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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Oscars 2022: o Cinema é secundário quando temos "bofetadas" em direto

Hugo Gomes, 28.03.22

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The Power of the Dog” foi o grande vitorioso e simultaneamente o grande derrotado. Se por um lado a neozelandesa Jane Campion venceu o prémio de realização (a terceira mulher na História das estatuetas),  dando a entender o favoritismo do seu western desconstrutivo (desde o western spaghetti, que não existe western que não seja desconstrutivo), mas cujo apelo emocional e a atenção da representatividade levam o Óscar máximo à apropriação yankee de “La Famille Bélier” (sim, “CODA” é um remake do êxito francês). E foi através deste filme de família, que muitos juram ser simpático e de coração meloso (até à data deste texto não o vi por várias razões, uma delas é por já ter presenciado a versão francesa), que a fronteira de legitimação dos streamings neste contexto premiável foi totalmente trespassado. O mercado e o mundo vai mudar a partir de hoje. Em Portugal (novamente frisando, até à data deste texto), o "CODA'' apenas está disponível na Apple TV, e quem sabe ainda teremos que aguardar para o ver em grande ecrã (ou se calhar não, visto já não ser mais prioridade).

Enquanto isso, “Duna”, previsível, saí-se triunfante nas categorias técnicas, os lobbies das majors fizeram novamente sentir em muitas outras categoria, para ser exato a Disney com “Encanto” (uma perversa animação que ostenta a falta de criatividade no meio) e “Summer of Soul” a lesionarem “Flee” (Animação e Documentário respectivamente), já no Filme Internacional, “Drive My Car” sai compensado. Depois de Secundários merecidos, Ariana DeBose (no mesmo papel que garantiu também a estátua a Rita Moreno em 1961) foi de facto das melhores “coisas” da revisão e declaração amorosa de Spielberg a “West Side Story”, o último ato é marcado com decisões acima de tudo estranhas e fora das habituais apostas, a começar por Belfast como Argumento Original (The Worst Person in the World ficou a ver “navios”), “CODA” torna-se no melhor guião adaptado (“Drive My Car” e “The Power of the Dog” juntaram-se ao filme do Trier no miradouro), Jessica Chastain (“The Eyes of Tammy Faye”) passa à frente de Olivia Colman (“The Lost Daughter”) e Kristen Stewart (“Spencer”) em Melhor Atriz e Will Smith (“The King Richard") triunfa sobre o favorito Benedict Cumberbatch na categoria masculina.

Cerimónia desesperada em reconquistar público, marginalizando as categorias técnicas da festa televisiva e priorizando as performances artísticas e as boas intenções, assim como a hipocrisia (ver Francis Ford Coppola em palco celebrando os 50 anos de “The Godfather” enquanto a indústria tem o desprezado nestes últimos anos). No fim de contas, os Óscares são o que são, fala-se menos de Cinema e fala-se mais de espectáculo e a tendência é cada vez mais nessa direção até a sua relevância ser totalmente desvanecida. Porém, nada importa aqui, Will Smith esbofeteou Chris Rock e é disso que se fala.

Oscars 2022: O Padrão, O Cenário e o Desabafo

Hugo Gomes, 27.03.22

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Irritações sobre os Óscares. Um convite de Roni Nunes para o seu site Cultura XXI.
 
"Nesta última indicação gostaria de deixar a minha oposição à Academia Americana e invocar o discurso vitorioso de Bong Joon Ho de estatueta de Melhor Filme na mão: “quando ultrapassamos a barreira das legendas, acedemos a tantos magníficos filmes”. Talvez seja essa a resposta à angústia dos Óscares, essa abertura, internacional digamos (até como ofensiva a uma indústria cada vez mais decadente e homogeneizada), mas também na perda dos preconceitos quanto a géneros e a abordagens. Novamente celebrar Cinema e não apenas “glamour”, se é que um dia os Óscares foram sobre o cinema propriamente dito."
 
Para ler aqui.
 

O que há depois do Amor?

