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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Takes Roterdão 2022 (1): as diferentes condições humanas

Hugo Gomes, 29.01.22

A Human Position

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Vai ficar tudo bem”. Quem não se recorda dos arcos-íris e das mensagens positivas nos momentos em que boa parte do Mundo confinou-se no medo de uma pandemia diversas vezes anunciada?

A Human Position” do noruguês Anders Emblem, não é de todo um filme pandémico nem contextualizado no confinamento, mas sim uma heresia perante ao positivismo crónico trazido por uma sociedade que faz “vista grossa” à nossa condição psicológica. São “desgraças de primeiro Mundo”, dirão muitos, capsuladas num tédio embelezado e planeado até ao último pormenor, Emblem resolveu enfeitar um filme com um artificialismo solarengo e virtuoso, uma aparente harmonia onde o silêncio, as palavras nunca proferidas convertem-se em patologias no estado emocional de Asta (Amalie Ibsen Jensen), jovem mal-amparada numa profissão acima da precariedade e vivendo uma relação (novamente surge-nos o “aparentemente”) feliz com a sua parceira.

A Human Position” fala-nos da saúde mental por via de uma sinalização estética, guiando-nos a uma  anomalia no colorido do filme, ou no “poker face” da protagonista e as distrações constantes trazidas pelo seu “bichano”. A mensagem é perceptível, a viagem, essa, demora a desempacar. Entre subidas e descidas nas ruas familiarizadas que explicitam uma rotina martirológica, Emblem construiu um filme o qual desejamos abraçar, mas de difícil comunicação. Contextualizado ou não, esse é sim, o seu “calcanhar”.

Secção: Bright Future

 

Yamabuki

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Segundo a lenda, quando deixadas na montanha, as moedas de ouro transformam-se numa flor de cor amarelada denominadas de “yamabuki” (que significa em bom japonês de “brisa da montanha”). Quanto ao homónimo filme, seguimos a história de um antigo jóquei olímpico sul-coreano que vive como manobrador de máquinas numa pedreira ao largo da pequena cidade de Maniwa (a oeste do Japão), e é nele que a mitologia é apropriada, ora através do macguffin do "dinheiro esquecido” o qual o protagonista encontra acidentalmente, ou da sua nacionalidade fluida e contestada.

Juichiro Yamasaki dirige e escreve um inconclusivo filme-mosaico de uma abordagem simples à condição do imigrante em terras japonesas, porém, é de notar um terrível medo da convencionalidade e com isso, uma requisição de embarque à sensibilidade perceptiva quanto a uma narrativa voluntariamente fragmentada. É uma obra que conserva potencialidades, seja através das temáticas, seja visualmente (uma fotografia granulada que nos remete ao conforto dos imperfeitos filmes caseiros) ou na emocionalidade invocada. Coração não lhe falta, o que falta é mesmo rígida estrutura para sustentar tais sentimentos.  

Secção: Tiger Competition

 

A Criança

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Com os sucessos de “A Herdade” (Tiago Guedes, 2019) e Mosquito (João Nuno Pinto, 2020), era de esperar maior ambição por parte de Paulo Branco e a sua façanha enquanto produtor. Infelizmente voltamos à estaca zero com esta longa-metragem da jovem dupla Marguerite de Hillerin e Félix Dutilloy-Liégeois, livremente inspirado no livro “Der Findling” de  Heinrich von Kleist. Aqui o espectador é automaticamente cavalitado para um enredo do século XVI, uma espera desesperante em cenários decadentes e filmado com uma miopia disfarçada.

Todavia, o mais decepcionante é encarar uma narrativa propícia a fantasias e desejos ardentes quase edipianos, mas que nada disso parece-se traduzir em imagens. É que para além da sua falta de identidade fílmica, é lhe acrescida uma ausência de lascividade que pudesse transportar esta história para mais longe do que o mero “faz-de-conta”.

