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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Ser ou não ser Sean Connery

Hugo Gomes, 31.10.20

Hoje morreu um dos meus heróis de ação, uma das grandes estrelas de cinema da minha contemporaneidade. Tinha 90 anos, eu sei, idade o qual já se perdoa a morte, mas não deixa ser uma perda das minhas, mais que percurso cinéfilo, memórias de infância. Sean Connery era uma lenda viva, um sinal de persistência no seu modo de interpretação, recusando alterar o seu sotaque escocês ferrenho e fugindo da indústria dececionado com o rumo desta. Grato pela tua existência, Sir.

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Apesar do fato ridículo, Zardoz (John Boorman, 1974) tornou-se um delicioso filme de culto

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O fracasso de The League of Extraordinary Gentlemen (Stephen Norrington, 2003) foi a gota de água que motivou o seu "divórcio" para com a indústria

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The Untouchables (Brian De Palma, 1987) o levou ao seu primeiro e único Óscar.

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O bélico The Hill (1965), foi uma das suas colaborações com o cineasta Sidney Lumet.

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Uma pausa durante as filmagens de Highlander (Russell Mulcahy, 1986).

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Um dos seus filmes mais populares nos anos 90, The Hunt for Red October (John McTiernan, 1990)

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Ao lado de Michael Caine na adaptação de Rudyard Kipling, The Man Who Would be King (John Huston, 1975)

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Durante as rodagens de Marnie (Alfred Hitchcock, 1964)

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Foi o primeiro 007 no cinema! Interpretou James Bond em 6 filmes e um tributo intitulado de Never Say Never Again (Irvin Kershner, 1983)

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A outra colaboração com o cineasta Sidney Lumet - The Offence (1973)

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Em Finding Forrester (Gus Van Sant, 2000) conseguiu uma das suas interpretações mais elogiadas

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Ao lado de um jovem Christian Slater no The Name of the Rose (Jean-Jacques Annaud, 1986), uma adaptação (ou será mais interpretação) do livro de Umberto Eco

 

Com gelo, se faz favor ...

Hugo Gomes, 30.10.20

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On the Rocks”, termo traduzido “com gelo”, o gesto de suavizar o sabor agreste do whisky,  resulta nesta sétima longa-metragem de Sofia Coppola numa espécie de anestésico para os obstáculos matrimoniais, o desgaste das relações e, sobretudo, para a nossa interação com o estatuto social. Tal como Bill Murray, que a certa altura afirma, em resposta a uma questão retórica colocada pela sua filha (interpretada por Rashida Jones), que suspeita que o seu marido tem um caso: “Monogamia e matrimónio são baseados num conceito de propriedade”. Com isto, não queremos reafirmar que “On the Rocks” é, em todo o seu esplendor, um ensaio filosófico/reflexivo das matrizes das nossas proclamadas relações afetivas e as declaradamente matrimoniais.

Sem nunca esconder a sua natureza, é uma comédia dramática algo "privilegiada" (Coppola filma aquilo que conhece e com que interage quotidianamente), cujo tom assumido tom é uma “pedra de gelo” nos pequenos enfoques e dilemas em que ocasionalmente fervilha, inteiramente incorporado num chauvinista Bill Murray, num reencontro com a realizadora (com exceção do especial de Natal da Netflix – “A Very Murray Christmas –, contamos 17 anos desde “Lost in Translation: O Amor é um Lugar Estranho”). Mas não desvalorizemos este filme pela sua suavidade intencional de extensos gags de embaraços e desenganos, guiados pelos envelhecidos maneirismos de Murray: o que “On the Rocks” tem a seu favor são esses diálogos, essas interações e esses pensamentos algo levianos dentro do biótopo nova-iorquino, esboçando uma realidade (em choque com a “normalidade pós-pandemia”) que nos revela um mundo à sua maneira fútil e focado no “cotão” dos seus próprios umbigos.

De certa forma, não será isso mesmo, a possessão relacional com as pessoas nos nossos círculos íntimos, colocando-as nos devidos “sacos” e rótulos, um sinal de capricho individual? Nesse sentido, “On the Rocks” quer enfiar-nos pela "goela" problemas de primeiro mundo que, atirados para este novo panorama em que vivemos, soa a paródia expirada. Seja qual for a nossa reflexão sobre esta comédia de tiques, manias e fascínios pelas mordomias alheias, “On the Rocks” é uma obra de Sofia Coppola que clarifica o seu gosto pela (aqui não tão assumida) farsa...

