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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Na noite de Lisboa, nem todos os filmes são pardos

Hugo Gomes, 28.02.22

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The State of Things / O Estado das Coisas (Wim Wenders, 1982)

Lisboa, menina e moça, ou será antes, Lisboa, madura e experiente? Quem me conhece, sabe bem do meu fascínio para com a capital. No entanto, não vou fazer disto uma ode à cidade que me viu nascer ou dos pontos “altos” e umbilicalmente turísticos que levam, e muitos, a encontrar deleite nas paisagens banhada do rio Tejo (ouve-se em "língua estrangeira" a denominação Tagus, um ser corrente e mítico, ou lá o que seja). A cidade com que me apaixonei e que cada vez mais me leva a procurar nela uma razão para permanecer nesse estado de encantamento, contrariando o “destino” que parece relembrar das impossibilidades do mesmo, é a mesma cidade “pintada” em muito do cinema mais crítico sobre da região, aquela sem medo de demonstrar a sua decadência mergulhada em noites soturnas, uma reunião de criaturas errantes e mal-amparadas prontas para aquele “copo” duradouro no balcão contínuo e estendido em cantos do Galeto, ou do sempre resistente (ou será “resiliente”, essa palavra em voga?) Cais Sodré, a agora ruela rosada situada a poucos metros das margens “ribeirinhas”. 

Uma noite de bons vivants, ou assim pensam ser, de perversos ou simplesmente incompreendidos que penetram nos peepshows de becos, “vejam, mas não tocam”, ou dos esquecidos, amargurados, os solitários vencidos pela derrota que olham com tamanho pessimismos à bebida servida à sua frente. A noite de Lisboa não é mágica, mas é saudosista por tempos áureos, o qual nunca existiram, apenas perpetuam como lendas inconformistas entre os “trovadores de tasca”. O cenário em desenvolvimento e de expansão em “Os Verdes Anos” (Paulo Rocha, 1963), com Rui Gomes e Isabel Ruth perdendo no seu interior - por entre labirintos de árvores em jardins de refúgio a salões de dança (num travelling único que desde a sua prova nunca mais o esqueci) - e cuja incompatibilidade de ambos leva o protagonista a procurar companhia numa cidade noturna cuja sua divulgação era impedida pelos altos-órgãos (“uma afronta à boa moral lisboeta”, imagino que pensaram desta forma). 

Mais tarde, nos últimos sopros do Estado Novo, essa Lisboa é capturada por personagens sem eira, nem beira, pontuadas pelas sardas de Maria Cabral como distrações para a sua crise existencial na “modernidade” levada da breca em “O Cerco” (António da Cunha Telles, 1970) ou do jovem curioso que resiste ao sedentarismo extraindo desse quotidiano falsos-profetas e Dulcinéias sem brilho em “Perdido Por Cem” (António-Pedro Vasconcelo, 1973), essa primeira longa-metragem contagiada pelos tiques da fervorosidade da Nouvelle Vague conservava uma noite sem dormidas, de encontros imediatos e espontâneos entre teatros à beira da ruína, residenciais de urgência para noctívagos sob o cuidado de um João César Monteiro de cerveja na mão e de jogos de póquer ilegais na companhia de Paulo Branco, aquelas apostas anteriormente acordadas em salões de bilhar. 

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Perdido por Cem (António-Pedro Vasconcelo, 1973)

Já na década de 80’, nos seus primeiros passos, Lisboa cedente à sua autodestruição, ilustrava-nos uma noite de atrasos culturais perfeita para “quem parou no tempo”, ou que devaneia com o inatingível. “Kilas, o Mau da Fita”, obra de sucesso de José Fonseca e Costa, título escorraçado pelo crítico da altura [Augusto Seabra], cercava ainda mais essa cidade cinzenta, de sex appeal pacóvio e de brandos costumes fingidos por uma libertinagem de moda. Os fura-vidas ou o típico alfacinha absorvido pela tentações de uma "metrópole" de bairrismo evidente e dos locais vincados não como passagem, mas de “segundas casas”. De braços abertos para receber os “fugitivos do dia” e aprisioná-los nos seus vícios. Esta capital caberia num dos êxitos da banda "Táxi" - “Sozinho” - onde a noite é mais que uma noite, uma cidade na camada de outra cidade, com os habitantes alternativos, hábitos alternativos e habitações alternativas, e a manhã indesejada porque nela pronuncia-se o fim de uma Lisboa oculta para o renascimento da Lisboa de postal.

