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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Carey Mulligan contra a Crítica e a Crítica contra o resto do Mundo

Hugo Gomes, 30.01.21

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Não guardo, nem expresso estima alguma pela chamada “crítica de cinema para indústria” como aquela que a Variety produz continuamente. A estes específicos textos faltam pensamento, arrojo e até mesmo estilo. São ‘coisas’ automáticas, muitas delas produzidas à pressa e com olho aberto no modelo requisitado, porém, cabe a mim defender este tipo de crítica no sentido em que a sua condição poderá funcionar como o derradeiro bastião da arte nos EUA. O episódio mirabolante que suscitou a esta minha posição vem de uma crítica direcionada ao filme “Promising Young Woman” (“Uma Miúda com Potencial”), primeira longa-metragem de Emerald Fennell, que tem sido apontado como uma das potenciais obras desta temporada de prémios, sobretudo pelo desempenho de Carey Mulligan. [ler aqui].

O texto, da autoria do veterano Dennis Harvey, elabora uma crítica à interpretação da atriz, referindo que o seu papel facilmente corresponderia a uma Margot Robbie (visto ser produtora do projeto), do que para “cara” associável a “The Great Gatsby” ou “An Education”. Devendo salientar que a própria crítica tece elogios a Mulligan, considerando-a “a fine actress” (uma atriz requintada), os efeitos não tardaram a surgir. Em uma entrevista, a própria atriz mostrou-se indignação para com a publicação, sugerindo que o texto questionava a sua “sensualidade”, e com isso atirando-se a uma dominante visão patriarcal e subversivamente masculina que abunda nessas mesmas “águas”. Assim, içou-se uma quantas bandeiras do #Metoo e a Variety, com receio das represálias à sua publicação, decide emitir um pedido de desculpas no referido texto. Passo a citar, pela "insensibilidade'' do crítico para com a arrojada e corajosa interpretação da atriz.

Toda esta “novela” remete-nos a vários problemas que reforçam ainda mais a fragilidade da crítica de cinema nos dias de hoje. Primeiro, pelo uso da Crítica como meio de promoção, e como bem sabemos a publicação em questão é uma das maiores influenciadoras da indústria em geral, desde agentes a distribuidores, com um dedo “culposo” na award season. Segundo, pela sua cedência ao politicamente correto e das causas que se integram nas fontes de capitalização, e terceiro, e possivelmente a mais agravante e questionável, a liberdade artística e opinativa do crítico, deixando este à mercê de decisões e propósitos editoriais. A Variety vergou pela pressão mediática, ou se calhar pela falta dela, e sim, pela desaprovação da estrela em questão que levantou vários problemas à suposta crítica e à sua “comunidade”.

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E um pedido de desculpas da parte editorial, etiquetada no texto, nestes contextos atuais onde a pós-verdade adquire ainda mais força quando o encaramos com uma espécie de fact-checking da crítica de cinema norte-americana, como se a “opinião” expressada neste tipo de textos merecesse um polígrafo socialmente aceite. Para isso já existe um Rotten Tomatoes, que tem reduzido esta arte a um código binário de “tomate fresco” e “tomate podre”, onde os textos não são mais tidos como peças de criação, mas resumidos e traduzidos a percentagens e medidas métricas.

Mas pelos vistos não fui o único a ficar indignado com este episódio, o crítico britânico Peter Bradshaw (por quem também não tenho simpatia alguma), recentemente, concentrou todas as suas forças para defender Dennis Harvey num artigo da The Guardian [ler artigo], antecipando não concordar com a sua crítica, mas sublinhando que o que estava em jogo é a própria solidez da instituição crítica. A própria publicação permitiu a Harvey defender-se quanto ao sucedido [ler artigo], e quanto às acusações de misoginia e de denegrir a “sensualidade” de Mulligan, o crítico respondeu o seguinte: “Eu sou um gay de 60 anos. Eu não fico a pensar e a comparar a sensualidade entre jovens atrizes, muito menos escrever sobre isso.”