Hugo Gomes, 25.03.22

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Digamos que “After Love” é britânico até à medula, principalmente na sua conjuntura dramática, simples e por vezes leviana, atingido calculados pontos de rutura para com essa suposta ambiência harmónica (que relembramos como clímax). A longa-metragem de estreia de Aleem Khan é a representação do pós-fábula - “e viveram felizes para sempre” - um exercício que se estende pelos caminhos que o amor percorre após a sua consumição, neste caso, do trágico destino da mortalidade.

Mary (Joanna Scanlan, vencedora do Melhor Atriz nos BAFTA), uma mulher da cidade portuária de Dover [Reino Unido], cujo marido subitamente falece (uma sequência de abertura sem ênfases que pontua a nossa impotência para com a eventualidade e imprevisibilidade da morte), descobre por vias de mensagens de telemóvel que o “amor da sua vida” tinha uma amante, e consequentemente, um filho. Sem rumo algum, a nossa protagonista descobre o paradeiro dessa “família secreta” do outro lado do Canal da Mancha, mais precisamente na cidade de Calais [França], conseguindo-se "infiltrar-se" naquele “outro lar”, uma “outra vida”, porventura, desconhecida do seu anterior companheiro. Se existe algo que “After Love” consegue, de uma forma orgânica, é o de conquistar-nos pela sua ausência de antagonismo, liderando assim uma jornada espiritual de uma mulher ao encontro do lado oculto do homem que julgava conhecer. É um facto que várias ideias podem ser extraídas daqui, desde a sugestão de poliamor ou simplesmente uma mensagem anti-rancor para com as desventuras amorosas (desfavorecendo uma possibilidade de narrativa de luto).

O olhar de Aleem Khan em todo este cenário (sendo realizador britânico com raízes paquistanesas), é de uma orientalidade que invade conceitos ocidentais, tal como são impressas no retrato da protagonista (mais apropriativa do que enraizada culturalmente, estabelecendo assim uma ponte, não somente metafórica para com as duas “margens”, mas para com os dois distintos olhares, dando a sensação de universalidade), uma combinação multicultural que resulta numa nova temporalidade. Aliás, as temporalidades que surgem após desfechos do Velho Mundo são claramente a tour-de-force de um filme que indicia conflito, mas que não se apoia inteiramente nele. No fim, isso mesmo, um estado de espírito alcançado com um coração humanista sem traço algum de agressividade e demonização.

É o perdão como palavra-chave, mas não de jeito autodeterminado e (re)compensatório, e sim, de pacificação com a memória de quem nos fez, nem que seja por um dia, feliz.

50 Anos de "The Godfather": onde o Cinema começou para alguns ...

Hugo Gomes, 24.03.22

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Cinquenta “aninhos”! Olhem só o quão crescido ele está! Para mim torna-se inevitável não associar “The Godfather” (“O Padrinho” em clássico português) como o grande instigador das minhas frentes cinéfilas.

Desde sempre que coloco esta obra cimeira de Francis Ford Coppola num ambiente de familiaridade, não insinuando com isto às tramas e subtramas que orbitam naquela família ligada ao crime organizado - a máfia com todos os rodriguinhos eternizados que isso acarreta -  mas por ter sido aquele momento, com somente 14 anos e com apenas 5 minutos de filme (os créditos de Nino Rota a dar lugar à face de Salvatore Corsitto, que suplica por vingança em nome da sua filha a Marlon Brando, sob a veste do “gigante” Don Corleone), que consciencializei-me, pela primeira vez, sobre as possibilidades que a Sétima Arte teria para me oferecer (fora dos êxitos momentâneos que os meus colegas de escola referiam com êxtase ou das memórias evocadas por aquelas sessões de VHS juntamente com o meu pai). Sim, foi com “The Godfather”, o filme pelo qual despertei para o Cinema (com “C” grande para dar enfoque a uma galáxia ainda por explorar) propriamente dito. Ainda hoje, escrever sobre ele soa-me tarefa hercúlea e em certa parte ingrata, não para a obra em si, mas para o escriba e consequentemente para o leitor.

