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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Na 6ª edição do Close-Up, a Comunidade é o que mais importa!

Hugo Gomes, 14.10.21

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As Tears Go By (Wong Kar-Wai, 1988)

Aquilo que poderia soar a um clube de cinéfilos depressa se transformou num dos mais ascendentes eventos culturais e cinematográficos do país: Close-Up: Observatório de Cinema, uma iniciativa da Casa de Artes de Famalicão, chega à sexta edição, com uma programação fiel à sua génese e igualmente com mais vitalidade.

São filmes, convidados, conversas e eventuais tertúlias pós-projeções: o programador Vítor Ribeiro convidou-me a conhecer as surpresas e ambições de mais uma colheita cinematográfica, com destaque para o cinema de Basil da Cunha (O Fim do Mundo”, “Até Ver a Luz”) e em dois pólos do cinema asiático, Wong Kar Wai (Hong Kong) e Hong Sang Soo (Coreia do Sul).

O Close-Up arranca a 16 de outubro (sábado) com um filme-concerto dos Sensible Soccers através de dois filmes de Manoel de Oliveira (“Douro Faina Fluvial” e “O Pintor e a Cidade”), e o adeus será com “Metropolis”, o grande clássico de Fritz Lang, acompanhado pelo pianista Filipe Raposo e a Orquestra Sinfónica Portuguesa.

Chegamos a uma 6ª edição de Close-Up, aquilo que poderíamos definir como um espaço cinematográfico e cultural. A primeira questão prende-se na própria formalização e idealização do Close-Up, o que o separa de um festival de cinema, por exemplo?

O Close-up é uma programação da Casa das Artes, o Teatro Municipal de Famalicão. É um Observatório de Cinema instalado no Teatro, que apesar de apresentar um momento intenso de propostas [em Outubro], permanece na agenda da Casa das Artes durante todo o ano, o que fortalece a sua ligação à comunidade, com os vários públicos. Por exemplo, com a comunidade escolar, com quem estabelece um diálogo estreito e permanente. Organizado em panoramas, que articula produção do presente e história do cinema, também privilegia um programa orientado por um mote, com várias paisagens, o dar a ver.

A primeira sessão deste Close-Up é o filme de Philipp Hartmann – “66 Cinemas” – que se centra na viagem de um cineasta por 66 cinemas por toda a Alemanha para mostrar e debater sobre o seu mais recente filme. Pondo as coisas desta maneira e seguindo a trajetória imaginária do filme, como vê a importância de uma iniciativa do Close-Up ou do Cineclube de Joane [um dos apoios] para existência do espaço cinematográfico fora das grandes metrópoles?

O "66 Cinemas" é um ótimo filme para discutir as comunidades e os fluxos de memórias que as salas de cinema podem gerar: encontramos salas que preservam uma solenidade, em extensas plateias sob balcões, com poltronas de veludo, candeeiros de lustre e cortinas que ocultam o ecrã, ou régies, já com projetores de digital instalados, pois as cópias em película desapareceram do circuito de distribuição. Em que se acumula "memorabilia", matéria em tempo de digital, como projetores de película, bobines, cartazes, livros, catálogos de festivais, cassetes VHS. O que procuramos em Famalicão, a partir da Casa das Artes, é constituir um conjunto de propostas ecléticas, que tratam o cinema com a mesma elevação das outras artes, em que a proposta pode ser erudita, com marca autoral, mas também lúdica ou popular – algo intrínseco ao cinema e à sua história, com a condição de que o centro da proposta seja o cinema e não o seu inverso. O espectador de Famalicão, no que depender do nosso trabalho, tem acesso às mais diversas propostas, como uma boa dieta do que poderia encontrar nos centros urbanos de Lisboa e Porto. Esta pandemia agravou um panorama já deficitário de distribuição de salas de exibição em espaço público de cinema, algo que as políticas públicas devem contrariar, na participação do cinema como uma arte transversal, com capacidade para dialogar com plateias muito distintas.

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Cristina Coelho e Hugo Gomes, na apresentação de "Les Miserables" de Ladj Ly, na ediçaõ de 2020 do Close-Up

No Close-Up, a maior parte das sessões são pontuadas por intervenções e apresentações de variados convidados (cineastas, críticos, jornalistas, artistas, investigadores, etc.). Com que parâmetros seleciona essas importantes partes do programa? O que define um “convidado Close-Up”?

