"Tens um cigarrinho?"
Vicent Price na rodagem de "Twice-Told Tales" (Sidney Salkow, 1963)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Vicent Price na rodagem de "Twice-Told Tales" (Sidney Salkow, 1963)
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Hoje morreu um dos meus heróis de ação, uma das grandes estrelas de cinema da minha contemporaneidade. Tinha 90 anos, eu sei, idade o qual já se perdoa a morte, mas não deixa ser uma perda das minhas, mais que percurso cinéfilo, memórias de infância. Sean Connery era uma lenda viva, um sinal de persistência no seu modo de interpretação, recusando alterar o seu sotaque escocês ferrenho e fugindo da indústria dececionado com o rumo desta. Grato pela tua existência, Sir.
Apesar do fato ridículo, Zardoz (John Boorman, 1974) tornou-se um delicioso filme de culto
O fracasso de The League of Extraordinary Gentlemen (Stephen Norrington, 2003) foi a gota de água que motivou o seu "divórcio" para com a indústria
The Untouchables (Brian De Palma, 1987) o levou ao seu primeiro e único Óscar.
O bélico The Hill (1965), foi uma das suas colaborações com o cineasta Sidney Lumet.
Uma pausa durante as filmagens de Highlander (Russell Mulcahy, 1986).
Um dos seus filmes mais populares nos anos 90, The Hunt for Red October (John McTiernan, 1990)
Ao lado de Michael Caine na adaptação de Rudyard Kipling, The Man Who Would be King (John Huston, 1975)
Durante as rodagens de Marnie (Alfred Hitchcock, 1964)
Foi o primeiro 007 no cinema! Interpretou James Bond em 6 filmes e um tributo intitulado de Never Say Never Again (Irvin Kershner, 1983)
A outra colaboração com o cineasta Sidney Lumet - The Offence (1973)
Em Finding Forrester (Gus Van Sant, 2000) conseguiu uma das suas interpretações mais elogiadas
Ao lado de um jovem Christian Slater no The Name of the Rose (Jean-Jacques Annaud, 1986), uma adaptação (ou será mais interpretação) do livro de Umberto Eco
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Estreia nas nossas salas um quarteto de curtas-metragens que melhor sintetizam um realizador em rápida ascensão nos quadros portugueses: “Quatro Contos de Gabriel Abrantes”. Jovem, prolífero, criativo e ao seu jeito provocador, para os mais desatentos foi o responsável (em conjunto com Daniel Schmidt) de uma comédia tresloucada que se passou por sátira a uma das figuras incontornáveis da contemporaneidade portuguesa – Cristiano Ronaldo.
Nesta coletânea de contos, como indica o título, somos levados pelos devaneios do nosso inconsciente com tamboris à mistura em “Freud Und Friends”, seguido pelo resumo histórico que levou à criação de uma enigmática escultura de Constantin Brancusi em “A Brief History of Princess X” e terminando com os dilemas amorosos de um robô (“Humores Artificiais”) e da evasão de uma estátua “banal” no algoritmo dos coletes amarelos (“Extraordinárias Desventuras da Menina de Pedra”). São enredos excêntricos, trabalhados lado a lado com os seus encantos visuais, traduzindo numa estética que em muito o Cinema Português não está, interiormente, preparado.
Gabriel Abrantes falou sobre o projeto e cada uma das suas “estações”, de forma a decifrar um sentido único no seu cinema.
Uma Breve História da Princesa X (2016)
Sabendo que Gabriel Abrantes já frequenta estes cantos cinematográficos há algum tempo, foi com “Diamantino” e o prémio da Semana da Crítica que o despertou atenção num público mais desatento. Com isto deparamos com uma seleção de quatro curtas suas, algumas delas igualmente premiadas em festivais. Fez parte desta escolha de trabalhos seus? Se sim, como procedeu à seleção e a sua imposição orgânica de forma a criar uma obra única e plena?