Praticamente tudo se conhece sobre “O Padrinho”, muita tinta correu sobre o seu legado (livros, ensaios), muitos olhares foram partilhados (documentários, comentários) e até mesmo a história dos seus bastidores está em vias de estrear sob a forma de romantizada ficção (num pequeno ecrã). Não é original nem motivador escrever ou sequer falar sobre o oscarizado trabalho de Coppola, mas com o seu quinquagésimo aniversário a ser celebrado (24 de março de 1972, o filme estreava nos cinemas norte-americanos), não posso deixar passar em “branco” esta oportunidade para agradecer àquela “oferta irrecusável” que foi o acesso direto à minha particular “escola de cinema” durante os meus “verdes anos”. 

Rita Azevedo Gomes e o nevoeiro em três dimensões

Hugo Gomes, 21.03.22

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Há um sentimento de repetição, não em Rita Azevedo Gomes devo dizer, mas em mim, que tenho acompanhado a sua obra e que nunca obtive o privilégio de “presenciar” a realizadora das “imagens em transe” nem o “para aí além”. Sempre deparei-me com o fenómeno como uma espécie de exagero subtilmente implantado entre nichos como resposta a um cinema que tem se espalhado fora desse concentrado de adornos intelectuais e ócios comumente replicados, tendo como centro a Cinemateca (o qual trabalha como programadora), a raiz de toda uma ideologia cinematográfica que por aí expande ou fomenta. Basta verificar nos seus defensores do outro lado do Oceano Atlântico, que por um lado olham para o Cinema Português de uma forma limitada ou a encaram como uma homogénea demanda, nunca sobressaindo das linhas oliverianas ou cesarianas, e por vezes tendo em conta uma trajetória própria de Pedro Costa. 

Quanto a Rita Azevedo Gomes, novamente cito João Bénard da Costa, ator-convidado ao seu "Frágil como o Mundo” (a sua melhor obra até à data) em que explicita um nevoeiro que amedronta os corações dos Homens, essa mesma neblina, desconhecida salienta-se, empesta o potencial de uma realizadora em conseguir um cinema que seja seu por direito, e que não invoque as auras tidas de um Oliveira, de um César Monteiro ou até mesmo do artista plástico Luís Noronha da Costa (o qual Rita Azevedo Gomes trabalhou como atriz e assistente de realização no ainda muito obscuro “O Construtor de Anjos”, em 1978). 

Por outras palavras, sempre espero mais dela do que meros “filmes para amigos e para específicos amigos”, ou o reconhecimento por detrás daquele travelling serpenteado nos aposentos da decadente duquesa em “A Vingança de uma Mulher” (2012) ou do cuidadoso mise-en-scène em “A Portuguesa” (2018), exista um temor em desconstruir as suas práticas e conhecimentos em prol de uma linguagem própria e desafiante. No fim de contas, Rita Azevedo Gomes constrói quadros de natureza morta, de estagnada vida que por lá reside. Na chegada de “O Trio em Mi Bemol", com base numa peça de Eric Rohmer e o tormento que é em (re)adaptá-la à televisão e por sua vez ao cinema, sou hipnotizado com a seguinte imagem: Rita Durão (atriz-fetiche do cinema de Gomes), “escondida” na quietude da noite, fumando o seu cigarro anestésico, apenas “acompanhada” pela lua cheia que de “braços abertos” abraça-a assim como o mar de costas voltadas para a mesma. Bela imagem, confesso, ressaltando o olho pitoresco e de preciosa perspetiva renascentista da realizadora. 

