Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Não houve "sexto sentido" para estas férias no paraíso

Hugo Gomes, 31.07.21

old.webp

Não confundamos subtileza com sugestão: M. Night Shyamalan nunca seguiu a primeira e isso nota-se no seu mais recente filme, centrado na intriga de três famílias “enclausuradas” numa praia remota por quem o tempo passa a velocidade anormal. Ou, diríamos mesmo, quase sobrenatural.

Inspirado numa BD francesa de Pierre-Oscar Lévy e Frederick Peeters intitulada “Sandcastle” (“Castelo de Areia”), este “Old” poderia usufruir-se como um exercício de surrealismo e de metáfora visual em relação ao nosso comum medo da hiperatividade temporal, do constatar das nossas mudanças corporais, ao estilo do “body horror”, ou da experiência amargurada e inconsolável que é o de testemunhar os nossos entes queridos a desvanecer-se perante os nossos olhos, como os tais castelos da areia “acolhidos” pelas ondas do mar.

O tempo destrói tudo”, frase célebre e imortalizada no genuíno drama temporal de Gaspar Noé – “Irréversible” – poderia situar-se aqui como uma boa nota de cadência. Infelizmente, a tal subtileza permanece na matéria-prima (a BD), mas o filme segue por uma outra via para encontrar um fundamento para o que não tinha explicação, tentando com todo este embrulho concentrar-se na materialização de teorias de conspiração, um jogo habitual de Shyamalan. O resultado de tudo isto é que se perde a humanidade. Aliás, ao sucumbirem pelas artimanhas do tempo, pouco resta ao espectador para consolidar uma ligação com estas condenadas personagens, mesmo nos momentos em que elas se redimem ou exibem o seu valor emocional. E isto deve-se ao facto de não existir um trabalho de composição afetiva ou sequer psicológica, que seria (e será) um factor em jogo neste falso filme de cerco.

Shyamalan podia e devia ter investido nas suas personagens, mas preferiu ficar-se por caricaturas. Desde a introdução do seu leque de “vítimas”, o espectador pouco conhece sobre os seus motivos, as suas aflições, os seus medos e até mesmo as suas personalidades (Gael Garcia Bernal, por exemplo, é um avaliador de seguros e grande parte do seu discurso deriva disso mesmo). O que vemos não são mais do que condenados a merecer a sua decadência numa prisão. E “Old” precisava mesmo de personalidades por quem nos pudéssemos afeiçoar, estabelecer laços de cumplicidade e torcer para que contrariasse o seu "destino".

MV5BOWExZjU4NjItNWU0ZC00ZTdiLTgxNGUtMTdhZjZjYTU3Mz

Em relação ao poder da "sugestão", as transformações corporais e mentais provocadas pela passagem do tempo são terreno fértil para o “body horror”. Nesse aspecto, há que louvar Shyamalan por não seguir o traço óbvio, pois o filme não é grotesco, preferindo jogar diversas vezes com o fora-de-campo, com o que não é visto, mas automaticamente apercebido. Contra todas as colagens a Spielberg que a imprensa americana tem tentado ao longo dos anos, o realizador é um real herdeiro de Jacques Tourneur (1904-1977), um cineasta cuja obra permanece um guia para sugerir aquilo que os nossos olhos não alcancem.

Com vários truques e tiques, “Old” revigora os seus contornos de "thriller" de prestígio, acima do cinema "série B" que não assume de forma alguma mas ao qual se mostra eternamente grato. Infelizmente, essa veia de vincada absurdidade deveria funcionar como o seu ponto forte, face ao desprezo de Shyamalan por outras realidades, mas o que sobra é um filme que cobiça ser mais do que é. Se “Old” fosse um real disparate do início ao fim, conseguiria colocar-se ao nível do surrealismo da história e do cinema do seu criador. Mas o que fica é uma obra frágil constantemente a cair e só o tempo dirá se merece um dia ser vista com outros olhos...

Não é só um edifício ... é História reduzida a Nada!