Estátuas, tamboris, robôs e hipopótamos: Gabriel Abrantes demonstra a sua criatividade em Quatro Contos

Hugo Gomes, 29.10.20

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Estreia nas nossas salas um quarteto de curtas-metragens que melhor sintetizam um realizador em rápida ascensão nos quadros portugueses: “Quatro Contos de Gabriel Abrantes”. Jovem, prolífero, criativo e ao seu jeito provocador, para os mais desatentos foi o responsável (em conjunto com Daniel Schmidt) de uma comédia tresloucada que se passou por sátira a uma das figuras incontornáveis da contemporaneidade portuguesa – Cristiano Ronaldo.

Nesta coletânea de contos, como indica o título, somos levados pelos devaneios do nosso inconsciente com tamboris à mistura em “Freud Und Friends”, seguido pelo resumo histórico que levou à criação de uma enigmática escultura de Constantin Brancusi em “A Brief History of Princess X” e terminando com os dilemas amorosos de um robô (“Humores Artificiais”) e da evasão de uma estátua “banal” no algoritmo dos coletes amarelos (“Extraordinárias Desventuras da Menina de Pedra”). São enredos excêntricos, trabalhados lado a lado com os seus encantos visuais, traduzindo numa estética que em muito o Cinema Português não está, interiormente, preparado.

Gabriel Abrantes falou sobre o projeto e cada uma das suas “estações”, de forma a decifrar um sentido único no seu cinema.

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Uma Breve História da Princesa X (2016)

Sabendo que Gabriel Abrantes já frequenta estes cantos cinematográficos há algum tempo, foi com “Diamantino” e o prémio da Semana da Crítica que o despertou atenção num público mais desatento. Com isto deparamos com uma seleção de quatro curtas suas, algumas delas igualmente premiadas em festivais. Fez parte desta escolha de trabalhos seus? Se sim, como procedeu à seleção e a sua imposição orgânica de forma a criar uma obra única e plena?

Queria programar uma sessão das minhas curtas mais recentes, uma delas, feita a seguir ao “Diamantino”, e que fazem parte do mesmo universo do “Diamantino”, no sentido que são filmes que misturam o cinema de género com um humor absurdo, histórias por vezes delirantes e fantásticas mas que falam das realidades de hoje. Se existe um fio condutor na sessão, é o humor e o amor, que são temas que permeiam todas as curtas.

“Freud Und Friends” havia anteriormente integrado um filme coletivo, uma espécie de “cadáver esquisito”, se bem me lembro, foi uma proposta do Indielisboa (“Aqui, em Lisboa – Episódios da Vida de Uma Cidade”, juntamente com Denis Côté, Dominga Sotomayor e Marie Losier). Neste caso, o seu contributo emancipou-se do conjunto e encontrou nova vida noutro “mosaico”.

É verdade! Gostei muito de participar no projeto ‘Aqui, em Lisboa’, e estou muito grato ao IndieLisboa por me ter convidado na altura. Gosto que os espectadores agora tenham a oportunidade de ver o “Freud Und Friends” neste contexto, rodeado de outros filmes meus. Acho que o filme ganhou alguns sentidos bem diferentes agora que está contextualizado com outras curtas minhas.

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Freud und Friends (2015)

Há um delírio pecaminoso em “Freud Und Friends” e mais que isso, um deboche aportuguesado dos nossos “brandos costumes” (falo obviamente daquele intervalo através de um pseudo-filme de um pseudo-Woody Allen e uma Lisboa sob perspetiva “”gringa”).

Freud Und Friends” é um exercício de auto derisão, e o trailer paródico para um filme do Woody Allen e goza com o Woody Allen e a forma que este fez vários filmes que funcionam como obras de propaganda para o ministério de turismo de diferentes cidades europeias.

Chegando a “A Brief History of Princess X”, o que fez interessar pela escultura de Constantin Brancusi [Princess X], desde a sua história e o absurdismo o qual a mergulha?