Queria programar uma sessão das minhas curtas mais recentes, uma delas, feita a seguir ao “Diamantino”, e que fazem parte do mesmo universo do “Diamantino”, no sentido que são filmes que misturam o cinema de género com um humor absurdo, histórias por vezes delirantes e fantásticas mas que falam das realidades de hoje. Se existe um fio condutor na sessão, é o humor e o amor, que são temas que permeiam todas as curtas.
“Freud Und Friends” havia anteriormente integrado um filme coletivo, uma espécie de “cadáver esquisito”, se bem me lembro, foi uma proposta do Indielisboa (“Aqui, em Lisboa – Episódios da Vida de Uma Cidade”, juntamente com Denis Côté, Dominga Sotomayor e Marie Losier). Neste caso, o seu contributo emancipou-se do conjunto e encontrou nova vida noutro “mosaico”.
É verdade! Gostei muito de participar no projeto ‘Aqui, em Lisboa’, e estou muito grato ao IndieLisboa por me ter convidado na altura. Gosto que os espectadores agora tenham a oportunidade de ver o “Freud Und Friends” neste contexto, rodeado de outros filmes meus. Acho que o filme ganhou alguns sentidos bem diferentes agora que está contextualizado com outras curtas minhas.
Freud und Friends (2015)
Há um delírio pecaminoso em “Freud Und Friends” e mais que isso, um deboche aportuguesado dos nossos “brandos costumes” (falo obviamente daquele intervalo através de um pseudo-filme de um pseudo-Woody Allen e uma Lisboa sob perspetiva “”gringa”).
“Freud Und Friends” é um exercício de auto derisão, e o trailer paródico para um filme do Woody Allen e goza com o Woody Allen e a forma que este fez vários filmes que funcionam como obras de propaganda para o ministério de turismo de diferentes cidades europeias.
Chegando a “A Brief History of Princess X”, o que fez interessar pela escultura de Constantin Brancusi [Princess X], desde a sua história e o absurdismo o qual a mergulha?
A Princesa X é uma escultura muito particular, porque é uma obra que representa, no modo da abstração, uma forma fálica, e parece uma piada infantil ou boçal, mas que foi feita por Constantin Brancusi, um escultor modernista, um dos inventores do abstracionismo, e escultor que enaltecia o seu trabalho a um patamar místico quase religioso. Essa contradição entre a piada infantil e a escultura mística atraiu-me a pesquisar esta obra, e daí descobri a inspiradora história de Princesa Marie Bonaparte, uma das figuras mais importantes da história da psicanálise. Depois de mergulhar um pouco nessa pesquisa quis fazer um filme que retratasse a escultura e a Princesa Bonaparte.
“Os Humores Artificiais” é um filme que vem demonstrar com exatidão um dos seus reconhecíveis gestos, o trabalho visual e as suas derivações de efeitos especiais que se integram nestas mirabolantes narrativas. Gostaria que me falasse dos efeitos visuais e a importância destes nos seus filmes?
Sempre gostei de efeitos visuais, os mundos fantásticos criados pelos efeitos visuais é uma das coisas que mais me seduz no cinema. Cada vez gosto mais de trabalhar com efeitos especiais. Procuro fazer filmes que misturam um lado fantástico com temas atuais da nossa realidade contemporânea, e os efeitos especiais facilitam essa mistura. Trabalho com a IrmaLucia, uma empresa especializada em VFX, e muito do meu trabalho seria impossível sem os talentos deste atelier.
Humores Artificais (2016)
É possível que “Humores Artificiais" seja um dos seus trabalhos lineares e ao mesmo tempo complexos. Esta oposição de humor / amor leva-nos a refletir a duas (assim cremos) impossibilidades para a vida artificial, no entanto, o Gabriel Abrantes dá esperança aos robôs em ambas virtudes.
Estou muito interessado nos mais recentes desenvolvimentos no campo da inteligência artificial, e este filme partiu desse interesse. Existem realmente alguns pesquisadores que estão a tentar criar ‘robôs de stand-up’ e o filme partiu dessas inspirações.
Na “As Extraordinárias Desventuras da Menina de Pedra”, somos confrontados com a curiosidade mórbida duma “banal” estátua do museu do Louvre, que mesmo reduzida à sua frustração existencial, consegue à sua maneira instalar uma “revolução”. A revolução parte de gestos “vulgares” que involuntariamente tornam-se gloriosos?
