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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Paulo e os falsos-artistas

Hugo Gomes, 30.08.21

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A Ilha dos Amores (Paulo Rocha, 1982)

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Mudar de Vida (Paulo Rocha 1966)

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O Rio do Ouro (Paulo Rocha, 1998)

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Se eu Fosse Ladrão ... Roubava (Paulo Rocha, 2013)

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O Rio do Ouro (Paulo Rocha, 1998)

“A marca de um artista é fazer com que cada filme seja uma experiência e que cada filme não seja perfeito, nem está para ser perfeito. Ninguém pede ao Cézanne que ao invés de fazer 80 montanhas de Sainte-Victoire faça só um ou duas, mas que a faça bem. E nisso é que o Paulo [Rocha] era um artista, um artista contemporâneo. Ao contrário de muita gente por aí, que se diz experimentalista e que não anda a experimentar ‘coisa’ nenhuma. Andam a experimentar ‘mais do mesmo’ como se tivessem inventado a pólvora seca.”
- Regina Guimarães em “Távola de Rocha” (Samuel Barbosa, 2021)

“Candyman” ... pelos vistos, houve quem se atrevesse a dizer o seu nome mais uma vez

Hugo Gomes, 27.08.21

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29 Anos separam o original de Bernard Rose desta nova ressurreição com cunho (e influências) de Jordan Peele (“Get Out”, “Us”). Nesse espaçamento, o mundo mudou e a nossa relação para com ele também. No caso do hiato que interliga os dois “Candyman” (aqui dispensamos as sequelas realizadas em 1995 e 1999 que serviam como enchimento das prateleiras dos videoclubes), essa mudança encontra-se presente na ebulição racial como pano de fundo numa história de espíritos assassinos vingativos.

Inspirado num conto de Clive Barker (“Hellraiser”), “Candyman” configurou-se como mais um "slasher" que alcançou o culto dos anos noventa e que facilmente caiu em desuso pela escassez (e incompetência) criativa que pairava em produtos B. Mas focando-se no original que nos apresentou Tony Todd como um ícone marginalizado do chamado “horror negro”, o  filme centra-se nos traços psicológicos da sua protagonista, uma estudante branca (há que frisar isto para o contexto) que trabalha numa tese sobre lendas urbanas, fascinando-se por uma com origem num gueto que tem dias contados - a do assassino munido de gancho que surge no reflexo do espelho após o seu nome ser pronunciado cinco vezes.

A obra é subtil neste choque entre os dois mundos, o de uma privilegiada e o de uma comunidade de escorraçados, grande parte de pele negra, vítimas de um fenómeno imobiliário denominado de gentrificação. Acrescente-se a isto um toque paranormal de requinte e uma Virginia Madsen cedida à martirologia ambígua e voilá, temos um dos filmes de terror mais subvalorizados dos últimos anos, porém, não esquecido. O que se comprova pelo facto de alguém ter convocado novamente a tal entidade sanguinária para estes novos tempos.

Jordan Peele, que tem pugnado pela dignidade comercial do dito “horror negro”, contou com Nia DaCosta que há uns anos impressionou com uma pequena curta em tom fabulista sobre a fictícia lenda / origem por detrás de “Candyman”, narranda por via de marionetas de sombras. Desse trabalho que se assumiu como pitch (visto que esse lado estético foi reaproveitado), e na linha de ressurreições de velhos papões (basta verificar a revitalização para com Michael Myers e os seus “Halloweens” para entender a incapacidade de apostar em novos ícones do terror), nasce uma sequela / reboot ao jeito dos novos tempos.

Contudo, o tema invocado do original permanece, só que com outra abordagem, solicitada pela nossa contemporaneidade - a consciencialização. A gentrificação, a discriminação racial e social e outras questões como a impunidade da polícia perante as minorias desfavorecidas já não são mais sugestões, são tópicos de convívio, de jantar, de arte falada, são propagandas vencidas dando lugar a prioridades sociais. Este “Candyman” funciona ao banhar essa luz, ao trazer a modernidade que nós vivemos diariamente, e nesse sentido existe nesta figura fantasmagórica um apelo de experiências nas suas forças criativas.

