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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Uma Víuva (nada) Alegre!

Hugo Gomes, 30.06.21

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Num momento em que os fãs estão enviuvados da personagem Natasha Romanoff (Scarlett Johansson), que tal mal tratada foi durante este longo franchise, ‘cai-nos’ uma aventura-a-solo meio caricatural (russos e mais os associados estereótipos pregados em Hollywood) meio negra (aliás o mais sombrio desta indústria disnesca) da tardia emancipação desta “action woman”. “Black Widow” entrega-nos aquilo que nos foi prometido e ainda deposita-nos alguma esperança quanto à linha de montagem criada pela Marvel Studios. Não vos vou mentir, possivelmente é dos melhores capítulos deste universo partilhado, o mais independente quanto à forçada continuidade, o mais solido no seu enredo e acima de tudo, a mais concebida heroína deste mesmo universo. Depois há a versátil Florence Pugh e o seu sarcasmo semi-adolescente e aquilo que considero, automaticamente, das melhores ‘coisas’ que vi nesta marvelesca saga (que já dura 13 anos) … um arrepiante e energético genérico ao som de Smell Like Teen Spirit …. Obrigado Cate Shortland!

“The End of Meat”: estaremos preparados para deixar de consumir animais? Marc Pierschel responde.

Hugo Gomes, 24.06.21

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The End of Meat (2017)

Será o vegetarianismo e o veganismo somente modas passageiras? Ou o próximo passo para a nossa sociedade? Marc Pierschel incentiva-nos com outra questão: como seria a civilização sem o consumo de carne? Premonição ou não, a verdade é que o documentarista e ativista segue na demanda dessa pergunta e idealiza com “The End of Meat” um mundo onde os animais estão em pé de igualdade com os humanos, em que, por fim, porcos ou vacas são encarados mais do que gado ou produto, são seres vivos a merecer a sua dignidade num futuro sem antropocentrismos.

Para Pierschel esse amanhã é uma realidade, as pistas apontam para isso mesmo. O Cinematograficamente Falando … conversou com o realizador sobre a demanda pela erradicação do animal nas nossas ementas, neste documentário sobre uma realidade ali ao lado, a estrear nos nossos cinemas e futuramente figurar no catálogo do videoclube Zero em Comportamento.

Começo pelo enfoque da sua carreira, com exceção da sua primeira longa-metragem [“Edge”] e “184” [em defesa das baleias da Islândia], tem-se dedicado à causa do veganismo e vegetarianismo. 

A nossa relação com os animais é o tema que me motiva a elaborar estes filmes. Sinto que, através do filme como meio, posso contar as histórias que desejo contar e alcançar um grande público a nível global. 

Devo dizer que muitos documentários ou obras que envolvem o tema têm contraído um tom quase propagandista e de ativismo feroz, enquanto "The End of Meat" (“O Fim da Carne”) partimos numa certeza sua e a demanda / tese para a provar.

Ao invés de me concentrar nas consequências negativas do consumo de carne, pretendia mostrar as possibilidades extremamente benéficas de um mundo pós-carne e qual relação teria com os humanos, os animais e o planeta. Sinto que, sem moralizar,podemos alcançar muito mais pessoas. Não estou a tentar provar que isso é possível, estou apenas a apresentar pequenos exemplos que nos demonstram que isso é já uma realidade. 

O seu filme não se limita a ser uma ode ao veganismo e ao vegetarianismo, mas também uma desconstrução do antropocentrismo, que se mantêm ainda desassociável com muita da justiça e lei do Mundo Ocidental. Como conseguiremos descartar algo que está tão inerentemente presente na nossa cultura, arte e sociologia, a ideia do Homem enquanto ser absolutista e “mestre” de todas as coisas, neste caso incluindo os animais?

É verdade. No caso dos animais de criação - eles são aqueles dos quais estamos mais desconectados. Não apenas dos próprios animais, mas também do processo de transformá-los em comida. É por isso que quintas industriais e matadouros são amplamente escondidos e raramente se tornam visíveis. É o mesmo com os próprios animais. Quando os consumidores compram esses produtos, muitas vezes são levados a acreditar que os animais vivem em pequenas quintas, embora não seja essa a realidade. Um dos objetivos dos meus filmes são o de tornar os animais visíveis e mostrar as suas diferentes personalidades por trás dos produtos que consumimos. 