O que se procurou com o destaque atribuído aos filmes comentados é a possibilidade de singularizar as sessões, de acrescentar algo ao visionamento, de intensificar relações com outros filmes do programa e com a memória do comentador e do espectador. Na escolha dos convidados-comentadores valorizamos a relação dessa pessoa com a obra, começando pela relação mais óbvia - do realizador com o seu filme -, em que se privilegiam convidados que escreveram sobre o filme e a obra do realizador, mas também procurando trazer para a apresentação das sessões artistas e investigadores de outras áreas artísticas e do conhecimento que desenham tangentes ao cinema.

Algo que se vem percebendo no Close-Up é que poderá servir como barómetro do melhor que é produzido, distribuído e visualizado num ano cinematográfico no nosso país. Como funciona essa seleção?

Desde a primeira edição que definimos um mote que percorre o programa. Mas não é esse mote que define a seleção e os panoramas, é mais o seu inverso. É como quem coleciona filmes e autores que quer mostrar e, a partir de determinada altura, esboça-se algo que agrega aquela seleção e que, queremos acreditar, valoriza os filmes e o seu visionamento naquele espaço de tempo. Nesta edição, o mote Comunidade surge reforçado pelo contexto da pandemia que afastou o público das salas de cinema. Sendo que os filmes que aqui juntamos procuram estabelecer esse diálogo a partir da comunidade de espectadores, num vaivém com um ecrã povoado pelas mais diversas comunidades, que são histórias do cinema, do nosso presente, mas também do movimento das coisas, outros tempos que o cinema permite imprimir num imaginário coletivo.

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66 Cinemas (Philipp Hartmann, 2016)

Um dos destaques deste ano é a dualidade de um conjunto de obras de Hong Sang-soo e Wong Kar Wai. No programa impresso encontramos um propósito, mas gostaria de saber pelas palavras do programador o que o levou a juntar dois artesãos das relações afetivas no grande ecrã de estirpes e nacionalidades diferentes.

Na secção Histórias do Cinema procuramos não só mostrar um conjunto de filmes de um autor, mas também colocar em diálogo dois ou mais cineastas, sendo que, curiosamente, a primeira edição também veio de terras asiáticas, com a partilha de mundos, de temas, das famílias e dos lugares de Yasujiro Ozu e Isao Takahata. Nesta edição, ao longo do processo de inventariar possibilidades, apareceram muitas vezes os nomes de Wong Kar Wai e Hong Sang-soo. Se Kar Wai, através da reposição de cópias novas, intensificou a memória dos espectadores que fomos há mais de 20 anos, Sang-soo é um realizador prolífico que nos chegou tardiamente, mas que ocupou o seu lugar na comunidade cinéfila. E se muitas vezes as propostas de um e de outro parecem funcionar por oposição, a velocidade das imagens em movimento de Kar Wai versus um caráter mais contemplativo, também aos pares, de Sang-soo, talvez o coreano seja um autor do nosso tempo, com o cinema, a criação e as suas frustrações, como assunto, enquanto lá atrás Kar Wai usava a cultura popular para nos apontar a vertigem da viragem do milénio.

Como poderá crescer ainda mais o Close-Up? Que outros desafios terão num futuro próximo?

Para lá da exibição, dos encontros entre documentário e ficção, entre produção do presente e história do cinema, na procura de fazer emergir as potencialidades humanistas do cinema, há uma vertente que também pontuou as seis primeiras edições e que é inerente à condição de integrarmos um Teatro Municipal: o apoio à criação. Apresentámos filmes-concerto em estreia, respostas de encomendas da Casa das Artes, cruzamentos artísticos, a que responderam Sensible Soccers, Dead Combo, The Legendary Tigerman, Os Mão Morta, Orquestra Jazz de Matosinhos, Black Bombaim e Luís Fernandes. Paralelamente, promovemos o apoio à produção de filmes de Mário Macedo, Tânia Dinis, Eduardo Brito ou Luís Azevedo, em formato de curta-metragem e associados a ciclos e cartas brancas com esses realizadores. 

Um desafio para edições futuras será intensificar esse apoio à criação, fazendo-a ter ainda mais peso no programa. Se os filmes-concerto relacionam história do cinema com novas criações, obras importantes que chegam a outros espectadores transportados por outras bandas sonoras, há outra ambição, também relacionada com o património do cinema, que é a de proporcionar panoramas de obras de realizadores importantes, mas que não obtiveram distribuição, que foram pouco mostrados em Portugal, para lá de exibições na Cinemateca Portuguesa e que passará, também, por concertar parcerias com outras estruturas de programação.