Hugo Gomes, 30.07.21

1024.jpg

Cinemateca-Brasileira-em-Sao-Paulo-1140x694.jpeg

Do outro lado do Atlântico há um edifício que arde, não é um edifício qualquer, é uma cinemateca, a Cinemateca Brasileira. Nela não estão apenas filmes, estão a História audiovisual de um país, que tal como acontecera há uns poucos anos com o Museu Nacional de Rio de Janeiro, as chamas consomem um país cada vez mais divorciado da sua própria identidade, desprezando os seus valores culturais e o seu legado. Dia triste, não só para o Brasil, mas para todo o Mundo, ao testemunhar Património a ser reduzido a cinzas.

James Gunn e os seus «kamikazes»: o exagero do cinema de super-heróis

Hugo Gomes, 29.07.21

l-intro-1616791101.jpg

Há quem diga que o cinema de super-heróis atingiu o seu pico criativo, parece que nada mais pode ser inventado neste território, nem mesmo James Gunn com a sua liberdade adquirida nesta equipa suicida. Porém, não cobiçando quebrar quartas paredes, nem requisitar diálogos metalinguísticos ou de pós-modernismo, “The Suicide Squad” é um objeto reguila de primeira linha, visualmente febril e de um humor “screwball” em afronta às convenções estabelecidas. Talvez seja dos mais ricos alguma vez produzidos no género, há espaço para tudo aqui e sobretudo para exageros … e digamos, felizmente.

Ciclo Bong Joon-ho, um território à parte

Hugo Gomes, 28.07.21

maxresdefault.jpg

Em Portugal, os cinéfilos atentos que viram “Memories of Murder” (2003) durante a expansão do cinema sul-coreano no ocidente nos início da década de 2000, puderam constatar nesse filme um dos grandes trunfos dessa mesma indústria e da sua, na altura, nova vaga – “a surpresa é a arte do argumento”.

Curiosamente, tal agilidade seguiu de um argumentista convicto - Bong Joon-ho - que nesse mesmo espaço era visto como mais um nome, possivelmente à sombra de outros mais sonantes como Chan Wook Park, Kim Ki Duk ou Kim Jee-Woon. Mas com o tempo, o filme ganharia o seu espaço e a sua legião de adeptos fora da Coreia do Sul, incluindo Quentin Tarantino.

Hoje, com quatro Óscares conquistados e uma Palma de Ouro, Bong Joon-ho é uma figura-chave da atual indústria cinematográfica, erradamente encarado como fruto do sucesso global de “Parasites” (2019). Porém, a sua escalada não surgiu “ontem”, desde o seu trabalho como guionista emprestado até à revelação da sua primeira longa-metragem, “Barking Dogs Never Bites” (2000), que ostentava os elementos que o acompanhariam neste seu percurso à ribalta.

Após o sucesso conquistado pelas “Memoirs of a Murder”, Bong Joon-ho emprestou-se às bestialidades em contextos político-sociais com “The Host: A Criatura” (sucesso ainda maior - 2006), novamente maravilhando Tarantino, que não teve mãos a medir e o divulgou incansavelmente.

Conquistada a posição, o realizador operou com outros cineastas bem característicos - Michel Gondry e Leos Carax - na antologia “Tokyo!” (2008), antes de se aventurar por emancipações como “Mother: Uma Força Única” (2009) e as suas experiências em inglês com o distópico “Snowpiercer” (2013) e “Okja” (2017), este último da Netflix e controversamente integrado na Competição Oficial do Festival de Cannes desse ano.

Sociólogo graduado, é comum o realizador enfeitiçar-se por “monstros”, seja pela real denominação, seja por serial-killers, megalomaníacos ou simplesmente aristocratas, para depois os utilizar como iscos para os seus derradeiros confrontos entre classes. De forma a manter Bong Joon-ho como um território à parte e particular, a Alambique, em conjunto com a Films4You, arrancam com um ciclo que melhor reúne os gestos autorais de um dos grandes da Coreia do Sul (e não só).