Obviamente, que isso não invalida a destreza de Nia DaCosta em lavar este terror num embelezamento sanguinário, com um espírito renhido do cinema "slasher" e acima de tudo um joguete de reflexos, fora de campos e pormenores cuidadosos que apimentam esta tentativa de trazer para grande plano um dos mais formidáveis assassinos do cinema. Infelizmente, o sentimento de reciclagem não nos abandona: “Candyman” por vezes soa como a sobreposição de um legado retirado a quente por um gancho, e isso chega a condená-lo, por exemplo, num anti-climático terceiro ato.

Everybody was Kung Fu fighting

Hugo Gomes, 26.08.21

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Wuxia tecnológico com o seu quê de inclusão. Nesse sentido, o Universo Partilhado da Marvel fintou maior criatividade em Wakanda e o seu afro-futurismo (até o enredo era mais carpinteiro), aqui é a americanização das artes marciais e do folclore chinês que Hollywood sempre fixou ao longo destes anos, não há deslumbramento, aliás, os chineses têm feito … e fazem … filmes como estes (basta ver o recente êxito de “A Writer’s Odyssey”, de Yang Lu) com maior imaginação. Salva-se Tony Leung pelo espírito trazido nas suas associações cinematográficas, porque de resto “Shang-Chi and the Legend of the Ten Rings“ é cedido ao vazio, como aquelas frases moralistas e feitas dignas dos “bolinhos da sorte”.

Miguel Gomes: "faço os filmes possíveis em cada momento e com interesse de os fazer"

Hugo Gomes, 24.08.21

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Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro

Em todo o nosso encontro, Miguel Gomes fez questão de sublinhar que “Diários de Otsoga” não é um filme totalmente seu, de forma a invocar a presença da companheira e correalizadora, Maureen Fazendeiro, na nossa conversa. “Peço desculpa, a Maureen não pôde estar presente, teve que tomar conta da bebé.

Possivelmente, ao lado do legado deixado por Manoel de Oliveira e do entusiasmo mundial por Pedro Costa, Gomes é dos nossos realizadores mais internacionais, conquistando lugares nunca antes “navegados” por portugueses com filmes bem distintos como “Tabu” ou o projeto epopeico de “As Mil e uma Noites”. Porém, comigo é mais que isso tudo: é um pai babado.

Apresentado na Quinzena de Realizadores do último Festival de Cannes, “Diários de Otsoga” é marcado por um gesto, o de desafiar um confinamento e a interrupção de projetos e o de dar asas à criatividade, contando com uma equipa entre o profissional e o familiar. Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro tinham um filme em mãos, não sabiam ao certo que futuro poderia reservar esta aventura, mas o futuro também estava entre eles. Para além da rodagem, uma criança vinha a caminho, uma preocupação, uma dádiva ou uma outra dedicação.

O filme foi somente secundário, e mesmo assim prioritário. Ainda que para nós, espectadores, “Diários de Otsoga” tenha sido um filme, para Miguel Gomes foi mais que isso.

Queria começar esta conversa por questionar o significado do título.

Otsoga é Agosto ao contrário. Eu e a Maureen estávamos para sugerir um outro título - “Pura Vida” - porque a estrutura do movimento do filme, digamos, começa num território mais convencional (um beijo ou um início de um triângulo amoroso) e vai abrindo até chegarmos à possibilidade de que se está a fazer um filme. Vemos os técnicos, os atores e o filme, a cada dia que passa, podemos ver mais a vida a tornar-se cinema e não tudo fruto de um universo puramente cinematográfico como indicavam os primeiros momentos do filme. Resumidamente, tudo isto seria para chamar-se de “Pura Vida”, mas a certa altura a Maureen referiu que o título a fazia lembrar uma marca de água mineral, por isso abandonamos algo que à partida era ‘foleiro’.