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Marc Pierschel

O Marc usa a Alemanha como um grande exemplo na progressão dos hábitos alimentares, porém algo que “O Fim da Carne” não foca é na questão monetária, económica e classicista que o vegetarianismo e o veganismo possui em alguns países. Dou-lhe um exemplo, em Portugal, a comida vegetariana, vegan e até mesmo biológica é encarado como gourmet e vendido por preços algo exorbitantes para as possibilidades de muita classe média (quanto mais baixa).  

Acho que depende da dieta de cada um. Se confiarmos em alternativas de carne e queijo, então sim. Mas é muito fácil viver uma dieta saudável sem esses produtos,  e sim com ‘coisas’ como vegetais, feijão, arroz etc., como também comida vegan. E muito mais saudável! Mas é um mercado em crescimento que está a promover esses produtos para consumidores mais ricos, porque é lucrativo. 

Sobre o fim da carne, pensa que também deve estar associado a uma extinção / transformação do mundo rural, cujas praticas de domesticação e criação de animais não são só encarados como indústria, mas também como peças culturais fundamentais?

Para a maioria dos países ocidentais, essa transformação começou quando a introdução de maiores quintas industriais, com mais e mais animais, e dos grandes peões globais que assumiram o controle do mercado de carne. Na Alemanha, por exemplo, temos apenas um terço das quintas do que há 30 anos. A agricultura só é possível com pesados subsídios estatais e a maioria dos agricultores estão endividados. Mas considerando a agricultura como parte da paisagem cultural - se olharmos para os santuários, eles não são tão diferentes das quintas tradicionais. Então, os animais ainda podem fazer parte da nossa cultura. Nós simplesmente não temos que usar os animais, nem comê-los. 

Sobre a importância da carne, há que também perceber que a educação tem culpa nessa sobrevalorização, como é o caso da Roda dos Alimentos estudado nas escolas.

Claro que sim. Lembro-me dos meus tempos de ensino básico, tínhamos esses gráficos sobre insetos, pássaros e outros que eram patrocinados pela empresa que também fornecia o leite da escola. Mas o currículo também está repleto de exemplos negativos que promovem a normalização do uso de animais. 

Quanto ao seu mais recente filme – “Butenland” (sobre um refúgio para vacas) – o projeto seguiu na sequência deste “O Fim da Carne”?

Sim, realmente tive a ideia do filme enquanto estava a filmar nos santuários para “O Fim da Carne”. Queria explorar mais a relação entre humanos e ex-animais de criação com um documentário aprofundado, e como o santuário mudou tanto os animais quanto os humanos. 

Quantos as novos projetos? Manterá no tema? 

Tenho alguns projetos em desenvolvimento, todos conectados com a relação homem-animal. Atualmente estou a preparar a minha primeira longa-metragem de ficção, e estou muito entusiasmado com isso.

O Movimento das Coisas: requisição a Caronte para um Paraíso Perdido

Hugo Gomes, 23.06.21

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Na mitologia grega, mais tarde metamorfoseada no imaginário de Dante Alighieri, Caronte oferecia boleia às almas perdidas na sua barca, para que estas atravessassem o rio Estige ao encontro do círculo do Inferno que mais condizia. Em oposição, somos em “O Movimento das Coisas” levados, em travessia pelo Rio Lima, a um território mais térreo ainda povoado por mortais. A neblina adensa-se nas suas beiras, não augurando regressos sebastianos, e sim, vindas do mundo do amanhã, desta forma vendido, com promessas de progresso e prosperidade, nunca instalando, e sim substituindo o quotidiano anterior.