Os “estrangeiros”, de certa forma, captaram esse “fado” proeminente, seja o escape de Wim Wenders ou de Christine Laurent, por entre rodagens e ensaios (“The State of Things”, “Vertiges”) respetivamente, os bares de cheiro a mofo soam abrigos para almas perturbadas, ou da transformação da cidade-portuária num porto imaginário onde marinheiros anseiam conhecer a sua derradeira sereia, em “A Cidade Branca” (Alain Tanner, 1983). Lisboa, o resgate de todos os pecados do mundo entranhados numa só arquitetura, com o Café Império, orgulhoso do seu vazio e ao mesmo tempo dos ocasionais clientes que aguardam sem vez, uma imagem imortalizada numa outra primeira metragem, “O Sangue” (Pedro Costa, 1989). "Sabes qual é a maior invenção do Homem?", a pergunta é feita repetidamente, do meu lado respondo Lisboa, sem sucesso. A década de 90 instalou-se, o encantado desencanto não vinga mais, a marginalidade revelou um outro tipo de “criaturas”, “leprosos” que servem como avisos por parte dos nossos pais para que as noites tivéssemos. Lisboa mudaria nestes anos e no fim dos mesmos, abrindo para a multiculturalidade e para o capital de outras coordenadas, o turismo em máximo expoente da ação. Paulo Abreu elaborou no seu ensaio docuficcional - “Alis Ubbo” - uma cronologia a essas metamorfoses, realçando a anterior “menina e moça” como uma resistente entre épocas. 

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Ramiro (Manuel Mozos, 2017)

Mas a noite, essa mesmo, regressou ao seu estado de desencanto, obviamente orbitando nos arredores dos eventos promovidos de uma cidade-modelo Time Out. Um público “fiel” aos “comícios improvisados” no interior do Galeto,dois dedos de conversas” que se alargam para imperiais e snack-bar de horas “ordinárias”. Um público fiel aos últimos redutos do Cais’, observando a sua juventude a fugir por entre os seus dedos, ao mesmo tempo que mentaliza o término dessa longa noite, de lábios aquecidos enquanto saboreiam um pão com chouriço. Um público fiel à última sessão do Nimas, após a projeção percorrem a Avenida do 5 de Outubro procurando o “cantinho aberto” para prosseguir a tertúlia cinematográfica, até porque são nessas mesmas noites que nascem as melhores dissertações sobre o Cinema, aquelas histórias ocultas ou as revelações sinceras, tudo isso acompanhado por aquele hambúrguer pós-meia-noite e da imperial tirada ao sabor da praxe. 

Esta é a Lisboa que muitos preservam, que dialogam em segredo e em código, e que lamentam pelas drásticas mudanças, aquele fecho ou figura sucumbida, a noite de outrora cada vez para lá da miragem. Essa mesmo, convertida em não-lugar nas mãos de Bruno De Almeida (“Cabaret Maxime”, 2018), ou na passividade rústica a mercê do seu desaparecimento em “Ramiro” de Manuel Mozos, aliás, o homem, que talvez por outra via, pensa em Lisboa como um território cinematográfico [“Lisboa No Cinema, Um Ponto De Vista”, 1994], e através dele recita os seus mais requintados contos. Ou será antes, pontos de vista?

Hoje regressei à Praça de Kiev ...