Otsoga nasceu numa praia. Estava concentrado nas palavras cruzadas, até que de repente, talvez por sugestão das mesmas, uma charada de letras e palavras, perguntei o seguinte: “Se nós filmarmos em agosto em modo diário, e numa narrativa invertida (a essa altura já estava decidida essa estrutura), então que tal se invertêssemos o título?” E naquele momento escrevi Otsoga e isso fez sentido. Foi assim que obtivemos o título.

Ou seja, sabiam que o filme ia ser rodado e até mesmo estreado no mês de agosto?

Isso também já estava combinado. Havia a questão da Maureen estar grávida, com o nascimento previsto para fim de outubro ou início de novembro, portanto não podíamos filmar nos últimos dias da gravidez. Então tivemos que arranjar uma altura muito antes do parto, numa rodagem que fosse rápida, então a solução foi agosto.

Em conversa com a atriz Crista Alfaiate, ela revelou-nos que o filme nasceu de um gesto de “temos que filmar de qualquer forma”, por oposição ao confinamento e à paragem de projetos que a pandemia provocou.

A primeira visita que fizemos após o fim do primeiro confinamento foi à Crista. E falámos sobre a situação. Recordo-me dela confessar que estava a receber, naquela altura, os apoios da Segurança Social, e também de nos ter elucidado sobre a situação de vários colegas, alguns dos quais não recebiam rigorosamente nada e outros apenas 50 euros mensais. Foi exatamente na mesma altura em que o Ministério da Cultura responsabilizava a Segurança Social, ou seja, ninguém resolvia o problema nem sequer se assumiam culpas, e nós [artistas] estávamos indignados com todo este rol. Sendo que este filme nasceu de uma iniciativa de “dar trabalho”.

Talvez tenha sido esse gesto, possivelmente não de uma forma racional, que levou a que o filme apresentasse uma comunidade de cinema, porque é quase um manifesto ao facto de um sector estar a ser negligenciado pelo Estado, que sacudiu as suas responsabilidades. Nós não podíamos remediar. Nessa altura estávamos empenhados e envolvidos com outras pessoas do cinema em pedir um fundo de emergência para o sector, que era algo que já existia noutros países, onde vários projetos ficaram igualmente paralisados mas onde mesmo assim se conseguiram implementar fundos de emergência para auxiliar os técnicos e os atores, muitos deles sem trabalho. Estávamos a lutar por isso, mas infelizmente tal nunca aconteceu. A única possibilidade que nós tínhamos era este projeto, numa escala muito reduzida visto que o filme obteve um orçamento muito limitado e não concorreu ao ICA nem seguimos os canais de financiamento normais para produzir filmes na Europa.

E se concorressem ao ICA...

Não havia tempo sequer…

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"Diários de Otsoga" (2021)

Sim, mas se concorressem como apresentariam o projeto? Para o ICA é preciso apresentar um rascunho do projeto e visto que “Diários de Otsoga” é um filme livre e sem guião definido, como o fariam?

Pois, ia ser complicado. Porque a ideia era precisamente reunirmo-nos, que era algo que nos faltava (a pandemia afastou-nos, quer física quer espiritualmente), e realizar um filme que nascia da nossa partilha de um tempo, que era o tempo daquela rodagem. Se apresentássemos o projeto, ele teria que ser diferente e isso trairia o pretendido, até porque chegámos aquela casa com “folhas em branco”, possivelmente com três ou quatros apontamentos. Havia a convicção e o desejo de poder surgir um filme a partir da nossa experiência naquela casa em tentar criar um filme, e isso torna-se um assunto dentro do próprio filme - a história de uma rodagem de um filme. E pensando desta maneira não o conseguiríamos fazer através dessa aplicação aos fundos do Instituto de Cinema.

