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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Catarina Vasconcelos: "o que de extraordinário tem o cinema é a sua capacidade de repensar o mundo"

Hugo Gomes, 04.09.20

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Com "A Metamorfose dos Pássaros", premiado no Festival de Berlim, a artista Catarina Vasconcelos vai ao encontro das mulheres do seu passado que nunca conheceu: a mãe e a avó, Beatriz, carinhosamente apelidada de Triz.

A realizadora aborda a sua família como uma galeria de quadros animados e de natureza morta, um gesto de criação poeticamente visual que desenha um legado enriquecedor para contagiar emocionalmente os espectadores.

Conversei com a artista que encontrou no cinema o seu possível vínculo com memórias e afetos. A Metamorfose dos Pássaros” chegou finalmente a terras lusas através da 17ª edição do Indielisboa.

O seu filme foi uma intenção de “resgate” ou de criação de memórias, sendo que a Catarina as resolve num terno poema visual. Foi uma forma de criar um certo refúgio para que o espectador não possa “infiltrar-se” esse intimismo?

Há dois aspetos importantes que devo mencionar. Primeiro, não estudei cinema, sou de Belas Artes, e isso é crucial na forma como me aproximo do cinema. Venho desta estrada, portanto todo o universo que trago para o cinema é de arte, um tratamento algo plástico, como de "tableau vivant", de quadro, de pintura. Ao mesmo tempo, quando comecei a fazer o filme, que foi há cerca de seis anos — e tem toda a razão em usar a “palavra” resgate — foi porque o meu avô teve a necessidade de queimar a correspondência entre ele e a minha avó Beatriz.

Na altura, esse seu ato chocou-me e muito, até porque nunca cheguei a conhecer a minha avó e estava crente que iria conhecê-la melhor através dessas mesmas cartas. Portanto, tive essa ideia de resgatar alguém que nunca conheci, e durante esse processo, comecei a ir mais fundo. Seja através de entrevistas aos meus familiares, como ao meu pai. Embora tenham sido muitos generosos, tive sempre a singular sensação de que não estavam a contar-me tudo. Escondiam-me algo. Foi algo de que me fui apercebendo e apelidando de ‘mistério das famílias’, os “não ditos”, o que não é contado. Não por mal, mas que são uma espécie de regra de ouro entre famílias.

Como tal, acabei por ter muito espaço em branco. Tinha que preencher esses espaços! Por um lado, senti alguma frustração, por outro foi uma espécie de carta-branca para criar, inventar o que não sei. Com isso, o filme foi adquirindo esses contornos, entre o documental e a ficção, e de um momento para o outro existiam ‘coisas’ que eram fabuladas, repensadas, até porque não se sabia como eram verdadeiramente. Como eram os meus pais e tios quando eram novos, apesar de ter relatos do que eram famílias e mulheres a viver nos tempos da ditadura. O que mudava na essência dessas famílias. Esse carácter do filme entre as memórias resgatadas e de uma poesia que gira à volta disso tem a ver com o processo de construção do filme. Um não vive sem o outro. Hoje penso "que bom que não disseram-me tudo". Para que fosse possível criar esta linguagem, toda esta não só poesia, não seria só sobre esta família, mas partindo dela mesmo para abordar elementos ainda maiores.

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No preenchimento dos espaços em branco, existe também toda uma criação de um panorama sociopolítico da juventude dos seus avós, pais e tios, como o retrato do Portugal pré-25 de Abril. Queria que me falasse sobre essa reconstituição.

Esta família cresceu entre os anos 50, 60 e 70 [Estado Novo]. Para mim era importante abordar, primeiro, a família e o seu desenvolvimento, mas também do que se passava à volta deles. Reconstruir um panorama político. Por isso utilizei a coleção de selos do meu avô Henrique e percebi que, olhando através deles, conseguiria traçar, de modo geral, a história de um país e das suas ditas colónias ultramarinas. Como se pode constatar no filme, quase todos os selos oriundos de Angola ou Moçambique tinham uma alusão a António Oliveira de Salazar, seja através de barragens, pontes ou outras construções, o que dá uma ideia do sufoco vivido na época. Tudo que este homem tocava, automaticamente ganhava o seu nome.