Hugo Gomes, 24.02.22

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A importância de ver filmes em sala é fundamental! Recordo, 2014, Culturgest, em pleno Doclisboa, "vivi" a revolta civil da praça de Kiev através da câmara wisemaniana de Sergei Loznitsa. Não estive lá e ao mesmo tempo estive. Talvez seja "culpa" da minha atração pelo coletivo, esse imaginário trazido pelo cinema revolucionário e propagandista soviético que desde cedo converteu-se no meu signo cinematográfico, que possibilitou as vibrações resultantes daquela massa humana, ou o timbre de "arrepiar a espinha" com que cantavam, em uníssono, o hino ucraniano. Aquela praça nunca mais foi a mesma. O filme, agora revisto, em pequeno ecrã através da Filmin Portugal, não recuperou essa revivência, essa sintonização com aquelas imagens, com aqueles sons, com qual música de rua, popular e com lugar cativo naquela imensidão. Sim, revi porque a atualidade me colocou aquelas imagens novamente na minha mente. Precisava de captar essas sensações, essa experiência, mas não importa, as imagens estão lá, mas 2014 já passou. Vivemos agora 2022 ... com as incertezas que isso traz.
 
Enquanto isso, repesquei também o meu antigo texto sobre "Maidan" de Loznitsa, escrito após a sua estreia festivaleira em Portugal.

"Belfast": onde uns vêem brilho, eu vejo bugiganga

Hugo Gomes, 23.02.22

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Entende-se o significado das memórias de Kenneth Branagh e a sua utilização para algo mais do que a mera imputação shakespeariana do qual tem sido a sua obra até então, mas “Belfast” é de um fascínio turístico pelas ruelas de um bairro da Irlanda do Norte, como se fosse em “cidade de papel" abaladas pela História sem dimensão. Uma criança encantada pelas imagens televisadas ou projetadas e as cores transmitidas que se revelam num escape ao monocromatismo das duas vivências, são os factores a ter em conta neste drama de personagens-passageiras, de tramas incutidos na decoração e a ilustração indolor e um filme pregado ao Academismo mais vincado. Enquanto se hurra pelo "melhor e mais poético de Branagh”, valoriza-se uma estética vencida e passiva acima dos seus eventuais simbolismos, contudo, até mesmo a palavra “poesia” parece encontrar aqui um “recreio infantil”. O meu problema com “Belfast” é só um, carência. Carente em emoção, de carisma, ou até mesmo de ênfase dramática (ao menos se fosse simples na sua condução, mas nem isso), como a entrada a este universo, todo ele transmitido num tom farsante de recordações expiradas. Nada contra Branagh repescar as suas vivências em prol da narrativa cinematográfica, mas em plena saturação, nada de igualmente valioso é nos oferecido. É um pechisbeque.

Enquanto isso, com menos destaque, “Memory Box”, de Joana Hadjithomas e de Khalil Joreige [ainda nos cinemas], é uma lição de como abordar e aproximar memórias e histórias contemporâneas com ternura, significado e efeito. Mas voltarei a ele numa outra altura. 

Takes Roterdão 2022 (3): no campo do belo e do abjeto, com humor intermediário

Hugo Gomes, 22.02.22

Qui Rido Io (The King of Laughter)

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Para o napolitano Mario Martone, Eduardo Scarpetta foi mais do que um mero comediante de palcos da região (ou o melhor da sua área no final do século XIX e início do século XX), a importância desta figura histórica encontra-se na sua não-evidente conquista no território humorístico, ainda hoje debatido (cada vez mais tendo em conta a sensibilidade trazida para os temas da comédia e da sua razão de existência). Tudo começa quando o ator e encenador é julgado por plágio devido a uma paródia da sua autoria a uma obra do poeta Gabriele D’Annunzio, tal imbróglio judicial coloca a sua reputação em cheque, e consequencialmente seu legado e o status adquirido como artista popular (não bem visto à intelligentsia local).

Qui Rido Io”, com Toni Servillo (um senhor em ação) encarnado no ator de renome, é uma biopic desenvencilhada que tenta “saltitar” para além da figura central, orbitando pelo seu “elenco secundário” - os imensos filho (legítimos ou bastardos unidos numa certa estrutura patriarcal) e a suas relações para com o astral teatral do seu ente paternal. Uma herança ora afortunada, ora amaldiçoada, que é vencida narrativamente pelo conflito trazido pela disputa de tribunal, engenhosamente e mimeticamente convertido na performance das enésimas commedie italiane. Enquanto isso, é o caráter de satirizar a ser contestado e questionado, para que possa ser resgatado e elencado numa definição própria. A comédia deve muito a Scarpetta, não apenas pela sua produzida obra de respeito, ou os seus filhos que se vingaram no ramo (Eduardo De Filippo foi um dos grandes que chegou a transladar para o Cinema), mas por conduzir um género inteiro e o seu gesto acima do devaneio popular, uma arte de engenho e farsa que comunica e transmite um cenário político-sociológico em grande escala. 

