Um brinde a 2020 e nunca mais!
Toshiro Mifune
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
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Toshiro Mifune
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Nem sequer vou debruçar sobre o ano 2020 (essa data em que cada um de nós possui uma história particular para contar, possivelmente com desilusões e adversidades no meio) mas, como chegou aquela altura que se torna quase imperativo nomear 10 filmes (com estreia comercial no nosso pais) para os já habituais pódios, eis que, por fim, meto as mãos à obra. E mesmo sob adiamentos, cancelamentos, migrações para streamings, eis um cinema ainda rico de emoções, temáticas e estilos que, por momentos, fizeram-nos esquecer os 'coronavírus' e o mundo de avesso. Aqui, neste leque, o conflito israelita-palestino contínua presente, o Brasil demonstra a sua resistência e urgência, as mulheres tornam-se protagonistas das mais ricas narrativas do ano e a Reboleira é palco de uma das maiores evasões do cinema português. Eis que segue os meus 10 filmes de 2020:
#10) The Invisible Man
“Se haverá sequela, universo partilhado ou "spin-offs" de qualquer natureza ainda é cedo para prever, mas, por enquanto, Leigh Whannell conseguiu um filme que vive por si só e, ao contrário do seu “monstro”, não tenciona mesmo passar despercebido. E com isso temos aqui uma entusiasta surpresa do cinema de género entregue por um grande estúdio de Hollywood.” Ler aqui
#09) There is No Evil
Tido como um dos ditos realizadores iranianos “proibidos”, Mohammad Rasoulof comprometeu a sua carreia a denunciar, o que o levou (e leva) a inúmeras sentenças e consequências em território nacional. Com There is No Evil, vencedor do Urso de Ouro no último Festival de Berlim, prova, além da sua habilidade de “whitlesblower”, uma capacidade narrativa e de extrema sensibilidade (sem maniqueísmos propagandistas). Através do tema da pena de morte, ainda em uso no Irão, Rasoulof expõe quatro histórias sobre contactos diretos e indiretos para com essa questão político-social. Um relato que vai desde as vítimas até carrascos, decisões a dilemas, paz e tormento, passando por um primeiro ato de pulsações arendteanas [“A Banalidade do Mal”] até a um montanhoso e intacto limbo para acarretar culpas e humanismos. Sim, é um filme de tema a demonstrar que é mais do que somente o seu mesmo, é Cinema com causas e efeitos.
#08) Les Miserábles
“Mais do que tudo, o realizador Ladj Ly prova o seu conhecimento, a sua vivência e a sua humanidade. A sua sede por um cinema de sangue na guelra, imparcial e, ao mesmo tempo, que denuncia sem ser ideologicamente agressivo ou ter alicerces nas tendências do "cinema verité" [cinema-verdade].” Ler aqui
#07) Corpus Christi
““Corpus Christi” revela-se encantado com esses métodos de redenção, na farsa que impõe e prolonga, com frieza técnica e o desempenho visceral do seu protagonista, Bartosz Bielenia, o qual, como Cristo, “abraça” o seu estatuto de mártir em cada missa. Com um olhar atento à imagem do seu Salvador, segundos antes de dar início à sua leitura religiosa para com os demais, (...) poderia ser um "running gag", mas é uma reflexão da nossa capacidade de superar adversidades, cinicamente ligada ao estatuto que ansiamos ter neste mundo.” Ler aqui
#06) O Fim do Mundo
“O Fim do Mundo” “captura” um universo em extinção e o encara como a sua propriedade, preservado em âmbar, neste caso em filme com as promessas da sua “eternidade”. Uma coprodução luso-suíça que envergonha muitos da sua espécie e da sua nacionalidade pela forma como bravamente utiliza o “know-how”, pavimento de sugestões, fora-de-campos e o “desenrasque” (palavra tão portuguesa) para nunca perder a credibilidade deste quadrante de violência em cada esquina.” Ler aqui
#05) Portrait de la Jeune Fille en Feu
“Jean-Claude Brisseau deixou-nos somente há poucas semanas, mas é um facto que sentimos aqui uma réstia da sua vida no convívio espectral que Portrait de la jeune fille en feu estabelece entre a carnalidade dos corpos das atrizes até às premonições de um fim próximo: “Porque que é que os amantes sempre pensam que estão a inventar o romance?“. Não se fica pela coincidência o nome da realizadora com o filme Celine de Brisseau, ou do referido contrato com as entidades extranaturais, mas também a exploração do prazer feminino, embrulhado sob uma definição de romance platónico, que já por si é um dos temas cada vez mais tabus para direções masculinas.” Ler aqui [texto escrito durante a sua estreia no Festival de Cannes].