Tentei implementar essa ideia no filme para transmitir a juventude asfixiante de Jacinto e dos seus irmãos. Outro elemento que tento abordar é o dito choque geracional. O meu avô nasceu em 1926, no início do Estado Novo, enquanto o meu pai nasceu em 1950. E como tal, desencadeará um desajuste geracional e político, não com isto afirmando que os meus avós eram pró-Salazar, mas a verdade é que nunca conheceram outra realidade sem ser aquela. E os meus pais e tios já estavam atentos ao que se estava a passar em França, Bruxelas [Bélgica], entre outros [países], tendo um termo de comparação que suscitou consciências políticas. Em “A Metamorfose dos Pássaros” tentei, com pormenores, criar um conjunto de apontamentos do cenário político-social desta família, uma espécie de pano de fundo para o enredo.

Gostaria que me explicasse o porquê da escolha da realizadora Cláudia Varejão (“Amor Fati”, “Ama-San”) como incorporação da sua avó.

Primeiro que tudo, tem uma voz extraordinária. Depois, porque é uma pessoa muito próxima e este é um filme feito com relações emocionais. Todas as pessoas que foram trazidas possuem uma proximidade. Certo dia estava a ouvir a Cláudia na rádio e nunca tinha ouvido assim a voz dela, dessa maneira, e fiquei impressionada. E admiro o trabalho da Cláudia, aliás, admiro a Cláudia. Portanto, ter ela no meu filme a interpretar a avó que não conhecia, mas pela qual era fascinada, marcou-me enquanto realizador, mulher e portuguesa.

Existe um momento curioso: quando o seu pai, Henrique, confronta-a com o porquê da sua mudança de nome no filme para Jacinto. Este diálogo tem como finalidade romper o lado “verídico” da obra, dando a ideia que aqui há espaço para a criação ficcional.

O que de extraordinário tem o cinema é a sua capacidade de repensar o mundo. “E se isto fosse assim” ou “se o meu pai se chamasse assim”. Todas estas possibilidades são-nos dadas com enorme generosidade pelo cinema. Ao mesmo tempo, essa mesma generosidade e capacidade de construção são notórias se as desfizermos. A única forma que tinha para mostrar essa mesma construção no filme era se se desconstruísse um "bocadinho" … e esse confronto com o meu pai foi real [risos].

Por um lado, percebo o lado dele, estou a fazer um projeto sobre a família e altero o nome dele! Achei interessante incorporar essa sua reação e de certa forma vai ao encontro com a natureza de "A Metamorfose dos Pássaros", a diluição do que é verdade ou ficcionado. Esta sequência é crucial para entender que existe essa vertente. Creio que toda essa construção/desconstrução, o de mostrar e esconder, percorre em todo o filme.

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E porquê Jacinto como nome fictício?

Uma coisa que percebi da minha avó Triz é que existia um amor à Natureza, às plantas, uma capacidade extraordinária de fazer nascer e crescer "coisas". Senti-o em várias fotografias, nas plantas que plantou. Era algo que sabia dela, não foi preciso contarem-me. Às tantas, certamente queria usar esta metáfora para batizar o primogénito de Jacinto, um filho com raízes em terra enquanto o marido está constantemente no mar. Essa explicação acontece no início para que no fim ocorra a desconstrução. E o mais, já bastava a confusão que era ter dois Henriques [avô e pai] na história. Era o fim da picada!

A situação pandémica alterou por completo o calendário de estreias. Veremos “A Metamorfose dos Pássaros” nos cinemas portugueses?

Gostaríamos muito que o filme estivesse estreia comercial. Aguardamos pelas datas para verificar qual a mais apropriada. Seja este ano ou no próximo, mas como referiu, com esta situação muitos filmes ficaram com as suas estreias atrasadas, o que causou uma espécie de linha de espera. Anteriormente, as pessoas já iam pouco aos cinemas, atualmente têm que trabalhar ainda mais e pensar em novas estratégias para novamente levá-las às salas.

O que pensa do streaming como solução de estreia?