Ana Moreira: "o ICA está construído como um sistema bastante patriarcal"

Hugo Gomes, 13.10.21

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Sombra (Bruno Gascon, 2021)

Em tempos de paz, os filhos enterram os pais. Em tempos de guerra, os pais enterram os filhos”: conhecemos Isabel desta forma desconcertante. Uma mulher presa ao vazio gerado pela sua vida, mas acima de tudo, uma mãe desesperada, aguardando que o seu filho chegue um dia a casa, nem que seja a sua sombra ou que resta dela.

Ana Moreira é essa figura depenada, de luto adiado, num filme chamado "Sombra" que se aproxima de uma história real, o do desaparecimento sem deixar rasto de Rui Pedro, com 11 anos, em 1998, e de uma mãe inquieta, Filomena Teixeira, condenada a viver entre manchetes e suposições. Bruno Gascon, realizador habituado às causas, presta homenagem a estas mães com a sua segunda longa-metragem, que é tanto um drama como um "thriller" e um ensaio psicanalista da dor das dores.

Numa conversa que mostra que não é de interpretações que é feito o seu cinema, falei com a atriz que prestou corpo a um martírio e se tornou uma figura incontornável da nossa cinematografia desde que nos conquistou há 23 anos com “Os Mutantes”, de Teresa Villaverde.

Começo a conversa por lhe perguntar como entrou para este projeto.

Aconteceu por convite do próprio Bruno Gascon e da produtora Joana Domingues. Estavam interessados numa possibilidade de convocar-me para este papel, o da Isabel. Li o guião e automaticamente achei o projeto interessante. É uma história ligada à nossa memória coletiva, que ainda recordamos e a que estamos intimamente ligados. Encontrei-me com o Gascon, que explicou... bem devagarinho para não me assustar [risos]... do porquê de querer contar esta história e agora, e sobre a minha personagem, que me foi apresentada aos poucos, assim como o guião. Rapidamente percebi que iria ser uma viagem complexa, emocionalmente difícil e exigente. Ao ler o guião - tendo a perceção do quão bem escrito estava - fiquei, de alguma maneira, atraída por esta história.

Considera-se uma atriz de método?

Não me considero, até porque não estudei artes dramáticas, por isso, nunca passei... como dizer... por uma escola de teatro ou de atores. Tenho 20 anos de carreira, interpretei diversos papéis e, inclusive, fui protagonista diversas vezes. O meu método é singular, foi construído através da experiência, da prática, extraindo conhecimento do simples ato de fazer.

Perguntei isso porque gostaria de saber como trabalhou psicologicamente e emocionalmente uma personagem como esta, que lida constantemente com o vazio da sua perda e que, ao mesmo tempo, resiste a esse abalo.

São vários elementos que se vão reunindo durante o processo. Alguns deles através do guião, através de ideias, como também houve encontros com mães de crianças desaparecidas, em que tive oportunidade de ouvir as suas histórias, de uma maneira mais íntima, partilhando as suas “viagens” e aquilo que elas sentiam. E isso foi muito importante para a construção da minha personagem. Saliento que tive um encontro com a Filomena Teixeira, mãe do Rui Pedro, que talvez seja a inspiração maior para este filme, e esse contacto foi muito especial, o de conhecer verdadeiramente esta mulher com uma história de vida tão incrível, cruel e brutal. Ela serviu como elemento crucial para a minha personagem. O resto foi interpretação.

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Sombra (Bruno Gascon, 2021)

Será inevitável não pensar no caso do Rui Pedro ao ver “Sombra”.

Sim, mas ao mesmo tempo não deixa de ser uma ficção. Apesar de existir aqui uma grande responsabilidade, não senti a necessidade de me “colar” à pessoa que é a Filomena ou outra que passou por igual experiência. Por isso também damos muito aquilo que nós somos, aquilo que podemos entregar à personagem. É um processo de imaginação e criação que fazemos à mesma.

A Ana Moreira é uma das atriz mais reconhecíveis do cinema português, tendo colaborações com realizadores distintos e bastantes expressivos como, obviamente, Teresa Villaverde, Miguel Gomes, Eugéne Green, Jorge Cramez e Margarida Gil. O que leva a escolher com quem trabalhar? Quais são os seus parâmetros de seleção?

