O cinema de Sérgio Tréfaut não é politicamente isento, devemos salientar isso. Há nele uma fervura política que se sustenta de braço dado com a História, o contexto que torna a sua obra num reencontro entre passado, presente e, possivelmente, o vislumbre do futuro.
Multi-premiado realizador de trabalhos como “Viagem a Portugal”, “Lisboetas” e “Raiva”, já está nos cinemas "Paraíso", o seu emotivo retrato de uma comunidade de anciãos, “órfãos” da sociedade contemporânea, que se reúnem no ex-jardim presidencial de Rio de Janeiro para, simplesmente, cantar. Uma comunhão de vozes, experiências e repudias ao último sopro de vida. Estes “velhotes”, que guardam uma “raiva danada”, encontraram nesta melodia partilhada um fulgor de vida.
Infelizmente algo lhes foi retirado: abandonados por um sistema que não os consegue inserir no plano, o realizador resgata as suas vozes e memórias, contando as suas histórias e ritmos esperançosos.
Sem querer desvendar muito, gostaria de começar pelo final, um filme sobre música, dança e vontade de viver que nos deixa, subitamente, desolados logo ao início dos créditos finais. Tendo em conta aquilo que vimos no cartão, questiono-o como está a sua relação com o Brasil neste momento?
Acho que, como grande parte da população, há uma certa sensação de impotência. Somos pigmeus perante a política. Países democráticos como Portugal podem pensar que o Brasil tem o que escolheu, o que não é bem assim. A Assembleia é composta por 30 a 35 % de partidos que ditam os valores e depois temos 70%, ou quase, de deputados mercenários.
Nesse sentido, Jair Bolsonaro continua no poder, mesmo que existam centenas de pedidos de impeachment contra ele e de cometer diariamente atos que são criminalizáveis, e insultos às demais instituições, como o Tribunal Federal, Tribunal Eleitoral, etc., porque comprou essa parte de deputados. Para alguém se manter no poder, tem que negociar constantemente com esses mercenários, esse “centrão”. Lula tinha uma capacidade negocial, fazendo acordos com inimigos, que causaram graves problemas ao longo do tempo. A Dilma tinha essa capacidade diminuída, era um desastre de negociação, sendo que, no seu segundo mandato, os mesmos que eram os seus aliados e a elegeram votaram num impeachment em que não acreditavam.
Ou seja, a presidenta foi vítima de um golpe de estado, que o próprio Michel Temer confirmou em espaço televisivo, porque não conseguia negociar com essa facção de deputados. Bolsonaro comprou-os, aqueles que atacou durante a sua campanha eleitoral. Por outras palavras, o que se passa atualmente no Brasil é difícil compreender à luz democrática, principalmente em países europeus.
Sérgio Tréfaut na rodagem de "Paraíso" / Foto: Beto Felicio
Resgato essa impotência, talvez seja a descrição exata para aquilo que sentimos no final do filme. E que sente no final dessa experiência?
A impotência para com a morte das pessoas? Claro, qualquer um sente essa impotência. Quando temos um presidente que trata a COVID-19 como “gripezinha”, que luta contra os confinamentos, define a vacina como desnecessária e adverte que quem a tomar se converte em “jacaré”. Um Ministério da Saúde que constantemente tenta adiar a administração dessa vacina e membros desse governo que tentam ter benefícios de um dólar por vacina. Nós, cidadãos, sentimo-nos impotente face ao horror.
Podemos encarar “Paraíso” como um filme político?
“Paraíso” não foi um filme que tenha sido feito com um programa político, ele foca a sensibilidade de uma população. Ele torna-se importante politicamente porque mostra como eram felizes as pessoas que o governo brasileiro deixou deliberadamente morrer. A frase mais dita pela Presidência da República era “morre quem tem que morrer”, ou seja, o filme torna-se político no sentido em que diz que “pessoas com 70 ou mais anos de vida têm o direito a serem protegidas, à felicidade”. Não há essa de "quem morre tem que morrer", apenas morre quem o Governo incompetentemente deixou.