Quanto ao resto … porém, o resto é fazer teatro escorrer em trajes cinematográficas, enriquecendo em planos conjuntos que desafiam o oscilar das diferentes dimensões. Só que a esta altura do campeonato, os involuntários propósitos de Rita Azevedo Gomes confundem com os propósitos do enredo, transformando tudo aquilo num programa televisivo. Se em parte os dilemas e bloqueios criativos do realizador empenhado à tarefa (Adolfo Arrieta) tentam conduzir o filme para além da sua matéria-prima, por outro, e aproveitando a deixa da assistente de realização a este veterano nos primeiros minutos de “O Trio em Mi Bemol” - “Tudo é uma grande farsa" - não poderíamos estar mais de acordo, os alicerces enferrujados estão à vista de todos, e nem sempre é por culpa da artesã, porque como a própria adianta em prólogo  -“Este filme só existe graças à colaboração desinteressada de todos os que nele participaram”. No fundo o que está implícito é um exercício, e como todos os exercícios não existe muito mais além do ato de exerção do mesmo. O nevoeiro continua por trespassar.

Feliz por fora, triste por dentro

“Gertrud … Gertrud …. Porque é que me abandonaste?”

Hugo Gomes, 19.03.22

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No centro de um triângulo que se aparenta amoroso, Gertrud Kanning (Nina Pens Rode), predestinada a ser mulher de um ministro, é abalroada por uma aparição vinda do passado, confrontando-a com os descaminhos do presente. Essa regressão memorialista acontece com a chegada de um antigo amor à cidade-natal, um reencontro tido como frio, onde uma clara distância entre os dois num pomposo sofá de salão de visitas não deixa em encoberto os assuntos pendentes. Esse amor-antigo - Gabriel Lindmann (Ebbe Rode) - poeta dinamarquês bem sucedido nas ruas de Roma, a persuade a responder às questões sem resposta e que sem resposta o continuarão a deixar. Contudo, o confronto tem um segundo round. 

Ronda essa, que arranca com tal célebre sequência: Gabriel convidado por Gustav (Bendt Rothe), o atual marido de Gertrud, é deixado sozinho, por momentos, no salão do mesmo, espaço cuidadosamente iluminado por candeeiros ali e velas acolá, com exceção de duas ceras penduradas que delineiam um espelho de barroca moldura. O nosso amante do “Natal passado” reconhece o espelho como presente da sua feitura à bela da Gertrud, com a promessa desta mulher ver algo belo [a sua reflexão] como primeira imagem após o despertar. O objeto deixado na escuridão é, assim, devolvido à luz do fogo por Gabriel que cuidadosamente reacende as velas posicionadas em cada um dos cantos. Após a última acendida, uma imagem encantadoramente invocada surge no mesmo. É uma mulher! Não apenas uma e qualquer mulher, é Gertrud! Como se tivesse sido chamada pelo convidado. A conversa ressurge dali, com revelações, confissões e emoções por fim libertadas, mas nestes dois mesmos reencontros, algo (palavra que mais tarde terá repercussões no filme) captou a minha atenção. A distância não está apenas nos corpos dos dois expirados amantes, como também no olhar de ambos, que porventura alguma se cruzam (o facto dos atores estarem casados, um com o outro na vida real, transformam o exercício de indiferença ainda mais hercúlea).   

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As vestes teatrais tão vincadas em Dreyer reforçam essa indolência jogável, o olhar torna-se, não numa arma, mas numa defesa, um escudo aos amores “totais”, adormecidos e intrometidos aos planos maiores. Que planos são esses? Já lá vamos. É que quando tudo parece comportar-se de acordo à estratégia da frieza óptica e corporal, eis que a despedida acontece (sublinhando que antes disso, estes “corações deslocados” miraram um ao outro para salientar o “fim”, ou antes, a “morte” desse amor), Gabriel rompe o anterior e acordado procedimento, esticando a mão como um último cumprimento a Gertrud, o qual corresponde e da mesma forma responde com o olhar. Meros segundos, é o que bastou para que os românticos de velha guarda, daquela cumplicidade invejável, pudessem, por fim, instalar contacto visual por uma última vez. Só que nada de saudosista surge daí, o corte abrupto pelo Adeus transforma o esperado momento num somente instante. Visto que um dos amantes parte, podemos agora passar para o plano? Mas antes disso, as velas? As situadas no ornamentado espelho de parede? Não esquecer! Há que apagá-las! O reencontro terminou, a convocação expirou. Agora sim, passemos ao plano.