Secção: Harbour

 

Eami

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Os primeiros minutos de “Eami” espelham um misticismo unicamente trazido pela aura da densa floresta, recheado de biodiversidade e de mistérios o qual a civilização, sedenta pela destruição e a riqueza, nunca conhecerá. O tempo passa, e os ovos, ainda por eclodir, remontam-nos à mais velha das fábulas, a da nossa existência envolvida em paradoxais inquietações.

A nova obra da paraguaia Paz Encina (a terceira longa-metragem), é um contacto sensorial com as réstias das tribos indígenas, de umbilical ligação com o selvagem daquele biótopo e a ameaça branca a qual detém o nome de industrialização, em El Chaco (zona com a maior taxa de desmatamento do mundo). Os tais primeiros minutos antevêem essa experiência, que tão bem encontraria magnificência em grande tela, isto porque Roterdão se refugiou em modo virtual, enquanto que estes “índios” (termo colonialista que a História ainda sem vontade de apagar) permanecem no limiar da sua existência, escondidos ou forçosamente adaptados pela modernidade imperativa, olhando com tristeza para o desaparecimento das suas práticas, das suas vivências e das suas lendas. Um documentário que regista e que “condena” ao virtuosismo as suas imagens de pê vincado na antropologia e outro aterrado no esoterismo, um ecossistema de subcontextos e significados, mensagens codificados que funcionam como fauna e flora neste mato tropical, servindo-se do cinema, mais do que veículo de narrativas e pedagogias, uma arca memorialista para um futuro incerto e, possivelmente, culturalmente mais pobre face à massiva destruição. Porém, a esperança reside em Eami, não o filme, mas a criança indígena que carrega consigo um legado em vias de extinção. 

Secção: Tiger Competition (vencedor do Tiger Award)

 

Achrome

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A fotografia tende em seguir um certo acromatismo que sufoca qualquer cor que ambiciona sobressair. O cinzentismo baço parece ser a visão estabelecida neste tratamento ao “sem faces”, às defesas nazis que antes do uniforme assumiram como anónimos camponeses. Com a transformação (que requer a revelação de idade e uma espingarda nas “unhas”) surge uma nova identidade, mas nem por isso deixaram de ser um mero número. A russa Maria Ignatenko aprofunda um belo exercício estético sobre os horrores trazidos pela banalidade do mal, pregações à lá Hannah Arendt que encontram, pela enésima vez, holofote no Cinema, e com “Achrome”, deparamos com a condensação de uma tese ao mais simplista da ideias.

Porém, a condução requer paciência, sendo que a austeridade reina pela desgraça humana ou pelos farrapos subjugados, não à ideologia, mas à subsistência, dispostos a servir e assumirem uma tarefa usurpadora da sua própria condição (o heroico coletivo do cinema soviético sacrificando numa clara oposição ao efeito-propagandista). Entre as sequências-chaves, um bando de soldados, ou como a própria realizadora responde com o nome “técnico”, “wehrmacht”, escarafuncham uma vala comum por entre os corpos de mulheres desvanecidas no Rio Estige, pavoneando os seus restos mortais a uma hipotética câmara. Sorriem como se estivessem a ser fotografados. Vários minutos persistem nesse cenário de horrores e de indiferenças angustiantes, o espectador vislumbra o espetáculo, forçados a assistir os sorrisos tontos daquele esquadrão de morte cedidos ao sadismo. “Achrome” pode muito ser belo, mas as suas vestes são idênticas à morte e automaticamente um efeito amoral ecoa nestas mesmas imagens. O filme mais abjeto da Competição.

Será possível que os horrores de outrora vulgarizem as telas de hoje? 