Secção: Tiger Competition

 

Madrugada

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Um filme de transformações de quem a vida parece já não lhe pertencer. Leonor Noivo tem sido apontada como um dos nomes emergentes do cinema docuficcional português (“Tudo o que Imagino”, em 2017, é um exemplo a ter em conta) e em “Madrugada” leva-nos novamente à experimentação desses diferentes veículos em conformidade a um só tom. Para muitos, a realizadora integra uma tendência de uma certa autoralidade portuguesa, mas convém sublinhar a destreza quase arquitetónica de Noivo em montar um filme na consciência dos seus mundos enraizados (palavra que não é convocada em vão), memorialista, surrealista e metafórico (uma sintonizada metamorfose).

Pegando no seu anterior Raposa” (2019), eis a continuação do estudo e da apropriação dos corpos, das suas capacidades e das suas conquistas. Sim, é um gesto contínuo, mas por vezes é isso mesmo que define um autor.  

Secção: Ammodo Tiger Short Competition 

 

Malintzin 17

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Depois da morte do seu irmão documentarista Eugenio (falecido em 2017), Mara Polgovsky assumiu o seu espólio e a produtora Tecolote Films. Nessa herança, encontra e adquire filmagens pessoais do mesmo com a filha (na altura com cinco anos) e transforma-as num filme. Com este conhecimento, somos envolvidos a um véu de intimidade e tributo neste cerco com vista para o exterior. A criança que debate o seu olhar em desenvolvimento com a percepção experiente do seu pai, lecionar e sendo lecionado, e sobretudo expondo a sua relação para com o mundo que os rodeia. “Malintzin 17” é um exercício de tempo e de aprendizagem do mesmo, figuramente depositados no pássaro que aninhou-se a poucos metros da janela, ou na rua movimentada e aprisionada à sua própria rotina e (ecos)sistema.

Esculpindo o espaço físico e temporal, obviamente num gesto inconsciente e posteriormente transformado pela sua irmã (co-realizadora que abdica da sua assinatura para induzir um póstumo e derradeiro filme-homenagem), somos questionados a entender o que é o Cinema e como o relacionar. Esta obra levou-me a recordar Béla Tarr (um encontro que aocnteceu 2016 na esplanada da Cinemateca Portuguesa) que questionado com a questão das questões  - “O que é o Cinema?” -  de jeito sisudo e apontando para a mesa do lado, ocupada por jovens que tagarelavam uns com os outros, responde asperamente (bem ao seu jeito digamos), “Aquilo ali é Cinema”. Em “Malintzin 17” há um momento que se aproxima, Eugenio pergunta ao seu “rebento” - “O que é filmar para ti?”. A voz off da menina é reveladora. “Para mim … é copiar algo.

Secção - Tiger Competition

A nova atração de Guillermo Del Toro é um embuste

Hugo Gomes, 26.01.22

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O homónimo livro de William Lindsay Gresham já havia gerado uma versão cinematográfica em 1947, sob a mão de Edmund Goulding (“Dark Victory”) e com Tyrone Powell como cabeça de cartaz, um clássico encantado com a própria charlatanice que a narrativa pontua. Porém, o embelezamento da mesma atinge picos de elevação e vaidade com Guillermo Del Toro, que com um Óscar “nas unhas”, indicia aquele que é o seu filme mais “oscar bait”.

Alguém devia ter-lhe dado o recado de que até mesmo a seleção aos mediáticos prémios de cinema tem vindo a mudar nestes últimos anos, e o formalismo academicamente aceite encontra-se constantemente abandonado pelos novos paladares residentes no comité de votação. O problema de “Nightmare Alley” não é a sua ambição de ser um produto de prestígio (hoje soa-nos datado), mas antes a sua falta de ambição para conservar uma identidade e não pintá-la com um artificialismo brilharete e verborreico. Se a versão de Goulding disfarçava os seus alicerces pouco aprumados com sugestão, já Del Toro é demasiado visual para o seu bem, nunca deixa o espectador sentir a mística, a atmosfera (não confundir com cenários pomposos e excêntricos que a certo momento ostenta como aceno), nem a gradual tragédia. Arrasta-se, quase cadavericamente ao longo de duas horas e meia, e mesmo com essa duração nunca chegamos a sentir apreço pelas personagens, automatizadas e condenadas a serem somente peões para o golpe. 

Digamos que Guillermo De Toro falha em fazer cinema modelarmente nostálgico, circense e recorrido a grandes nomes como “atrações de feira”, um embrulho tão certinho que o gore que surge-nos inexplicavelmente (e desnecessariamente) soa-nos uma anomalia.