#04) It Must be Heaven
“Portanto, em “It Must Be Heaven” somos deixados à geopolítica e com isso à globalização da sua mensagem, partindo para Paris até Nova Iorque, reconhecendo as metrópoles como um novo exotismo. Elia Suleiman filma-se a si próprio perante uma narrativa episódica, nada de igualmente novo na sua filmografia, porém, a sua costura autoral é gradualmente entorpecida perante um jogo de vontade. Saindo de Nazaré com um medo transluzente no seu olhar, deixando para trás os limoeiros que observa da sua varanda, as mulheres beduínas que carregam iogurtes pelo olival a dentro e os sacerdotes enfurecidos perante os rituais interrompidos (desta vez sem intervenção divina), e encarando um “Novo Mundo” com quem sente na pele a (desacreditada) Guerra sem fim (até mesmo o seu recorrente “I put a spell on you” entra na festa como uma recordação agridoce).” Ler aqui
#03) A Vida Invisível
“Este talvez seja, possivelmente, um dos filmes brasileiros mais belos dos últimos anos, que entra em diálogo com o mais belo produzido desta década – Elena, de Petra Costa. Ambos tornam-se cúmplices à melancólica derrota do desejo, o reencontro de um amor que só poucos perceberão a sua dimensão e que é disposto como uma busca à eternidade. A união que se desmaterializa como uma fantasia perante a ausência.” Ler aqui
#02) About Endlessness
““Da Eternidade” nada restará (nem mesmo as ideologias com que abraçamos, aqui de maneira pictórica numa recriação do quadro “O Fim de Hitler”, de Kukryniksy), a futilidade da nossa sociedade que depende do transporte diário que encaminha milhões para as suas respetivas habitações como o seu mais consagrado Deus, marcando oposição a toda aquela matéria que supostamente constitui a alma. A nossa existência é ridícula, e até mesmo mesquinha, e Roy Andersson bem o sabe.” Ler aqui
#01) Martin Eden
““Martin Eden” é, para todos os efeitos, um filme de coração-artista: tumultuoso e inquietante numa sufocante ânsia em criar a todo o custo. É assim a personagem (figura refém do desempenho anárquico e igualmente magistral de Luca Marinelli), é assim a obra que busca livremente os sopros do homónimo trabalho literário de Jack London (de cariz autobiográfico) para proclamarem como seus numa Itália abstrata e enevoada quanto à perceção de século XX.” Ler aqui
Menções honrosas - Small Axe: Lovers Rock, Mosquito, Uncut Gems, Da 5 Bloods, Soul
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“É impossível viver sem razão”
A razão, essa fonte irredutível de vida, é matéria maleável para Abel Ferrara, cada vez mais distantes dos padrões que havia regido décadas antes, assombrar e distorcer tendo como fruto colhido mais um ensaio esotérico sobre o solipsismo. Relatos e tormentos de solidão são plâncton no vasto oceano que é o Cinema, abundante, próspero e incansável no seu ressurgimento.
Nada contra esse tipo de introspecção, em grande tela o reflexo do Homem só continua a ser uma das suas melhores historietas, porém, chegamos a esta nova utilização do ator Willem Dafoe numa enésima experiência pedante de Ferrara, o de colocar o ator na representação óbvia do eremita global. Sibéria, a taiga gelada onde parece não albergar vida alguma é palco para o nosso protagonista, um estrangeiro em terra de ninguém, que gere um ainda mais remoto bar. Dafoe, sob o corpo e a alma fragmentada de Clint, lamenta-se e augura da sua própria sorte, ansiando por confessar os pecados ocultos que o forçaram a refugiar-se de todo, quer dizer, restante mundo.