A Princesa X é uma escultura muito particular, porque é uma obra que representa, no modo da abstração, uma forma fálica, e parece uma piada infantil ou boçal, mas que foi feita por Constantin Brancusi, um escultor modernista, um dos inventores do abstracionismo, e escultor que enaltecia o seu trabalho a um patamar místico quase religioso. Essa contradição entre a piada infantil e a escultura mística atraiu-me a pesquisar esta obra, e daí descobri a inspiradora história de Princesa Marie Bonaparte, uma das figuras mais importantes da história da psicanálise. Depois de mergulhar um pouco nessa pesquisa quis fazer um filme que retratasse a escultura e a Princesa Bonaparte.

“Os Humores Artificiais” é um filme que vem demonstrar com exatidão um dos seus reconhecíveis gestos, o trabalho visual e as suas derivações de efeitos especiais que se integram nestas mirabolantes narrativas. Gostaria que me falasse dos efeitos visuais e a importância destes nos seus filmes?

Sempre gostei de efeitos visuais, os mundos fantásticos criados pelos efeitos visuais é uma das coisas que mais me seduz no cinema. Cada vez gosto mais de trabalhar com efeitos especiais. Procuro fazer filmes que misturam um lado fantástico com temas atuais da nossa realidade contemporânea, e os efeitos especiais facilitam essa mistura. Trabalho com a IrmaLucia, uma empresa especializada em VFX, e muito do meu trabalho seria impossível sem os talentos deste atelier.

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Humores Artificais (2016)

É possível que “Humores Artificiais" seja um dos seus trabalhos lineares e ao mesmo tempo complexos. Esta oposição de humor / amor leva-nos a refletir a duas (assim cremos) impossibilidades para a vida artificial, no entanto, o Gabriel Abrantes dá esperança aos robôs em ambas virtudes.

Estou muito interessado nos mais recentes desenvolvimentos no campo da inteligência artificial, e este filme partiu desse interesse. Existem realmente alguns pesquisadores que estão a tentar criar ‘robôs de stand-up’ e o filme partiu dessas inspirações.

Na “As Extraordinárias Desventuras da Menina de Pedra”, somos confrontados com a curiosidade mórbida duma “banal” estátua do museu do Louvre, que mesmo reduzida à sua frustração existencial, consegue à sua maneira instalar uma “revolução”. A revolução parte de gestos “vulgares” que involuntariamente tornam-se gloriosos?

A Menina de Pedra é uma escultura naïf, e na sua naiveté consegue ter fé no impossível, e talvez essa ingenuidade pode ser uma raiz do espírito revolucionário. O filme é inspirado num conto de Hans Christian Andersen, ‘O Pinheirinho’, sobre um jovem pinheiro, que sonha um dia ser uma árvore de natal. É igualmente sobre um ser naïf, que deseja ser algo que não deveria ser. O filme pega nesse tema e adapta-o ao conflito entre ‘arte’ e ‘política’.

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As Extraordinárias Desventuras da Menina de Pedra / Les Extraordinaires Mésaventures de la Jeune Fille de Pierre (2019)

Como artista visual, gostaria que me falasse sobre as prolongações de “Humores Artificiais" e “As Extraordinárias Desventuras da Menina de Pedra”, que cada uma à sua maneira serviu de instalações artísticas.

Muitos dos meus filmes foram exibidos de diversas formas, em cinemas, festivais e museus. Gosto muito de poder mostrar os filmes em diversos contextos, e acho que servem públicos diferentes, e a experiência do filme é diferente.

Quanto a novos projetos? O veremos aventurar em uma nova longa-metragem?

Estou em pré-produção da minha próxima longa-metragem, um filme de terror passado em Trás-os-Montes.

Bruxedos, bruxarias e Anne Hathaway

Hugo Gomes, 28.10.20

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O livro infanto-juvenil de Roald Dahl [publicado em 1983] sobre uma convenção de bruxas que dá para o torto obteve uma “célebre” adaptação em 1990 pelas mãos de Nicolas Roeg (“The Witches”), que, habituado a um peculiar cinema de género, foi responsável por traumatizar uma geração de crianças eludidas.