Na memória das vidas passadas como nas futuras

Hugo Gomes, 25.01.22

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Somos o que sonhamos, e sonhamos com aquilo que somos. O sobrenaturalismo de Apichatpong Weerasethakul teoriza que a nossa existência é uma linha contínua, o nascimento liga-se intrinsecamente à morte, os nossos desígnios estão prescritos faz tempo e o sono faz parte dessa comunicação entre os dois estados, no meio existe a prolongação, o hiato, aquilo que normalmente apelidamos de Vida como definição absoluta. “Memoria” não inova nesse mesmo mojo autoral, o tailandês persiste nessa interação infinita entre as coisas ao seu redor, e com isso provocando uma cisão entre espaços, territórios e línguas.

Há muito que os festivais optaram pelo reconhecimento do “slow cinema”, ou “cinema lento” em tradução de Camões, o que não é mais que uma generalização da economia temporal. Deste lado uma provação tal catalogalização, até porque o cinema não vive de etiquetas, vive da sua universalidade. Porém, em língua “festivaleira”, Apichatpong é um Deus desse “mercado”, um artista feito e remodelado em contraposição à euforia e a aceleração das nossas vivências, e depois de uma Palma de Ouro (“Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives”, 2010) reafirma-se como um diamante em bruto. E com esse estatuto que recaiu em “Memoria”, se por um lado o cinema do autor me faz viajar, mentalmente “expulsando-me” da cadeira do cinema para o meu estado de tranquilidade, que por si só é dialeto universal comummente falado por nações várias, por outro não consigo deixar de encontrar nesta migração para Bogotá (Colômbia), um certo “olhar estrangeiro”. 

O exotismo seu não translada de todo para este novo cenário, resultando numa homogeneização de signos culturais e a reutilização das fórmulas de dominância “anglosaxónica”, a conquista do “selvagem” pela “pureza do Ocidente”, por outras palavras a utilização e o afunilamento do filme para com a presença de Tilda Swinton transforma a paisagem colombiana num pano de fundo homónimo (mesmo que visualmente belo seja essa anonimato). Mas Apichatpong é tailandês, o leitor perguntará incrédulo, o que de ocidentalizado ou anglosaxónico existe nele? Inconscientemente, talvez por ambição de sair de um círculo de “world cinema” (mais uma vez, etiquetas mercantis) e tentar “abraçar” uma aproximação a um reconhecimento … como diria … de degustação americana. 

Entretanto “Memoria” preza-se pela experiência em sala, não somente pela imagens-instalação ou pelo tempo sem pressas, como também pelo som, a sua importância, quer narrativamente, quer interativamente com o espectador. Não desejo ser equivocado, este é um filme menor do tailandês, mas mesmo menor continua a ser Cinema, com todas as propriedades que isso acarreta.

"Perdido por Cem" ou perdido por mil, António-Pedro Vasconcelos e a sua juventude inquieta

Hugo Gomes, 24.01.22

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António-Pedro Vasconcelos nunca escondeu o seu fascínio pela Nouvelle Vague que "influenciava" as mais variadas frentes do cinema mundial. E em Portugal, pela alçada de António da Cunha Telles [produção] e por via do baptizado Cinema Novo, gerou-se uma ruptura temática e formal para com o “cinema do regime”. Uma mudança impulsionadora de filmes como “Os Verdes Anos” (Paulo Rocha, 1963) ou Belarmino (Fernando Lopes, 1964). Passados 10 anos desde o primeiro exemplo, o anterior crítico da revista Cinéfilo, que tem atestado o seu potencial em curtas documentais, lança-se num projeto ambicioso em trazer à luz a vaga francesa com tradução lusitana. O resultado foi “Perdido por Cem”, que partilha com a incontornável obra de Rocha, a juventude parida sem futuro que migra da ruralidade para a metrópole possível, Lisboa. Aqui, Artur (José Cunha), à boleia do fala-barato e maneirista Rui (José Nuno Martins), procura por uma cidade soturna e de uma burguesia decadente, um espaço para as suas ambições desfraldadas. 

