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Em Portugal, os cinéfilos atentos que viram “Memories of Murder” (2003) durante a expansão do cinema sul-coreano no ocidente nos início da década de 2000, puderam constatar nesse filme um dos grandes trunfos dessa mesma indústria e da sua, na altura, nova vaga – “a surpresa é a arte do argumento”.
Curiosamente, tal agilidade seguiu de um argumentista convicto - Bong Joon-ho - que nesse mesmo espaço era visto como mais um nome, possivelmente à sombra de outros mais sonantes como Chan Wook Park, Kim Ki Duk ou Kim Jee-Woon. Mas com o tempo, o filme ganharia o seu espaço e a sua legião de adeptos fora da Coreia do Sul, incluindo Quentin Tarantino.
Hoje, com quatro Óscares conquistados e uma Palma de Ouro, Bong Joon-ho é uma figura-chave da atual indústria cinematográfica, erradamente encarado como fruto do sucesso global de “Parasites” (2019). Porém, a sua escalada não surgiu “ontem”, desde o seu trabalho como guionista emprestado até à revelação da sua primeira longa-metragem, “Barking Dogs Never Bites” (2000), que ostentava os elementos que o acompanhariam neste seu percurso à ribalta.
Após o sucesso conquistado pelas “Memoirs of a Murder”, Bong Joon-ho emprestou-se às bestialidades em contextos político-sociais com “The Host: A Criatura” (sucesso ainda maior - 2006), novamente maravilhando Tarantino, que não teve mãos a medir e o divulgou incansavelmente.
Conquistada a posição, o realizador operou com outros cineastas bem característicos - Michel Gondry e Leos Carax - na antologia “Tokyo!” (2008), antes de se aventurar por emancipações como “Mother: Uma Força Única” (2009) e as suas experiências em inglês com o distópico “Snowpiercer” (2013) e “Okja” (2017), este último da Netflix e controversamente integrado na Competição Oficial do Festival de Cannes desse ano.
Sociólogo graduado, é comum o realizador enfeitiçar-se por “monstros”, seja pela real denominação, seja por serial-killers, megalomaníacos ou simplesmente aristocratas, para depois os utilizar como iscos para os seus derradeiros confrontos entre classes. De forma a manter Bong Joon-ho como um território à parte e particular, a Alambique, em conjunto com a Films4You, arrancam com um ciclo que melhor reúne os gestos autorais de um dos grandes da Coreia do Sul (e não só).
“Barking Dog Never Bites” (2000)
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Exibido em festivais como San Sebastian, Slamdance ou Varsóvia, esta história de uma jovem mal amparada que procura um assassino de cães revela alguns dos elementos-chave do cinema de Bong Joon-Ho, principalmente na questão da diferença entre classes, aqui representada pelo tratamento “humano” de alguns cães e a “desumanidade” vinculada em alguns humanos. O realizador esperava com este cruzamento entre thriller e comédia de enganos um sucesso global, mas infelizmente o filme obteve um lançamento limitado, levando-o ao fracasso. Porém, isso não impediu que fosse resgatado e venerado.
“Memories of Murder” (2003)
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Baseado no primeiro serial-killer sul-coreano [nos anos 1980], “Memories of Murder” (“Memórias de um Assassino”) tornou-se a consagração do realizador e o filme que aperfeiçoou o tom dicotómico do seu cinema. É um policial “à moda antiga”, de investigações, interrogatórios, suspeitas, ciências forenses, onde os detetives são seres desesperados e ambíguos que anseiam o alívio de um caso encerrado, custe que custar, e o assassino nunca é a derradeira resolução do dispositivo “whodunit”. Bong Joon-ho admitiu ter efetuado um duro trabalho de pesquisa que se prolongou por mais de seis meses - nesse tempo não conseguiu escrever nem uma frase no guião. Um dos seus obstáculos criativos era o de não encontrar um tom e abordagem certos, e para tal inspirou-se na peça de teatro de Kim Kwang-rim “Come to See me”, que também remexe nas memórias deste mediático caso. Tornou-se o filme que marcou o início da sua cumplicidade com o ator Song Kang-ho.
“Mother” (2009)
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Possivelmente o seu trabalho mais coerente em termos de tom. Thriller negro de uma progenitora que tudo faz para provar a inocência do seu filho, após este ser acusado de assassinar uma jovem. Bong Joon-ho apimenta a narrativa com sugestões edipianas e desafia as convenções da moralidade na pele de uma formidável Kim Hye-ja. Estreou-se na secção Un Certain Regard de Cannes e recolheu tímidos elogios, visto que esta foi a obra que sucedeu o êxito de “The Host”, que ao contrário de “Mother” exibia o seu habitual cocktail de géneros.
“Snowpiercer” (2013)
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Através da novela gráfica “Le Transperceneige" de Jean-Marc Rochette e Jacques Loeb, Bong Joon-ho incute o seu tema recorrente – a luta entre classes – num futuro distópico com veias de Aldous Huxley e de George Orwell. Trata-se da sua primeira produção falada em inglês (o realizador interessou-se na sua adaptação desde a pré-produção de “The Host”), contando com um elenco internacional que vai desde Chris Evans, Tilda Swinton, John Hurt, Ed Harris e como não poderia faltar, o seu ator-fetiche Song Kang-ho. É sabido que Bong Joon-ho teve alguns conflitos com o produtor Harvey Weinstein, que, segundo consta, pretendia uma versão mais frenética para o público americano. “Snowpiercer” é ficção científica delirante, violenta e reflexiva para com o valor do estatuto social e do individualismo versus o futuro da Humanidade, onde o realizador dispõe de todas as ferramentas necessárias para a salvar e mesmo assim prefere não o fazer. Culto garantido!
“Parasite” (Versão P&B, 2019)
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Muita tinta correu para abordar “Parasitas”, obra multi-galardoada que se tornou o primeiro filme de língua não-inglesa a conquistar o Óscar de Melhor Filme. A partir daqui adivinha-se portas abertas a toda uma diversidade de cinema e culturas para estes prémios tão americanizados. Todavia, voltando ao filme, este é possivelmente dos seus trabalhos mais complexos em termos de escrita, em que camadas sob camadas parece alterar consoante a perspetiva do espectador. Há quem encontre nesta intriga de uma família fura-vidas que se infiltram no seio de aristocratas como um drama intenso e social e outros uma comédia negra e ácida. Para além de ser o filme que converteu Bong Joon-ho numa estrela mundial, foi também a obra que posicionou o seu parceiro e ator Song Kang-ho em pé de igualdade.