O Movimento das Coisas”, a única realização de Manuela Serra, anteriormente tida como assistente de Rui Simões no “Bom Povo Português” (1981), chegou ao nosso circuito comercial após uma ausência de 36 anos, nesse período, acumulado prémios e menções em festivais, preencheu o imaginário de muitos cinéfilos e futuros cineastas portugueses, alimentando um fascínio deste mesmo cinema pela nossa ruralidade. O que levou Serra a abandonar o meio e romper radicalmente com o cinema na sua vida é ainda discutível, as entrevistas que tem dado à imprensa apontam desde “forças políticas” até a um “mundo imperativamente governado por homens”, passado pelo simples “desinteresse”. Por qual tenha sido o motivo, este foi definitivamente o filme que Portugal, obscuramente, nunca esqueceu, e os seus aficionados falam por si.

Antes de “O Movimento das Coisas”, o meio rural já mantinha ligação com o nosso cinema, encontrando marco estratégico nas aventuras de António Reis e Margarida Cordeiro pelos Trás-os-Montes (o filme data o ano 1976) (e porque não a raridade hoje preservada por Manoel de Oliveira em o “Acto da Primavera” em 1963, e por aí adiante, exemplos são muitos). Mas o que Manuela Serra realmente captou na aldeia de Lanheses (perto de Viana do Castelo) foi a urgência de filmar e registar um quotidiano ameaçado pelo avanço da indústria furtiva (nesta cópia restaurada tal é realçado através da inserção de um novo plano final, o ponto final necessário para a transmissão da sua mensagem). O que conseguiu (passados quase quatro décadas e sob um novo olhar confirma-se tal) foi o efeito de “cápsula do tempo”, uma montra de trabalhos de campo, desfolhadas festivas, dedicações religiosa e os seus ditos rituais centenários, e a modéstia de quem tudo faz / fez para manter estes temas vivos (pelo menos durante o seu prazo de validade), nomeadamente as mulheres, forças hercúleas no dia-a-dia.

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Porém, não posso deixar de notar a capacidade de Serra em conjugar esse prisma num riquíssimo e dialogado esforço de montagem, em cumplicidade com uma planificação pormenorizada, digo isto, tendo em conta o legado criado por estas ‘Coisas’, hoje abundante em inúmeros festivais portugueses, onde nota-se sobretudo uma condescendência, não apenas para com os habitantes dos povoados escolhidos, mas para com o material e a forma como este se manifestará em filme. São poucos os que ainda preservam essa veia cinematográfica na ruralidade, ao invés de ceder ao facilitismo formal, diversas vezes elogiado por elites de pensamento crítico cinematográfico. E é por isto, e não só, que “O Movimento das Coisas” é um filme crucial na nossa História, um modelo ora acidentado, ora poetizado sem bucolismos latentes.

Afirmo sem receio de apedrejamentos, que duvido, até à data, que haja mais belo filme sobre o campo que este filho único de Serra. Tão único como a porcelana pintada à mão do qual a anciã consome a sua “sopa tinta improvisada”.

 

Em anexo, a minha entrevista com a realizadora aqui.

F9: com velocidade e fúria, Hollywood não deixa os seus êxitos para trás

Hugo Gomes, 16.06.21

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Justin Lin, o homem que salvou o franchise e que nele transformou um êxito global (afastando-o do nicho do tunning), está de volta ao volante num nono filme que compete pela imaginação e do ridículo dos capítulos anteriores. Neste mundo, intitulado de “Velocidade Furiosa”, a morte é ‘coisa’ que ultrapassa, a família é escadaria divina e os mais ‘broncos’ são todos, sem exceção, convertidos a superespiões, em busca do enésimo macguffin cataclástico. É fórmula vencedora, sem dúvida, mas esta altura da “corrida” até os mais fiéis sentem-se presos à pista circular. Nada avança, curvas e contracurvas são que nos realmente espera, para que no final - à sua boa maneira - celebrar os feitos de 2h25 com um churrasco, Coronas frescas e a beatice que nos valha (são os banquetes de Asterix replicados na lente da Hollywood egocêntrica e sem meios para os gastos). É um filme de Cannes, por isso deixa ser, mas é também o memorando de que o espetáculo à lá Hollywood não morrerá tão facilmente.

PS: se é para persistir na Charlize Theron como a repetente vilã, não me importo de assinar o certificado de aprovação.