Passados 20 anos, e tendo em conta a seca de ideias em Hollywood, a história é refeita para o grande ecrã sob o pretexto de aprimoramentos tecnológicos. Não é por menos que a batuta se encontra nas mãos de Robert Zemeckis, realizador que nos últimos tempos (mesmo com um travão suscitado por um tremendo fiasco como foi "Welcome to Marwen", com Steve Carell) tem apostado numa relação orgânica entre os efeitos especiais com a narrativa ("Back to the Future", "Who Framed Roger Rabbit?", "Forrest Gump", "Polar Express", etc.). Previsivelmente, “Roald Dahl’s The Witches” é tudo aquilo que esperávamos numa revisão contemporânea, um festim de CGI mal emaranhado, uma agreste redução no tom negro da anterior versão e uma tentativa (algo questionável aqui devido à sua leveza) de tecer um contexto social.

Os ingredientes não resultam em nenhum elixir de juventude e a fermentação converte tudo numa poção requentada, monstruosamente despida de personalidade, mesmo que possamos assumir que o início é esteticamente prometedor (com uma narração própria de Chris Rock, a fazer recordar a sua bem-sucedida série “Everybody Hates Chris”). Aqui, onde nem um gato escapa ao domínio das imagens computorizadas (dificilmente os seus visuais sobreviverão num espaço curto de tempo), é Anne Hathaway que vemos como o núcleo esforçado, numa correspondência artificial ao legado deixado por Anjelica Huston, que com "The Witches" se tornou na infame bruxa-mãe de ínfimos pesadelos infanto-juvenis.

Manderley por encomenda ...

Hugo Gomes, 27.10.20

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Se existisse uma secção de livros totalmente “engolidos” pelas suas respetivas adaptações cinematográficas, “Rebecca”, o romance de Daphne Du Maurier (publicado em 1938), estaria no centro, devidos aos esforços de transladação entre Alfred Hitchcock e o produtor de David O. Selznick (“Gone by the Wind”). Datado de 1940, o filme protagonizado por Joan Fontaine e Laurence Olivier é considerado por muitos como um dos trabalhos maiores do celebríssimo “mestre do suspense”, mesmo que o próprio Hitchcock tenha afirmado, numa incontornável entrevista com François Truffaut, ter sido uma visão vencida pelo produtor e não pelo realizador.

Mesmo sabendo que atualmente nada é “sagrado”, chegamos a um nova versão "à la" moda da Netflix, que sem rodeios, interceptou a trajetória de Ben Wheatley, outro cineasta britânico de “suspense” (de "Kill List" e "Free Fire") a servir fielmente um grande estúdio americano. A história repete-se, dentro e fora do ecrã, mas para muito pior: o que se destaca nesta nova “Rebecca” é a sua falta de aprumo e ambição para se afastar do que tinha sido feito antes ou de fugir à formatação do que anda a ser ultimamente concebido pela Netflix.

Esta forma desajeitada pode ser facilmente resumida no próprio retrato de Manderley, a mansão que albergará 80% do enredo: Wheatley opta por planos fechados sem nunca conseguir captar a grandiloquência daquela casa fantasmagórica, que no imaginário cinéfilo de 1940 é como um casulo arquitetonicamente gótico. A claustrofobia, involuntária pois é uma manobra de “desenrasque” dos meios de produção, poderia aprofundar um efeito psicológico na história do romance dúbio. Infelizmente, o artificialismo em tons de pastéis desvia o filme de qualquer pretensão intrínseca, como se a solução fosse despachar como um telefilme sintetizado.

Também a despachar e por outras palavras, a nova "Rebeca” é um embrião novelesco, demasiado “berrante” para a sua emprestada natureza, com personagens sem camadas e nem mesmo uma atmosfera de mistério por estas assoalhadas. A resumir tudo isto está o seu núcleo, o casal protagonista sem química que se rivaliza na sua própria sonsice (Armie Hammer e Lily James), sem fazer qualquer sombra à secundarizada Kristin Scott Thomas como uma Mrs Danvers herdeira (de percentagem mínima) do célebre legado deixado por Judith Anderson no filme de 1940.

"Rebecca" é frustrante pois deparamo-nos com um realizador tão dotado ao suspense como Ben Wheatley a ser reduzido a uma tarefeiro de segunda e a existência de uma “nova” adaptação sem razão para tal. Sério! Havia alguma necessidade para “regressarmos” desta maneira tão acidentada a Manderley?

Ana Rocha de Sousa: "o problema aqui é que eu não sou a 'atriz dos ‘Riscos’ que fez um filme'."