O seu filme traz-me à memória aquela frase batida de Jacques Rivette, de que “os melhores filmes são sempre documentários sobre a sua rodagem”?

Exato, íamos fazendo o filme e integrando nele aquilo que ia sucedendo. Algumas coisas com relevância nas nossas vidas, outras fruto do quotidiano. No fundo, é um filme que nasce de uma dor de dentes ou do “vou dar banho aos cães, por isso esta cena deveria estar no filme”, coisas assim. E o “Diários de Otsoga” fez-se dessa maneira, sendo que é preciso desconfiar um bocado daquilo que aparece nos filmes. Ou seja, por um lado o filme tem um lado de espelho da nossa experiência de intimidade naquela casa, na medida em que íamos escrevendo o filme quase sem o saber, mas por outro lado é um objeto de ficção, o espelho é sempre deformado e não é um reflexo absoluto da realidade. A meu ver, é uma ideia um pouco ingénua de que tudo o que está neste filme é a fabricação do próprio filme.

O Miguel e a Maureen apresentam vários desafios ao longo do filme, ao espectador e a vós próprios. A começar pelo beijo que em tempos pandémicos era quase assunto tabu, e a questão do tempo jogado pelo filme - falo obviamente da escolha da borboleta e do marmelo que vai apodrecendo ao longo do ecrã, elementos que brincam com a inversão temporal da obra. 

Bem, estamos a falar de coisas diferentes. O beijo foi das poucas ideias iniciais que trouxemos para casa como um desafios às regras COVID, e como inventámos este método, este modelo de produção que era o de estarmos isolados naquela casa, e como tínhamos um diário invertido que começava pelo último dia de rodagem e terminava no primeiro, poderíamos contornar os perigos de uma cena de beijo, filmando-a no último dia mas montando-a ao contrário.

Quanto à questão da borboleta e do fruto: é que o fruto é, basicamente, um marcador de tempo. Se me perguntares do que se trata do filme, posso ter várias respostas, mas uma delas é que é um filme sobre o tempo, no sentido, em que o facto de o tempo estar invertido o torna numa propriedade própria do cinema, o de manipular a natureza do tempo e desfazer a linearidade da vida. Igualmente é um filme sobre o tempo, porque dos 22 dias que passámos, o espectador nunca conta com verdadeiras surpresas, uma vez que “Diários de Otsoga” não trabalha em termos narrativos para constantes mudanças ou revelações de argumento mas vai mudando de uma forma mais próxima do decurso normal do tempo, ou seja o filme é praticamente estável.

Talvez seja só um momento em que percebemos, por fim, que se trata da rodagem de um filme, mas de resto nada ou pouco altera o nosso percurso. E é aí que entra o fruto, porque é à luz do tempo que aquele fruto altera, ele não é intacto ao tempo. A olho nu nada altera, mas voltando àquele mesmo fruto de três em três dias poderíamos constatar e registar as suas alterações. No fundo, o fruto é o medidor do tempo do filme, e precisávamos disso aqui, em contraste com o que pouco alterna na ação do filme. Mas entre o princípio e o fim de “Diários de Otsoga”, tudo muda. Entre uma festa e outra, há uma grande alteração, percebemos o filme de uma maneira diferente e percebemos isso com a estrutura do tempo.

Já as borboletas, elas são efémeras. Mas a ideia surgiu com a própria natureza da herdade que albergava imensas gaiolas e animais como pavões, galinhas, papagaios, e até havia um canil, e nós queríamos uma construção, que com a montagem iria gradualmente desaparecer. Foi a Maureen que surgiu com a ideia do borboletário.

Existe um momento do filme, em que o Miguel e a Maureen se ausentam da rodagem, deixando o trio de atores (Carloto Cotta, Crista Alfaiate e João Nunes Monteiro) a assumirem o cargo de realizadores. Segundo a Crista Alfaiate, foram três bobines. Confirma?