O projeto tem que reunir várias condições para provocar interesse e vontade de querer colaborar com certos realizadores em determinados filmes. Não têm que ser todos [papéis] protagonistas, mas passa pela pertinência da história, da personagem, pelo elenco que nos vai rodear, pela equipa, são vários fatores que se conjugam e nos ajudam a selecionar certos projetos. Por vezes, atiramo-nos sem saber, no caso do Bruno [Gascon], nós não nos conhecíamos. Ele estava ciente do meu trabalho e eu só tinha visto o “Carga”, que é, no fundo, a sua primeira longa-metragem. Nesse sentido são importantes os primeiros encontros para criar empatias, perceber se as pessoas encaixam e entender se os projetos são desafiantes ou não.

Já aconteceu não sentir empatia com um realizador ao ponto de não aceitar o papel?

Já. Várias vezes. Mas não é o de sentir desagrado, mas perceber que aquela personagem não era para mim ou de não ser a pessoa certa para interpretá-la, mesmo que o realizador esteja interessado. Por vezes, sentimos que não há conexão de alguma maneira, e entendemos que se aceitarmos ou tentarmos forçar o trabalho de alguma maneira, não irá correr bem. Aí sinto que estou a fazer perder tempo, ao realizador, ao projeto e a mim. Por isso, não é benéfico para todos.

Deixando um pouco a Ana Moreira, a atriz, gostaria que me falasse da Ana Moreira, a realizadora. Neste momento, com duas curtas [“Aquaparque”, “Cassandra Bitter Tongue”] e uma colaboração no coletivo “Contágio”, também aproveitou experiências alheias?

Após vários anos de trabalho com diversos e diferentes realizadores, todos com maneiras de filmar e de escrita para cinema, é inevitável que a experiência adquirida ao ler tantas propostas diferentes de fazer e escrever cinema tenha sido apropriada de alguma maneira. Mas tal não impede de construir a minha própria linguagem. Essa formação motivada pela experiência (e muito especial, aquela adquirida em rodagem, não restringindo-se somente à teoria, e sim, para entendermos a prática de cinema - a teoria de cinema é tão diferente da sua prática) é muito importante, e como tal levo isso para os meus próprios projetos.

Quando poderemos ver a Ana Moreira como autora de uma longa-metragem?

Estou a trabalhar nesse sentido. Tive o apoio do ICA [Instituto do Cinema e do Audiovisual] para escrita e concretização de longas e vou começar para o ano a desenvolver esse projeto.

Mas de onde e em que momento surgiu essa vontade de se aventurar na realização?

Acho que esta vontade, de alguma maneira, esteve sempre em mim. Como havia dito, não estudei artes dramáticas, mas estudei arte e estive alguns anos no Ar.Co. O cinema e o teatro surgiram em paralelo, levando-me a parar os estudos, que foram retomados algum tempo depois. Por fim, fiz um mestrado em Práticas Artísticas Contemporâneas na Faculdade de Belas Artes no Porto. Por isso, de certa maneira, a minha vontade sempre esteve mais ligada à criação, suscitada e motivada após anos de trabalho como intérprete, tendo reunido as condições apropriadas para realmente avançar.

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Os Mutantes (Teresa Villaverde, 1998)

No papel de realizadora, o que acredita faltar ao cinema português, ou caindo no cliché - “o que é que o público deseja encontrar no seu cinema?"

Em especial agora, depois da pandemia, tive contacto em vários festivais de cinema com trabalhos de alguns realizadores emergentes que estão simplesmente a fazer o trabalho deles. Ou seja, a fazer cinema. Aí noto uma necessidade de [contar] histórias novas, mais contemporâneas, atuais, desviando-se do nosso cinema ainda agarrado “ao antigamente”. Estão a aparecer realizadores bastante interessantes que estão a contar histórias que, de alguma maneira, estão mais próximas de nós.

Pode nomear alguns desses “realizadores emergentes”?

David Vicente Pinheiro, João Salaviza, Diogo Baldaia, Leonor Noivo, Salomé Lamas. Ou seja, está a fervilhar um novo cinema português.

Mas em Portugal continuamos a ter realizadores que estão anos e anos no formato da curta-metragem, enquanto outros, como Leonor Teles [“A Balada dos Batráquios”] regressam ao ponto de origem após fazerem uma longa [“Terra Franca”].

Pois, podemos falar de outra coisa, que é a questão das mulheres no documentário. Houve aí uma fase em que se “admirou” que as mulheres ocupassem "um grande espaço no documentário português”, mas creio que isso se prende com um aspeto mais depreciativo. É muito difícil uma realizadora conseguir apoio para primeiras longas-metragens porque o ICA está construído como um sistema bastante patriarcal, os júris são maioritariamente constituído por homens. Ou seja, isso faz com que, de alguma maneira, outras narrativas, principalmente as construídas por mulheres, dificilmente sejam validadas por estes júris. Por isso é que para uma mulher é muito mais fácil concretizar uma curta ou uma longa documental do que uma longa-metragem ficcional.