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“Gertrud”, a derradeira obra de Carl Theodor Dreyer (que faleceria quatro anos depois do lançamento do filme), é um trabalho que repesca a grandiloquência dos amores aristocratas, acentuando o romantismo como primeira estância (sendo uma adaptação de uma peça de Hjalmar Söderberg). Ou seja, em plenos anos 60’, com o dito “cinema novo” a assumir como tendência desconstrutiva em cada ponto do globo, estreava entre nós um exemplar “antiquado” e formalmente preso a uma estética de “cinema de requinte” de fulgor dramatúrgico e lírico. Porém, por baixo dessas vestes de “filme-antigo” escondia um coração moderno. “Gertrud” é “uma tempestade num copo de água” amorosa para se transpassar à emancipação de uma mulher, crente no romance como código vitae, mas movida pelo instinto progressivo da própria existência. Nesse ponto, acreditamos, e o filme também em certo ponto dessa jornada.  

Contudo, o “algo” - sim essa palavra regressou como fora prometido - é o impulsor da epifania, não das personagens (mais que determinadas aliás), mas do espectador, de que por detrás da independência social de uma mulher quebrada, derrotada e sobretudo perseverante em não retornar às histórias consumadas, existe um “coração quebrado”. Um coração que se destroça e cujos estilhaços são ensurdecedores, mesmo que “silenciosos” na narrativa o espectador consegue ouvir um fragor imaginário. Essa derrota amorosa não parte do amante que compreende que “nada retorna”, mas sim em Gustav, após conscientizar que a sua esposa nunca o amou, ou melhor, nunca o amou como ele a amara. Amor, que a própria refere como “algo”, palavra bárbara que rima com lâmina aguçada no “pobre coitado”. Os sinos tocam desalmadamente, é o prenúncio de uma nova era para ambos, a de um marido abandonado e de uma mulher desamparada. A felicidade torna-se em miragem para os dois, mas já não interessa. “O Amor é Tudo" como a nossa protagonista sugere como epitáfio, e o espectador bem o sabe, que o tudo não passa de uma ilusão. Mas ilusão do quê? Mais perguntas que respostas, assim como a Vida, total mistério de quem o habita.   

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“Gertrud” é um filme cruel que se faz passar por grande romance ao nível dos feitos literários do romantismo. Ingenuidade não é bem-vinda deste outro lado do espelho.

Tristeza e alegria na vida dos cinéfilos

Hugo Gomes, 16.03.22

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Fruto do Vosso Ventre (Fábio Silva, 2021)

O medo da juventude parece um sintoma sobretudo manifestado por quem vê o seu cânone ameaçado por eventuais revisionismos ou reavaliações patrimoniais. Inconcebível percepção de que até os mesmos jovens detêm o seu direito de “queimar livros”, apologia de Henri Langlois que parece ser apenas aplicada a qualquer intervenção de Godard e nunca amplificada aos demais. Não que concorde totalmente com a destruição de um pensamento para a criação de um outro em oposição, mas sim, com específica abordagem com a novas gerações para uma conscientização do universo cinematográfico e mais do que impor vontades e visualizações, a possibilidade de escuta, as suas preocupações e visões, a fim de lhes conquistar o interesse. A cinefilia não é um estatuto garantido e estagnado, é um estado de passagem e quem faz desses territórios a sua casa é, inevitavelmente, proclamado cinéfilo como o alpinista que atinge o cume de tão apetecível montanha. Mas que é isso de ser “cinéfilo”? Curiosamente, foi através de um jovem que me fez questionar essa mesma “roupagem” nos últimos dias. 