Secção: Tiger Competition

Nicolas Cage, o homem "escroto" na febre de Sion Sono

Hugo Gomes, 18.02.22

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É possível encontrar um filme tresloucado no meio do caos acidental de “Prisoners of Ghostland”, uma espécie de "sukiyaki" (prato nipónico em que  as pessoas se servem a si mesmas à medida que os ingredientes são cozinhados) com Nicolas Cage como cabeça de cartaz, prometendo a loucura e o devaneio no meio de uma salganhada visual. É curioso este cruzamento entre um Japão feudal com o Oeste americano mais o imaginário pós-apocalípticos, um cenário de colocar o espectador “às aranhas” num enredo em constante perturbação neurológica.

Para objetos estranhos e com o seu quê de excentricidade, Sion Sono não é nenhum estranho, há que espreitar os seus “Why Don’t you Play in Hell?” (2013) ou “Tokyo Tribe” (2014) para entender o quanto de desvairado este universo pode ser, e mesmo assim, segundo o próprio conterrâneo, contemporâneo e amigo de longa data, Takashi Miike, é um dos únicos a cometer "cinema japonês adulto” nesta atualidade. Não vamos refletir profundamente nessas declarações, mas deve-se entender que estamos a vivenciar tempos em que uma Marvel Studios reina “box-offices” com tamanha naturalidade e impondo com isso uma certa seriedade narrativa e forçada e inabalável continuidade como modelo de sucesso industrial. Com isso, a violência inconsequente (aqui com alguns limites, deve-se salientar tendo em conta o seu autor) em contexto de inserções camp ou meramente “sillies” parece ter transladado para outras faixas etárias, para gerações em que este escapismo ainda faz algum sentido no seu menu de “entretenimento”.

Prisoners of Ghostland” é na sua melhor forma um filme à imagem do espírito livre e multifacetado do realizador, isto, se fosse realmente um projeto à sua altura. Sabe-se que Sion Sono sofreu de um ataque cardiovascular ainda antes da rodagem, atrasando-a por um ano, o que fez com que Nicolas Cage sugerisse mover a produção para o Japão de forma a que o realizador evitasse deslocações cansativas. Mesmo em terras do Sol Nascente, um realizador debilitado mais os “habituais” controlos criativos que Hollywood (e seus derivados) tem sobre autores importados resultaram aquilo está à vista de todos, um filme espectral que paira no térreo, um claro apoio incondicional na estética que resiste a um argumento escavacado e intrinsecamente esquizofrénico (entre “Mad Max” a “Escape from New York” passando por “The Hills Have Eyes”, a ‘coisa’ torna-se por vezes inarrável e indescritível).

No centro desta barafunda sem estribeiras, existe Nicolas Cage, como o sempre excêntrico ator que imprime a sua, ainda estudada, personalidade nos filmes que se alista. Um misto de aquétipo de arcaico "action man" (homens de poucas palavras e de virilidade em valores máximos, mesmo quando perde um testículo) com uma caricatura do mesmo, uma personagem que tão bem poderia sair de um imaginário pueril e juvenil. Nicolas Cage show para alguns, um Sion Sono light para outros (sabendo que para quem é adepto do seu cinema, a dieta não é solução).

Um brinde! Porque "28 ½" não é para todos

Hugo Gomes, 15.02.22

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Ninguém se esquece do primeiro verão, do primeiro beijo, do amor estival do qual se cria expetativas de longo prazo (ou sem prazo algum), nem mesmo do olhar juvenil, cheio de positivismo e cor, que, sem culpa alguma, possuímos. “O futuro será brilhante”, é desta forma que o nosso consciente, ingénuo e enganado, nos prende a um corpo passageiro. 

O Primeiro Verão", acima do trabalho hercúleo de Adriano Mendes (realizador, argumentista, ator, editor, diretor de fotografia e editor de som), é um filme sobre isso mesmo, desse otimismo que inocentemente abraçamos, que nos levam a crer em juras amorosas para esta eternidade e mais um dia ou da mera imortalidade. Nada é decadente, tudo é estático. Até que, alguém (ou alguma coisa) provou com diferença a Mendes, ou talvez tenha sido a própria Vida (colocamos maiúsculas para salientar a sua entidade), e todas as mudanças que isso acarreta. Logo, o sol brilhante, os constantes risos e brilhos no olhar que bem testemunhamos em “O Primeiro Verão” são substituídos pela soturnez de “28 ½”, e essa mudança drástica (apesar do hiato de seis anos entre a primeira longa e este novo filme [estreado no Indielisboa de 2020], sentíamos as saudades daquele mundo) é exercitada na figura de Anabela Caetano (a protagonistas das duas histórias que tão bem poderiam ser a mesma pessoa). 