“Ninguém” gosta que os seus filmes sejam vistos em streaming porque são feitos para serem vistos no cinema. As salas são as casas para os filmes. Mas neste caso especial, se o filme está selecionado num festival, mais vale acontecer, porque imaginamos que, para o ano, estas obras de 2020 não terão o devido espaço e outras mais recentes. Não se deve matar a carreira a estes filmes, apesar de não terem as estreias dignas projetadas pelos seus autores, produtores e todos os envolvidos. Sei que é um tema que tem dado discussão de certa forma fraturante na nossa comunidade, mas creio que isto foi tentar dar uma resposta rápida a uma situação que ninguém previa. Este cenário do streaming garantiu o destaque a filmes de 2020 que, de certa forma, não entrariam nos festivais do ano que vem.

E quanto a novos projetos?

O que tenho é mais uma ideia de filme, ou seja, está em fase de escrita. Foi um processo intenso a da produção de “A Metamorfose dos Pássaros”. De certa forma, esta quarentena serviu para me obrigar a parar um bocadinho e repensar. A ideia já está formada, o filme vai acontecer, só que, aviso, vai demorar um tempo.

E agora? O que vem depois do "Primeiro Verão"? Em conversa, Adriano Mendes vive os seus "28 ½"

Hugo Gomes, 03.09.20

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Aconteceu em 2014, na secção Novíssimos onde foi nos apresentado um curioso filme intitulado de “O Primeiro Verão”, um fruto de amores passageiros erguido com uma dedicação quase hercúlea por parte do seu assinante Adriano Mendes; realizador, argumentista, protagonista, editor, diretor de fotografia e responsável pela edição de som.

No ano seguinte, a produção concretizou uma estreia comercial, algo tímida diga-se por passagem. A partir daí, pouco ouvimos falar de Adriano Mendes. Por onde andava o árduo apaixonado por cinema?

A resposta surge quatro anos depois no mesmo espaço que o apresentou ao “mundo”. Mais maduro e com direito a lugar cativo e especial na programação da 17ª edição do Indielisboa, Adriano Mendes apresentará “28½”, nesta sexta-feira (04/09, pelas 18h45 no Grande Auditório da Culturgest), uma invocação de uma juventude enganada por promessas e consequentemente disso, vivendo num impasse existencial. Ainda retornando a este universo, junta-se a atriz Anabela Caetano, a “menina” de admiração de “O Primeiro Verão” converte-se na jovem mulher que desejamos “resgatar”.

Conversei com o realizador sobre o seu novo projeto, o regresso há muito solicitado e o processo criativo do mesmo.

Com a ‘óbvia’ questão de “como surgiu/nasceu este projeto?”, gostaria de complementar, visto que “O Primeiro Verão” data de 2014, qual foi o seu paradeiro/projetos neste hiato de 6 anos? E tendo em conta que “O Primeiro Verão” foi duplamente premiado no IndieLisboa desse ano, que dificuldades enfrentou nesta sua passagem da primeira longa-metragem até à segunda?

A ideia base para o projeto "28 1⁄2" surgiu em 2014. De forma resumida, partiu da vontade de criar um filme na cidade, que explorasse o caminho para os trinta anos de idade e tendo presente a relação entre essa idade e uma geração mais nova. Foi sendo desenvolvido a partir de ideias com as quais me cruzei, coisas que vivi, outras que me contaram. E, a realidade, a ficção e o tempo permitiram edificar cada peça, num processo de muita paciência e perseverança.

Os dois filmes foram construídos com um enorme acumular de funções, em que estive sempre presente nas diferentes frentes. Isso fez com que os processos fossem morosos, mas em que a liberdade criativa é total.

Em paralelo, trabalhei como assistente de montagem de som no filme “Montanha” de João Salaviza e na pós-produção de som do documentário “Turno do Dia” de Pedro Florêncio. Além disso, trabalhei em videoclipes e vídeos institucionais.

Felizmente, este projeto teve apoio do ICA à finalização, que foi essencial para conseguirmos entrar em pós-produção. Todas as pessoas e instituições que colaboraram na pré-produção e produção fizeram-no de forma totalmente graciosa. A diferença entre o primeiro e o segundo filme é que, sobretudo para comunicar com as instituições que nos apoiaram, já tínhamos um filme para apresentar e isso ajudou a que a colaboração se concretizasse.