A Menina de Pedra é uma escultura naïf, e na sua naiveté consegue ter fé no impossível, e talvez essa ingenuidade pode ser uma raiz do espírito revolucionário. O filme é inspirado num conto de Hans Christian Andersen, ‘O Pinheirinho’, sobre um jovem pinheiro, que sonha um dia ser uma árvore de natal. É igualmente sobre um ser naïf, que deseja ser algo que não deveria ser. O filme pega nesse tema e adapta-o ao conflito entre ‘arte’ e ‘política’.
As Extraordinárias Desventuras da Menina de Pedra / Les Extraordinaires Mésaventures de la Jeune Fille de Pierre (2019)
Como artista visual, gostaria que me falasse sobre as prolongações de “Humores Artificiais" e “As Extraordinárias Desventuras da Menina de Pedra”, que cada uma à sua maneira serviu de instalações artísticas.
Muitos dos meus filmes foram exibidos de diversas formas, em cinemas, festivais e museus. Gosto muito de poder mostrar os filmes em diversos contextos, e acho que servem públicos diferentes, e a experiência do filme é diferente.
Quanto a novos projetos? O veremos aventurar em uma nova longa-metragem?
Estou em pré-produção da minha próxima longa-metragem, um filme de terror passado em Trás-os-Montes.
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On the Rocks (Sofia Coppola, 2020)
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Ikiru (Akira Kurosawa, 1952)
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Ana Rocha de Sousa na rodagem de "Listen" (2020)
Ganhou quatro prémios no Festival de Veneza: o Leão de Futuro, de primeira obra, o prémio especial do júri da secção Horizontes, e duas distinções paralelas, 'Bisato d'Oro' e' Sorriso Diverso Veneza '. "Listen" é um filme de uma tremenda força de resistência contra um sistema que nos deixa desarmados.
Em estreia nos cinemas portugueses e protagonizado por Lúcia Moniz e Ruben Garcia, a primeira longa-metragem da também atriz Ana Rocha de Sousa inspira-se numa história verídica, o drama de uma família portuguesa que tenta a sua sorte nas margens de Londres, onde o seu quotidiano é uma luta constante.
Só que uma nova batalha é adicionada a esta mesma equação. Numa decisão questionável, mas “comum” no panorama inglês, a segurança social retira as crianças a este casal, iniciando assim um processo de adoção forçado que, na pior das hipóteses, deixará os progenitores sem encontrar o rasto dos seus rebentos.
“Listen” prova ser um filme-denúncia de uma realidade cruel mas, acima de tudo, é uma obra de garra e de emoção à flor da pele. Conversei com a realizadora sobre este feito, desde as suas influências até às "guerras" em que o filme se encontra involuntariamente envolvido. Neste último ponto, Ana Rocha tem um recado a dar.
Começo com a pergunta básica: de onde veio a iniciativa para elaborar esta história?
A ideia surgiu de uma notícia que veio a público em 2016, na qual retiravam de uma mãe, um bebé com somente dias. Não estava a acreditar nessa história e, como tal, iniciei uma investigação para perceber como é possível e o porquê de tal procedimento. Tive conhecimento de mais casos, descortinando-se todo um universo perante mim, o que me deixou impressionada, horrorizada e sensibilizada. Principalmente tendo em conta que muitos destes casos envolviam famílias portuguesas, fatores que me levaram a escrever este filme. Confesso que tive alguma resistência em iniciar a escrita. O meu primeiro impacto com este assunto foi muito agressivo para mim. Estava incrédula.
Pelo que me está a dizer, isto só acontece maioritariamente a famílias “estrangeiras”?
Também acontece a outras famílias, porém, a grande percentagem é estrangeira. Isso é associável a uma classe baixa, impedida de possuir meios para se defender deste sistema. Para além disso, era necessário as pessoas estarem informadas porque o processo de sinalização/investigação tem procedimentos muito assustadores. Não quero afirmar com isto que só acontece a famílias estrangeiras que vivem em grandes dificuldades. Existem também famílias inglesas que passam por este pesadelo, só que muitas delas conseguem, e com maior facilidade, um responsável pela guarda/custódia. Muitos deles escolhidos dentro da própria família.
