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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

David Fincher explora os mitos de Hollywood com desdém

Hugo Gomes, 03.12.20

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Se David Fincher é realizador para se agarrar a um saudosismo "hollywoodesco" (ai, esses tempos áureos de tão oleada e funcional indústria), obtemos a definitiva resposta à dúvida com "Mank". Que é não. Como era esperado do autor por detrás de algum dos "thrillers" mais admirados do cinema norte-americano contemporâneo (“Se7en”, “Fight Club”, “Zodiac”), parte-se aqui uma teorização e, consequentemente, de um arrufo, como objetivo: "Mank" é um exercício sobre um debate constante quanto à verdadeira genialidade por detrás de uma obra-prima do cinema.

Falamos de "Citizen Kane - O Mundo a Seus Pés", realizado em 1941 por Orson Welles, com 24 anos. Afinal, aquele que viria a perdurar anos e anos como o “Melhor Filme de Todos os Tempos” é um abrigo de mistério, conspirações e disputas de custódia artística e criativa. Foram e são muitas as vozes de suspeita sobre os feitos de "menino prodígio" em "Citizen Kane” (e na progressão da carreira), até porque também por aqui nos deparamos com a câmara de Gregg Toland (cuja técnica da profundidade de campo traria uma inovação estética a Hollywood) ou a edição de Robert Wise (mais tarde, o realizador de obras bem conhecidas como “West Side Story”, "Sound of Music" e “Star Trek”). Mas foi no seu esqueleto, o guião escrito a meias com o lendário dramaturgo e argumentista Herman J. Mankiewicz, que suscitou toda esta vontade de desconstruir a genialidade de Welles por parte do argumentista de "Mank", Jack Fincher, o pai do realizador, falecido em 2003.

Será que o responsável pelos alicerces de “Citizen Kane” é, afinal, Mankiewicz e não o talento suado de um sobredotado? A lendária crítica de cinema Pauline Kael defendeu esta teoria. David Fincher, por sua vez, segue pela mesma perspetiva, recorrendo a um método algo detetivesco e mimetizando estética e narrativamente o célebre filme de 1941. O exercício, voluntariamente esboçado como um guião em desenvolvimento, insufla vida à tese do toque de Midas de Mankiewicz, sem nunca questionar nem apresentar uma visão dúbia do que terá acontecido. Vindo de um artesão de um engenhoso "thriller" como “Zodiac”, sempre em gradual dúvida e crente absoluto num clima de mistério, “Mank” está demasiado seguro nas suas convicções e com isso, a figura de Orson Welles (interpretado por Tom Burke) sai-se mal na fotografia.

Não defendendo de todo o talento (ou não) quase divino de Welles, a questão é que “Mank” apoia-se demasiado na ideia corrente (ou já transformada em clichê dos clichés) do génio-artista auto-destrutivo com Gary Oldman como o argumentista desbocado e capaz de se conduzir com inspiração mesmo alcoolizado. Em tempos, a Hollywood clássica aproveitaria esta história para impor a sua moral de redenção e salvação cristã. Já a Hollywood pós-Hollywood renega esse propósito fabulista e de mensagem pedagógica, persistindo na desordem como um sinónimo da criação humana ao mais alto nível: serão o génio e o caos indissociáveis?

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Deixando a pergunta no ar, David Fincher bate-se depois numa aventura paralela, o jogo das referências e adereços cinéfilos para maravilhar os fãs. Manobra previsível, digamos, vindo de um projeto que tenta beber dessas fontes. Mas a minagem de nomes, produtores, realizadores, atores, filmes, estúdios (as “majors” no seu apogeu), servem apenas como chamariz para uma tentativa de conclusão do mistério sobre "Citizen Kane".

Obviamente que não há amor por estas épocas longínquas e por diversas vezes a acidez do realizador vem ao de cima, através de apontamentos de contexto político e social (chegam a ser o mais entusiasmante de "Mank"). Mas o pecado maior é servir-se do mais profundo academismo de requinte para encantar a temporada de prémios.

Não é este Fincher que costumamos apreciar: em vez de uma reinvenção temos um projeto anónimo, desinspirado e fanfarrão. Se vamos discutir o génio de “Citizen Kane”... poderemos fazê-lo ao (re)ver “Citizen Kane”.

Desabafo sobre "Miss": Quando falamos para multidões com linguagem da carochinha …

Hugo Gomes, 02.12.20

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Era uma vez … um menino que sonhava ser uma Miss. Mas não era uma Miss qualquer, era a de França. E não, ele não queria ser menina, apenas ter a mesma oportunidade que todas as outras meninas têm para concorrer em tal concurso. Só que o nosso menino que não se identifica como tal, nem muito menos como menina, entrou no dito concurso tentando ser aquilo que não era. Mas o seu percurso dentro de tal competição, cheio de regras e rivais, é lhe facilitado, porque sempre havia alguém que nunca a deixava(o) “tropeçar”, dando oportunidades atrás de oportunidades, muito devido à … como diríamos … condição, ocultada, mas presente, secretamente, para alguns responsáveis da Miss França.

