L'eau à la bouche / A Game for Six Lovers” (1960)
Ainda não possuímos o tempo, nem a vontade de resgatar Jacques Doniol-Valcroze da “secundarização”, mesmo tendo o conhecimento dos seus feitos enquanto peão dessa longa escadaria chamada Cinema. Enumera-se a co-fundação da revista “Cahiers du Cinéma” ao lado de Bazin e Lo Duca, o seu papel como editor durante seis anos (1951 – 1957), a defesa de um Novo Cinema Francês, terminando na ideia da Quinzena de Realizadores em Cannes que, como bem sabemos, materializou-se, mas longe desses facts / checks à lá Wikipédia o que podemos extrair de um cineasta que partilhou como muitos contemporâneos seus, a sentença à pequena tela como último reduto, mesmo tendo o coração suplicado pela sala de Cinema?
Os EUA vivendo nos altos momentos das novas portas acedidas graças ao streaming e daquelas escancaradas pelo fenómeno de “Parasite” de Bong Joon Ho nos Óscares (esperemos que Ryusuke Hamaguchi em “Drive My Car” replique isso), estando mais aptos à sua definição de “língua estrangeira”, poderão apreciar duas obras restauradas de Doniol-Valcroze, que mais do que contextualizar um cinema francês em nova remodelação cinematográfica, leva-os a orbitar por entre as personagens desconhecidas dos enredos canonizados da Nouvelle Vague e dos seus mais que citados protagonistas.
A plataforma OVID, especializada de cinema alternativo e desdém das majors e das tendências atuais, lança-se nos filmes incompreendidos (duas obras disponíveis a partir de 14 de fevereiro) de Doniol-Valcroze, que ao contrário dos seus discípulos e comparsas não gozou de uma aclamação ou sequer sofisticação. O seu cinema, compreendido por amores e desamores em intrigas cruzadas, foi constantemente sombreado pelos últimos gritos, as novas vogais para uma igualmente rompante linguagem disparada para quem desejou desconstruir uma fundação pela sua base. Basta olhar para a sua primeira longa-metragem, a comédia romântica de enganos - “L'eau à la bouche” (“A Game for Six Lovers”, 1960) - paixões ardentes localizadas num palácio cercado pela memória e de súplicas sexuais, para além dos Pirenéus que compõem a sua paisagem, um exercício que nos remete automaticamente ao onirismo estético de “L'année dernière à Marienbad” (dirigido por Alain Resnais e escrito pelo "protégé" de Doniol-Valcroze, o erotizado Alain Robbe-Grillet), estreado um ano depois.
L'eau à la bouche / A Game for Six Lovers” (1960)
“L’eau à la bouche” é uma história de aristocratas, de privilegiados embebidos nas suas preocupações dos seus próprios “mundinhos”, o que seguiria em contradição com um dos fundamentos e golpes certeiros da nouvelle vague; a invocação de temáticas e de personagens-tipos que esquivam do cinema francês produzido e selado com o “carimbo de prestígio” desde então (graças à premiação de uma narrativa prestigiada dignas dos romances de bolso ou das obras mestras vindouras). A guerra, a memória, a interioridade identificável, o anti-heroísmo, a modo zeitgeist que o cinema novo pontuou, traços óbvios que não encontram par no filme de Doniol-Valcroze.
O tal palácio, o abrigo daquele turbilhão emocional que prescreve as danças nos alpendres banhados por noites imaculadas, personagens reféns a segredos egoístas e de sentimentos formais (filmado num constante fascínio por travellings, Doniol-Valcroze poderá, e bem, ser encostado ao seu gosto por esses movimentos de câmara), é um resultado de um certo umbiguismo que despreza a restante França e a modernidade aí convocada e requisitada em grande tela. Estas personagens de castas (seis, incluindo o mordomo perverso e a atrevida empregada, respetivamente interpretados por Michel Galabru e Bernadette Lafont) não são criaturas higienizadas do restante, são náufragos reduzidos aos seus limitados espaços, aos seus círculos e às suas intimidades, nada parece nascer dali para além dos respetivos amores-próprios e dos estatutos mascarados de outros status que darão lugar à narrativa de peripécias. Em alguma maneira, “L’eau à la bouche” vai ao encontro a um tipo de cinema francês, digamos, sobretudo “cenarista”, que Truffaut desejava combater e que tal expressou no manifesto “Une certaine tendance dans le cinéma français” (1954), é um objeto nascido no seio do clube de transgressivos mas apresentando um conservadorismo ideológico, de como comportar-se numa mesa onde a etiqueta milenar reina.
Já "La Dénonciation" (1962), thriller que mergulha de cabeça na ficção pela memória francesa não tão longínqua, restaurando os fantasmas provenientes de uma invasão alemã, parte da culpa e dos pecados de “invadidos” para costurar um “whoddunit” existencial. Um crime, um homem na hora errada e no sítio de erro (Maurice Rounet), um cabaret de nome sugestivo (Play-Boy) e um detetive (Sacha Pitoeff) que “tenta” (sublinha-se) resolver o caso à distância, como se estivesse a higienizar para uma eventual sujidade que o assassinato se poderá revelar, ingredientes para encher a nossa imaginação sedenta pelo subgénero.
La dénonciation / The denunciation (1962)
Os tiques e as extensões do noir francês, encontrando conformismo e confortabilidade na lente de Doniol-Valcroze, apresentam-nos como um ser indeciso, atormentado no seu próprio “armário”. Ora, se esse convencionalismo que tal como os ancestrais de prestígio miravam copiosamente a produção hollywoodesca (não os evitando de produzir exemplares magníficos como os tido na posse de Jacques Becker ou de Henri-Georges Clouzot) abunda, encontramos nele um impulso de querer acompanhar os seus conterrâneos transgressivos, pelo menos ao situar-se como retalhista de uma identidade conturbada. Contudo, não cumplicia a sua modernidade,
Ao final, a morte reencontra-se em alcatrão quente, invocando uma das imagens mais célebres do movimento da nouvelle vague ["À Bout de Souffle"]. Doniol-Valcroze estava atento (era sua faceta de crítico e observador a colocar-se na frente da sua criação), mas o seu cinema respirava noutras bandas e noutro imaginário.
La dénonciation / The denunciation (1962)
À bout de souffle / Breathless (Jean-Luc Godard, 1960)