Já não me recordo quantas bobinas eram, mas havia ali um limite… é capaz de ter sido três, julgo que era isso que tínhamos diariamente programado para gastar. Era a média. Como somos democráticos, achámos que eles tinham por direito as mesmas oportunidades que nós próprios tínhamos enquanto realizadores. E se nesse dia não íamos realizar, porque não dar a vez a eles? Por isso demos-lhes a mesma quantidade de película que usávamos por dia.

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"Diários de Otsoga" (2021)

Sem mencionar a equipa de técnicos, com grande parte dos quais já tinha trabalhado, no campo dos atores, Crista Alfaiate e Carloto Cotta são faces familiares na sua filmografia mas João Nunes Monteiro ("Mosquito") é quase como um extraterrestre neste seio “familiar”.

Pois, a personagem dele é um bocado extraterrestre… Enfim, o Carloto e a Crista já tinham trabalhado comigo e juntos no “As Mil e uma Noites”, por isso já se conheciam bem. Quanto ao João Monteiro, nunca tínhamos trabalhado com ele, foi-nos recomendado por várias pessoas e vimos algum do seu trabalho, e ele acaba por ter um lado desprotegido, é aquele tipo que não consegue pregar um prego [risos]. Ele tem aquele lado mais frágil, o que funciona como um bom contraponto com o lado, um bocado mais bruto do Carloto, e portanto estávamos convencidos que ele poderia dar mais qualquer coisa para aquele triângulo, um lado que poderia ser interessante.

Repescando as questões iniciais da nossa conversa, é um facto que a pandemia lhe “parou” dois projetos. O que é feito deles? Acredita que vai regressar a eles?

Claro. Temos sempre essa esperança. Penso que um deles é mais possível que o outro. “A Selvajaria" será rodado no Brasil e é importante que seja filmado no exacto local onde decorreu a Guerra de Canudos, mas é um filme muito pesado em termos de produção, com muita figuração, técnicos e portanto vai acontecer um ajuntamento de gente, que é impossível neste exato momento. Imperativamente tem que ser rodado no Brasil, porque o livro [de Euclides da Cunha] é sobre aquele lugar e sobre aquelas pessoas, seria batota filmá-lo num outro lugar. Quero ser fiel aquela comunidade, muitos deles descendentes dos sobreviventes da guerra. Não posso trair o meu filme. O que tem acontecido é uma renegociação com os financiadores, porque o projeto está altamente financiado, para que possamos adiar as rodagens para uma altura mais adequada.

E o outro, “The Grand Tour”, é um filme de estúdio mas que não é leve em termos de produção e em figuração. Mas como é em estúdio, possivelmente conseguiremos arranjar uma maneira / solução.

É um facto que o Miguel recorre facilmente a coproduções. Sente de alguma forma que isso é uma solução para o escasso financiamento ao cinema português por parte do seu instituto?

As coproduções são necessárias para reunir uma certa quantidade de dinheiro para concretizar determinados projetos. Este é o meu quinto filme, e é a meias, não é totalmente meu, portanto digo que não tenho um número suficiente de filmes para ter uma estatística ou um plano geral.

Mas no caso do “Diário de Otsoga”, como referiu, não usufruiu de nenhum apoio estatal ou do Instituto. É possível contornar essa fonte orçamental?

Eu faço os filmes possíveis em cada momento e com interesse de os fazer. E por vezes, para os fazer, é preciso coproduções. Surgiram vários debates, muitos deles históricos ocorridos nos anos 90, de como seria a estratégia de produção em Portugal. Discutia-se menos filmes mas com orçamentos superiores ou menos dinheiro mas um número maior de filmes. Acrescentando nisto tudo que há um subfinanciamento crónico no cinema português. Fui defensor, e julgo que deverei sê-lo, de um maior número possível de filmes. Sou contra a ideia, que acho que está estabelecida, de 600 mil euros de teto máximo de financiamento do ICA para uma longa-metragem, e mesmo assim produz-se muito pouco. Julgo que são 10 a 11 longas produzidas em Portugal por ano.