Vasconcelos anunciou com esta obra um percurso assumido em atribuir novo cinema ao cinema português, descalcificando o seu romantismo cinematográfico mas nunca abandonando o romantismo pelo cinema. É inegável não encontrar em “Perdido por Cem” um retrato contínuo dos “verdes anos” impedidos pela repreensão social e o atraso socioeconómico que o nosso país atravessava, porém, este “Pierrot Le Fou” alternativo é demasiado preso ao seu registo de mimetização, opções que desaceleram a narrativa (ao contrário dos citados de Jean-Luc Godard que cometiam uma velocidade-TGV) e a colocam diversas vezes numa deriva pouco confortável. A escolha e persuasão pelo som direto por parte de Vasconcelos (segundo o próprio, só em França conseguiu tal feito) agrava ainda mais a incompreensão dos diálogos e por sua vez do destino destas personagens sem eira, nem beira, destinadas a rodopiar num signo à “La Jetée” (as imagens “congeladas” da obra de Chris Marker em certa maneira são invocadas naquele final voluntariamente apático). 

Perdido por Cem”, recentemente resgatado para o clube dos restaurados (graças ao trabalho meticuloso da Academia de Cinema em colaboração com a Cinemateca Portuguesa), é um reencontro com um passado datado, mitigado e explosivamente reservado que “pintaram” a capital portuguesa com um desencanto pelas suas “criaturas noturnas" (a cidade que nunca dorme mas que também nunca acorda) ou pelas aspirações resguardadas pelos “brandos costumes”. Mesmo assim, ao contrário de outros contemporâneos seus (o mais adocicado “O Cerco”, de realização do próprio Cunha Telles soa-nos mais fluido na sua linguagem), a imposição de movimento já definido, tardiamente importado, auferem efeito de cópia de segunda mão. 

É uma sensação que nos impede, infelizmente, de reter-nos aquela apropriação da emblemática sequência de “Le Feu Follet” (Louis Malle, 1963), que ao invés da ressaca sufocante conspirada pelo mundo envolto é o impasse de quem não confia em previsões futuras, “limitando-se” a viver o agora com todos os golpes a que tem direito (e aqui, o na altura “não-ator” José Cunha torna-se na mais potente arma de Vasconcelos, e de alguma maneira o seu alter-ego). Ou que dizer da abertura sem cortes, de cabelo ao vento e de diálogos metralhados pela auto-estrada em direção ao incerto. Como a grande fatia dos filmes que se cola, “Perdidos por Cem” é mais interessante por partes do que no seu corpo total. 

O paradoxo dos dois minutos

Hugo Gomes, 22.01.22

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Pouco sabemos sobre Kato (Kazunari Tosa) até ao insólito acontecer. Aspirante musical e dono do café no rés-de-chão do seu apartamento, é certo dia “visitado” pelo seu “eu” futuro no televisor do seu quarto. O próprio fala para si com um adiamento de dois minutos, tempo pouco, mas o suficiente para causar um paradoxo temporal. Kato e a sua trupe de amigos tentam decifrar aquela anomalia, e igualmente aproveitando a “especialidade” daquele loop até percebendo que o futuro, por mais curto que seja a previsão, deve ser conservado até ao limite (mas por quem?). 

Beyond The Infinite 2 Minutes” nasceu no centro da Europa Kikaku, uma comitiva teatral que tem conquistado um nicho nipónico próprio e apostado na produção televisiva e cinematográfica, entre os cabecilhas do movimento está Makoto Ueda, responsável pelo argumento desta caricatural viagem temporal. Em constante loop formal, a primeira longa-metragem de Junta Yamaguchi percorre um cenário limitado em um ininterrupto travelling (e sem espaços para as personagens se introduzirem na ação) de 70 minutos, absorvendo o máximo da gag idealizada e por sua vez pavoneando com as suas devidas capacidades. O que não revela muito, visto que o filme junta a ideia e abraça carinhosamente a sua desengonçada concepção, consistindo para preservar um lado camp nisto tudo, da mesma forma que um sentimento de desleixo improvisado parece apoderar a intriga. “Beyond The Infinite 2 Minutes” é curiosamente um exercício lúdico da estupidez mais criativa, o que poderá soar pejorativo e contraditório, mas é um facto que o argumento rodeia uma ideia esgalhada de ficção-científica artesanal, mantendo a sua farsa até ao fim. Porém, a sua estrutura, desenvolvimento, assim como o seu clímax, remexem numa sátira hiperbólica e assumidamente inconsequente. 