O que para muitos é um incidente insignificante, é só uma acha para aquilo que temos testemunhado no percurso da crítica e do crítico; a sua sobrevivência numa selva feroz e cada vez mais competitiva, pelos embarques de ideologias como reforçadas proteções e pelo gradual desprezo e inutilidade com quem tem sido recebido e encarado nas mais diferentes plataformas. A crítica de cinema é mais que opinião e promoção, é uma forma de expressão, ainda hoje, subvalorizada e quiçá, banalizada. Carey Mulligan apenas reforçou essa ideia de segundo plano.

"Ya No Estoy Aqui": outra odisseia de Ulisses ...

Hugo Gomes, 26.01.21

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O candidato do México ao próximo Óscar de Filme Internacional é apenas mais um a confirmar a tendência (para não falarmos de vaga) de um cinema latino-americano (sobretudo mexicano) para retratar manifestações de contra-cultura ou que, à sua maneira, resiste a uma sociedade que agrava as desigualdades sociais e premeia a violência. Esta (outra) forma de luta encontra-se neste filme de Fernando Frias representada por uma designação – Terkos – que se vai materializando para diferentes interpretações, seja a do nome de um bando de jovens delinquentes para o seu atípico gangue ou o próprio mojo, em constante anarquia com o que é socialmente aceite ou automatizado.

"Ya No Estoy Aqui" segue o seu protagonista pseudo-moicano Ulisses (Juan Daniel Garcia Treviño) na sua própria odisséia por uns EUA que está a receber os migrantes de forma pouco acolhedora. O motivo para passar a fronteira está relacionado com a violência do seu meio, impiedoso e não-clemente, que o obriga a se separar da sua família e procurar novas vivências num país de "gringos". Frias filma uma Nova Iorque distante, desconectada, onde o inglês é, por sua vez, uma língua estrangeira. Aqui, nenhum “sonho americano” se encontra ao alcance de Ulisses, apenas a subsistência e a subserviência com que o jovem sempre se revoltou no seu país de origem.

Como acontece com grande parte dos filmes envolvidos numa contracultura, há uma tendência de priorizar a sua estética e exaltar a sua ideologia, mesmo que sejam incoerentes. É o que volta a acontecer com “Ya No Estoy Aqui”, um olhar exótico (a certa altura com alusões ao tropicalismo xamânico) aos problemas dos costumes a que muito cinema mexicano está a ir repescar. Nota-se uma determinação em Frias ao narrar esta história, mas para a sua infelicidade, existe nesta relação intérprete/espectador uma distância emocional, que parte do próprio desinteresse de Ulisses em se ligar com o mundo que o rodeia, sem ser com a sua música de nicho. Entendemos o conceito, mas … e como há sempre o "mas", o espectador sente-se na obrigação de observá-lo como um pássaro raro, o que torna a sua jornada nada mais que um “entretenimento”.

"Ya No Estoy Aqui" é uma obra esteticamente competente, desenvolvida na própria credibilidade e filmada com não-atores, que se expõe não no seu próprio olhar, mas na pluralidade de quem o vai ver. Mas certamente que existem filmes mais desafiantes para a corrida aos Óscares.

Quem quer ser um “bom” corrupto?

Hugo Gomes, 25.01.21

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Muito se falou deste “The White Tiger” comportar-se como um anti-”Slumdog Billionaire”, seja da apropriação do seu dispositivo narrativo (uma recontagem de uma história de ascensão) e através dele a dissipação do seu lado “naive” (o destino e a crença como pedras pedestais desse sucesso que o cinema crowd pleaser adora pregar). Não com isto afirmar que o filme de Ramin Bahrani (“99 Homes”, a mais recente versão de “Fahrenheit 451”) não tenha a sua dose industrial de ingenuidade, até porque é com base nela que lança a sua moral – a lição encaixada como apêndice na narrativa, acreditando piamente nessa doutrina de “cinzentismos” propagandistas.

Ora bem, esta adaptação do best-seller, promovido pela New York Times, de Aravind Adiga, publicado no “calor” da crise financeira / imobiliária de 2008, é um suposto retrato underdog no sistema de castas indiano. No seu ralé encontramos um jovem promissor, Balram (Adarsh Gourav), o qual lhe é negado esse mesmo “brilhante” futuro, e como consequência se vê determinado a servir. Sim, um mero criado que tudo fará para saciar as vontades e desejos dos seus “mestres”, uma corrente cuja única saída é a própria corrupção dos seus entranhados ideais. Ou seja, segundo este universo, aquilo que separa as classes baixas das altas é a sua disponibilidade para “sujar as mãos”, cometer crimes e sem qualquer arrependimento ou repercussão seguir continuamente pelos seus trilhos de progresso.