Tendo em conta esse teto máximo, eu para conseguir concretizar os meus projetos recorro a outras formas de financiamento sem ser o ICA. Essa é a solução, não só para Portugal mas para a Europa e até mesmo fora dela, para financiar filmes de produção mais pesada. Mas gostaria de salientar que este filme, apesar do seu orçamento, não é menos ambicioso que um “As Mil e uma Noites”. Os filmes não se medem pelos seus orçamentos.

Falta muito para chegarmos à Cabana do Céu!

Hugo Gomes, 20.08.21

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Inicio esta rubrica em oposição à ideia alicerçada a uma corrente de pensamento atual, de que certos temas e “minorias” estavam expulsas na Hollywood clássica e só hoje são priorizados por essa “máquina” no sentido de ousar consciências. Pois bem, pode estar datado, mas sugiro este filme peculiar – “Cabin in the Sky” (“Um Lugar no Céu”, 1943).

Um musical pioneiro, não por nos apresentar um emancipado Vincente Minnelli na realização (em cumplicidade com o grande senhor deste género - Busby Berkeley - sombreado no estatuto de “não-creditado”), mas por “oferecer-nos” um elenco inteiramente negro em meados da Segunda Grande Guerra, numa altura em que atores e personagens afro-americanas eram cortadas para que as metragens pudessem estrear no sul dos EUA. Não foi o primeiro da sua linha, é certo, antes dele, exemplares mais obscuros como “Hearts in Dixie” (Paul Sloane, 1929), “Aleluia!” (o primeiro filme sonoro de King Vidor, 1929) ou a recriação bíblica, “The Green Pastures” (Marc Connelly e William Keighley, 1936) chegaram a nós, cada um com o seu grau de controvérsia, mas foi este conto moral e religioso composto por alguns dos talentos mais cobiçados da idealizada “Hollywood Negra” (Eddie 'Rochester' Anderson, Rex Ingram, a ascendente Lena Horne e o célebre músico Louis Armstrong) a desafiar as convenções e tornar-se num sucesso em diversas partes do país, o que repercutiu, quer na representatividade (não automática, convenhamos afirmar), quer na carreira de um dos mais importantes cineasta dessa indústria em tons dourados (sim, esse, Minnelli).

O filme centra-se nas aventuras e desventuras de um marido ingrato e apostador compulsivo, Little Joe (Anderson), cuja sua “má sorte” o coloca entre a vida e a morte, apenas poupado do destino certo graças às orações dedicadíssimas da sua amada esposa, Petunia (Ethel Waters). Apesar disso, não se livrou da sentença divina, estando na mira de um lacaio do próprio Diabo e de um Anjo que jogarão pela sua alma. Tendo sido nomeado ao Óscar de Melhor Música Original - "Happiness Is a Thing Called Joe" – “Cabin in the Sky” é, para todos os efeitos, um espetáculo à moda de Hollywood, carregada por uma fantasia escapista ao serviço dos bons costumes pregados por essa Casa de Cinema.

Sob a dita perspetiva atual, os estereótipos raciais estão visíveis assim como a característica hipocrisia desta “fábrica de sonhos”, que se pode verificar, por exemplo, num satisfeito protagonista no seu trabalho precário e árduo (apesar de ser uma assumida fábula, ainda não se estava preparado para ver representado um afro-americano fora do trabalho forçado e segregado), declara viver num “país livre”. São citações datadas sem pingo algum de criticismo à sociedade contemporânea, revelando-nos um ainda longo trilho à nossa normalidade. Mas há que começar por algum sítio, não?