 

“Barking Dog Never Bites” (2000)

Korean_BarkingDogsNeverBite_02-1-1600x900-c-defaul

Exibido em festivais como San Sebastian, Slamdance ou Varsóvia, esta história de uma jovem mal amparada que procura um assassino de cães revela alguns dos elementos-chave do cinema de Bong Joon-Ho, principalmente na questão da diferença entre classes, aqui representada pelo tratamento “humano” de alguns cães e a “desumanidade” vinculada em alguns humanos. O realizador esperava com este cruzamento entre thriller e comédia de enganos um sucesso global, mas infelizmente o filme obteve um lançamento limitado, levando-o ao fracasso. Porém, isso não impediu que fosse resgatado e venerado.

 

“Memories of Murder” (2003)

memories_of_murder5-e1598644459407.jpg

Baseado no primeiro serial-killer sul-coreano [nos anos 1980], “Memories of Murder” (“Memórias de um Assassino”) tornou-se a consagração do realizador e o filme que aperfeiçoou o tom dicotómico do seu cinema. É um policial “à moda antiga”, de investigações, interrogatórios, suspeitas, ciências forenses, onde os detetives são seres desesperados e ambíguos que anseiam o alívio de um caso encerrado, custe que custar, e o assassino nunca é a derradeira resolução do dispositivo “whodunit”. Bong Joon-ho admitiu ter efetuado um duro trabalho de pesquisa que se prolongou por mais de seis meses - nesse tempo não conseguiu escrever nem uma frase no guião. Um dos seus obstáculos criativos era o de não encontrar um tom e abordagem certos, e para tal inspirou-se na peça de teatro de Kim Kwang-rimCome to See me”, que também remexe nas memórias deste mediático caso. Tornou-se o filme que marcou o início da sua cumplicidade com o ator Song Kang-ho.

 

“Mother” (2009)

Bong_Mother_02-1-1600x900-c-default.jpg

Possivelmente o seu trabalho mais coerente em termos de tom. Thriller negro de uma progenitora que tudo faz para provar a inocência do seu filho, após este ser acusado de assassinar uma jovem. Bong Joon-ho apimenta a narrativa com sugestões edipianas e desafia as convenções da moralidade na pele de uma formidável Kim Hye-ja. Estreou-se na secção Un Certain Regard de Cannes e recolheu tímidos elogios, visto que esta foi a obra que sucedeu o êxito de “The Host”, que ao contrário de “Mother” exibia o seu habitual cocktail de géneros.

 

“Snowpiercer” (2013)

1175839_Snowpiercer.jpg

Através da novela gráfica “Le Transperceneige" de Jean-Marc Rochette e Jacques Loeb, Bong Joon-ho incute o seu tema recorrente – a luta entre classes – num futuro distópico com veias de Aldous Huxley e de George Orwell. Trata-se da sua primeira produção falada em inglês (o realizador interessou-se na sua adaptação desde a pré-produção de “The Host”), contando com um elenco internacional que vai desde Chris Evans, Tilda Swinton, John Hurt, Ed Harris e como não poderia faltar, o seu ator-fetiche Song Kang-ho. É sabido que Bong Joon-ho teve alguns conflitos com o produtor Harvey Weinstein, que, segundo consta, pretendia uma versão mais frenética para o público americano. “Snowpiercer” é ficção científica delirante, violenta e reflexiva para com o valor do estatuto social e do individualismo versus o futuro da Humanidade, onde o realizador dispõe de todas as ferramentas necessárias para a salvar e mesmo assim prefere não o fazer. Culto garantido!

 

“Parasite” (Versão P&B, 2019)

parasite-1.jpg

Muita tinta correu para abordar “Parasitas”, obra multi-galardoada que se tornou o primeiro filme de língua não-inglesa a conquistar o Óscar de Melhor Filme. A partir daqui adivinha-se portas abertas a toda uma diversidade de cinema e culturas para estes prémios tão americanizados. Todavia, voltando ao filme, este é possivelmente dos seus trabalhos mais complexos em termos de escrita, em que camadas sob camadas parece alterar consoante a perspetiva do espectador. Há quem encontre nesta intriga de uma família fura-vidas que se infiltram no seio de aristocratas como um drama intenso e social e outros uma comédia negra e ácida. Para além de ser o filme que converteu Bong Joon-ho numa estrela mundial, foi também a obra que posicionou o seu parceiro e ator Song Kang-ho em pé de igualdade.