É óbvio que a escolha de uma família portuguesa para protagonizar e especificar este caso é uma forma de nos identificarmos facilmente com os dramas destas personagens.
Sim, é uma perspetiva portuguesa desta temática. É uma família ficcionada, mas tem como base a realidade comum de diversas famílias. Mas pretendia um ponto de vista português porque sou portuguesa e vivi na Inglaterra e queria trazer a este caso um choque cultural que levasse ainda a mais conflitos, falhas de comunicação ou equívocos com maior facilidade. Queria demonstrar os obstáculos em bruto de que estas famílias sofrem com este cruel procedimento.
Listen (2020)
Queria que me falasse sobre a escolha de Lúcia Moniz para protagonizar este drama vinculado ao seu realismo. Sendo ela uma atriz reconhecida pelo grande público.
A Lúcia foi sempre uma atriz de uma perspetiva e um espectro bastante amplo que possibilita uma variedade de personagens. Não tendo uma associação a papéis específicos, ela tem características que ajudam e muito em filmes como estes, em que é pretendido veracidade, transparência e verdade no seu desempenho. Para além de uma boa atriz, precisamos de alguém cuja personalidade não se sobreponha e que não se imponha ao papel. Por exemplo, se for ver um filme com o Brad Pitt demoro mais tempo a aceitar a personagem que ele me está a entregar. Com a Lúcia, mesmo sendo um nome com que todos estão familiarizados, sabia perfeitamente que embarcaríamos numa viagem. Porque ela mergulha e passa a ser definitivamente esta mulher.
“Listen” é um filme de poucos embelezamentos, dotado de realismo e direto no seu discurso e em certa parte, é uma obra com influências de um certo cinema britânico que o coloca num plano à parte dentro do panorama português. Queria que me falasse sobre as suas inspirações e referências.
É engraçado, porque muitos têm apontado referências que artisticamente não fazem parte das minhas inspirações. Faz-se, por exemplo, muita menção ao Ken Loach [cineasta conhecido por filmes de um forte pendor social e político como "My Name is Joe" e "I, Daniel Blake], e apesar de ter um enorme respeito pelo trabalho dele, não acredito que o tenha "citado" voluntariamente. Identifico-me mais com uma Nadine Labaki [a cineasta libanesa de "Caramel" e "Cafarnaum"]. Aliás, temos um paralelismo de sermos ambas as atrizes que se colocaram atrás da câmara. Mas quanto a referências? Gosto bastante de cinema japonês, nomeadamente de [Hirokazu] Koreeda ["Nobody Know”, "Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões"], que mesmo sendo uma realidade diferente, julgo que “Listen” seria o resultado da sua tradução. Se calhar [risos]. Assim como Abbas Kiarostami ["Close Up", "Taste of Cherry"] ou o grego Theo Angelopoulos ["Ulysses’s Gaze", "Eternity and a Day"].
Quando uma pessoa tem referências, ou um grande amor pelo trabalho de um realizador, isso não implica que não esteja no filme de alguma maneira, mas que não seja óbvio. Mas tem graça de não ter a menor ideia de onde vem o Ken Loach à conversa. Quando trabalhava neste filme, o “I, Daniel Blake” já tinha estreado e mesmo hoje, ao vê-lo, não consigo associá-lo ao “Listen”.
Possivelmente, essa associação surge do facto de ter estudado cinema numa escola de Londres.
Sim, acho que tem… O ensinamento que tive foi através de outras referências. Penso que está relacionado com toda uma escola britânica e não somente a obra de um realizador. E o que é forte nessa ligação, se é que existe, é automaticamente através da temática. Acredito que, se mostrarmos "Listen" ao Ken Loach — aliás, penso que tal já aconteceu —, dificilmente o ligaria à sua obra nem assumiria que alguém estaria a pensar nos seus filmes ao fazer este. Ele é uma pessoa que vive na crueza profunda e eu não estou nessa “crueza profunda”. O filme é cru …
… e cruel?