 

*Texto inicialmente publicado na revista Metropolis Nº77, Julho de 2021

Falando com Crista Alfaiate, a musa confinada de Miguel Gomes e de Maureen Fazendeiro

Hugo Gomes, 17.08.21

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Impossibilitado de levar avante os seus projetos por causa da pandemia, Miguel Gomes e a sua companheira e cineasta Maureen Fazendeiro fecharam-se numa herdade com uma equipa e três atores em agosto de 2020 para procurar a cerne de todos os “filmes de confinamento”.

Diários De Otsoga”, o resultado, tem um pouco de tudo: absurdismo, experimentalismo e estética. É uma obra em permanente busca do seu espírito, sem nunca perder a sua liberdade, recebida com inúmeros elogios após a apresentação na secção paralela “Quinzena dos Realizadores” da mais recente edição do Festival de Cannes.

No caso de Miguel Gomes, este desafio cinematográfico foi também um reencontro com Crista Alfaiate, atriz que há poucos anos figurou num lugar de destaque nas “crónicas do país triste” de “As Mil e uma Noites”: ela foi Sherazade, não por um dia, mas por três filmes.

Agora é ela própria num filme ao lado de Carloto Cotta e a revelação de “MosquitoJoão Nunes Monteiro, onde se revela uma artesã do improviso, da experimentação e, sobretudo, da liberdade artística.

Antes de mais, gostaria que me explicasse como surgiu a ideia para este projeto e como o integrou?

O Miguel tem mencionado um encontro específico - a primeira vez que saíram de casa [depois do confinamento] - em minha casa e a do Rui Monteiro [técnico de iluminação]. Aí conversámos sobre a impossibilidade de se realizar espetáculos, de teatro - como é o meu caso e do Rui - e de cinema, como era o caso do Miguel, que tinha duas produções paradas. Nessa conversa surgiu uma ideia contracorrente, uma motivação resumida como "temos que, imperativamente, fazer um filme". Contornar esta impaciência, esta realidade, esta fatalidade, em suma, esta pandemia. Partimos para dentro desta casa, todos nós testados, e tendo em conta o tempo, embarcamos nesta viagem sem um guião estabelecido.

Ou seja, este é um filme totalmente dependente do improviso?

Existe muita 'coisa' planeada, nomeada a estrutura trazida pela Maureen e pelo Miguel, mas no geral o filme foi movido pela improvisação, tendo muito sido escrito ao longo do processo de rodagem. Respondendo à pergunta, sim, houve uma experimentação ao longo desta produção, mas estabeleceram-se balizas para o que se propunha.

Então, o que poderemos considerar real e que é ficção no “Diários de Otsoga”?

Acho mesmo que o interessante do filme é o de não ter a perceção do que é real e o que foi simplesmente encenado. É algo que deixamos no ar, para que o espectador pense no que realmente está a ver, até porque a mecânica do mesmo é exposta. A maneira como se filma, a equipa que filma e até mesmo a localização da câmara. Este jogo, que é uma certa manipulação por parte da Maureen e do Miguel na sala de montagem, e não só, é conceção da estrutura, é interessante e é estimulante ficar-se com dúvidas. Ou seja, uma resposta para uma dessas perguntas é que não responde ao que se pretende.

Nesse sentido, podemos considerar o filme como docuficção?

Diria que é mais... ficção. Mais do que docuficção.

A narrativa de “Diários de Otsoga” é inversa. Houve um convencionalismo na rodagem ou tudo se baseou na sala de montagem?

Poderemos dizer que foi uma rodagem convencional, porque seguimos à luz do diário, mas ao mesmo tempo não o foi, até porque estávamos todos na mesma casa, sem guião preparado, ou seja, pensávamos somente naquilo que iríamos fazer no instante, no seguinte. Não havia um cronograma rígido.

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Tendo com conta a sua experiência com o realizador na trilogia “As Mil e uma Noites”, sentiu estar num filme do Miguel Gomes ou da Maureen Fazendeiro?