Estará Shyamalan fora de tempo?

Hugo Gomes, 26.07.21

old-movie-review-2021.jpeg

M. Night Shyamalan perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem e a resposta alcançada é esta série B que não assume totalmente a sua natureza absurdista. Inspirado na BD “Sandcastle” [Pierre-Oscar Lévy e Frederick Peeters], “Old” é uma construção arenosa que se apoia na incoerência e nos pesadelos comuns e coletivos como uma suposta metáfora visual. Contudo, o vento e as marés derrubam castelos e outros edifícios moldados pela areia humedecida (há mão de produtor aqui, assim acreditamos), porque se senão fosse isso a invocação se manteria até ao fim. Não podemos negar que é um filme à lá Shyamalan … sem dúvida! Agora se era o idealizado, bem, isso é outra história e em outro tempo.

Fitas, borboletas e dias de desespero

Hugo Gomes, 25.07.21

2211863.jpg-r_1280_720-f_jpg-q_x-xxyxx.jpg

Ame-se ou odeie (é bem verdade que na última opção continua dependente a uma vincada ideologia de como o cinema português deve ser produzido e “consumido”), Miguel Gomes já estabeleceu o seu lugar na nossa cinematografia como dos mais ambiciosos realizadores da nossa praça, como também dos mais internacionais (apenas equiparado a Pedro Costa ou o legado deixado por Manoel de Oliveira).

Com a sensação que foi “Aquele Querido Mês de Agosto”, a aclamação unânime de “Tabu”, uma canção que ressoa nos cantos e recantos do passado colonialista, o pretensiosismo discutido das “crónicas de um país triste” numa recitação de um clássico intemporal literário – “As Mil e uma Noites” – e as promessas de um projeto ainda maior intitulado de “Selvajaria”, Gomes, em plena pandemia, retorna numa trajetória contra-maré, não somente narrativamente, e sim produtiva. 

Co-realizado com a sua companheira Maureen Fazendeiro (“Sol Negro”), “Diários de Otsoga” é a cerne dos filmes de confinamento, um verité de um método de construção e igualmente de desconstrução, o qual dois realizadores e a sua respetiva equipa barricam-se numa herdade com o intuito de concretizarem o seu filme. O “filme”, esse mal-amparado MacGuffin, é a tese em elaboração de como o cinema poderá se comportar perante as drásticas mudanças sociais que condicionam o seu processo criativo, sem nunca envergar pela limitação desse quadrante, pelo contrário, a ausência e a indisponibilidade de recursos. 

Carloto Cotta (presença repetente na filmografia de Gomes), Crista Alfaiate (descoberta do realizador em “As Mil e uma Noites”) e a revelação de “Mosquito”, João Nunes Monteiro (com o desafio de distorcer a sua própria imagem) são os atores desta inversa metamorfose (em paralelização com o borboletário e do marmelo em decomposição que serve de núcleo e de termostato a esta “história”) criada em constância pelos realizadores. Aprimorado por momentos humorísticos, satíricos para com o processo fílmico (basta verificar o ponto alto em que os atores comandam o filme, “que desperdício de fita” exclama Cotta) e de puro burlesco, a veia que Gomes parece ter herdado de João César Monteiro, “Diários de Otsoga” funcionam como um exercício labiríntico de devaneios e de busca inspiracional no seu formato de aparentado caos. 

Só que, e falando na língua de Miguel Gomes, o filme é marcado com uma regressão à génese [“A Cara que Mereces”], onde verificamos novamente o fascínio pelos inventários e do cinema regulamentado pelas suas estabelecidas e rígidas regras. Ou seja, há mais controlo nesta exibida “desarrumação” do que supostamente exibe. 

Pág. 1/4