Manuela Serra na rodagem de "O Movimento das Coisas" ao lado do diretor de fotografia Gérard Collet
Foram precisos 36 anos para "O Movimento das Coisas" chegar finalmente às salas de cinema comerciais, sem que fosse apenas em algum festival. Mas apesar desta ausência, a saudade persistia nas novas gerações de cineastas e aficionados que surgiam após o triunfo em festivais como Manheim ou Festroia (em 1985).
Agora numa nova cópia restaurada distribuída pela “The Stone and the Plot”, este é um retrato sobre a ruralidade, conservada numa beleza ímpar e frágil, erguida pela incontornável presença feminina. Foi na aldeia de Lanheses, em Viana do Castelo, que nos deparamos com um oásis neste biótopo desvendado pela corrente do rio Lima.
Rodado em 1980, o filme é uma inspiração, um dos maiores na cinematografia nacional, e isto não é somente lisonjeador. Mesmo que certas “forças” o tenham tentado “estrangular”, o cinema português nunca mais foi o mesmo. Mas também é o único realizado por Manuela Serra, que antes trabalhara como assistente de realização de “Bom Povo Português”, de Rui Simões.
O que aconteceu? O que levou a esta espera e a um corte racial com o cinema? É por aí que começa o diálogo com Manuela Serra...
Começo com a pergunta que, possivelmente, mais lhe fazem, sobre a sua desistência do cinema, não só da atividade mas também no consumo. Pelo que li numa outra entrevista, a Manuela Serra deixou de ver cinema a partir de 1995-1996.
É verdade! Cortei com o cinema, até antes dessa data via cada vez menos. Há quem faça e encontre no cinema uma forma de expressão. Julgava eu ser essa a solução para a minha vida, nem que fosse de sobrevivência. Infelizmente, aconteceu o contrário. Não tendo o meu reconhecimento, ou ser devidamente reconhecida, não me deram hipóteses para continuar o meu percurso. Metendo as "coisas" desta forma, houve pessoas que me impediram, essas, ligadas ao poder.
Mas essas “forças” que a impediram de continuar estiveram também presentes no não-lançamento de "O Movimento das Coisas"? Ou seja, tiveram responsabilidade no “desaparecimento”?
Acho que foi no quadro geral. Durante a década de 80, estas "coisas" derivavam de quem estava no poder, no cinema ou no seu instituto. O facto de não ter uma posição política, nem sequer um partido, para além de não nutrir simpatia por nenhum, não garantiu ferramentas para ter acesso. Têm que existir pessoas interessadas nestes cargos de poder, principalmente no que toca à atribuição de subsídios. Portanto, se eu não dava o que eles queriam, seja a nível político, ou um caso amoroso, e a acrescentar com isso o não-reconhecimento do filme, as minhas hipóteses eram obviamente nulas.
Esta versão restaurada tem a adição de um plano final, a de uma fábrica de aura ameaçadora. Que nos diz que tudo aquilo que vemos no seu filme, a tradição, cultura, estilo de vida, pessoas, vão desaparecer, ou já desapareceram, devido à industrialização.
Todos nós sabemos como o interior do nosso país está desértico, penso que existe consciência disso e dessas alterações. No entanto, não podemos atribuir isso a um só elemento. Mas a maneira como os seres humanos destroem o nosso habitat é tão absurdo para mim. Isso não está expresso no filme, digamos que o plano final acentua essa ideia, embora isso já estivesse implícito através do som ameaçador inserido na fábrica ou o gesto que existe nela, que é debruçado numa máquina, em contraste com o trabalho que é feito no campo com alegria.
O Movimento das Coisas (Manuela Serra, 1985)
Sim, como a festa da desfolhada que filmou. "Coisas" que poderão não mais existir.
Não tenho a certeza sobre isso, porque no outro dia estava a ler uma crítica que dizia o contrário – “O que a Manuela Serra diz não é verdade, isto ainda existe nas aldeias” – portanto, é natural que algumas tradições desapareçam, mas também está a acontecer o oposto, a atenção e preservação dessa cultura tradicional.
Seguindo para um certo paralelismo atual, talvez com motivação na tauromaquia, há uma espécie de união do mundo rural contra as políticas que ameaçam o seu modo de vida. De certa forma, a ruralidade é hoje uma resistência.
Admito que possa ser uma fase. Por vezes, a corrida pelo desenvolvimento leva-nos ao esquecimento de "coisas" meramente importantes e é isso que tenho expressado no meu filme, mesmo o gesto que existia – a ausência de pressa e de pressão – que as sociedades modernas invocam no seu estilo de vida. Estamos reféns da aceleração, é como se pedíssemos que fossemos máquinas, sem sentimentos, apenas eficientes nas operações. Felizmente, há muita "coisa" que se está a corrigir.
Por isso é que “O Movimento das Coisas” é uma obra de natureza harmoniosa, que quis escapar ao stress vivido nas cidades.