Ainda mais, a narrativa desta história privilegiava o nosso menino(a). Ele(a) é órfão, teve uma efémera infância feliz com os seus pais que o incitaram a lutar pelos seus sonhos, mas isso lhe foi retirado enquanto muito novo. De seguida, é-lhe dado uma “espécie” de família de acolhimento, uma união multicultural de marginais sociais. Todo este elemento indica-nos desde o seu início que o nosso menino, o qual revelo chamar-se Alex, vencerá nesta fábula que vos conto. Longe de mim usar tal forma como condescendência para com o nosso protagonista ou do discurso que por vezes o filme explicita, mas o nosso realizador ou neste caso, o storyteller, assumiu que “Miss” foi disposto como se uma fábula tratasse. Uma lição de vida para ser lecionada.

Pois bem, é através dessa questão identitária extraída nos códigos de género que Rúben Alves, após ter saído do “Portugal dos pequeninos” no meramente simpático “A Gaiola Dourada” (2013), falha na sua dita locução. Se por um outro lado temos o debate subversivo sobre os limites do género numa sociedade ainda vincada por polos / facções, é no ato de entrega destas ideias que reside o maior problema. Toda a construção de Alex (interpretado pelo ator e modelo andrógeno Alexandre Wetter, sem dúvida alguma a grande força desta obra) segue num modelo de superação underdog, que como é hábito recorrente desse mesmo conceito, adquire uma tendência de “vitimismo” quase pornográfico, ferramenta de manipulação emocional. Depois segue o processo de ascensão dentro do universo das Misses … Ruben Alves especifica uma instituição obsoleta, incapaz de motivar gerações recentes e que desesperadamente procura a sua “next big thing”. Mas qual? Alex é, enquanto “rapariga disfarçada”, elevada e “protegida” dentro de um meio competitivo. A sua condição, até então desconhecida para os demais, funciona a seu favor e de forma privilegiada perante as outras concorrentes. Ou seja toda esta “igualdade” e imparcialidade no jogo são desleais.

Certamente, que há diferenças perceptíveis na dita igualdade e equidade, se a primeira equipara todos de maneira imparcial dando as iguais ferramentas e oportunidades, a segunda opera de forma devidamente justa para com os mais socialmente desfavorecidos, dando a alavanca necessária para os colocar no “pé de igual” com os outros. Ou seja, a equidade leva-nos à igualdade, e quando o primeiro ponto já não é mais necessário chegamos, por fim, ao segundo. No caso de “Miss” a falta de adaptação de Alex perante as regras do concurso (muitas delas não partem do seu género indiferenciado, mas da sua moralidade), é sempre desculpada com o seu passado trágico, perdoando as suas, diversas vezes, atitudes de rebeldia e, em certos momentos, de ingratidão, para que no final ser visível a razão para esse “percurso”. Alex é o requisitado “next big thing”.

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Estes elementos narrativos não são novos no Cinema, porém, “Miss” foi concebido como um filme para massas, tentando com isto incentivar um debate envolto nestas questões. Para quem está familiarizado com os referidos territórios, ideias e experiências não será convencido ou exercitado a discuti-las. Para os “outros”, aqueles que não possuem a sensibilidade ou percepção (que de facto não são poucos) sentirão ideologicamente repelidos perante um episódico Tootsie que na verdade é apresentado como um “coitado”. Apela-se para que se desvie esse rótulo de “coitadinhos” na causa, cada vez mais inserido nos falatórios da extrema-direita. A solução (que não é simples) resulta na normalização e sobretudo expor a existência daqueles que não se identificam ou enquadram nos parâmetros binários “socialmente aceites”. Podem ser diferentes (palavra que, confesso, não gosto que seja empregue nestes casos) só que estão longe de serem … isso mesmo … Coitados.

Fora isso, “Miss” é um mero produto “popluxo”, com demasiadas purpurinas, mensagens motivacionais, música pop que toma de assalto as ações, o previsivelmente esperado neste tipo de produções. Ruben Alves tem, para além de Alexandre Wetter, outro golpe de “génio”, uma paralelização evidente e prestada ao tributo de um dos subgéneros mais propícios do feel good movie e do underdog – o Boxe. Nesse aspecto, tal como confidenciou-me, “Miss” foi criado como uma espécie de “Rocky” em passerelle.

O último pensante português ... e agora?

Hugo Gomes, 01.12.20

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O Labirinto da Saudade (Miguel Gonçalves Mendes, 2018)

De Eduardo Lourenço o único contacto que obtive foi um aperto de mão, mas isto não é sobre a “proximidade” com o ensaísta e filósofo que nos deixou hoje com uma idade impressionante de 97 anos (quem me dera chegar lá um dia), e sim sobre o título o qual acompanha o seu anúncio de morte e o que também partilho: “morreu o último pensador de Portugal”. A verdade, é que numa era onde a intelectualidade é tida como ameaça aos velhos valores e paradoxalmente visto como obsoleto, uma inutilidade social, adquirindo características próprias e únicas do privilegio ou simplesmente, a dissociação para com uma arrogância, um ser pensante é algo impensável, inconcebível e sobretudo longe de ser amado. Porém, Lourenço era amado, apreciado, venerado, o seu filosofar conquistou e gerou uma geração que o pretendia seguir. Só que seguidismo não criam intelectualidades, apenas reforçam correntes de pensamento, mantendo-as vivas e a tornar-las autoritárias. Com o desaparecimento do “ultimo pensador”, penso para mim, quem deterá atualmente esse título? Quem condensará todas as qualidade, e não as mesmas reflexões e ideias, que Eduardo Lourenço? Em tempos onde todos desejam agir pelo impulso das suas emoções, pensar é mais que rarefeito.

 

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