Apresento-vos Fábio Silva, graduado na Escola Superior de Teatro e Cinema, tendo no seu currículo algumas curtas - e uma longa-metragem à espera da luz do dia (“Hip to da Hop”, que quase obteve estreia comercial nos cinemas em 2018) – desafiou-me a repensar na definição de cinefilia, exercida para os dias atuais como gerais, num dos seus trabalhos. “Fruto do Vosso Ventre”, a curta motivadora deste texto, arranca com o próprio Silva a expor-se no ecrã, advertindo ao espectador daquilo que veremos e aquilo que a obra se assume, uma colheita memorialista, sobretudo de vídeos caseiros armazenados pelo seu pai, uma cápsula temporal que ostenta um teor genealógico. Essa visita guiada a um passado não tão longínquo, em busca de uma recordação que o une com o seu progenitor intermitentemente ausente, realça uma jornada identitária, tal como sucedera com “Visita ou Memórias e Confissões” de Manoel de Oliveira (o próprio realizador confessou-me essa inspiração, evidente no ponto de partida e de partilha do filme, a casa e que reminiscências ela esconde, no caso de Fábio Silva é a sua habitação de infância no Alto dos Barronhos).

O documento venceu o Prémio de Documentário do YMOTION: Festival de Cinema Jovem de Famalicão, seguindo o quarto uso do cinema propriamente dito, fora do narrativo, político e estético (este último pode estar “embrulhado" nos anteriormente mencionados, mas isso é conversa para uma outra altura), deparamos com as propriedades arquivistas, a de preservação de uma existência. Silva desejou com este pequeno filme conduzir-se à razão da sua presença neste mundo, tentando, como vontade epifânica, decifrar a personagem fantasmagórica que é o seu pai. Há aqui qualquer coisa que me remeteu aos ditos e lições (muitos que elucidamente adquirem cariz motivacional) do professor de cinema Pedro Florêncio nas suas aulas, em particular numa sessão sobre a Nouvelle Vague, referindo a transgressão destes, na altura, jovens cineastas, que “por vezes para avançar, o filho deve ‘matar’ o pai”. Aqui o verbo matar é figurativo, não o ato grotesco e animalesco, mas o de “cortar” com um pensamento seguidista que nos limita as ideias num só traço, e porque não, a falta de ambição para se restringir a aprovação “paternal”? Fábio Silva não “matou” o seu pai, mas o superou na sua partitura existencial, e através disso, traçou o seu próprio caminho, nem que para isso tenha que reviver, ou melhor, revisitar as suas memórias. 

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Visita ou Memórias e Confissões (Manoel de Oliveira, 1993)

A esta altura o leitor, o que tem de relacionado a curta de um jovem com o legado já duradouro e de certa forma paquiderme da cinefilia? Em “Fruto do Vosso Ventre” reti uma frase proclamada pelo próprio realizador / protagonista enquanto remexia e mostrava com o seu devido destaque a coleção de VHS(s) do seu pai: “O meu pai sempre foi cinéfilo sem saber o peso da palavra.” E aí fez o “clique”, não porque obtive uma resposta concreta, mas fiquei por mim a pensar o que é realmente ser um cinéfilo e que consequências isso aplica? Além do mais, que razão Fábio Silva declarou o seu pai como tal sem ter a consciência de o ser?

Palavra resultante da conjugação entre Cinema e Filo (do grego amigo), no sentido mais simplista do termo, o cinéfilo é um apaixonado por cinema, um vocacionado pela arte e na preservação da mesma nem que para isso a sua existência resuma a demonstrações amorosas. Em certa parte, a cinefilia é essa relação, esse ato de amor consumado que provoca vício, tornando os cinéfilos “doentes” e insaciáveis. Para Fábio Silva a devoção pelas imagens por parte do seu pai, seja na arrecadação de memórias filmadas e preservadas que mais tarde são fruto de um ventre cinematográfico (o filme para quem as metáforas fogem), ou seja nessa memória transcrita nos filmes que grava em 8mm ou a que detém na sua coleção de “cassetes”. A cinefilia pode muito ser uma jornada identitária, e cinéfilo essa posição de constante descoberta de si próprio. 

E como em qualquer introspecção, existe um efeito entrópico, um caos que rodeia a cinefilia, mas será também o seu interior desorganizado? Discordo da organização, aliás, afronto-o com a História. Os Cahiers du Cinéma, a génese da Nova Vaga Francesa como bem sabemos, insurgiu-se contra uma canonização, um certo cinema francês, seguindo a ordem de pensamentos de Truffaut, que se instalou numa determinada intelligentsia francesa. Foram eles mesmos que colocaram Chaplin, Hitchcock e Hawks no sistema da canonização, portanto, “mataram os seus pais”, novamente parafraseando Florêncio, ou “queimaram livros” como situa Langlois. 