É de notar uma aproximação deste “Beyond the Infinite 2 Minutes” com o seu conterrâneo de culto, “One Cut of the Dead” (“Mortos, Vivos, Câmara, Ação!”, 2017), de Shin'ichirô Ueda. Ambos têm raízes performativas (apesar de “Beyond’” não ser uma peça na sua génese, é de mesma essência, pensado e projetado para que assim fosse) e fiem no seu criado vórtice, o gag estendido e prolongado que nunca rebaixa a sua capacidade para uma mentalidade alarval, nem nunca demonstra pretensiosismos para os retirar da mera “piada” enriquecida com uma intenção de criar “cinema imediato” e tecnicamente fluido (será que encontramos aqui a "cura" para a indústria japonesa dominada por adaptações de mangas e produções calcificadas com aspirações hollywoodescas?).

No final, há que se rir do futuro, de Nostradamus, das previsões apocalípticas ou do desconhecido que se esconde e espreita. Viver o momento, eis a chave, porque até mesmo míseros 2 minutos conseguem fazer toda a diferença.

O segredo está no equilíbrio ... dê por onde der

Hugo Gomes, 21.01.22

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Para Blanco (Javier Bardem), a vida deve ser contrabalanceada ao ponto de encontrar o seu devido equilíbrio, e é sobre esse mote que o empresário atingiu o sucesso, uma determinação ao ponto de exigir mais e mais de si. Em “El Buen Patrón”, o derradeiro dia está para breve, um cobiçado prémio para, por fim, “equilibrar” a parede incompleta que nós, espectadores, somos presenteados intermitentemente. Falta uma semana para a premiação e tudo deve correr como planeado. 

A personagem de Bardem é nos apresentada da seguinte maneira, num piso acima dos seus funcionários, discursando sobre os seus êxitos profissionais de longa data e atribuí-los como frutos do “espírito de corpo” daquela fábrica de balanças que é o seu “filho prodígio”. Para este “bom patrão”, os seus trabalhadores não são trabalhadores, são família e como tal exige que sejam tratados e o que o tratam como isso mesmo. O primeiro impacto é importante, até porque quem não acredita em ingenuidades dentro do mercado de trabalho reconhece automaticamente as palavras-chave para a persuasão de uma ideia de classe mitigada, socialmente sonhada, uma fantasia manipuladora. Blanco não é tão “bom” assim, a sua ambição o torna implacavelmente determinado e manipulador, mesmo que o seu redor descambe na cadência de uma malapata manifestada no decorrer de uma semana (sete dias em queda livre). Fernando León de Aranoa (“Los Lunes al Sol") parece reconhecer que o seu filme é um “filme de ator”, regendo-se à capacidade de Bardem em apresentar-nos um homem encantador e igualmente cruel, uma reunião de elementos que resultam nos alicerces de poder. 

É que mesmo ambíguo e questionável, torcemos pelo seu triunfo, é a nossa inabalável fé num sistema capitalista a revelar-se, ou, simplesmente a nossa falta de alternativas a uma estrutura tão dominante como essa. “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, escreveu a certa altura Slavoj Žižek. Blanco é essa representação, com objetivos em mira, tudo e mais alguma ‘coisa’ para trapacear a balança ética. No final, mão no ombro e “família” como palavra de reconforto. Perdoados e perdidos, a lei da vida moderna. 

Eisenstein & Pudovkin: Sempre camaradas até que a montagem os separe ...