Por entre a vodca servida como conforto em manhãs e noites gélidas, o nosso alienado procura paz e regalo no corpo feminino, acariciando e degustando os cantos e recantos desse prazer lascivo. Mas é quando uma grávida mal amparada entra no seu decadente estabelecimento, que Clint revive a luz que lhe havia faltado, a da vida, clarificada nesse “fenómeno” chamado maternidade (“Je vous salue, Marie”?). O encontro com este “milagre da natureza” o leva a refletir sobre a sua própria vivência, legado e através disso o destino da Humanidade, hipérboles geradas pelos seus “problemas de primeiro mundo”.
Sonhos correntes, esoterismo variados por entre febris e ocasionalmente molhados fantasias, memórias ripadas e replicadas, entidades que o visitam e os quais são visitados, elementos que trazem à jornada de Clint uma certa interiorização, mas sem razão de existência. A este protagonista o espectador é levado a seu egoísmo, narcisismo e egocentrismo de forma martirológica. Abel Ferrara já havia comprometido tais laivos na incorporação do seu parceiro (já vão na sexta longa-metragem juntos) desde que Asia Argento o assombrou em “New Rose Hotel” (1998).
O corpo de Dafoe é o mais próximo que se tem do divino e nas mulheres do Santuário, é tudo uma questão de representação e a sua atribuição em calores xamânicos, mais do que propriamente poéticos ou centrados em doutrinas do foro psicanalista. E esta viagem pelo entender de Clint e, em contrapartida, o reflexo de um realizador torturado plenamente ciente da sua insaciável insatisfação para com o Mundo ao redor e aquele o qual cria. Infelizmente, as promessas de Ferrara são em vão, ele não constrói nem re-imagina nova linguagem, tal já havia sido apropriada por Andrei Tarkovsky que sob as suas metas temporais induzia na sua história hereditária um fundido e ambíguo caudal entre realidade / surrealidades, sonho / fantasia, ficção / poesia. Todas as servidas dicotomias entrelaçavam e geravam a sua utopia (neste caso, nota-se uma gesto inspirado nesta viagem de Ferrara com a autognose em “Mirror” de Tarkovsky).
Em “Sibéria” presume-se a densidade, mas não sai do faz-de-conta. É umbiguismo revelador que parte de lado nenhum para chegar a “nenhures”, e nem a viagem compensa a trajetória. No fundo, Clint … aliás Dafoe, como ninguém, sendo Dafoe, resulta no espetáculo já confirmado de um ator de corpo e alma. Se é através dele que o filme se apoia incondicionalmente, então há capacidade, porque fora da sua órbita é somente fogo-de-vistas.
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“O papel do crítico é levar as pessoas ao cinema”.
Não! Não é.
A relevância, ou não, do crítico evidencia-se na sua capacidade de se fazer pensar sobre os filmes e com isso desvendando a sua relação com o Mundo. Obviamente que não existe definição concreta nem pragmática sobre o que é um crítico de cinema, e nem vamos por aqui discutir a cerne desses mesmos propósitos. Mas eis que entra a minha crença: na disposição deste, digamos, “pensador” perante o seu filme, o seu Cinema, a sua Arte, entra um gesto egoísta, ou até mais, umbiguista, associando a experiência “pessoal” com a sua, derradeira (nem tanto), perspetiva.
Num ano onde o Cinema comemora os seus 125 anos, falar de críticos e de críticas de cinema é uma postura inglória, desviante e aparentemente burlesca para com esses sonhos de grande tela. O que refiro é, que em tempos onde o Cinema é posicionado na corda bamba, a crítica atira-se para as suas respetivas trincheiras, por um lado, salvar a sala incentivando o público, por outro, incentivar a reflexão cinematográfica, mas ambos unem esforços para preservar a cinefilia (porém, não há equações infalíveis).