Hugo Gomes, 21.10.20

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Ana Rocha de Sousa na rodagem de "Listen" (2020)

Ganhou quatro prémios no Festival de Veneza: o Leão de Futuro, de primeira obra, o prémio especial do júri da secção Horizontes, e duas distinções paralelas, 'Bisato d'Oro' e' Sorriso Diverso Veneza '. "Listen" é um filme de uma tremenda força de resistência contra um sistema que nos deixa desarmados.

Em estreia nos cinemas portugueses e protagonizado por Lúcia Moniz e Ruben Garcia, a primeira longa-metragem da também atriz Ana Rocha de Sousa inspira-se numa história verídica, o drama de uma família portuguesa que tenta a sua sorte nas margens de Londres, onde o seu quotidiano é uma luta constante.

Só que uma nova batalha é adicionada a esta mesma equação. Numa decisão questionável, mas “comum” no panorama inglês, a segurança social retira as crianças a este casal, iniciando assim um processo de adoção forçado que, na pior das hipóteses, deixará os progenitores sem encontrar o rasto dos seus rebentos.

Listen” prova ser um filme-denúncia de uma realidade cruel mas, acima de tudo, é uma obra de garra e de emoção à flor da pele. Conversei com a realizadora sobre este feito, desde as suas influências até às "guerras" em que o filme se encontra involuntariamente envolvido. Neste último ponto, Ana Rocha tem um recado a dar.

Começo com a pergunta básica: de onde veio a iniciativa para elaborar esta história?

A ideia surgiu de uma notícia que veio a público em 2016, na qual retiravam de uma mãe, um bebé com somente dias. Não estava a acreditar nessa história e, como tal, iniciei uma investigação para perceber como é possível e o porquê de tal procedimento. Tive conhecimento de mais casos, descortinando-se todo um universo perante mim, o que me deixou impressionada, horrorizada e sensibilizada. Principalmente tendo em conta que muitos destes casos envolviam famílias portuguesas, fatores que me levaram a escrever este filme. Confesso que tive alguma resistência em iniciar a escrita. O meu primeiro impacto com este assunto foi muito agressivo para mim. Estava incrédula.

Pelo que me está a dizer, isto só acontece maioritariamente a famílias “estrangeiras”?

Também acontece a outras famílias, porém, a grande percentagem é estrangeira. Isso é associável a uma classe baixa, impedida de possuir meios para se defender deste sistema. Para além disso, era necessário as pessoas estarem informadas porque o processo de sinalização/investigação tem procedimentos muito assustadores. Não quero afirmar com isto que só acontece a famílias estrangeiras que vivem em grandes dificuldades. Existem também famílias inglesas que passam por este pesadelo, só que muitas delas conseguem, e com maior facilidade, um responsável pela guarda/custódia. Muitos deles escolhidos dentro da própria família.

É óbvio que a escolha de uma família portuguesa para protagonizar e especificar este caso é uma forma de nos identificarmos facilmente com os dramas destas personagens.

Sim, é uma perspetiva portuguesa desta temática. É uma família ficcionada, mas tem como base a realidade comum de diversas famílias. Mas pretendia um ponto de vista português porque sou portuguesa e vivi na Inglaterra e queria trazer a este caso um choque cultural que levasse ainda a mais conflitos, falhas de comunicação ou equívocos com maior facilidade. Queria demonstrar os obstáculos em bruto de que estas famílias sofrem com este cruel procedimento.

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Listen (2020)

Queria que me falasse sobre a escolha de Lúcia Moniz para protagonizar este drama vinculado ao seu realismo. Sendo ela uma atriz reconhecida pelo grande público.

A Lúcia foi sempre uma atriz de uma perspetiva e um espectro bastante amplo que possibilita uma variedade de personagens. Não tendo uma associação a papéis específicos, ela tem características que ajudam e muito em filmes como estes, em que é pretendido veracidade, transparência e verdade no seu desempenho. Para além de uma boa atriz, precisamos de alguém cuja personalidade não se sobreponha e que não se imponha ao papel. Por exemplo, se for ver um filme com o Brad Pitt demoro mais tempo a aceitar a personagem que ele me está a entregar. Com a Lúcia, mesmo sendo um nome com que todos estão familiarizados, sabia perfeitamente que embarcaríamos numa viagem. Porque ela mergulha e passa a ser definitivamente esta mulher.