Hugo Gomes, 17.01.22

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Battleship Potemkin (Sergei M. Eisenstein, 1925)

Odessa, 1905, uma multidão festeja o “heroíco” tumulto num dos couraçados a poucos metros da costa do Mar Negro. Pairam brisas de novos tempos, novas ideias, novas revoluções que possam por fim colocar homens e mulheres lado a lado, de maneira equivalente. No entanto, ouve-se um disparo (o silêncio encarrega-se de aludir ao som do fuzil), a guarda ao serviço do Czar rompe furiosamente e mecanicamente pela multidão, que pela escadaria abaixo foge dos iminentes castigos de insurreição. Homens fardados que se alinham, degrau a degrau, disparando sobre homens, mulheres e crianças. E sob o cenário de horror, a tripulação do couraçado triunfante decide recorrer aos pedidos de ajuda dos habitantes de Odessa. O barco de guerra lança a sua fúria sobre terra, com objetiva mirada ao majestoso teatro da cidade, o quartel-general das forças czaristas. Neste momento, uma sucessão de imagens ocorre, um leão de pedra adormecido, repentinamente acorda e demonstra o seu temor pela derrota. 

 

Soviéticos ao poder!

Ato célebre e eternizado da obra-prima de Sergei M. Eisenstein (1898 - 1948) - “O Couraçado Potemkin" ("Battleship Potemkin", 1925) - a apropriação de um evento real que encontrou no cinema a sua transposição. Difícil mesmo é o de separar a História desta parte de história cinematográfica. “Aquilo que passou pelo cinema e foi por ele marcado, já não pode entrar noutro sítio”, afirmação de Jean-Luc Godard na sua série “Histoire(s) du Cinéma”, 60 anos depois da primeira projeção oficial do filme de Eisenstein. Ainda hoje, a escadaria de Odessa, imortalizada na obra e que nenhuma relação teve com o verídico motim, é  curiosidade turística aos estrangeiros-passageiros, provando que Lenin tinha razão em apostar na “mais jovem das artes” para servir de porta-voz à sua implantada ideologia. E a cena descrita anteriormente é uma prova desse estandarte visual que o cinema assumiu, a transcrição e tradução da História, atribuindo-lhe uma conotação desejada e para essa “maquineta” operar, uma engenharia teve que ser aprimorada e aperfeiçoada. 

Eisenstein, fervoroso estudioso da montagem, da sua causa e efeito e das possibilidades da mesma, revelou-se num dos importantes peões para a luta do bolchevismo cinematográfico, à escola soviética que se avançava nas (re)invenções narrativas e nas interações destas para com o espectador. Os seus filmes perduram, “O Couraçado Potemkine” é tido como o apogeu do cinema soviético, a experiência feliz (dentro de muitos dos seus fracassos e filmes incompletos) tido pelo cineasta (chamaremos assim para o definir do restante). Mas não fora o único pedestre dessa instituição, do outro lado, também endereçado à Causa, está Vsevolod Pudovkin (1893 – 1953), “camarada” que nos apresentou outras ferramentas doutrinais envolvidas em grandes narrativas e epopeias humanas. Entre os seus inúmeros trabalhos, conta-se a sua intitulada “trilogia bolchevique” – “A Mãe” ("Mother", 1926), “O Fim de São Petersburgo("The End of St. Petersburg", 1927), “Tempestade sobre a Ásia” ("Storm Over Asia", 1928) - que permanecem como exemplos reconhecíveis de um movimento cinematográfico por excelência. 

mother.webpMother (Vsevolod Pudovkin, 1926)

Kuleshov no centro da ação

Para ambos, as imagens fílmicas encarreguem-se de ser palavras, e a combinação destas [por via da montagem], assumem como frases de uma língua à parte, denominada de cinema. Eisenstein e Pudovkin demonstraram destreza em exercitar e empregar o “Efeito Kuleshov”, quer nas suas obras publicadas, quer nas suas obras realizadas e montadas. Elaborado pelo cineasta e um dos fundadores da primeira escola de cinema do Mundo, Lev Kuleshov, o efeito consistia em demonstrar o poder e as possibilidades da montagem no que refere a dar um significado no usos da justaposição, ou seja, uma imagem sozinha não possuía mais do que a sua denotação, e em sequência com outra assumiria assim uma outra leitura (possivelmente dependente da percepção e cognoscibilidade do espectador).