Nesse caso, visto que trabalhou com Teresa Villaverde em três filmes, como é que ela conseguiu vingar-se num mundo dominado por homens?

A Teresa conseguiu através de muito esforço e trabalho. Aliás, não foi só ela, mas também muitas outras mulheres da sua geração, como é o caso da Margarida Gil ou de Margarida Cardoso, que ocuparam uma lacuna, um espaço, e acima de tudo mantiveram-no até aos dias de hoje. A vinda do digital permitiu que muitas realizadoras, como também realizadores, pudessem iniciar os seus caminhos sem estar verdadeiramente dependentes do financiamento do ICA. O resultado é esta nova colheita de realizadoras, e posso dar-lhe um exemplo, Marta Sousa Ribeiro, do “Simão Chama”, que foi premiado no último IndieLisboa. Apesar de tudo, está-se a abrir um espaço, mas ainda há muito caminho a percorrer.

"Venom: Let There Be Carnage!: quando o cinema é somente "carne pra canhão" ...

Hugo Gomes, 12.10.21

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O primeiro “Venom” do Universo Cinematográfico Marvel da Sony que germina em paralelo com o do Marvel da Disney não foi, de todo, uma obra-prima do subgénero. Nem sequer uma variação que rompesse as suas próprias convenções. Tratou-se, sim, de um espetáculo graficamente dependente do CGI anexado a um enredo atrapalhado e simplista. Era mesmo em Tom Hardy que se concentrava o grande “mas” que recomendava ver todo aquele espetáculo anónimo.

Já por essa altura (2018) a sequela estava prometida e com um dos mais desejados vilões do universo do Homem-Aranha: Carnage/Carnificina. Os produtores contrataram Woody Harrelson para viver o monstro e o ator criou um "serial killer" entusiasta que invoca o de “Natural Born Killers” de Oliver Stone em doses amnésicas e aceitáveis para gerações órfãos de tal cinefilia. O resto, aqui deixado à mercê da direção de Andy Serkis (o ator profundamente ligado ao motion capture via "The Lord of the Rings", "King Kong" ou "Planet of the Apes") é uma salganhada visual, uma praia artificial em todo o seu esplendor, como se confirma num clímax igual ao de um frenético videojogo.

Nem mesmo Tom Hardy e o dinâmico jogo entre "slapstick" e “underdog” (em constante atrito com o seu parasita “irmão” Venom, o "bromance" latente) ou o deliciosamente sádico Woody Harrelson, conseguem resgatar este novo "Venom" da sua inconsequente existência. Mesmo que a sequela assuma a sua patetice com uma defensável impotência, tudo implode na ânsia de se lançar para novos horizontes industriais no Universo Marvel, nem que, para isso, tenha que se vender a alma à possessão tecnológica.

Ferrovias pelo destino do "Cinema Puro"

Hugo Gomes, 11.10.21

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Nestas demandas pelo absolutismo da definição “o que é o Cinema”, deparo com um registo memorial, a preservação de imagens em uma frágil cápsula do tempo. Nessas mesmas, reúnem pessoas, culturas, lugares e arquitetura, e acima disso tudo, um tempo … um específico tempo.

No caso de “The Wonder Ring” (1955), filme-encomenda de Stan Brakhage e Joseph Cornell, 6 minutos concebidos para apelo de registar a estrutura do comboio da Terceira Avenida de Nova Iorque (ligando Manhattan a Bronx), construído entre 1875 a 1878, antes da sua eventual demolição. Contudo, a proposta é ainda mais saudosista do que um mera esquematização, pedagogia ou imagens estáticas para fins acadêmicos ou de trivialidades informativas, o convite dos seus “maquinistas” foi a de uma última viagem, de uma última paragem e de uma última vista pela cidade banhada pelo sol frio, acompanhada pelas faces de quem normalizou a sua rotina como intemporal carrasco.