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Anabela Caetano

De resto, as dificuldades parecem sempre gigantes, desde a primeira curta-metragem que fiz quando era criança até esta segunda longa-metragem. Sinto a dificuldade como fator inerente ao processo criativo. A sobrevivência, essa sim, afasta-me às vezes desse centro criativo, mas tenho aceitado cada passo com enorme gratidão.

De “O Primeiro Verão” a “28½”, pude constatar, não só uma evolução técnica e criativa, mas como uma alteração na sua visão quanto ao percurso das suas personagens. Na sua primeira longa, existiu uma certa ingenuidade, otimismo e positivismo como lidava com o quotidiano, materializado num ‘amor de verão’. Aqui, há uma angústia constante, uma precariedade de sonhos, principalmente na protagonista desamparada que lida com uma juventude a passo de corrida. Sentiu essa mudança em si, no referido hiato de 6 anos?

Enquanto autor, a ideia para a construção de filme passa pela escolha de um caminho que me interessa explorar. Em “O Primeiro Verão” pretendi aceder ao momento da paixão. As personagens e os momentos foram criados em torno dessa viagem de início de uma relação entre duas pessoas que não se conhecem e que passam a ser íntimas. No “28½”, a escolha foi situar a personagem principal num momento da vida em que parece ser difícil agarrar-se verdadeiramente a alguma coisa. Um intervalo. Nenhum dos dois filmes são um espelho da minha vida, embora faça por conterem as minhas sensações e impressões do mundo, aquilo que me inquieta e que me interessa. Sendo um filme de autor, e tendo a vontade de me aproximar profundamente das pessoas/personagens, parece-me natural que se sinta uma ligação direta com a minha vida.

Quanto à Anabela Caetano, esta sua relação com a atriz e o processo de trabalho dela orientado pelo realizador. Comento que entre “O Primeiro Verão” e neste seu “28½” existe uma clara maturação de Anabela enquanto atriz, é mais evidente durante este filme.

No primeiro filme aprendemos muito sobre como pode funcionar a nossa dinâmica de trabalho. Nos dois projetos foi um processo muito colaborativo. Neste segundo filme decidi trabalhar outra energia da personagem, outra forma de estar na vida. A Anabela apropriou-se disso e tornou-se tangível.

Sobre o título "28 1⁄2", da minha parte senti uma espécie de alusão ao 8½, de Federico Fellini.

Para além da rima gráfica e fonética entre “” e “28½”, as ligações podem ser tantas como em qualquer outro par de filmes que, à partida, nada parecem ter em comum. O título surgiu no final da rodagem e depois de uma primeira montagem. Consciente do peso desta escolha, decidi arriscar por servir aquilo que nos pareceu justo para o título.

Como nasceu aquela sequência do comboio (experiências próprias, ideias, etc.) e porquê contextualizá-la no filme?

A cena emerge no filme como as coisas inesperadas nos aparecem na vida. A ideia base surgiu a partir de um conjunto de vivências próprias. A cena em si, foi uma construção muito morosa, muito trabalhada e debatida desde a fase de pré-produção até à mesa de montagem.

Gosto muito de me desafiar e de desafiar o espectador. A minha intenção não é ser politicamente correto, embora sinta que tenho alguns pilares éticos que me levaram a ter força para desenvolver a cena, tendo consciência das portas que estou a abrir. Parece-me muito importante despertar, colocar questões, inquietar. No cinema, não pretendo dispor o mundo em gavetas. Essa sequência é representativa dessa vontade.

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Adriano Mendes

Nesta sua segunda longa-metragem, decidiu não ‘entrar’ enquanto ator.

Penso que nunca foi uma questão, foi claro e intuitivo dado o que se pretendia trabalhar e a forma como queria encarar o filme.

Como aborda o cinema português atual? Como este se prepara nos tempos austeros que se avizinha, segundo as premonições? Novos projetos e previsões para a carreira deste filme?