Manuela Serra: "a corrida pelo desenvolvimento leva-nos ao esquecimento de "coisas" meramente importantes"

Hugo Gomes, 16.06.21

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Manuela Serra na rodagem de "O Movimento das Coisas" ao lado do diretor de fotografia Gérard Collet

Foram precisos 36 anos para "O Movimento das Coisas" chegar finalmente às salas de cinema comerciais, sem que fosse apenas em algum festival. Mas apesar desta ausência, a saudade persistia nas novas gerações de cineastas e aficionados que surgiam após o triunfo em festivais como Manheim ou Festroia (em 1985).

Agora numa nova cópia restaurada distribuída pela “The Stone and the Plot”, este é um  retrato sobre a ruralidade, conservada numa beleza ímpar e frágil, erguida pela incontornável presença feminina. Foi na aldeia de Lanheses, em Viana do Castelo, que nos deparamos com um oásis neste biótopo desvendado pela corrente do rio Lima.

Rodado em 1980, o filme é uma inspiração, um dos maiores na cinematografia nacional, e isto não é somente lisonjeador. Mesmo que certas “forças” o tenham tentado “estrangular”, o cinema português nunca mais foi o mesmo. Mas também é o único realizado por Manuela Serra, que antes trabalhara como assistente de realização de “Bom Povo Português”, de Rui Simões.

O que aconteceu? O que levou a esta espera e a um corte racial com o cinema? É por aí que começa o diálogo com Manuela Serra...

Começo com a pergunta que, possivelmente, mais lhe fazem, sobre a sua desistência do cinema, não só da atividade mas também no consumo. Pelo que li numa outra entrevista, a Manuela Serra deixou de ver cinema a partir de 1995-1996.

É verdade! Cortei com o cinema, até antes dessa data via cada vez menos. Há quem faça e encontre no cinema uma forma de expressão. Julgava eu ser essa a solução para a minha vida, nem que fosse de sobrevivência. Infelizmente, aconteceu o contrário. Não tendo o meu reconhecimento, ou ser devidamente reconhecida, não me deram hipóteses para continuar o meu percurso. Metendo as "coisas" desta forma, houve pessoas que me impediram, essas, ligadas ao poder.

Mas essas “forças” que a impediram de continuar estiveram também presentes no não-lançamento de "O Movimento das Coisas"? Ou seja, tiveram responsabilidade no “desaparecimento”?

Acho que foi no quadro geral. Durante a década de 80, estas "coisas" derivavam de quem estava no poder, no cinema ou no seu instituto. O facto de não ter uma posição política, nem sequer um partido, para além de não nutrir simpatia por nenhum, não garantiu ferramentas para ter acesso. Têm que existir pessoas interessadas nestes cargos de poder, principalmente no que toca à atribuição de subsídios. Portanto, se eu não dava o que eles queriam, seja a nível político, ou um caso amoroso, e a acrescentar com isso o não-reconhecimento do filme, as minhas hipóteses eram obviamente nulas.

Esta versão restaurada tem a adição de um plano final, a de uma fábrica de aura ameaçadora. Que nos diz que tudo aquilo que vemos no seu filme, a tradição, cultura, estilo de vida, pessoas, vão desaparecer, ou já desapareceram, devido à industrialização.

Todos nós sabemos como o interior do nosso país está desértico, penso que existe consciência disso e dessas alterações. No entanto, não podemos atribuir isso a um só elemento. Mas a maneira como os seres humanos destroem o nosso habitat é tão absurdo para mim. Isso não está expresso no filme, digamos que o plano final acentua essa ideia, embora isso já estivesse implícito através do som ameaçador inserido na fábrica ou o gesto que existe nela, que é debruçado numa máquina, em contraste com o trabalho que é feito no campo com alegria.

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O Movimento das Coisas (Manuela Serra, 1985)

Sim, como a festa da desfolhada que filmou. "Coisas" que poderão não mais existir.

Não tenho a certeza sobre isso, porque no outro dia estava a ler uma crítica que dizia o contrário – “O que a Manuela Serra diz não é verdade, isto ainda existe nas aldeias” – portanto, é natural que algumas tradições desapareçam, mas também está a acontecer o oposto, a atenção e preservação dessa cultura tradicional.