The White Tiger” constrói essa predatória fábula negra por vias de um tom messiânico (neste caso o “tigre branco”, o “animal que surge uma vez em cada geração”), confinando o complexo Robin dos Bosques como inibidor das culpas do seu protagonista nas suas duvidosas causas. A questão aqui não é a sua violência (manifestado em diferentes formas, direta ou indiretamente), mas o seu apelo, nunca tecendo pela sua complexidade, ou como em muitos casos fílmicos, pelo seu lado satírico ou alusivo.

Não existe nada de especial neste “tigre branco”, tudo se resume a genética (é albinismo que qualquer outra ‘coisa’) e não benções, o resto é demagogias perversas transvestidas de “filme social para massas”. Um visualmente competente e inequívoco.

Quem tem medo de Sério Fernandes?

Hugo Gomes, 12.01.21

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Nunca é ocultado o facto do realizador Rui Garrido ter sido, em tempos, aluno do tão atípico professor José Eugénio Sério Fernandes, docente da ESAP - Escola Superior Artística do Porto. Grato e ainda umbilicalmente agarrado a essa experiência, a sua primeira longa-metragem tem como objetivo assentar numa “passagem de testemunho”, onde o filme, creditado como tal, é tomado pelas forças algo espirituais de Fernandes.

A obra faz serventia dessa subtil, mas dominante, conquista, nunca desviando o documentário do “objeto-estudo”, e em certa forma, tendo como principal função com que a sua memória não caia no esquecimento (apoiando-se na velha máxima do cinema enquanto arquivo e de imagens anamnésticas para futuros incertos). E o “artefacto em exposição” não se resume à figura em si, ela é vista como uma terminada cinefilia ainda pregável nos cantos e recantos deste país, apenas sobrevivendo por entre as experiências angariadas pelos seus alunos e pelos nichos (muito) mais fechados.

Ora bem, O Mestre da Escola do Porto tem algo a seu favor o qual Garrido bem conhece e aproveita, o fascinante Sério Fernandes, desde a sua humanidade até ao discurso fervorosamente apaixonado, nunca vergando a sua aura de velha guarda cinéfila conduzida numa característica militância sobre a definição de Cinema a ser apregoado para posteridades. Tendo uma carreira longínqua onde se destaca as suas peças publicitárias [o qual fundou a Bei Film] e a longa-metragem de experiências sob experiências – O Chico Fininho (1982) – Sério Fernandes é um ser alienado e igualmente fiel ao seu próprio devaneio, narrando com tamanho ecstasy o seu papel na “instituição” denominada Cinema Português e ostentando um carinho inclassificável pelos seus animais (a sua ligação com os seus “patudos” são de uma sensibilidade transbordante).

O filme convida o espectador a conhecê-lo num registo do “eu”, deixando que Fernandes o domine praticamente, assim como toda esta jornada, Garrido passa para segundo plano na tentativa de acompanhar as indicações do seu mestre (como por exemplo, a rigidez com que a costumeira gaivota deve integrar na metragem). No fundo é uma Odisseia, emprestado título ao seu homónimo, megalómano e excêntrico projeto (cujas metade das bobines foram atiradas ao mar e que se previa que a outra porção fosse enterrada no Metro do Invicta, nunca chegando a acontecer) que facilmente extrai risos trocistas da nossa parte para que no final possamos redimir à sua abstrata “loucura”. Para Sério Fernandes, aquele determinado plano estático ou gesto de autoridade no autoral acarreta “toda a História do Cinema” (falta-nos mais esses tons quixotescos de quem olha para a imagem resumindo nela todo um universo cinematográfico).

E é isso, aquilo que estava previsto ser palco para o “cromo 101 da coleção de 100” transforma-se numa congratulação de aluno para o seu mestre. A condescendência ficou à porta, o amor pela arte entrou com convicção na preservação do último dos cinematograficamente românticos.  