A realidade é cruel, não é o meu filme que é cruel. E nisso o Ken Loach também faz, vai buscar a crueza e a crueldade e colocá-las lá, no seu cinema. Com isso sim, identifico-me, mas nesse aspeto é algo tão próprio de mim. Não posso fazer nada se a minha essência vai ao encontro disso. Fomos separados à nascença... ou não [risos].
Ana Rocha de Sousa premiada em Veneza
Desde o anúncio da presença no Festival de Veneza até às suas distinções, "Listen" e o seu nome têm sido utilizados como arma de arremesso numa guerra antiga no Cinema Português. Há quem a tenha desvalorizado como "a atriz dos ‘Riscos’" [série juvenil transmitida originalmente pela RTP entre 1997 e 1998] e quem agora se refira a si como “a atriz dos ‘Riscos' fez um filme que ganhou prémios em Veneza" e deu uma “bofetada de luva branca” a quem a criticou. Deixe-me fazer uma salvaguarda, julgo que o seu filme merece mais do que todas estas guerras.
Pois, o problema aqui é que eu não sou a “atriz dos ‘Riscos’ que fez um filme”. Estou no meio, estou efetivamente no meio, e algo que não aprovo é que o meu nome seja utilizado para dizer mata nem para dizer esfola. Isto para dar a ideia que há dois lados profundamente errados nesta história. Um lado muito errado é aquele que olha para mim e diz algo do género “aquela miúda é a atriz dos ‘Riscos’", ponto final parágrafo. Esta pessoa, subentende-se, não tem capacidade de... ponto. O outro lado é algo como “ah, ah, ah, a atriz dos ‘Riscos’ pode e aconteceu”. Simplesmente, não! Há aqui um grande equívoco, mas isso deixou de ser uma guerra minha.
Mas não sente essa instrumentalização?
Não sei se este filme foi instrumentalizado para essa guerra. Sinto que era importante, de uma vez por todas, perceber que não sou apenas a miúda que se estreou nos "Riscos". Continuo a ser e continuarei a ser a miúda que sonhou ser atriz e se estreou nos "Riscos". Se voltasse atrás, faria exatamente o mesmo porque foi um percurso que me interessou e me preencheu durante muito tempo. Também não sou essa miúda que, do nada, decidiu fazer outras coisas e teve "uma sorte do caraças". Não, estudei imenso, trabalhei imenso. Há certamente muito que tenho para aprender... ótimo, temos todos. Retirar frases do contexto não fica bem e retirar uma pessoa que tem milhares de características ou milhares de linhas que são informativas, que são dados importantes, quer de um lado, quer d’outro, não me parece de todo bem. Por isso, situo-me no meio.
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Em um debate decorrido no Cinema Ideal, durante a projeção de O Fim do Mundo de Basil da Cunha (no âmbito do Cineclube do Indelisboa), perante um grupo de alunos da Faculdade de Letras aventurei-me nas palavras “descolonizar o cinema português”. Isto, obviamente, seguindo a temática do filme pelo qual fui convidado a comentar, referia sobre a nossa perceção quanto aos bairros sociais e os seus respetivos biótopos sob a lente de diversos cineastas, os seus tratados teriam que ser, antes de mais, pluralizados em conformidade com um vasto leque de “quem o filma”. Esse descolonizar, o qual referi, e que possa, porventura, ser mal interpretado, deriva dessa passagem de testemunho do olhar predominante para aqueles que possam, através das suas especificidades e experiências, enriquecer o cinema e a sua ótica.
Contudo, pegando na sua definição mais “convencional”, encontramos um filme como Um Animal Amarelo que segue essa demanda [descolonizadora] por vias do auto-deboche ou da satirização do privilégio branco. Aqui somos exaltados pela jornada do “herói” branco nas buscas de riquezas exóticas por esse mundo fora e igualmente da sua emancipação frente aos fracassos do capitalismo. É um brasileiro, aspirante a cineasta (Higor Campagnaro), oriundo de um tropicalismo civilizado (Brasil), assim como encara, partindo para os remotos cantos da Africa subsariana, explorando, extorquindo o que de “selvagem” lá permanece.