De que lado deverão estar?
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Alfred Hitchcock
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A este ponto, até eu [exausto] repito-me … de Philippe Garrel, nada de verdadeiramente (re)vitalizante parece vir dele desde o momento em que o seu coração assombrou-se pela sua espectral autobiografia (“Coração Fantasmas”, 1996).
A partir disto, o sonambulismo o domou, condenando-o, como Prometeu, a ser desventrado uma e outras vezes até ao fim da sua existência. Canso-me de argumentar perante um cineasta, igualmente … isso … cansado, deveras fatigado no seu recurso formal como também discursivo. Para um homem que lutou e que jurou lutar pela dignidade do proletariado (ou assim discursava) não arreda pé do seu próprio estatuto de privilegiado (o cognome autoral que o mesmo exibe para lhe dar a devida impunidade crítica). Não com isto afirmando, deter o absolutismo da palavra, e sim confessando a minha angustia pelas variadas colagens a frio entre prosas com a frieza das imagens naturalistas nestes últimos Garrel(s). É como se procurássemos as respostas do mundo na sua filmografia.
“O Sal das Lágrimas” (“Le Sel des Larmes”) é possivelmente o seu trabalho menos objetivo, à deriva nos diferentes sentimentos e geografias que o próprio realizador nos habituara nestes seus tempos adormecidos. A fotografia de Renato Berta (novamente) presta-se a pintar esta Paris salgada, melancolizada e monótona … mas já vimos estas cores, já “saboreamos” estes tons, é puramente redundante a esta altura do campeonato tecer elogios para aquilo que não é mais criativo, apenas transpassado.
Todavia, deixemos a coloração de lado, o filme avança com uma paragem de autocarro, uma rua e dois passeios separados por uma via de alcatrão, onde em cada uma das “margens” encontram-se dois desconhecidos que cruzam acidentalmente os seus olhares. Daqui, nasce, aquela que continua a ser a melhor de todas as histórias, “a boy meet a girl” (“um rapaz conhece uma rapariga”). A timidez destes futuros amantes rapidamente concedem a linha narrativa principal (segundo muitos admiradores da obra), esta seria a história a acompanhar (novamente apoiando-se nessa perspetiva). Mas estamos numa história garreleana, há traição nestes sentimentos e cobardia enquanto forças motoras.
O nosso protagonista, Luc (Logann Antuofermo), regressa à sua “terra natal”, nos conselhos e conforto que o seu velho e carpinteiro pai guarda e, bondosamente, entrega em cada necessidade. Nasce a cumplicidade aos olhos do espectador, nem que seja pelo carisma resiliente de André Wilms (uma das faces do muito cinema de Aki Kaurismäki). Garrel procura encontrar naquela figura a sua entidade paternal, os seus afetos perdidos e apenas permanecidos na sua memória, mas esta autognose o atinge, ele já não é mais filho do pai (o que poderia exercer o papel oposto nos seus filmes), e a importância disto é que o filme continua direcionado no tratamento da juventude, aliás a sua visão romântica daquilo que pensa ser a juventude “do agora”.
O autor não acompanha estas andanças à modernidade, confunde a sua posição libertária com um moralismo castrador, ora, por exemplo, o trio amoroso (ou como dizem os franceses e muito bem … ménage à trois). Este é o teor dos seus últimos filmes, entregar-nos de bandeja um certo hedonismo ou refresco para no final pregar o seu sermão, agarrando à figura paternal, nunca ela devidamente presente, para servir de justificação dos seus atos.
A “miúda” da paragem (Oulaya Amamra), aquela lufada de ar fresco no cinema bafiento do cineasta é um oásis esquecido na gaveta para depois ser “resgatado” no reencontro mais patético entre ex-amantes, mas o que importa não é a natureza desta relação de mãos dadas aos diálogos redundantes e primários (só de imaginar que foram veteranos que escreveram aquele “engate de café”, lido e obtido na fixação racial, dá-nos um aperto), o relevante, para Garrel, é o seu uso para satisfazer a ideia de perdição, ora pecaminosa, do nosso protagonista.