Uma viagem alucinante e erótica sem amortecedores

Hugo Gomes, 05.01.21

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Antes de se aventurar por assoalhadas freudianas a partir do seu menosprezado “Spider” (2002), David Cronenberg, anteriormente visto como o mestre do "body horror", criou um ensaio prolongado sobre o desejo. Este período vai desde os finais dos anos 1980, com “Dead Ringers” à cabeça (1989), até uma fase mais fulcral na década de 90, onde se destaca a sua provável obra-prima, “Naked Lunch” (1991), que cruzaria os seus universos ambíguos com os devaneios homossexuais e estupefacientes num moderado tropicalismo do Tânger, reinterpretando escritos de William S. Burroughs. Seguiu-se a sexualidade, novamente sem género definido, no esteticamente convencional “M. Butterfly” (1993), paragem que antecedeu o “atropelamento” de “Crash”, a partir do livro de J.G. Ballard, que reuniu um nicho fetichista e de voyeurismos mórbidos, fixados no quente da carne e no frio do metal.

Apresentado no Festival de Cannes de 1996, onde conquistaria o Grande Prémio do Júri, “Crash”, foi, como primeiro “choque”, um filme dúbio e movido a gás por controvérsias, começando pela pouco consensual crítica até às suas versões editadas que atenuavam o tom lascivo e algo perverso, como a infame versão que marcou presença no Reino Unido e que, de alguma forma, se diluiu com o lançamento "home video" em Portugal. Por isso, convém sublinhar que, após 25 anos, estamos a ser presenteados com uma edição restaurada em 4K e sem limitações de conteúdo para os cinemas, celebrando a mais dolorida e erótica das obras da década de 1900. Um objeto que se faz pela sua singularidade e redefinição da nirvana sexual.

Mas antes de prosseguir sobre a sua natureza aberrante, que funde carnalidade com engenharia automobilista, há que valorizar o seu regresso aos cinemas portugueses para percebermos como, desde a sua primeira estreia, o mundo mudou tanto e em tão pouco tempo. Na altura, Cronenberg enfrentou “mobs” de conservadores, mas hoje em dia, um filme como este dificilmente ganharia luz verde em solo norte-americano, até porque o puritanismo, diversas vezes disfarçado de ativismo, tem impedido a manifestação do desejo no grande ecrã. Aqui se encontra uma vontade de antagonizar a fantasia sexualizada de cada um, por mais excêntrica que seja, e “Crash” é, acima de tudo, um filme sobre essa descoberta, desafiando e questionando o espectador sobre o que é, ou não é, sensual, segundo o seu prisma e parafilias à mistura.

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Portanto, o que representa toda esta fetichização pelos acidentes rodoviários? O fascínio quase obsessivo pelo acidente e a suplicia pela fusão de homem e máquina? O casal entediado que procura novas fontes de luxúria e desejo? Simplesmente isto: uma sociedade que estrangula qualquer movimento ou exercício a favor de uma fantasia, transformando fetiches em crimes hediondos, ou vergonhas alheias, conduzindo-os para uma subcultura que se refugia nas sombras. E para se poder usufruir de rejeitados sonhos húmidos forma-se um “underground” de marginais sedentos pelo seu elixir pecaminoso, patrulhas noturnas que circulam por entre o tráfego na busca de vestígios acidentados ou de corpos violentados e cicatrizados por essa união de forças e matéria.

Não vamos mentir: em 25 anos, “Crash” adquiriu uma nova (não tão nova assim, mas saliente) dimensão, aura e posicionamento. O seu regresso é mais que bem-vindo numa altura em que as assexualidades trazidas pelo cinema "hollywoodesco" predominam no “consumo” dos espectadores. A proeza de Cronenberg ao soldar todo este recreio de masoquistas foi o de localizá-lo no centro de um filme remoto, em constante vaivém para com as lides da narrativa convencional. Não há um claro clímax, um antagonista, ou uma jornada heroica, apenas uma transformação do casal protagonista (ao som da banda sonora de um alienado de Howard Shore), desesperado e criativamente esgotado em saciar as suas taras.

Desde 1996 que “Crash” persegue a nossa subjetividade sobre as relações e voyeurismos. É um filme sujo que se despede de géneros e contrai um misto de mal-estar ou de um “embaraçoso” ecstasy. Nesse sentido, a sua bipolaridade converte-o num modelo intemporal e igualmente fora do nosso tempo...