No famoso exercício, foi juntado, por exemplo, um plano de um homem inexpressivo [o ator Ivan Mosjoukine] e de seguida a imagem de um prato de sopa, que por sua vez atribuíam a ideia de fome à tal “personagem”. Coloca-se novamente a imagem do homem, e uma criança dentro de um caixão como par, o significado torna-se outro, o de pesar ou tristeza. Por último, e deixando intacto o sujeito, é a vez de uma mulher preencher a ligação, e nesse sentido tudo altera, não é de fome nem de lamento, mas de desejo. Curiosamente os alunos, perante este exercício, teceram elogios à performance do ator.  

Eisenstein e Pudovkin partiram com o exercício em grande escala, tentando com isso socorrer as imagens aos seus pretendidos propósitos, um “enchimento” ao subconsciente do espectador. Se o primeiro acrescenta às imagens de motim com o abate de gado em “A Greve” ("Strike", 1925), já o segundo emana a revolução com paralelismo de imagens primaveris no clímax de “A Mãe”. Eisenstein exaltou a violência na violência do seu filme, e colocando em subtexto o gado no matadouro com a relação das forças czaristas para com os manifestantes, enquanto que Pudovkin referiu ao sacrifício da classe operária e dos prisioneiros de regime como o início de uma Primavera que toma o lugar do longo Inverno, uma revolução à porta.     

 

As diferenças que os unem

Agora, o que o diferenciou dos dois mestres encontra-se na tipologia dos velcros das suas idênticas ideias. Para o filósofo Gilles Deleuze (1925 - 1995), a escola soviética foi importante para a fundamentação da sua longa tese da imagem-movimento, pelo que em relação à instituição e aos dois autores em geral, referiu assim no seu “Cinema 1: A Imagem-Movimento”:

Se é possível falar de uma escola soviética de montagem não é porque os seus autores se assemelham mas ao contrário, porque diferem na concepção dialética que lhes é comum, estando cada um deles em afinidade com tal ou tal lei que a sua inspiração recria.”

Eisenstein repescava e trabalhava eventos reais numa escala grandiosa, e como tal dirigia-se no coletivo. Na sua trilogia revolucionária - “A Greve”, "Couraçado Potemkine", “Outubro” (October, 1927) - não encontramos personagens, apenas arquétipos, figuras-simbólicas para o avanço dos eventos. Ausência de heróis a solo, só o povo, a comunhão, e a união são, sim, atos heróicos, contra a vilania das forças contrarrevolucionárias. No cinema de Pudovkin, por sua vez, a narrativa avança com uma personagem, que vai desenvolvendo ao longo da narrativa, a sua epifania está na entrega total das ideias comunistas, seja essa a via de reencontro entre a mãe e o seu filho em “A Mãe”, o camponês que se apercebe das forças capitalistas que corrompem a sua moral, em “O Fim de São Petersburgo", ou o mongol atraiçoado pelos brancos que segue no apelo de Moscovo, em “Tempestade sobre a Ásia". Por outras palavras, o cineasta esteve interessado na progressão da consciência. 

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October (Sergei M. Eisenstein, 1927)

Contudo, Eisenstein, mesmo assumindo a sua grandiloquência (o seu “cinema de atrações”), teoricamente pregava a força da primeira grande imagem. “Uma imagem que seja verdadeiramente um indício, que funcione como um indício” teria dito o realizador a Mikhail Romm, para a edição de abril de 1970 da Cahiers du Cinéma, no âmbito de como conduzir-se num projeto fílmico, e como apresentar a mensagem neste, optando por planos-pormenores que resultam em simbólicos atalhos às tramas dramáticas ou psicológicas dos filmes. Para Deleuze, Eisenstein teria pensado nas botas em “Tempestade sobre a Ásia” de Pudovkin, o momento em que um soldado inglês de botas engraxadas evita o lamaçal na direção dos areais onde irá executar o prisioneiro mongol, depois do fuzilamento, atravessaria de modo derrotado (“desonrado”) a lama havia evitado. 

E é esse o processo mais geral da obra de Pudovkin: seja qual for a grandeza do meio apresentado, São Petersburgo ou as planícies da Mongólia, seja qual for a grandiosidade da ação revolucionária a cumprir, vai-se sempre de uma cena em que os comportamentos revelam um aspecto da situação para outra cena, cada uma delas marcando um momento determinado da consciência e conectando-se com as demais para formar a progressão de uma consciência que se torna adequada ao conjunto da situação revelada.Deleuze.