Não querendo aproveitar o mais célebre diálogo de Wilms, mas já que estamos aqui – “Em questão de mobília, já tudo foi inventado” – passemos para “Em questão de Cinema, já tudo foi inventado”. Ou seja, pedir a Garrel a invenção da roda ou reinvenção do Cinema é uma impossibilidade, contudo, não é o solicitado. Para o nosso cineasta de velha guarda é pedido a reinvenção do seu cinema ao invés de se pregar pela cantiga do arco-da-velha – “o mesmo filme e sempre o mesmo filme”. Os convertidos à sua mimica continuarão a ser súbitos, não venho com isto alterar o curso dessa existência, é somente cinema confortável e cinema confortável todos têm (eu inclusive, mea culpa).
A grande questão no Garrel contemporâneo e sobretudo este filme em particular, é a relação deste com o exterior, e não refiro só o papel da crítica ou cinefilia, mas sim a do próprio realizador perante o mundo que o rodeia. Por instantes recordo a sua proclamação de feminismo para a imprensa para acompanhar o seu anterior “A Sombra das Mulheres” (“L'ombre des Femmes” [ler texto]), deslocado para aquilo que o filme realmente refletia. Ou seja, tal como qualquer “velhote”, Garrel é desbocado, fala sobre tudo e sobre nada, só que o seu recente cinema e é demasiado fechado, em constante observação do seu interior ao invés daquilo que realmente se insere.
Parou no tempo, mas ao contrário dele, o tempo prossegue vertiginosamente para a próxima mudança. Aliás, basta ver 2020, esse ano mais que atípico.
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Eis a maior das ironias, surgir entre nós um filme como “Druk” (“Another Round”), um fantasma da nossa boémia abandonada por um bem maior por entre constantes vai-e-vens de confinamentos e desconfinamentos. Ah, que tempos! Éramos tão felizes e nem sequer sabíamos! Contudo, Vinterberg traz-nos a dita celebração com todos os seus cinzentismos, é como a tal vibrante melodia de Scarlet Pleasure que toca como entrave dos créditos finais - “Que vida, que noite, que bela, bela viagem”. Rimos, choramos, bebemos, comemos e sobretudo vivemos, não haveria filme melhor para encantar o nosso suposto regresso à “normalidade”.
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Recordo em 2017, ainda nos primeiros dias do 70.º Festival de Cannes, um encontro com Takashi Miike (durante o press junket ao seu, na altura mais recente filme, “Blade: A Lâmina do Imortal”), onde, para além das perguntas genéricas e relacionadas com o projeto que o cineasta promovia na Croisette, questionei-o quanto ao seu ritmo de trabalho (é de relembrar que Miike ostenta mais de uma centena de filmes creditados como realizador, diversas vezes concretizando 2 ou 3 obras por ano e de diferentes géneros). Ciente que me responderia algo no sentido de um Manoel de Oliveira, o qual assumia a reforma como o fim da sua vida (efeméride: o português nunca parou de dirigir até ao término da sua existência), o nipónico referiu a sua prolixidade como um dever: “Apenas eu e Sion Sono fazemos filmes maduros na indústria japonesa, mais ninguém o faz”.
Dois anos mais tarde, Miike regressaria à Riviera Francesa para apresentar mais um dos seus trabalhos (neste caso em numa secção paralela ao tão grandioso Festival de Cannes – Quinzena de Realizadores) – "First Love” – o que viria a ser vendido em antemão como mais um exercício do cinema yakuza pelo realizador. Em várias entrevistas e conferências, não só neste evento como nos festivais que prosseguiu, Miike referia um subgénero tão popular no Japão – os yakuzas – como espécies ameaçadas de extinção por um cinema cada vez mais imaturo e o desinteresse das camadas mais jovens.