Uma mulher em pedaços ...

Hugo Gomes, 05.01.21

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Sean (Shia LaBeouf), um construtor civil com apetência para pontes, conta à sua amante em tom de confissão a história da terceira maior ponte suspensa dos EUA, a de Tacoma, e como esta misteriosamente desabou. Segundo ele, após ter verificado toda a estrutura, cabos, pilares, condições atmosféricas, a razão encontrada para a queda foi a ressonância, a energia armazenada que se manifesta de forma natural. Este pedaço de monólogo, aparentemente sem sentido, invoca-se como uma metáfora arquitetónica das “pontes” e as suas vitalidades nas relações afetivas.

No caso de Sean, a relação com a sua mulher Martha (Vanessa Kirby) está prestes a desmoronar-se. Ao espectador é evidente esse gradualmente afastamento entre as duas margens, até porque a ressonância aí encontrada é a de um sonho desvanecido, o de constituir família, que ficou comprometida com uma tragédia. Tal como a personagem de LaBeouf, o húngaro Kornél Mundruczó é um realizador de capacidades dramaturgas com apetência por outras “pontes”, neste caso as dos ensaios performativos, com a intenção de causar uma espécie do "teatro do real".

Obviamente que a encenação, essa farsa ficcional, é o seu trabalho de compostura, mas o que prevalecem são os seus gestos de representação para com essa realidade, através do seu mundo (Mundruczó navega entre o cinema e o teatro) e das ditas e artísticas instalações. Neste caso, o atrativo é a sensação simulada de um parto e toda a agonia trazida por esse trabalho doloroso e demorado, rompido por uma luz de alegria e, subitamente, choque, pânico e luto.

Nesta cena sem cortes e com uma câmara empenhada em captar os momentos num jeito guerrilheiro e aflito, Vanessa Kirby, atriz que o grande público reconhecerá pela interpretação da Princesa Margarida nas duas primeiras temporadas de "The Crown" e das andanças de "Mission Impossible: Fallout" e “Hobbs & Shaw”, impõe-se silenciosamente e torna-se na força motora desta situação extrema. De tal forma que o resto da narrativa ambiciona pela sua dor, muda, incompreensível e oculta.

Pieces of a Woman” é um claro primo cinematográfico de um "Who 's Afraid of Virginia Woolf?” (Mike Nichols, 1966) ou “Blue Valentine” (Derek Cianfrance, 2010). Tal como estes, é um filme sobre rupturas e desejos passados e convertidos em ódios impagáveis. Não sendo um exemplar pleno e consciente do sofrimento que causa às suas personagens (por diversas vezes cede aos lugares melodramáticos de cordel ou da fácil comoção, como a vulgarização do Holocausto, inglória temática para servir uma potente Ellen Burstyn), Kornél Mundruczó consegue em meias estações erguer a sua ponte. E nela, a ressonância, essa força, manifesta-se independente e vigorosa.

O Cinema é ar puro do meio rural!

Hugo Gomes, 04.01.21

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Em 2019, em conversa sobre o seu filme sensorial e sensação – “Aquarela” – o cineasta russo Viktor Kosakovskiy abordou, sob algum suspense, o seu próximo projeto. Falou-nos de uma obra que prometia ao espectador a impossibilidade de desviar o olhar. Um apogeu de cinema, sem música, climax, personagens, apenas porcos, galinhas, vacas e uma quinta harmoniosa.
 
Esse filme chegou a nós no último Festival de Berlim, e tem como título – Gunda - um ensaio que poderíamos equiparar a um Bela Tarr animalesco, onde, genuinamente, demonstra-nos o Cinema na sua forma mais pura, e como nós, perante todos os adereços trazidos pelas indústrias, vanguardas ou parâmetros hoje confundidos como linhas-guias cinematográficas, esquecemos dessa mesma elegância. Contra tudo e contra todos, Gunda é Cinema, meio primitivo na sua conceção o que não impede de ser rico e sincero. Talvez seja isso que realmente falta ao Cinema de hoje em dia – a sinceridade e o seu concreto minimalismo!
 
Torcemos para que Gunda tenha presença nas nossas salas em 2021. Merece e merece muito mais.

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