Contado num jeito de fábula que cruza um imaginário paralelo e um bandeja crítica de todo essa “especialidade” branca, nunca reduzindo o seu grau de ridicularização, a quarta longa-metragem de Felipe Bragança é um exercício eclético que vias explorar a identidade brasileira e nunca restringir-se a uma mera tese. Aqui, o nosso protagonista desafortunado é a cobaia da experiência, essa, a da perceção que maioritariamente o Primeiro Mundo tem do Terceiro e por consequência o engano daqueles que não se revêm na sua classe e que forma um Segundo. A crítica pode-se estender à nossa portugalidade franciscana, iludida das glórias passadas que são, grande parte delas, etiquetas de 40 anos totalitários, mas é no Brasil, essa terra de clara multiculturalidade que as facas estão apontadas, com o fio direcionado ao seu contexto politizado (e não é “O” de agora).
Aí deparamos com o desejo de auto-integrar numa euro-identidade, recolhendo as sobras de velhos impérios, e negligenciando o negro historial do qual se formaram … os brasileiros, propriamente ditos. Um Animal Amarelo atormenta e desconsidera essa mesma colonização cinematográfica, recolhendo-se num abstrato conto que espelha a nossa relação com o Mundo.
Se existe uma moral digna de epifania como a de qualquer “fábula” aqui - novamente, eu a ler por alto as definições como elas são - é que para representar “o Brasil como está hoje em dia só pode ser cantado como piada ou como uma autópsia”, frase extraída da obra seguinte/anterior (tendo em conta a sua rodagem/lançamento) de Bragança, dirigido a meias com a atriz Catarina Wallenstein -Tragam-me a Cabeça de Carmen M. – é um dos sintomas do porquê da necessidade desta descolonização no cinema português (por um lado, Um Animal Amarelo possui uma “costela portuguesa” com certeza) e sobretudo brasileiro.
Aposta de novos olhares e além do mais, temáticas que possam acrescentar o pluralismo que falta, por vezes e muito, no nosso Cinema, esse, sim, é o "Animal Amarelo" na sala que precisa de ser falado.
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Bill & Ted's Bogus Journey (Peter Hewitt, 1991)
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Difícil mesmo é selecionar (recolher seria a palavra mais apropriada), um somente “sketch” em toda esta cadeia narrativa de Roy Andersson. Mas se tivesse que quebrar a regra seria numa particular discussão entre um padre que se debate com a sua repentina falta de fé (e os sonhos de natureza sacra como complemento) com um médico o qual recorre para encontrar o antídoto para os seus males. Após confessar o profissional de saúde que a sua patologia é do foro existencial, desesperado, questiona-o após receber a prescrição de uma inteira ausência de crença – “No que vamos acreditar se Deus não existir?”
“Sei lá eu, talvez na nossa existência?” responde-lhe. A partir deste momento desejamos voltar aos dramas intrínsecos deste vigário sem determinação nas suas pregações, o revisitar que será ocasional nesta corrente de situações que se deparam na beira da tragédia, obtendo resultados quer hilariantes mas igualmente destroçadores. Aliás, este “About Endlessness” (“Na Eternidade”), o filme que continua a tradição dos viventes do segundo andar ou dos pombos filosóficos é todo ele embebido na definição de tragédia – a conjugação do trágico com a comédia – que nos encaminham para uma reflexão da nossa própria existência. Esta, nutrida, desvalorizada e demasiado sacrificada para um bem comum.
Porque aqui, a tristeza não tem lugar num banco de autocarro sob os olhos dos restantes seres pálidos e melancólicos, ou as experiências angariadas que soam como inúteis perante um doutoramento ou do dentista cativo dos seus pensamentos que evade (repentinamente) do seu consultório para se refugiar num bar lotado – “É tudo fantástico” – diz um dos consumidores naquele coletivo inanimado. Pronto, menti-vos, acabei por citar mais umas quantas historietas que compõem os pensamentos aqui envolvidos que se dão pelo nome de filme. Contudo, a vida é curta, em breve chegaremos a setembro e descobrimos que pouco ou nada desfrutamos destas ditas “férias da morte”.