E estas suas preocupações são evidentemente transportadas para a obra, como podemos constatar nos primeiros momentos em que o nosso improvável herói (um jovem pugilista que nunca conhecera o afeto) cozinha ovos num dos part-times num restaurante chinês, enquanto na sala de refeições poder-se-ia ouvir uma mulher lamentar pela decadência e falta de honra da máfia japonesa, trazendo à memória Ken Takamura (1931 – 2014), o popular ator deste tipo de cinema.
É um lamento incorporado de um homem (que ao lado do seu conterrâneo Takeshi Kitano), persistem em pregoar géneros corrompidos pelas tendências, e desvanecidos pelas novas gerações. “First Love” é uma carta aberta que demonstra compaixão a essa mesma arte, requisitando a violência gráfica e lúdica do realizador como uma espécie de mensageiro. Porque o filme é, isso mesmo, um envelope para um conteúdo, muitos mais … como diria, emocional e romântico – “a luz da manhã não combina com malfeitores” – é um réquiem disfarçado dos gigantes que compuseram a memória e as influências de Miike, receando o desaparecimento dessas em simultâneo com a sua própria existência.
Portanto, por mais decapitações ou grotescas, mas igualmente engenhosas, sequências de ação possam apresentar, este refinado filme malapata é um tributo que implora por mais um dia de vida. Takashi Miike faz das suas, é bem verdade, é um positivo burlão que entrega-nos um romance jovial como atalho a todo um leque de uma indústria passada, e quiçá desintegrada.
Se é o único a fazer “filmes maduros” no Japão atual, isso é discutível. Porém, é dos poucos que se apresenta com um assumido amor ao cinema, e obviamente, com as devidas perversões.
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Ouve-se a certa altura, a passos do seu final, uma mulher referindo à popularidade do seu ex-marido [romancista] desta forma – “A maneira como ele se repete é absurda”. A frase parece cair nas minhas mãos como uma nota de suicídio, um “mata-me por favor” vindo do realizador “mais consensual do momento”.
É que filme após filme e quase sem descanso, o sul-coreano Hong Sang-soo tem mimetizando um estilo, uma estética despida e intencionalmente amadora, e retalhos de um quotidiano entediado (“A vida é aborrecida”, outra tirada ouvida por estas bandas) até à sua exaustão. É um efeito-estufa, o de criar um universo reconhecido até à última gota para que a viagem na corrente da sua filmografia seja percorrida em trilhos seguros e sem qualquer imprevisto. Mas será essa própria fidelidade autoral num sinónimo de genuinidade autoral? Será que poderemos considerar o constante gesto repetitivo como a cerne de um artista?
Possivelmente, como o leitor já deve ter percebido, sou uma voz rara na atual cinéfila, um cético na autenticidade e dos critérios que fazem qualificar este cineasta como um apogeu da sua arte, mas mais que isso, acredito que a repetição é diversas vezes usada como um escudo, uma impunidade crítica a favor da empatia. Primeiro, Hong Sang-soo não ‘nasceu’ detendo aqueles característicos zooms (como é óbvio!), privilegiando-o dessa inexperiência com a câmara para muitos (só de pensar na tamanha indignação causada por um travelling em “Kapò”, de Gillo Pontecorvo), e segundo, o tom que cada vez mais se aproxima às aventuras e desventuras emocionais e “filosóficas” do francês proverbial Eric Rohmer. Ou seja, há uma importação colonizada em Sang-soo, um cinema sul-coreano com alma europeia, com facilidades de agradar os grandes pólos de crítica internacional.
Não me interpretem mal, não considero Hong Sang-soo um zero redondo e a negrito, é na sua criatividade como argumentista o qual esforço em acompanhar (recordo da agradável barafunda narrativa de “Hill for Freedom”, uma construção-puzzle num dispositivo credível), porque a sua formalidade fixou-se numa homogeneidade cansável (basta verificar a sua estreia em 1996 – “The Day a Pig Fell Into the Well” – uma relação desencantada para com o quotidiano mas encantada na sua estetização) como a própria rotina quotidiana (como muitos defenderão).