Sim, a anterior razão de vida de Adriano Mendes na obra inaugural é o impasse melancólico nesta nova estância, uma jovem cujo título revela a sua idade [mais próxima dos 30 do que dos 20], e tal como muitos jovens que deixaram há muito de serem jovens (perdendo o estatuto de promessa), é confrontada com o cinzentismo daquela vida pós-objetivos, pós-sonhos, pós-fantasias e pós-romances idealizados. O que fazer? Sorrir, talvez por indiferença ou talvez por defesa, num longo jantar de convívio, aquele exato momento que poderia ser uma troca cultural é antes um desafio à sua atuação social - “sermos os melhores anfitriões possíveis e nunca exibir as nossas frustrações perante os outros." 

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Doloroso, é verdade, de igual forma que deparamos com a nossa impotência perante o “mundo em cacos” o qual tentamos ignorar - a sequência do comboio, o momento mais hitchcockiano que o nosso cinema português já produziu (e não por decorrer no interior de uma carruagem, mas pelo trabalhado “suspense” oferecido a um espectador com conhecimento suficiente, por exemplo, de que a personagem de Anabela Caetano tem destreza física e experiência para lidar com tão incomoda situação). E são estas constatações, este peso concentrado que nos faz duvidar de tudo e de todos. Perdemos a inocência, fiquemos só a aguardar pelo inesperado, com a fé de este “incógnito” resgate-nos deste estado de existencialismo passivo. 

Esses sentimentos, meus amigos, são apenas sinais. Sinais de que chegamos à “próxima paragem”, à fase adulta, ao início da maturidade que muitos esperam que atinjamos. Mesmo assim, é na maturação que “28 ½” afasta-se, a passos largos, de “O Primeiro Verão”. Adriano Mendes já não acredita em “encenações em frente ao espelho”, ao invés disso, acredita que tudo é passageiro, incluindo a nossa existência.

Takes Roterdão 2022 (2): formas, o que fazer com elas?

Hugo Gomes, 13.02.22

Excess Will Save Us

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Não é incomum acompanharmos a extensão de uma curta para o formato de longa-metragem. Prática diversas vezes recorrente, sobretudo nos mais “verdinhos”, como um aprofundamento das suas capacidades e de uma identidade fílmica ainda por definir. “Excess Will Save Us” não foge desse modus operandis, é uma curta convertida a filme de 100 minutos, mas existe nesse processo uma consciência do mesmo que exalta as aptidões da jovem francesa Morgane Dziurla-Petit, principalmente quanto às suas manobras narrativas.

Híbrido entre documentário e ficção, claramente vincado na sua estrutura, a obra remete-nos ao percurso da jovem em aventurar-se num projeto cinematográfico, como tal filma a sua família proveniente duma pequena localização rural, uma lente detentora de um humor por vezes condescendente em cedência a um tom tragicómico e bucólico. Costurado maioritariamente por vias de planos estáticos, “Excess Will Save Us” supera a sua curta-génese através da sua inclusão no enredo - com o objeto a ser aclamado no festival Clermont-Ferrand - o filme percorre esse “aftermath” tentando refletir o seu mesmo percurso e as repercussões destas nas personagens anteriormente convertidas em “caricaturas” meio pacóvias. Esse sintoma espelha uma maturação e igualmente um distanciamento da realizadora ao seu inicial fascínio. Sentimos assim uma clara emancipação, uma reconversão das nuances anteriormente oferecidas e um olhar desencantado à sua forma.