Exato, por isso é que fiz este filme, por estar saturada da cidade e perceber a evolução ao meu redor, que muitas vezes era gerada pela pressão nas pessoas. No meu tempo, havia uma expressão que era “aquela máquina”, dirigida principalmente ao homens que ambicionavam ser exatamente isso, máquinas, encarando-o como um adjetivo positivo. Se pensarmos no que isso representa...
Máquinas, no sentido de perda de humanidade, sentimento e compaixão?
Exatamente.
Falou de homens, mas “O Movimento das Coisas” é um filme maioritariamente povoado por mulheres, uma sociedade erguida, trabalhada e "sustentada" por elas. É também sabido que o projeto inicialmente tinha como título “Mulheres”.
A minha primeira ideia foi exatamente essa, então escrevi algumas notas em 1977. O meu ponto de partida é que a grande diferença entre homens e mulheres era indiscutivelmente a maternidade, portanto quis iniciar o projeto com uma cena de parto... só que me roubaram a ideia [risos]. Sendo assim, algo despertou a minha atenção, foi que as pessoas que se começaram a aproximar, principalmente mulheres, desejavam implantar, cada uma, a sua ideia. Lembro que havia quem queria converter o filme num retrato mais politizado e focado no sofrimento das mulheres que operavam nas fábricas. Era um importante retrato, mas não era isso que desejava. Pretendia criar sentimentos, mais do que impor um discurso, tanto que mudei completamente a ideia. E, como tal, fiquei sozinha neste projeto, o que me libertou e garantiu liberdade para avançar para esta aldeia.
Em 2015, dois jovens realizadores – José Oliveira e Marta Ramos – convidaram-na a revisitar a aldeia de Lanheses, 35 anos depois da rodagem de “O Movimento das Coisas”. Que diferenças constatou nesta sua última visita?
Algo que notei foi em relação à personagem de Isabel, a jovem que trabalhava fora de Lanheses, que continua esse ritmo, assim como muitos "jovens" do filme, que apenas encontraram trabalho longe da aldeia. Não tive muito tempo nessa visita, pelo que não constatei se realmente "sobrevivia" o trabalho de campo. Depois encontrei alguns prédios novos que não coincidiam com o resto, o que são marcas do desenvolvimento, mas... podia ser pior.
Mas o rio continua lá.
O rio continua lindíssimo.
"35 Anos Depois, O Movimento das Coisas" (José Oliveira e Mário Fernandes, 2014)
Hoje, “O Movimento das Coisas” adquiriu um estatuto algo lendário e incontornável, principalmente para quem estuda cinema em Portugal, e com isso tornou-se uma recorrente inspiração e referência. Surgiram depois muitos outros retratos rurais. Mesmo com o seu assumido corte com o cinema, chegou a ver algum deles?
Apesar de não ver cinema, tenho notado e visto alguns trabalhos na televisão e até mesmo nas minhas idas ao Fundão [ao festival Encontros Cinematográficos]. Considero isso muito positivo, apesar de tudo funcionar assim no mundo do cinema. É verdade que o filme nunca foi esquecido, seja na memória dos cinéfilos, estudantes, em ciclos de cinema ou até mesmo na Cinemateca. Nada disso deixou que o meu filme morresse. E a imprensa estrangeira também contribuiu para isso.
Sobre este, por fim, lançamento por parte da distribuidora The Stone and the Plot, de Daniel Pereira. Quem é que abordou quem?
Desde que o filme estreou nos Encontros Cinematográficos do Fundão, criou-se uma ligação com as pessoas desse meio que me levou a conhecer o Daniel. Foi ele que me encorajou a estrear “O Movimento das Coisas”. Ele foi o responsável. É como você dizia, um filme com 35 anos só agora estreia nos cinemas, mas devo acrescentar que as montagens terminaram em 1981. O filme estava pronto nessa altura, mas ficou sem produtora, que era a Cooperativa Virver. E houve, como devo dizer, histórias "menos bonitas" acerca de dinheiro, fiquei parada quatro anos. Nesse período, trabalhei na pós-produção, que era a sonoplastia e música. Ou seja, para fazer apenas isso, aguardei quatro anos enquanto resolvia esses assuntos monetários com o Instituto de Cinema.
Já que "tocou" na música, gostaria que me falasse da colaboração com José Mário Branco e as melodias que nos acompanham ao longo desta viagem em Lanheses.
São "restos" da Cooperativa Virver. Conheci e trabalhei com o José Mário Branco na Cooperativa, assim como o sonoplasta Luís Martins. Mas existe nisto tudo algo muito importante, é que o Mário Branco viu o filme durante o seu processo de montagem e gostou imenso, por isso trabalhamos lindamente juntos. Entendi perfeitamente o que ele queria, que ideias tinha para o filme e das suas diferenças sequências. Julgo que também o filme aderiu muito bem às suas ideias.