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Sunrise (F.W. Murnau, 1923)

Portanto, porque é que precisamos de três estágios como neste “artigo” (mais uma confissão que qualquer outra coisa) do site de cinéfilos “À Pala de Walsh”, sem ser o da limitação do próprio conceito de cinefilia? Porquê que quando falamos de decadência do cinema a ligamos umbilicalmente a uma “decadência da cinefilia” como fizera Susan Sontag no seu famoso texto em comemoração dos 100 anos do Cinema? Devemos confinar a cinefilia à nossa própria cinefilia, da mesma forma que Louis Skorecki escreveu na edição de abril de 1978 do Cahiers', um ativismo à chamada “nova cinefilia” que não foi mais do que o realçar da sua autenticada cinefilia?

Através dessa sopa de ideias faço o exercício mental de ir atrás da raiz de tudo. O que me faz duvidar de uma cinefilia canonizada? E a resposta foi encontrada na imagem, aliás, devo antes insinuar, palavras, vindas de Luís Mendonça, na altura somente fundador do referido site “À Pala de Walsh”, hoje já professor e programador da Cinemateca (só para dar a ideia de como nós somos personagens em desenvolvimento), que perante uma audiência, o qual fazia parte, lê um específico texto da autoria de Sabrina D. Marques, também ele relacionado com definição de Cinefilia. Não recordo de grande parte dele (numa pesquisa rápida o encontrei aqui), mas memorizei uma palavra tida como uma única frase - "Anarquia''.   

Cinefilia pode assumir muitas definições, conotações e razões, mas nunca dependerá da disciplina, e essa mesma revela-se na antimatéria da própria liberdade, sobretudo a do olhar. Um olhar treinado não poderá ser um olhar limitado, acima disso, um olhar experiente que saiba contextualizar e a cinefilia integra essa experiência a merecer ser passada para terceiros, porém, densamente incrustada em nós. Não se trata de conflito entre cinefilias, trata-se sim da coexistência dessas mesmas que constituem uma constelação. Como o crítico Ricardo Gross uma vez disse, “o Cinema é familiaridade, é a aproximação para com os outros”. Não é bem a citação correta, mas sim o espectro desse mesmo diálogo. 

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Fruto do Vosso Ventre (Fábio Silva, 2021)

Falando em diálogos, um outro amigo, Duarte Mata, revelou-me uma fábula de Esopo - “O Vento e o Sol” - em que os dois elementos apostam, qual dos dois conseguem fazer com que um pobre viajante despisse o seu casaco. O Vento começou, soprou e soprou com a intenção do casaco voar. Não resultou e, aliás, o viajante agarrou-o com ainda mais força. O Sol, por sua vez, começou a brilhar intensamente, mais e mais, causando calor, levando, por fim, o errante voluntariamente a retirar o casaco. O Sol ganhou a aposta, e desta metáfora é-nos incutido a seguinte moral - a persuasão tem-se em melhor estima que a força. Ou seja, “obrigar” alguém a ver, no mínimo duas vezes, “Sunrise” de F.W. Murnau antes de este “pegar” numa câmara, não é favor nenhum a uma eventual cinefilia, é antes, incentivar à criação de anticorpos no indivíduo o qual deveríamos cativar. A consequência é a alimentação dum conflito entre cinefilias, aliás a disputa de uma nova em oposição de uma velha e cansada.

E foi com Fábio Silva que a ideia de cinefilia e a inexistência de uma definição total nela me fascinou ainda mais, e é por essa via que reforço a minha fé nos jovens em encontrar o seu caminho pelo Cinema e dedicarem-se à sua devoção do mesmo. Nós, “cinéfilos de velha guarda” como quiserem chamar, estamos presentes para os guiarem, alicerçá-los a redescobrirem-se, não para formatá-los a um modelo idealizado de “cinéfilo” (aquilo que nós poetizamos como tal). 