Porém, em “A Mulher que Fugiu” (“The Woman who Ran”), filme inacreditavelmente premiado como Melhor Realização no Festival de Berlim, é somente o bloco de carvão extraído do lápis, não há réstias de evolução nem preocupação formal (há um gato que aparece sem aviso e que tem contraído orgasmos e histerias por essa cinefilia fora, sem contar com os tais “zooms” aleatórios) ou de guião (a visita de uma mulher às suas diferentes amigas, orbitadas por prejudiciais presenças masculinas, é um punhado de rotinas esvaziadas). O que pairamos nestes 70 minutos é a derivação de um estilo e a prevalência de costumes brandos (a atriz e musa Kim Min-hee repete-se novamente como espectadora dos seus próprios filmes e dos criados para encher telas de “faz-de-conta”).
No entanto, repesco a minha anterior pergunta para a deixá-la no ar: será que poderemos considerar o constante gesto repetitivo como a cerne de um artista?
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Manifestamos que de George Clooney, enquanto realizador, já o testemunhamos algum entusiasmo, seja pela sua estreia e trampolim direto ao ator Sam Rockwell em “Confessions of a Dangerous Mind” (2002) ou pela reconstituição amargurada e igualmente serena em “Good Night, and Good Luck” (2005) sobre o jornalista Edward R. Murrow e, a acrescentar, uma pausa para uma reflexão política nos seus próprios bastidores no ainda esquecido “The Ides of March” (2011). Contudo, essa sua força tem sido gradualmente camuflada com a indústria corrente, quer a nível ideológico quer na linguagem narrativa e técnica.
O que evidenciamos nesta sua adaptação de um livro de Lily Brooks-Dalton – um futuro pós-apocalíptico onde a única esperança para as réstias da Humanidade se vislumbra em outros planetas – é um “tearjerker” no seu sentido mais anónimo. George Clooney indicia um teste de Cooper para se colocar à frente e por detrás das câmaras, cujo seu aspeto desleixado não esconde o desinteresse que tem por material repensado como caro auto-ajuda e que … possivelmente … ganhará novos contornos interpretativos em influências atípicas e pandémicas como estas que vivemos atualmente (são sinais destes novos tempos, mexem com a cabeça de qualquer um).
O ator/realizador havia confessado que para o tratamento desta obra repescou a sua experiência em “Gravity” de Alfonso Cuarón e requisitou os calos do argumentista Mark L. Smith enquanto criador de “The Revenant” de também mexicano Inñarritu. A sua afirmação revela-se totalmente coerente no pitching desta obra, que se traduz na oscilação entre duas histórias cruzadas, uma passada no Inferno Branco do Ártico, a outra na vastidão do Espaço em direção a “casa”, ambas viagens conhecerão os respetivos desfechos a mando de um guião de emoções fáceis e dos problemas costumeiros que povoam aqueles lados de Hollywood.
Tecnicamente competente, com atores a carregar os seus respetivos papéis com o profissionalismo necessário, e a banda-sonora do mais lacrimejante dos compositores (Alexandre Desplat), “O Céu da Meia-Noite” (“The Midnight Sky”) é uma união de esforços que celebram a mais oleada linha de montagem cinematográfica que engole autores e impurezas benéficas. Aliás, não pedíamos aqui nenhuma loucura em matéria de odisseias intergalácticas (a nossa “Galáxia” está cheia disso), mas era pedido uma determinação que valha para justificar todas estas jornadas e não direcioná-las ao vazio … que foi exactamente isso que que aconteceu (de coração vazio e mente enublada).
George Clooney quis olhar para as estrelas, esquecendo que também era preciso que “elas” retribuíssem com o seu olhar. E devido a essa falta de interação, eis mais um para se juntar ao insuflado fascínio pelo Espaço sem nunca pretender o seu infinito (apenas a temporada de prémios). Uma produção lamechas, superficial e isenta do tal Clooney de outrora (aquele que ainda tinha mostrar o seu valor e respeito na indústria e na cinefilia em geral).
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