Seguindo para um certo paralelismo atual, talvez com motivação na tauromaquia, há uma espécie de união do mundo rural contra as políticas que ameaçam o seu modo de vida. De certa forma, a ruralidade é hoje uma resistência.

Admito que possa ser uma fase. Por vezes, a corrida pelo desenvolvimento leva-nos ao esquecimento de "coisas" meramente importantes e é isso que tenho expressado no meu filme, mesmo o gesto que existia – a ausência de pressa e de pressão – que as sociedades modernas invocam no seu estilo de vida. Estamos reféns da aceleração, é como se pedíssemos que fossemos máquinas, sem sentimentos, apenas eficientes nas operações. Felizmente, há muita "coisa" que se está a corrigir.

Por isso é que “O Movimento das Coisas” é uma obra de natureza harmoniosa, que quis escapar ao stress vivido nas cidades.

Exato, por isso é que fiz este filme, por estar saturada da cidade e perceber a evolução ao meu redor, que muitas vezes era gerada pela pressão nas pessoas. No meu tempo, havia uma expressão que era “aquela máquina”, dirigida principalmente ao homens que ambicionavam ser exatamente isso, máquinas, encarando-o como um adjetivo positivo. Se pensarmos no que isso representa...

Máquinas, no sentido de perda de humanidade, sentimento e compaixão?

Exatamente.

Falou de homens, mas “O Movimento das Coisas” é um filme maioritariamente povoado por mulheres, uma sociedade erguida, trabalhada e "sustentada" por elas. É também sabido que o projeto inicialmente tinha como título “Mulheres”.

A minha primeira ideia foi exatamente essa, então escrevi algumas notas em 1977. O meu ponto de partida é que a grande diferença entre homens e mulheres era indiscutivelmente a maternidade, portanto quis iniciar o projeto com uma cena de parto... só que me roubaram a ideia [risos]. Sendo assim, algo despertou a minha atenção, foi que as pessoas que se começaram a aproximar, principalmente mulheres, desejavam implantar, cada uma, a sua ideia. Lembro que havia quem queria converter o filme num retrato mais politizado e focado no sofrimento das mulheres que operavam nas fábricas. Era um importante retrato, mas não era isso que desejava. Pretendia criar sentimentos, mais do que impor um discurso, tanto que mudei completamente a ideia. E, como tal, fiquei sozinha neste projeto, o que me libertou e garantiu liberdade para avançar para esta aldeia.

Em 2015, dois jovens realizadores – José Oliveira e Marta Ramos – convidaram-na a revisitar a aldeia de Lanheses, 35 anos depois da rodagem de “O Movimento das Coisas”. Que diferenças constatou nesta sua última visita?

Algo que notei foi em relação à personagem de Isabel, a jovem que trabalhava fora de Lanheses, que continua esse ritmo, assim como muitos "jovens" do filme, que apenas encontraram trabalho longe da aldeia. Não tive muito tempo nessa visita, pelo que não constatei se realmente "sobrevivia" o trabalho de campo. Depois encontrei alguns prédios novos que não coincidiam com o resto, o que são marcas do desenvolvimento, mas... podia ser pior.

Mas o rio continua lá.

O rio continua lindíssimo.

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"35 Anos Depois, O Movimento das Coisas" (José Oliveira e Mário Fernandes, 2014)

Hoje, “O Movimento das Coisas” adquiriu um estatuto algo lendário e incontornável, principalmente para quem estuda cinema em Portugal, e com isso tornou-se uma recorrente inspiração e referência. Surgiram depois muitos outros retratos rurais. Mesmo com o seu assumido corte com o cinema, chegou a ver algum deles?

Apesar de não ver cinema, tenho notado e visto alguns trabalhos na televisão e até mesmo nas minhas idas ao Fundão [ao festival Encontros Cinematográficos]. Considero isso muito positivo, apesar de tudo funcionar assim no mundo do cinema. É verdade que o filme nunca foi esquecido, seja na memória dos cinéfilos, estudantes, em ciclos de cinema ou até mesmo na Cinemateca. Nada disso deixou que o meu filme morresse. E a imprensa estrangeira também contribuiu para isso.

