Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Tiago Aldeia “navega” pela Braga noturna em busca dos «Os Conselhos da Noite»

Hugo Gomes, 16.09.20

Imagem-2.jpg

Tiago Aldeia e Marta Carvalho em "Os Conselhos da Noite" (José Oliveira, 2020)

Longe do seu mundo e de qualquer afetividade, Roberto é uma espécie de eremita precoce que encontrou no meio rural o seu precioso refúgio. Contudo, uma carta, que surge sem avisar, rouba tudo isso dele, atirando-o para um turbilhão de álcool e noites mal dormidas sob as promessas de uma imortalidade inalcançável. Enquanto procura resquícios do seu passado nas noites de Braga, Roberto afasta-se mais do seu futuro … se isso está realmente predestinado à sua figura pedante?

José Oliveira, cinéfilo de gema e que tem atingido algum reconhecimento na curta-metragem “Longe: Far”, protagonizado pelo ator José Lopes (falecido em dezembro de 2019) e apresentado no Festival de Locarno, aventura-se numa longa-metragem que se veste num ambiente de festiva soturnidade para nos entregar o percurso autodestrutivo de um homem nas estribeiras da sua própria sorte. Estes são os, como o título indica, “Os Conselhos da Noite”.

Para incorporar esse Roberto, está o ator Tiago Aldeia, pouco a pouco a inserir-se no seio cinematográfico após uma carreira sólida na produção televisiva. O ator, que já havia trabalhado com o cineasta Ivo M. Ferreira, é por fim, um protagonista de corpo, alma e de devaneios próprios.

O ator falou com o Cinematograficamente Falando … sobre esta sua relação com o próprio Cinema.

Sobre a sua participação neste filme, o que o levou a trabalhar com o realizador José Oliveira?

Li o guião, encontrámo-nos para uma conversa e foi aí que percebi a sua visão e entusiasmo, a sua abertura a sugestões, e tudo começou. Foi uma real troca de ideias, que se efetivaram na rodagem do filme com cumplicidade.

Queria que primeiro contasse-me sobre a sua experiência naquele que é um dos momentos mais sentimentais do filme, a despedida da sua personagem ao ator José Lopes (o qual, sabemos, que este foi o seu último papel em vida)? E como encara hoje a sua ausência, tendo em preciso momento?

Apenas conheci o José Lopes nesses dias que filmamos no Alentejo, homem generoso, profundo e atento. Acho que a cena passa disso, o que se torna de certa forma uma poética homenagem.

Como concebeu a sua personagem, e de que forma contou com o auxílio de José Oliveira neste processo criativo?

O filme atravessa o percurso emocional do “Roberto”, que está em todas as cenas. Foi indispensável partilhar com o José Oliveira, toda a criação do “Roberto”. Foi uma partilha honesta e intensa, tanto que houve pequenas alterações ao guião para que eu lhe conseguisse dar o “Roberto” com toda a carga emocional que ele me solicitou. Um homem perdido e sem nada a perder, um limbo muito interessante para se trabalhar … Pois tudo pode acontecer a qualquer momento.

descarregar.jpg

Tiago Aldeia e Adolfo Luxúria Canibal em "Os Conselhos da Noite" (José Oliveira, 2020)

“Os Conselhos da Noite” é um filme que, no fundo, aborda a nossa autodestruição como estado de espírito. As noites e tudo anexado, como um escape das nossas, e íntimas, questões existenciais. Alguma vez se sentiu como esta personagem?

Acho que todos nós, em algum momento da nossa vida, com maior ou menor intensidade, tentamos resolver alguma questão emocional com esse tipo de escapes, esses “pensos rápidos”. Seja para esquecer momentaneamente um problema, provocar “dormência” à dor, inibição, euforia... etc. Mas, felizmente, nunca senti essa necessidade de forma tão profunda e constante como o “Roberto”, muito menos num sentido autodestrutivo que lhe é latente.

Queria-me que contasse a sua experiência em contracenar com Adolfo Luxúria Canibal, o vocalista dos Mãos Morta. No filme, dá-se a entender que se divertiram a filmar estas ditas cenas.

O Adolfo e a sua personagem “Vicente” são de poucas palavras e o “Roberto” extrovertido, eu sou extrovertido... e esta irónica conjugação correu muitíssimo bem! Em cena é clara a cumplicidade, e efetivamente foram das cenas mais divertidas de fazer no filme.

Sobre esta noite bracarense, inteirou-a por completo? E não questiono somente em termos de personagem.

O Roberto, decididamente, eu ainda tenho que ir mais vezes ao jogo [risos].

Tendo uma carreira maioritariamente televisiva, com algumas paragens no cinema, e agora vendo-se como o protagonista de “Os Conselhos da Noite”, será razão para avançar ainda mais no cinema? Existem projetos novos em vista?