“Listen” é um filme de poucos embelezamentos, dotado de realismo e direto no seu discurso e em certa parte, é uma obra com influências de um certo cinema britânico que o coloca num plano à parte dentro do panorama português. Queria que me falasse sobre as suas inspirações e referências.

É engraçado, porque muitos têm apontado referências que artisticamente não fazem parte das minhas inspirações. Faz-se, por exemplo, muita menção ao Ken Loach [cineasta conhecido por filmes de um forte pendor social e político como "My Name is Joe" e "I, Daniel Blake], e apesar de ter um enorme respeito pelo trabalho dele, não acredito que o tenha "citado" voluntariamente. Identifico-me mais com uma Nadine Labaki [a cineasta libanesa de "Caramel" e "Cafarnaum"]. Aliás, temos um paralelismo de sermos ambas as atrizes que se colocaram atrás da câmara. Mas quanto a referências? Gosto bastante de cinema japonês, nomeadamente de [Hirokazu] Koreeda ["Nobody Know”, "Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões"], que mesmo sendo uma realidade diferente, julgo que “Listen” seria o resultado da sua tradução. Se calhar [risos]. Assim como Abbas Kiarostami ["Close Up", "Taste of Cherry"] ou o grego Theo Angelopoulos ["Ulysses’s Gaze", "Eternity and a Day"]. 

Quando uma pessoa tem referências, ou um grande amor pelo trabalho de um realizador, isso não implica que não esteja no filme de alguma maneira, mas que não seja óbvio. Mas tem graça de não ter a menor ideia de onde vem o Ken Loach à conversa. Quando trabalhava neste filme, o “I, Daniel Blake” já tinha estreado e mesmo hoje, ao vê-lo, não consigo associá-lo ao “Listen”.

Possivelmente, essa associação surge do facto de ter estudado cinema numa escola de Londres.

Sim, acho que tem… O ensinamento que tive foi através de outras referências. Penso que está relacionado com toda uma escola britânica e não somente a obra de um realizador. E o que é forte nessa ligação, se é que existe, é automaticamente através da temática. Acredito que, se mostrarmos "Listen" ao Ken Loach — aliás, penso que tal já aconteceu —, dificilmente o ligaria à sua obra nem assumiria que alguém estaria a pensar nos seus filmes ao fazer este. Ele é uma pessoa que vive na crueza profunda e eu não estou nessa “crueza profunda”. O filme é cru …

… e cruel?

A realidade é cruel, não é o meu filme que é cruel. E nisso o Ken Loach também faz, vai buscar a crueza e a crueldade e colocá-las lá, no seu cinema. Com isso sim, identifico-me, mas nesse aspeto é algo tão próprio de mim. Não posso fazer nada se a minha essência vai ao encontro disso. Fomos separados à nascença... ou não [risos].

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Ana Rocha de Sousa premiada em Veneza

Desde o anúncio da presença no Festival de Veneza até às suas distinções, "Listen" e o seu nome têm sido utilizados como arma de arremesso numa guerra antiga no Cinema Português. Há quem a tenha desvalorizado como "a atriz dos ‘Riscos’" [série juvenil transmitida originalmente pela RTP entre 1997 e 1998] e quem agora se refira a si como “a atriz dos ‘Riscos' fez um filme que ganhou prémios em Veneza" e deu uma “bofetada de luva branca” a quem a criticou. Deixe-me fazer uma salvaguarda, julgo que o seu filme merece mais do que todas estas guerras.

Pois, o problema aqui é que eu não sou a “atriz dos ‘Riscos’ que fez um filme”. Estou no meio, estou efetivamente no meio, e algo que não aprovo é que o meu nome seja utilizado para dizer mata nem para dizer esfola. Isto para dar a ideia que há dois lados profundamente errados nesta história. Um lado muito errado é aquele que olha para mim e diz algo do género “aquela miúda é a atriz dos ‘Riscos’", ponto final parágrafo. Esta pessoa, subentende-se, não tem capacidade de... ponto. O outro lado é algo como “ah, ah, ah, a atriz dos ‘Riscos’ pode e aconteceu”. Simplesmente, não! Há aqui um grande equívoco, mas isso deixou de ser uma guerra minha.

Mas não sente essa instrumentalização?