E quanto ao título? Uma provocação?
O título teve origem numa imagem dada ao Novo Mundo ao longo dos séculos. O Brasil foi definido como um "Paraíso", mais à frente como um "Paraíso Perdido", depois os índios é que viviam no "Paraíso", a Amazónia é o "Paraíso"... Para além da questão pandémica, havia também uma destruição permanente deste "Paraíso", do território indígena à Amazónia, tudo, ao longo do século XX. Recentemente, Caetano Veloso esteve em Lisboa e cantou uma das suas músicas, dos anos 1970, chamada “Um Índio", que soava aos nossos ouvidos como ficção científica. É uma música muito bonita, mas que abordava a exterminação da última cultura indígena. Hoje em dia, essa letra deixou de ser ficção científica para passar a ser profética. Por isso, este título "Paraíso" é toda uma referência a uma História, cultura, livros, filmes que mencionam algo que existiu no Brasil, mas que tende a ser destruído. O que começa com este microcosmos de pessoas de idade avançada.
Saindo do espectro político, o filme apresenta-nos a música como um caminho para uma felicidade tardia. Uma das testemunhas declara ter sido impedida de cantar e dançar pela família e pelo marido. Só após a viuvez é que pôde integrar estes convívios. Ou seja, uma nova oportunidade para quem a vida é ainda mais inconstante.
Exatamente, não acho que o filme seja pessimista. “Paraíso” fala-nos de uma realidade, que é a realidade daquelas pessoas, de que é possível ser-se feliz numa idade avançada. Por vezes, quem não é de tal idade vê-se mergulhado em comprimidos contra a sua própria depressão, quando a terapia musical e o simples convívio funcionariam como um tratamento mais barato e eficiente para essa solidão crónica. Anteriormente, tinha feito um filme sobre o canto alentejano intitulado “Alentejo, Alentejo”, onde cheguei a essa mesma conclusão, que a população idosa também cantava e era feliz desta maneira. Trata-se de um método terapêutico, este de estarmos em contacto com a nossa raiz musical. “Paraíso” é um filme positivo sobre a felicidade. O único pessimismo que existe é a consequência da pandemia, que entra num contexto histórico que vai ao encontro do próprio processo da noção de paraíso.
Nesse sentido, encontrou uma nova, ou talvez a genuína, vibração no “Não Deixem o Samba Morrer”, de Alcíone, uma das canções mais populares aqui interpretadas.
Uma das ‘coisas’ que gosto nestas personagens é que, por vezes, elas são intérpretes mais poderosas e perfeitas do que algumas celebridades da música brasileira. A maneira como essa senhora, Cléuza, com os seus 85 anos, canta o “Não Deixem o Samba Morrer”, é como se brotasse da terra o canto, a pura legítima representante de um país, mais do que, por exemplo, a Maria Rita com a mesma canção. O que me fascina em “Paraíso” é que estas personalidades são anónimas e igualmente grandiosas. Nisso, estamos perante a verdadeira natureza do filme.
Um dos momentos que gostaria que me falasse é a performance de Ilka, a centenária com um desejo sobrenatural de cantar “10 Anos”, isto contra a decadência do seu corpo e da sua mente.
Sabe que a ‘coisa’ mais mágica que me aconteceu após o filme ter terminado foi o facto de ter organizado uma projeção no jardim para todas essas pessoas, e entre elas estava essa Dona Ilka, com os seus impressionantes 102 anos [risos]. Ela assistiu completamente vidrada à projeção e, no final, só queria abraçar-me e beijar-me. [risos] Foi muito emocionante. Algo muito forte que aconteceu nessa projeção é que aquelas mesmas pessoas não encararam aquilo como uma sessão de cinema, mas como uma das suas reuniões ao ar livre. No final de cada canção, aplaudiam, como se tudo tratasse de um espetáculo. Um comovente e muito bonito espetáculo. Conseguir mostrar este filme aos que sobreviveram foi muito importante.