“Da Eternidade” nada restará (nem mesmo as ideologias com que abraçamos, aqui de maneira pictórica numa recriação do quadro “O Fim de Hitler”, de Kukryniksy), a futilidade da nossa sociedade que depende do transporte diário que encaminha milhões para as suas respetivas habitações como o seu mais consagrado Deus, marcando oposição a toda aquela matéria que supostamente constitui a alma. A nossa existência é ridícula, e até mesmo mesquinha, e Roy Andersson bem o sabe.
Sete anos depois de “A Pigeon Sat on a Branch Reflecting on Existence” (“Um Pombo Pousou Num Ramo a Refletir na Existência”, laureado com o Leão de Ouro em Veneza), o sueco continua a aplicar essa raiz quadrada da nossa resiliência por este mundo, um niilismo embelezado narrado à bela maneira de Xerazade (ou fazendo-se passar por um versão modernizada e desencantada de Mil e uma Noites), que nos confronta com uma mortalidade sem importância. O absurdismo deste gags violentíssimos é como uma resposta à relação desconcertante de Andersson para com esses fantasmas a quem chamamos de adultos, isto, em contraste com os jovens que celebram a sua juventude numa inconsequente “felicidade” (as aspas servem para disfarçar o nosso bovarismo crónico). Um belíssimo e igualmente doloroso retrato … de nós próprios e da nossa presença neste mesmo lugar, o Mundo.
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Foi uma jornada de 16 filmes, mas todos os percursos chegam ao fim.
A colaboração entre o cineasta Akira Kurosawa e a sua requisitada estrela Toshirō Mifune terminou com “O Barba Ruiva” (“Red Beard” / “Akahige”), a adaptação de uma série de contos de Shûgorô Yamamoto (com influências do russo Fyodor Dostoyevsky), que resultou numa das mais elaboradas (e serenas) composições do ator na parceria (recompensada com o prémio de interpretação no Festival de Veneza de 1965). Esta história, cuja espinha dorsal narra a jornada espiritual de um recém-formado médico (Yûzô Kayama) com ambições de servir um Shogun (o senhor feudal) mas que é impedido por um velho e sábio médico rural que gosta de ser alcunhado de Barba Ruiva (Mifune) é, acima de tudo, um dos apogeus do senso humanitário de Kurosawa no Cinema.
De facto, ainda que este filme de 1966 não tenha a intensa epifania de um “Ikiru – Vencer” (1952), trata-se de uma obra dotada de uma sensibilidade quebradiça e que, em consequência, exibe uma teia de moralidades em prol de alicerces pessoais da humildade e solidariedade. Os casos clínicos conduzem-nos a uma panóplia de subenredos que irão moldar o coração do jovem médico, numa cadência que parece saída dos filmes de Kenji Mizoguchi (o cineasta japonês celebrado pelos temas de dilemas e quadrantes éticos), reforçando “O Barba Ruiva” como um elaborado poema de gestos afortunados. Mas Kurosawa balança na corda da ingenuidade entre essa imperatividade e as boas ações.
Fora isso e como seria de esperar, existe um tremendo trabalho técnico, imensamente invejável e rico em detalhes que transformam cada sequência num elaborado teatro de sombras, luzes e tapeçarias como improváveis jardins. Um visual fantasmagoricamente refinado e um dos mais aperfeiçoados da sua carreira.
Para além da fim relação entre Kurosawa e Mifune (uma ruptura nunca totalmente esclarecida, mas que se especula ter surgido numa insatisfação do ator durante a rodagem), "O Barba Ruiva" tornou-se, também, o último do realizador a preto-e-branco. Seguiram-se as (des)venturas em Hollywood através de dois projetos que nunca se chegaram a concretizar sob a sua alçada – “Runaway Train” e “Tora! Tora! Tora!” -, saindo com um orgulho ferido e uma reputação infame que só recuperaria com a receção consensual reservada a "Kagemusha - A Sombra do Guerreiro", em 1980.
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