É um coming-to-age disfarçado, um filme que regista a sua própria criação nas mais diferentes fases, seja de esfera política até à incontornável passagem pela pandemia. Dentro disso, é um objeto eclético, esteticamente desenvencilhado (sem nunca parecer desleixado) e em constante metamorfose, possivelmente o vislumbre de uma revelada realizadora. “Excess will Save Us” é sobre excessos (está visto!), mas também é sobre a perda destes para afunilarmos no indispensável.  

Secção Tiger Competition (Prémio Especial de Júri)

 

Kafka For Kids

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Eis “Metamorfose”, a obra de Franz Kafka, contada num prisma infantil em jeito de um colorido programa pedagógico e matinal, entre animações grotescas, explicações de "cacaracá", músicas interpretadas por uma “banda invisível" intitulada de “Hello Shitty”, objetos antropomórficos e uma criança que não é mais que uma travestida jovem de 17 anos.

Bizarro e excêntrico é o que se pode dizer desta mistela em todo o caso indigestível. Do israelita Roee Rosen, "Kafka for Kids” é um protótipo de uma instalação que brevemente encontrará espaço na 1646, the Hague (Países Baixos) ou Kunstmuseum Luzern (Suíça), é um objeto estranho que se pontua mesmo pela sua sensação de estranheza o qual consolida todo os signos dignos dos programas infantis, convertendo-os em algo grotesco e sinistro, até ser cortada por uma tirada de “realidade” embrulhado em ativismo político.

Uma provocação longa que reflete o estatuto da criança, e como ela é maleável perante as diferentes leis territoriais, tendo como contexto o conflito israelo-palestino. A mensagem, subtilmente implantada no choque açucarado e as anomalias fantasiosas (“trouble in the paradise”), não é de todo pertinente e perceptível, mas à medida que avançamos, a farsa é cada vez mais descoberta e o que resta é o grito de resistência num espectador cansado pelo filme-camuflado. 

Secção - Tiger Competition

 

The Plains

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Quando o interior de um automóvel assume-se como o mise-en-scene total, a limitação converte-se automaticamente num imaginário grandioso onde autores souberam, e bem, arquitetar esse mesmo espaço, essa redoma ambulante, para o seu uso dramático ou meramente performativo. Cinema e interiores automobilísticos automaticamente encaminha-nos ao iraniano Abbas Kiarostami ou até o mesmo o seu conterrâneo em jeito de homenagem, Jafar Panahi (“Taxi”). Com “The Plains” traçamos um registo documental, diarístico de um advogado australiano [o realizador David Easteal] que conduz de casa para o trabalho, do trabalho para a casa, sempre na companhia do seu rádio ou do copiloto que incentiva os mais diferentes e rotineiros diálogos.

São três horas disto, de câmara posicionada nos bancos traseiros simetricamente centrado para que o espectador obtenha a igual sensação de passageiro. Quase ininterrupto - com ocasionais, mas não dominantes, intervalos escapistas de drones e as suas captadas imagens - somos desafiados ao tempo, ao tédio como experiência social, mandamentos invioláveis de muito “slow cinema” reinam o panorama dos festivais. Ensaio espaço-temporal ou meramente desgaste criativo com o seu quê de preguiça? “The Plains” garante-nos teorias quanto às suas escolhas estéticas, filmando o mundano e apresentando como o mais sofisticado espectáculo. O que resta é então a economia, o que fazer com o tempo, com a viagem, que bem sabemos que não nos levará a lugar algum.   

Secção - Tiger Competition

 

Kim Min-Young of the Report Card

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Conjugação de duas forças criativas (duas jovens realizadoras [Jae-eun Lee e Jisun Lim] e automaticamente duas argumentistas) que resultam num filme sobre o crescimento e consequentemente a durabilidade das amizades, e como a sua desintegração incentiva a maturação. Porém, é uma obra estranha, não no sentido de bizarrias nem excentricidades, mas quanto ao seu comportamento em tela, oscilando por formas e fórmulas, entre o tédio filmado e consolidado numa narrativa retalhista, até pelas escassas críticas a uma juventude distante, tão concentrada no seu próprio umbigo e nas suas dúvidas existenciais, os quais são desprezadas por gerações anteriores.

