialistas, os estados corporativos e o estado a que isto chegou! Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos. De maneira que quem quiser, vem comigo para Lisboa e acabamos com isto. Quem é voluntário sai e forma. Quem não quiser vir não é obrigado e fica aqui."

São dois, os momentos que retenho nesta minha experiência com “Salgueiro Maia - O Implicado”. A primeira, após o aviso de Miguel Borges que faz da refeição uma ocasião sagrada digna do silêncio, a câmara de Sérgio Graciano, pacientemente, aguarda e respeita esse mesmo tempo de comunhão, cincos minutos que em jeito abstrato poderiam traduzir os tempos amedrontados do Estado Novo (se Joaquim Pinto conserva-se em 11 horas, nem é por meros minutos que o “gato vai às filhoses”). A segunda sequência resulta na decorrência numas das “missões” ultramarinas, quando uma das praças do pelotão sob o comando de Maia pisa acidentalmente uma mina. A câmara, mais uma vez, reforça o seu papel expressivo, mapeando um quadro de três pessoas - a aflição, a salvação e a consciência - numa cena que responde com sugestão e nessa “invisibilidade” consegue captar um pânico de difícil descrição. 

Duas cenas, foram essas as que consegui reter nesta cinebiografia, mais que convencional, de um dos grandes heróis da Nação, o nosso “capitão de Abril” por excelência (pelo menos, o mais consensual e apolitizado). “Salgueiro Maia - O Implicado” é um protótipo de um filme, um teaser para uma possível série televisiva (pelos vistos é esse o plano). O porquê de dizer isto? Pela sua narrativa descosturada por vinhetas biográficas, saltitando narrativamente sem se aperceber que desta maneira sacrifica o ritmo (aliás, tem sido o grande “calcanhar de Aquiles” de Graciano neste seu percurso cinematográfico) e a própria dimensão da personagem (Tomás Alves, que vimos em grande plano ao serviço de Mário Barroso em “Um Amor de Perdição”, é mais que competente no seu papel, diria mesmo, heróico), sem referir à quantidade de elenco reduzido a meras passagens (Catarina Wallenstein, João Nunes Pinto, Diogo Martins, José Raposo, etc). 

Esta postura kamikaze resultou numa mera lição de História, pedagógica nos seus costumes e telenovelesca na sua postura, invadida por uma banda-sonora onipresente de José de Castro (que havia trabalhado com Graciano em “O Som que Desce na Terra” e o infame “As Linhas de Sangue”) que com uma assertiva disciplina tenta invocar a emoção ausente nas imagens deste “Salgueiro Maia – O Implicado”. Resumindo e concluindo, pouco cinema e mais televisão por estas andanças. 

Depois disto, “Capitães de Abril” de Maria Medeiros (com o ator italiano Stefano Accorsi, e dobrado por João Reis, como Maia) deverá ser promovido a “obra-prima”.

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