 

O segredo está na montagem e o que fazer com ela

Se Pudovkin inteirava-se numa equação de quantidade e de qualidade, Eisenstein, mesmo entendendo a sua dialética, posicionava-se na oposição. Julgava, e possivelmente com razão, que teria criado uma nova forma - “uma forma com transformação” - a criação de novas unidades nas suas imagens. Deleuze menciona a sua inserção de imagens indiretas, imagens essas que relação alguma tinham com a ação central, entre os exemplos está a famosa intercalação do gado abatido e os violentos protestos “contidos” pelas autoridades. Ao contrário, do gelo que quebra como sinal de uma Primavera a arrebitar, que bem poderia interagir, paralelamente, com o “abraço de morte” daquele reencontro entre mãe e filho no filme de Pudovkin [“A Mãe”], ambas as ações diluem numa só (por via da "montagem poética" que passarei a explicar), a figuração de Eisenstein nos seus filmes é plástica, ou como como Deleuze afirma, chegando mesmo a ser “teatral”, e assumem como apêndices metafóricos à ação, causa-efeito, dos seus filmes. Os leão acordados pela munição de Potemkin mencionado no primeiro parágrafo deste artigo expõe um dos expoentes máximos dessa "metaforização" imposta no cinema de Eisenstein

O também teórico e crítico de cinema, Marcel Martin (1926 - 2016), enunciou no seu livro, “A Linguagem Cinematográfica” ["Le Langage Cinematographique"], os diferentes tipos de montagem, tendo os seus propósitos, as suas vontades e o registo significativo atribuído. O autor referiu ter sido crucialmente influenciado pelas obras publicadas dos dois referidos cineastas. Assim, ele indiciou a montagem ideológica (criadora de uma ideia), montagem metafórica (o qual podemos incluir as referidas cenas dos filmes de Eisenstein), a montagem poética (Pudovkin entra nessa definição), montagem alegórica, montagem intelectual (Eisenstein é novamente exemplificado), montagem rítmica (musical ou decorativa), montagem formal (um jogo de oposição formais e visuais) e montagem subjetiva (na primeira pessoa).

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The End of St. Petersburg (Vsevolod Pudovkin,1927)

Martin construiu esta taxonomia, afastando-a das nomenclaturas trazidas por Pudovkin e Eisenstein. O realizador de “A Mãe” traz para “cima de mesa” as seguintes definições: paralelismo (o seu filme e a referida presença da Primavera como exemplo), simbolismo (o significado trazido pelas imagens do matadouro na “A Greve” de Eisenstein), sincronismo, antítese e o motivo principal. No caso de Eisenstein, com prestígio por parte do próprio Martin - “segundo a minha opinião, proporcionou a melhor tabela de montagem, porque ela comporta (ainda que a sua leitura seja um pouco difícil) todos os tipos de montagem, dos mais elementares aos mais complicados" - reconhece as seguintes montagens: métrica (baseada no comprimento dos planos), rítimica, tonal (baseada na ressonância emocional do plano), harmónica (baseada na dominante afetiva ao nível da totalidade do filme) e intelectual. 

Esta listagem, mais tarde “higienizada” e categorizada por Martin, que funcionaria como a moderna taxonomia da montagem cinematográfica, as frases dessa língua partilhada por Eisenstein e Pudovkin, que se dá pelo nome de Cinema, mas distanciamos por dialéticas divergentes. Esta foi o sumo da escola soviética, a consciência de um poder semiótico das imagens em movimento, ao serviço de fins políticos, que mesmo assim redefiniram e abriram portas a um cinema posterior e igualmente ardente.

Ambos os autores pegaram em experiências “griffthianas” (referente ao realizador norte-americano D.W. Griffith que do outro lado do Oceano pratica o cinema progressista, que definiu a narrativa / montagem paralela e estabeleceu o grande plano para uso dramático) e as transformaram numa arte intelectualizada capaz de movimentar milhões em direção a uma utopia. Uma utopia falhada, como bem sabemos, mas, inconscientemente, reafirmaram-se numa outra união, a cinematográfica.

Desejo voltar aos modos de montagens de ambos, aos seus filmes e à dialética imposta.

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