Em relação ao cinema feito em Portugal, gostava muito que fosse possível dar mais espaço ao cinema dito de autor. Tanto na educação cinematográfica, como na criação, na distribuição, etc. Gostava também que os concursos das entidades financiadoras e as entrelinhas estatais fossem mais abertos às diferentes formas de fazer cinema.

Previsões não tenho. Vamos continuar a trabalhar para que este filme possa ser visto. Neste momento temos um novo projeto a nascer e será esse o meu foco de trabalho nos próximos anos.

Orgásticamente misterioso

Hugo Gomes, 02.09.20

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Há quem o veja como uma negra e ácida paródia às exaltações comunistas da Cortina de Ferro, porém,  “WR: Mysteries of the Organism” (Dušan Makavejev, 1971) é o tipo de obra que deveria, mais que tudo, ser recuperado perante um tremendo puritanismo que nos assombra enquanto sociedade. Para existir revolução de qualquer tipo, há que acontecer a revolução sexual, nomeadamente no direito de prazer à mulher, diversas vezes reduzida a mero pin-up ideológico ou instrumento da mesma. Polémico e de estreia conturbada (alvo de várias censuras e mazelas na carreira de Makavejev) no seu tempo, “WR: Mysteries of the Organism” é um remix documental com a ficção saturada do mais absurdista possível, que cavalga nas vanguardas cinematográficas contemporâneas para evidenciar a sua mais que tudo mensagem.

Fellini aprendeu lições com as suas personagens e seguiu a sua própria estrada ...

Hugo Gomes, 01.09.20

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Nunca o Carnaval trouxe tais sentimentos! Alberto (o sempre grande Alberto Sordi) revira os seus olhos por entre os adereços e ornamentos daquela festa carnavalesca, aliás, fim de festa, onde só os resistentes parecem persistir nas últimas e arrastadas melodias. O seu olhar é de uma tristeza inconsolada, o de perceber que aquele evento cujas alegrias e aventuras lhe suscitou durante anos vai, ao seu tempo, desintegrar-se e transformar-se numa memória. Quem sabe – nostalgia - o pretendido “amarcord” (“lembra-te”). Com “Os Inúteis” (“I Vitelloni”), a terceira longa-metragem de Federico Fellini, tornam-se mais evidentes os valores que acompanharam a sua jornada enquanto cineasta feito e emancipado com um estilo próprio e que seria imitado no futuro até à exaustão.

O filme, que resgata do seu anterior “O Sheik Branco” (“The White Sheik" / “Lo Sceicco Bianco”, em 1952, com contributo de Michelangelo Antonioni no argumento), os atores Alberto Sordi e Leopoldo Trieste, é uma história de cinco amigos desamparados movidos pelas travessuras e sonhos traídos, imaginando as respetivas fugas daquele vilarejo que os viu nascer. Cinco estados de alma, que não são mais do que fragmentações da experiência de Fellini, enquanto este tenta transformar a região de Lazio numa espécie de Rimini improvisada, a sua terra-natal.

Digamos que “Os Inúteis” não é nem um filme autobiográfico nem uma ficção romanesca que caminha lentamente para fora dos parâmetros do neorrealismo, mas um poço de memórias diluído na matéria produtiva do cinema e cuja hibridez resulta num prolongado estudo de personagens. Estas deambulam em “miseráveis” existências, aprisionadas a um destino prescrito e esquecível, enquanto Fellini sonhava alto e não pretendia, de maneira alguma, ser como aquelas personagens, nem sequer invejar os seus rasgos de juventude inconsciente.

É através destas figuras, onde concentra o seu objetivo de vida, que Fellini se iria reafirmar, evadir e, por fim, conquistar o seu espaço e chamá-lo de seu. Rimini, território de infâncias, de primaveras várias, paixões e personas caricaturais que inspirariam o seu leque de bonecos “fellinianos”, foi uma estação de comboio do qual partiu com promessas de descobertas. O realizador concretizou o seu desejo, enquanto que este quinteto de cordas, os seus “inúteis”, que ansiavam pelo mesmo, ficaram paralisados pelo medo da memória e aprisionados à sua própria Terra do Nunca...

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