O filme é sensorial, o espectador em poucos minutos simula a sua experiência nos caminhos-de-ferro suspensas, porém, outro elemento do Cinema é subtilmente colocado à prova. Toda a viagem de Brakhage e Cornell é amontoada por vidros, vidraças, metais e chapas organizados, madeiras intrusivas e reflexos sobrepostos que os impede de atingir um olhar a nu pelas imagens, uma contradição visto que os próprios, em exercício do seu cinema, operam com uma lente que capta essa mini-odisseia. Mas a câmara, essa, anseia pela pureza do seu olhar, um esforço hercúleo e em vão, visto que a objetiva é poluída pelo seu redor. É bem verdade que Brakhage, experimentalista de segunda fornalha e underground de primeira, praticamente confrontou a sua teoria de um “cinema puro” no descarte do objeto que sempre assumimos como dissociável – a câmara – porém, tal é outra viagem.

A Mulher que Morreu Duas Vezes

Hugo Gomes, 10.10.21

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Para muitos foi somente o pretexto para seguirmos na proposta de suspense e de alusões hitchockianas de Brian De Palma, mas, deste lado, relembro com alguma tristeza, aquela que é a segunda morte de uma mulher desesperada. 

O filme que vos trago é “Vestida Para Matar” ("Dressed to Kill”, 1980), um dos meus prediletos do realizador, ainda na tradição do legado deixado pelo mestre de suspense de Hollywood [Alfred Hitchcock], nascendo aqui um fôlego, ora antigo, ora moderno, duma estética de Nova Hollywood, daquele cinema aprendido e recitado com as paixões e as desconstruções devidas. Sim, os ditos “movie brats” (Spielberg, Lucas, Scorsese, Coppola), cineastas com uma consciência do cinema enquanto arte em plena mudança estética, narrativa e performativa. 

Para quem desconhece, ou cuja memória não é o seu forte, a obra parte de uma assassina em série na sede do seu mortal vício que persegue uma “call girl” (Nancy Allen) que porventura testemunhou um dos seus crimes. No centro está Michael Caine como psiquiatra, e ainda mais a fundo uma paciente sua, loira de meia-idade, enclausurada no aborrecimento que não é mais que a sua vida de dona de casa. As evasões desta mulher, o nosso primeiro contacto neste mesmo universo, acontecem exclusivamente na sua mente, os devaneios que a fazem desesperar e suspirar pela fuga possível, partindo de um pressuposto sexual. Segredos íntimos acompanhados por carícias libertadoras, fantasias projetadas apenas confiadas ao seu psiquiatra. Esta mulher (Angie Dickinson naquele que é possivelmente o seu último papel relevante) cede à sua fervorosa loucura, à febre que a corrói no seu interior profundo, e encontra essa oportunidade numa das icónicas sequências no cinema de De Palma, um calculado passeio no Museu de Arte de Filadélfia, um desfrear do seu psicológico em pleno tormento que se transforma numa correria pela cultura do sexo. 

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Os encontros que tornam-se desencontros e por fim num instintivo reencontro, culminando no seio dos lençóis e de uma almofada amarrotada numa cama desconhecida. A nossa mulher atingiu o seu pleno prazer por via de braços estranhos, o conforto que não revia nos gestos frios do seu marido. Uma noite apenas, era o prometido e tal ficou registado. No momento da saída de cena, discreta assim quis, Dickinson sorrateiramente evade o apartamento daquele homem incógnito e sem face (apenas o corpo como moeda de troca), mas a sua curiosidade domina. Na tentativa de adiar a sua nova “fuga” (a da fantasia para o seu enfadonho real), a mulher lança-se na jornada de conhecer este companheiro temporário, com isso confrontado com o seu fim, a sentença de um adultério satisfatório, a luxúria consequencial. Perante esse novo e revelado “veneno” que corre pelas suas veias, a loira é subitamente “atropelada” pelo seu carrasco. Nada relacionado com a sua anterior condenação, mas foi com a fria lâmina do facalhão utilizado por esta entidade assassina que Dickinson cede ao seu eterno descanso. 

Esta foi a loira que morreu duas vezes, a morte definitiva pelo vilão da história e a outra, pelo seu escape à realidade que a afrontava diariamente. Porém, pensando bem, esta sua segunda morte soou mais com uma salvação, até porque nesta sociedade regida pela convencionalidade, os desejos nunca são prazeres inocentes.

Metamorfose dos Pássaros

Hugo Gomes, 07.10.21

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"Titane" é a história mirabolante de uma assassina em série com fetiches pelo metálico que copula com um automóvel numa noite específica. E que, enquanto alimenta uma outra e sádica sede, é invadida por um "corpo estranho" que a vai transformando em algo... distinto.