Não sei se este filme foi instrumentalizado para essa guerra. Sinto que era importante, de uma vez por todas, perceber que não sou apenas a miúda que se estreou nos "Riscos". Continuo a ser e continuarei a ser a miúda que sonhou ser atriz e se estreou nos "Riscos". Se voltasse atrás, faria exatamente o mesmo porque foi um percurso que me interessou e me preencheu durante muito tempo. Também não sou essa miúda que, do nada, decidiu fazer outras coisas e teve "uma sorte do caraças". Não, estudei imenso, trabalhei imenso. Há certamente muito que tenho para aprender... ótimo, temos todos. Retirar frases do contexto não fica bem e retirar uma pessoa que tem milhares de características ou milhares de linhas que são informativas, que são dados importantes, quer de um lado, quer d’outro, não me parece de todo bem. Por isso, situo-me no meio.

Há "Um Animal Amarelo" na sala

Hugo Gomes, 19.10.20

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Em um debate decorrido no Cinema Ideal, durante a projeção de O Fim do Mundo de Basil da Cunha (no âmbito do Cineclube do Indelisboa), perante um grupo de alunos da Faculdade de Letras aventurei-me nas palavras “descolonizar o cinema português”. Isto, obviamente, seguindo a temática do filme pelo qual fui convidado a comentar, referia sobre a nossa perceção quanto aos bairros sociais e os seus respetivos biótopos sob a lente de diversos cineastas, os seus tratados teriam que ser, antes de mais, pluralizados em conformidade com um vasto leque de “quem o filma”. Esse descolonizar, o qual referi, e que possa, porventura, ser mal interpretado, deriva dessa passagem de testemunho do olhar predominante para aqueles que possam, através das suas especificidades e experiências, enriquecer o cinema e a sua ótica.

Contudo, pegando na sua definição mais “convencional”, encontramos um filme como Um Animal Amarelo que segue essa demanda [descolonizadora] por vias do auto-deboche ou da satirização do privilégio branco. Aqui somos exaltados pela jornada do “herói” branco nas buscas de riquezas exóticas por esse mundo fora e igualmente da sua emancipação frente aos fracassos do capitalismo. É um brasileiro, aspirante a cineasta (Higor Campagnaro), oriundo de um tropicalismo civilizado (Brasil), assim como encara, partindo para os remotos cantos da Africa subsariana, explorando, extorquindo o que de “selvagem” lá permanece.

Contado num jeito de fábula que cruza um imaginário paralelo e um bandeja crítica de todo essa “especialidade” branca, nunca reduzindo o seu grau de ridicularização, a quarta longa-metragem de Felipe Bragança é um exercício eclético que vias explorar a identidade brasileira e nunca restringir-se a uma mera tese. Aqui, o nosso protagonista desafortunado é a cobaia da experiência, essa, a da perceção que maioritariamente o Primeiro Mundo tem do Terceiro e por consequência o engano daqueles que não se revêm na sua classe e que forma um Segundo. A crítica pode-se estender à nossa portugalidade franciscana, iludida das glórias passadas que são, grande parte delas, etiquetas de 40 anos totalitários, mas é no Brasil, essa terra de clara multiculturalidade que as facas estão apontadas, com o fio direcionado ao seu contexto politizado (e não é “O” de agora).

Aí deparamos com o desejo de auto-integrar numa euro-identidade, recolhendo as sobras de velhos impérios, e negligenciando o negro historial do qual se formaram … os brasileiros, propriamente ditos. Um Animal Amarelo atormenta e desconsidera essa mesma colonização cinematográfica, recolhendo-se num abstrato conto que espelha a nossa relação com o Mundo.

Se existe uma moral digna de epifania como a de qualquer “fábula” aqui - novamente, eu a ler por alto as definições como elas são - é que para representar “o Brasil como está hoje em dia só pode ser cantado como piada ou como uma autópsia”, frase extraída da obra seguinte/anterior (tendo em conta a sua rodagem/lançamento) de Bragança, dirigido a meias com a atriz Catarina Wallenstein -Tragam-me a Cabeça de Carmen M. – é um dos sintomas do porquê da necessidade desta descolonização no cinema português (por um lado, Um Animal Amarelo possui uma “costela portuguesa” com certeza) e sobretudo brasileiro.

Aposta de novos olhares e além do mais, temáticas que possam acrescentar o pluralismo que falta, por vezes e muito, no nosso Cinema, esse, sim, é o "Animal Amarelo" na sala que precisa de ser falado.

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