Em certa parte, este objeto seco e secado na sua própria frustração, ostenta alguma vida dentro daquela “natureza morta”, o que não se manifesta para além do mero exercício “naive” e por vezes difuso quanto à direção a tomar. Esperamos, tal como o filme, que as realizadoras encontrem espaço de crescimento e para tal é preciso encontrar uma sintonia. Além do mais, há que saber dialogar com o próximo sem aquela sensação de estar a “conversar para as paredes”.  

Secção: Bright Future

Kinorama - Cinema Fora de Órbita

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A cosmicidade de H.P. Lovecraft torna-se no ponto de partida para Edgar Pêra persistir na sua tese / estudo sobre os limites do 3D e de como torná-lo numa arte orbital ao universo cinematográfico. Porém, o que sentimos é um filme à moda do realizador, embrulhado pelo experimentalismo visual que funciona como deleite xamânico para com a terceira dimensão, para além da reciclagem de imagens pontuadas da sua obra que nos perseguem desde então (“O Espectador Espantado”, “A Caverna”, “CineSapiens”).

Pêra conversa com especialistas, estudiosos e outros intelectuais ao serviço de uma pedra-base para com a sua contínua operação, a sua demanda em contradição aos ditos do autor Bruce Isaacs - “o 3D como sabotagem da narrativa” - e a procura do Cinema absoluto e transgressivo das velhas formas e fórmulas. O 3D é a cerne da busca, limita-o, mas simultaneamente o lança para novas fronteiras … talvez face aos paralelismos delineados, para barreiras (digamos) lovecraftianas. “Sem interesse não poderá existir arte”, Edgar Pêra exibe, acima de tudo, interesse pela sua matéria.

Secção: Harbour

Julie é "A Pior Pessoa do Mundo"! Convencem-nos o contrário.

Hugo Gomes, 11.02.22

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Julie recortada em 12 capítulos, uma dúzia de partes que completam aquela que é proclamada “A Pior Pessoa do Mundo”. Mas quem é esta antagónica figura que anseia captar para ela o título absolutista? 

Julie não comete nenhuma atrocidade, a sua existência, porém, dentro das exigências da nossa sociedade moderna (ou pós-moderna, como bem entender), fazem dela uma personagem descentrada das tendências cinematográficas como também da aceitação social. Ela, já com os seus 30 anos (“com a cara que merece” segundo os ditos populares e o filme de Miguel Gomes), mulher branca proveniente da Europa do Norte, ou seja, um privilegiado “primeiro mundo” enquanto protagonista, que decide, pelos motivos existenciais, descartar a carreira académica e limitar a uma vida “humilde” (aspas para sublinhar a ambiguidade do termo) sempre com os seus desejos e impulsos como prioridade, longe das convenções maternais e da imperatividade de constituir família, quebrar relações amorosas no seu auge para que, mais uma vez, assuma a sua fantasia e vontades a motes. Todos estes elementos a tornam numa personagem facilmente reconhecível e egoísta, mas Joachim Trier, em completa consciência do fim da sua trilogia de Oslo (“Reprise”, “Oslo, 31. august”), não vende o filme ao tamanho egoísmo ou sequer à hipocrisia moral. “The Worst Person in the World” é de uma manobra arriscada em pleno século XXI que é o de dar uma oportunidade a estas mesmas personagens de recontar as suas vivências, e demonstrar que ainda há espaço para elas, sem as glorificar ou as vitimar. No fundo, aquela pessoa “horrível”, a “culpa europeia branca sentada no sofá”, é um fruto social que revolta-se silenciosamente contra esses parâmetros. 

É a sociedade que nos vende a ideia de romance platónico, monogamia, conservadorismo, maternidade ou instinto familiar como última estância (nesse sentido desconfiam das pessoas que apelidam esta obra de “comédia romântica”). Trier através desse manifesto, e com graça de uma atriz (Renate Reinsve) capaz de traçar empatias numa personagem que no papel (novamente colaboração do realizador com o argumentista Eskil Vogt) seria incapaz de tal, consegue criar um filme feminista sem o usos ostensivo do panfletarismo e militantismo, e por outro lado faz um retrato da nossa existência enquanto ser comunitário e social. Conformismos para alguns, uma maldição para outros.

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