Há “inputs” no filme que são muito diferentes. Aliás, tudo isto é uma combinação de duas fixações. Para já, a diferença é filmar com um realizador e o de filmar com dois realizadores. E depois há obsessões distintas, que na minha perspetiva, se juntaram muito bem. Ou seja, não existem particularmente ‘coisas’ que possamos apontar e afirmar que “isto é do Miguel e isto é da Maureen”. A construção da obsessão dos dois está muito... como diria... ligada. Também a grande diferença é que este filme está carregado da vida deles. A sua vida conjunta. No fundo, “Diários de Otsoga” é a vida de um casal e a chegada de um bebé que interfere nesse processo de criação e de realização. Tivemos que mudar todo o processo para que Maureen pudesse acompanhar as filmagens e, ao mesmo tempo, cuidar do seu bebé. Ela foi a única que pôde sair da casa – para a ecografia e nesse dia o Miguel teve que acompanhá-la –, o que alterou automaticamente toda a trajetória do filme, deixando nós [atores] a tomar conta e a continuar. Tudo muda, até mesmo a informação trazida deste casal “contamina-nos”, porque estávamos todos confinados e juntos.

Sobre esta emancipação do ator em relação ao filme e apropriando-me de uma frase do Carloto Cotta: esse dia foi um “desperdício de fita”?

Gastámos três bobines... só naquele dia! [risos] Filmamos várias cenas, grande parte não chegou à montagem final. Posso adiantar, por exemplo, que fechamos o diretor de fotografia, Mário Castanheira, na gaiola dos pássaros. Mas apesar de tudo isto, não acredito que tenha sido um "desperdício" de fita. Pelo processo, pela liberdade que tínhamos, pela proposta e sobretudo pela possibilidade de lançar três bobines para a mão de um trio de atores e de uma equipa e esperar para ver o que realmente acontece. Aconteceu neste filme, porque o Miguel e a Maureen estavam abertos a tais propostas, e tendo em conta que tínhamos em mão um projeto sem guião predefinido, nos deram possibilidades para integrar a experiência. O gesto foi o de “o que podemos retirar dos nossos dias” e nisso resultou uma provocação. Para nós, foi incrível sermos realizadores por um dia.

Visto que “Diários de Otsoga” é um filme sobre confinamento e, logicamente, de pandemia, como vê este cenário no vosso trabalho enquanto atores? Ou melhor, enquanto trabalhadores no ramo?

Aqui [França] já foi anunciado que, para aceder às salas de cinema, será necessário um certificado ou um comprovativo de teste negativo. Portugal possivelmente seguirá o mesmo caminho, o que será uma grande “facada” ao sector, não só para o cinema mas também para a cultura em geral. Esta medida será como “cortar as pernas” ao percurso destes projetos. E como vejo isso? Trágico. Simplesmente trágico, porque influencia a vida em todo o sentido. Não levará o trabalho ao seu máximo potencial e ao seu expoente de visualização. E já era assustador quando nos deparávamos com os números de cinema português, e ainda mais de teatro. Eram péssimos. E os orçamentos? Nem vale a pena mencionar isso. E só de pensar que não haverá algum tipo de retorno e alguns projetos nem irão arrancar. Isso afeta o nosso trabalho e a nossa vida.

O streaming como ser uma alternativa para o vosso trabalho? Tem sido anunciada a criação de algumas produções nacionais em plataformas como Netflix ou HBO.

Pode ser uma alternativa de trabalho, mas não será uma solução para a produção nacional. O filme continua a querer ser visto na sala de cinema, com a qualidade que se quer e a qualidade que se tem. E com os tempos e duração específica de cada produção. Normalmente existe uma tendência de formatação e globalização, para que isto caiba num catálogo de streaming, mas que não é de todo a mesma ‘coisa’ que cinema de autor. Falo de cinema de autor, porque é aquele cinema que solicita o seu invariável tempo e a sua linguagem, e que não corresponde a um público-alvo ou a uma etiqueta do catálogo.

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