A convite do YMOTION, moderei um debate entre os jovens realizadores de uma linhagem de curtas vencedoras do festival, entre elas “Fruto do Vosso Ventre”, que foi projetado na Escola Artística de Soares dos Reis, na cidade do Porto, perante um auditório composto segundo as restrições impostas pelo Covid. Sei que abusei do meu tempo, e no final da sessão-conversa dirigi-me à plateia, jovens sobretudo, e desafiei-os ao seguinte: “Se acham que o cinema português não comunica com vocês, o conselho que tenho vos a dar é pegar numa câmara e fazerem o vosso ‘cinema’. Deixar a vossa impressão nele.” Muitos balbuciarão de raiva perante este “ato grotesco” de solicitar o cinema apenas pelo gesto de filmar, mas é um incentivo ao apetite e quem sabe, desse apetite nasça cinéfilos, novos e frescos, assim como novos olhares, possivelmente um novo cinema português. Mas isto é especulação e os cinéfilos foram péssimos em prever o futuro. 

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Durante a Projeção-Conversa do YMOTION: Festival de Cinema Jovem de Famalicão, na Escola Artística de Soares dos Reis

PS: Neste texto, algo diarista digamos, menciono pessoas. Tal não foi em vão, nem sequer tive a intenção de servir deles como galões de legitimidade para o meu discurso. Apenas achei por bem, num texto sobre cinéfilos, “amigos do cinema”, invocar alguns dos meus amigos e cinéfilos. Porque é através da cinefilia deles que a minha enriquece. 

Quem nos pode conduzir pelo vazio desta vida?

Hugo Gomes, 14.03.22

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Isto não é uma Crítica de Cinema, aliás, o que será uma Crítica de Cinema? Mas seguido adiante da reflexão, o que quero sublinhar é a capacidade que por vezes um filme tem de crescer em tão pouco tempo, seja na minha memória, ou acima de tudo na minha sensibilidade.

O que por vezes soa umbiguismo em tempos como estes, que vivemos e experienciamos “cataclismos” ao minuto, e que esse mesmo redor realmente questiona-nos sobre a prioridade a dar ao nosso estado e ao nosso sofrimento. Problemas de “primeiro mundo” dirão os mais distantes do meu quadrante. "Drive My Car” é esse filme sobre o luto, vindo de um realizador em plena fase de amadurecimento, um trabalho que prescreve a perda e a torna num aquário existencial. Como lidar com esse vazio? Não iremos vê-los preenchidos, mas há que viver com a dor, criar um vácuo para essa possibilidade não consolidada. Somos seres de estados, e com isso tentamos encontrar um abrigo para essa coexistência. Para Kafuku (Hidetoshi Nishijima) essa “harmonia” artificial resume-se ao interior do seu Saab vermelho na “companhia” da voz da sua mulher ausente (um misto de emoções por digerir, mas é a falta que mais manifesta). Para Misaki (Tôko Miura) é ao volante, de qualquer que seja a sua natureza, de olhos postos na estrada, rumo ao nada, trilhos e caminhos como fuga à sua expressão e impressão.

Poderíamos dizer tanta “coisa” sobre “Drive My Car”, poderia e posso, mas é ao terceiro visionamento que percebo, emocionalmente, a cerne de toda aquela palavra (Hamaguchi contou-me o quanto a palavra se tornou no motor do seu Cinema) não está na conquista dos sentimentos, mas as tréguas para com as nossas mágoas, aquilo que nos endurece perante um “mundo em chamas”. Talvez o meu "refúgio de cartão” esteja no Cinema, como disse em tempos, este parece comunicar comigo, ou é somente a manifestação do seu lado zeitgeist, e nós não somos tão “especiais” assim. Conforme seja a verdade absolutista, um facto é que “Drive My Car” vive entre nós, é um filme do nosso tempo projetado para quem olha para ele com desconfiança.

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