Sobre este, por fim, lançamento por parte da distribuidora The Stone and the Plot, de Daniel Pereira. Quem é que abordou quem?

Desde que o filme estreou nos Encontros Cinematográficos do Fundão, criou-se uma ligação com as pessoas desse meio que me levou a conhecer o Daniel. Foi ele que me encorajou a estrear “O Movimento das Coisas”. Ele foi o responsável. É como você dizia, um filme com 35 anos só agora estreia nos cinemas, mas devo acrescentar que as montagens terminaram em 1981. O filme estava pronto nessa altura, mas ficou sem produtora, que era a Cooperativa Virver. E houve, como devo dizer, histórias "menos bonitas" acerca de dinheiro, fiquei parada quatro anos. Nesse período, trabalhei na pós-produção, que era a sonoplastia e música. Ou seja, para fazer apenas isso, aguardei quatro anos enquanto resolvia esses assuntos monetários com o Instituto de Cinema.

Já que "tocou" na música, gostaria que me falasse da colaboração com José Mário Branco e as melodias que nos acompanham ao longo desta viagem em Lanheses.

São "restos" da Cooperativa Virver. Conheci e trabalhei com o José Mário Branco na Cooperativa, assim como o sonoplasta Luís Martins. Mas existe nisto tudo algo muito importante, é que o Mário Branco viu o filme durante o seu processo de montagem e gostou imenso, por isso trabalhamos lindamente juntos. Entendi perfeitamente o que ele queria, que ideias tinha para o filme e das suas diferenças sequências. Julgo que também o filme aderiu muito bem às suas ideias.

A menina das sete saias e o Adónis nazareno

Hugo Gomes, 11.06.21

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Mesmo aprovado pelas entidades reguladoras da altura, o filme de José Leitão de Barros – “Maria do Mar” (1930) – ostenta um fascínio quase “exótico” e peculiar pela comunidade piscatória de Nazaré (docuficção que se distanciaria do seu anterior documentário “Nazaré, Praia de Pescadores”, em 1929).

Entre esses momentos, está a sequência paralela, onde mulheres decidem regozijar na praia e os homens, jovens, a mesma ideia colocam em prática. Aqui, a câmara de Leitão de Barros demonstra uma desigualdade no olhar. As jovens, limitadas aos seus largos e amorfos fatos de banhos, são despachados por visuais indiferentes e alguma rudeza para com os seus “brutos” movimentos, constata-se uma fria distância, até quando uma delas, a Maria do título, deixa escapar um mamilo por uns breves segundos. Já os homens, a câmara repousa ao lado destes, cumpliciando com as suas brincadeiras e júbilos prazerosos, os corpos “adónicos” dos jovens pescadores são observados atentamente por este, e automaticamente pelo espectador, refém dos planos que o filme entende por nos oferecer.

Sucessivamente, os dois grupos aparentemente distantes se unem por consequência de um afogamento, a bela Maria (Rosa María) é levada pela corrente marítima e Manuel (Oliveira Martins), o nosso salvador de última hora, a resgata da fúria do mar que “devorou” os seus respetivos pais. Depois disto, o momento orgástico do filme, Maria inconsciente, deitada no húmido areal e Manuel exausto, cedendo também ele à inconsciência. Leitão de Barros executa tal sequência, sempre concentrado no tronco nu do jovem e na sua cadente respiração ofegante.

Curiosamente, em 1930, seja por razões subentendidas ou pelo constante receio da erotização do corpo feminino (o tradicionalismo e conservadorismo patriarcal tiveram como alvo principal a mulher e a sua emanada sexualidade), “Maria do Mar” procura a sensualidade em outros campos e formatos. Por outro lado, a perspetiva quase antropológica do filme reflete esse vindouro desejo ocidental pelo exotismo, obviamente encontrado como alternativa a ruralidade nazarena, encantos que seduziram o realizador de “Lisboa, Crónica Anedótica de uma Capital” (1930). E é bem verdade, que desse efeito já “sofria” o proclamado “pai do documentário”, Robert Flaherty, em “Moana” (1926), só que os paraísos eram obviamente outros.

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