Pelo meio desta improvável mistela (uma receita indigesta para menos preparados para este universo, como se pôde constatar por algumas reações extremistas após o filme ganhar a Palma de Ouro em Cannes) somos apresentados a uma "filha bastarda" de “Crash”, de David Cronenberg, um "body horror" que não só joga com as drásticas metamorfoses corporais, como também com as fronteiras do género, com toques da excentricidade mórbida de muito cinema nipónico dessa classe (de “Tetsuo: The Iron Man”, de Shin'ya Tsukamoto, a muitos e grotescos devaneios de Takashi Miike).

Nesta segunda longa-metragem de Julia Ducournau, seguindo a trajetória do seu aclamado “Raw” (também ele um disfarçado “body horror” sobre a transformação de uma vegetariana após provar carne pela primeira vez), “Titane” é um filme estilístico sobre a nossa fixação pelos corpos e pela ambição de os converter em eternos, custe que custar, ou será melhor mencionar – “titânicos” –, enquanto discute a fluidez do género enquanto identidade social nessas aberrações consolidadas. A realizadora expele aqui uma monstruosidade vivente entre dois mundos: o de um certo “classicismo” trazido pelo horror cinematográfico, a tradição do choque e o uso do terror como a derradeira linguagem política no cinema; e um segundo que nos guia por questões atuais ou de preocupação "millennial", nunca desgrudando a sua metáfora fílmica.

Portanto, “Titane” opera consoante a interpretação e representação que lhe quisermos dar e visualizar, nunca prescrevendo em absolutismos ou propagandas. É terror, choque, sangue e bizarrias. E, ao mesmo tempo, política, identidade e sociedades espremidas numa só arte. Uma complexa panóplia disfarçada num gesto de repugnar o espectador, com uma atriz titânica como Agathe Rousselle a servir-nos de compaixão e incómodo e um dos mais excêntricos desempenhos de Vincent Lindon. Ambos em figuras presas às suas maldições, que ambicionam pelo aço de que os seus corpos invejam.

Com "Titane", Julia Ducournau conseguiu uma aberração no meio de tanto conformismo. Sem classificá-lo como o mais “estranho filme da temporada”, porque simplesmente não o é, somos abalados por uma viagem de enganos e de sensações estranhas onde o corpo não é definitivo. Temos nome para o futuro.

Catherine Corsini: "A França é um país com uma tradição revolucionária"

Hugo Gomes, 04.10.21

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Apresentado na secção Competição do último Festival de Cannes e com as honras de abertura na 17ª edição do FEST: Novos Realizadores Novo Cinema em Espinho, "La Fracture" é um ensaio político que tem no humor a sua maior arma de arremesso, ainda que seja a compaixão humana que se destaca.

Catherine Corsini captou o retrato de uma sociedade fraturada num específico momento e num ainda mais específico local: no calor das violentas manifestações dos “coletes amarelos” em Paris e num hospital sob “fogo”, onde os enfermeiros e médicos tentam trabalhar durante um tremendo turbilhão social. Uma sala de espera das Urgências será o lugar de uma guerra entre classes e visões opostas que destacará heróis, mártires e vítimas.

Ainda sem estreia comercial confirmada em Portugal, conversei com a realizadora após a primeira exibição do filme na Riviera Francesa em julho, quando se mostrava indignada pela forma como estava a ser recebido por diversas classes, incluindo a política, após as reações precipitadas à partilha de frases sem contexto nas redes sociais, nomeadamente as de um encontro imaginário do Presidente Emmanuel Macron por um “colete amarelo”.

“La Fracture” é uma obra que retrata tantos problemas correntes da nossa sociedade de uma perspetiva quase tragicómica. Como conseguiu trabalhar esses diferentes elementos?

Não costumo contar histórias de pessoas que não venham do meu ponto de vista. Nesse aspeto, começo “Le Fracture'' com as personagens de Valeria Bruni Tedeschi e de Marina Foïs, porque elas aproximam-se do meu mundo. Nos meus dois filmes anteriores ["La belle saison", 2015; "Un amour impossible", 2018], abordei tempos diferentes, sendo que, e seguindo os moldes de uma obra de Nanni Moretti que aprecio muito – "Palombella Rossa" –, desejava usar o humor para abordar o compromisso e relação política. Recordo que fiz uma comédia em 1999 denominada “La nouvelle Ève” que por si tinha um vínculo político, o que também me fez querer voltar e persistir nessa forma. E as personagens foram extraídas da minha própria vida, assim como a ideia deste filme. Tudo aconteceu quando eu e a minha companheira tivemos que passar uma noite nas Urgências. Apesar dos hospitais serem locais mais do que vistos no cinema, permanecem um espaço rico em relações e encontros com pessoas de classes e universos diferentes. E o curioso é que todos são tratados da mesma maneira. Observei todo este biótopo, os auxiliares, médicos e enfermeiros, e imaginei como isso poderia originar um conjunto de enredos.

No fundo, isto é um filme sobre a fragilidade do Sistema Nacional de Saúde francês, já num tempo anterior à pandemia. Como é atualmente a situação?

A situação é terrível. O Sistema Nacional de Saúde já se encontrava mal antes da pandemia e depois dela ficou totalmente danificada. Basta só ver o caso do primeiro confinamento, onde assistimos e ouvimos pessoas aplaudir e encorajar os profissionais de saúde todas as noites, o que não aconteceu no segundo. Até mesmo o bónus atribuído pelo governo só foi dado ao departamento de reanimação, esquecendo por completo os outros.

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Grande parte da ação decorre num só espaço. Poderemos encarar estas Urgências como uma representação de uma sociedade em colapso?

Quando começamos a fazer um filme, tentamos olhar para as personagens, concebendo um cenário e modificando alguns procedimentos. Foi o que fiz com o hospital, criei nele uma tensão, um enredo, um espaço circundante de pessoas... sim, poderemos encarar isso como a representação de uma sociedade que atinge um limite.

Por vezes, para discutir questões políticas num filme é preciso manter uma certa distância. Em “La Fracture”, pelo contrário, sentimos a urgência do agora, quase como uma intervenção.

Mantive essa distância nos meus dois filmes anteriores, mas aqui tive o sentimento de querer “saltar para o meio do fogo” e isso fez com que várias pessoas não acreditassem no meu guião. O que me valeu foi a minha produtora [Elisabeth Perez] me ter apoiado desde a sua génese e ter-me garantido tudo o que necessitava para a sua produção. O que fiz foi usar a realidade à minha volta, tentar com isso alcançar um certo discurso proveniente dessa mesma realidade.

Tendo em conta o que se está a passar [a viralidade de frases sem contexto do filme divulgadas nas redes sociais], acredita que hoje em dia, num mundo cada vez mais polarizado e extremista, a comédia em cenários politizados é como um campo minado para ser trabalhado?

Sim, é verdadeiramente um campo minado, nisso tem razão. Tornou-se um trilho arriscado essa abordagem, plenamente criticado por tudo e por todos, incluindo os coletes amarelos. Mas tomei esses riscos com consideração e, pelo menos, consegui agradar aos profissionais de saúde com esta minha homenagem. Por um lado, não há que ter medo, porque se receássemos as críticas não faríamos nada.

Em relação ao movimento dos "coletes amarelos", como é que os encara e de que forma os representou no filme?

Li todos os livros possíveis, encontrei-me com imensos "coletes amarelos" e até mesmo usei algumas das suas palavras no filme... obviamente com a respetiva e devida autorização. É um movimento estranho porque não existe um líder concreto e está constantemente a desenvolver-se, mas senti-me, contudo, sensibilizada com as suas vidas. França é um país com uma tradição revolucionária, temos a vontade de rebelar-nos contra o que consideramos injusto na sociedade. Infelizmente, ninguém quer ouvir os “coletes amarelos” e os que estão dispostos a isso são os movimentos de extrema-direita e isso é uma pena. Muitos, que estão atualmente “enfiados” nos escritórios, poderiam ter a decência de ouvir os que eles têm para dizer e defender.

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Quanto aos profissionais de saúde, mais especificamente os enfermeiros, abordou-os com um distinto heroísmo em todo aquele caos. 

Há dois heróis que considero neste filme: o da personagem do colete amarelo - o sacrifício – porque o seu “ganha-pão”, o seu corpo, é completamente danificado no final; a enfermeira Kim, que se assume como a última imagem de “La Fracture”. Nesse sentido, queria homenagear os profissionais de saúde, os seus sacrifícios e a tremenda força conseguida perante os escassos meios.

Foi por isso que escolheu uma não-atriz para o papel de Kim?

Não foi bem uma escolha, porque inicialmente pensava numa atriz para o papel de Kim. Só que, durante os dois dias de trabalho de campo no hospital, fiquei a conhecer Aïssatou Diallo Sagna e percebi quão a grande mais-valia ela seria para o enredo. Ela trouxe uma carga dramática necessária e, vendo hoje, é indispensável ao filme.

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