Absolutamente, adoro fazer cinema. Mergulhar intensamente numa personagem “naquele” período de rodagem realiza-me muito. Tenho pena que o nosso mercado seja pequeno e as oportunidades e condições não sejam muitas. Mas tenho algumas ideias a serem trabalhadas... tudo a seu tempo.

Existe uma sequência em “Os Conselhos da Noite”, no qual Roberto vagueia por um centro comercial algo abandonado, e por entre as lojas fechadas há um cinema inoperacional. Ora, pegando no facto de José Oliveira ser também programador do Cineclube de Braga que tem tido um papel fundamental na difusão e exercitação da cinefilia fora dos quadrantes de Lisboa e Porto, como vê este desaparecimento das salas, a ascensão dos multiplexes e a importância dos cineclubes? E o que poderemos fazer para devolver o cinema aos mais diferentes recantos (muitos deles cinematograficamente órfãos deste país).

É uma questão pertinente, o comodismo do streaming veio mudar o paradigma. Para mim é essencial que não se desista destes cinemas, que promovem a cultura e a cinematografia a quem as procuram. Talvez se tentássemos torná-los mais dinâmicos, mais atrativos, eventualmente com bares, restaurantes… Galerias de arte… Ideias criativas que os possam ajudar. No entanto, e independentemente do presente, acredito que no futuro voltarão a estar na moda! Mas até lá, podemos sempre tentar fazer tudo o que pudermos para os manter vivos. A magia de ver um filme num cinema é única.

Sem-Titulo2.webp

Tiago Aldeia e José Lopes em "Os Conselhos da Noite" (José Oliveira, 2020)

Sobre a reabertura das salas? Esta aposta do cinema português numa altura em que o medo de ir aos cinemas ainda é vincado, previsões naquilo que será o cinema português pós-COVID?

Não podemos parar, já é um setor em dificuldades há alguns anos, pelo que temos de continuar a trabalhar para permitir que todos possam ter acesso à cultura! E na verdade, temos que tentar ver o copo meio cheio. Ultrapassado o medo, e porque todas as medidas de segurança e higiene estão a ser rigorosamente aplicadas nas salas de cinema, é uma boa oportunidade para as aproveitarmos, como se fossem nossas! Um verdadeiro luxo. Deixo assim o apelo, vão ao cinema, nunca o barulho das pipocas incomodaram tão pouco.

Tendo uma carreira maioritariamente televisiva, com algumas paragens no cinema (destaco as longas-metragens “Hotel Império” e “Cartas da Guerra”, ambos de Ivo Ferreira, e ainda a curta “Cigano”, de David Bonneville, onde se tornaria, pela primeira vez, protagonista em grande tela), e agora vendo-se como o “cabeça de cartaz” de “Os Conselhos da Noite”, considerará motivo para avançar ainda mais no cinema? Se sim, tem projetos novos em vista nesta área?

Absolutamente! Adoro fazer cinema. Mergulhar intensamente numa personagem “naquele” período de rodagem realiza-me muito. Tenho pena que o nosso mercado seja pequeno, e as oportunidades e condições não sejam muitas. Mas tenho algumas ideias a serem trabalhadas…tudo a seu tempo.

Enquanto ator, que dificuldades ou virtudes trarão estas novas regras de segurança e sanitárias no trabalho e envolvimento com outros colegas e técnicos?

É muito difícil ver qualquer virtude, pois evitar a proximidade numa arte em que a emoção se traduz tantas vezes pelo contacto chega a ser frustrante. Tal e qual como nos é difícil não abraçarmos a família e amigos. E todos nós sentimos falta desse toque!

Glória ou Morte!

Hugo Gomes, 14.09.20

seven-samurai-film-RYYMC8.webp

“Seven Samurai” (“Os Sete Samurais”) é um épico de grande escala de Akira Kurosawa que rompeu várias vezes o seu orçamento, mas os frutos recolhidos desse risco encontram-se no sucesso global que conheceu e nas influências que trouxe a todo um registo de ação, quer no cinema (logo no "remake" à americana em 1960, “The Magnificent Seven”, de John Sturges, um dos mais bem-sucedidos do seu género), quer na cultura popular. E no facto de, quase 70 anos mais tarde (1954), continuar a ser um dos mais grandiosos e míticos da história do Cinema.

Para lá de todos estes gigantescos predicados cinematográficos, encontra-se um filme delicado e sensível, diversas vezes conduzido pelas ações das suas personagens - seis espadachins marginalizados e um vagabundo aspirante (Toshirô Mifune, ator-fetiche do realizador), que se juntam para defender uma aldeia desafortunada de um grupo de bandidos que de vez em quando lá surgem para implantar o caos e a destruição. Será também dentro deste grupo que nasce uma escalada afetiva com o povoado, que vai revelando os caráteres emocionais destes homens de força e dever que se vão tornar improváveis herois. E é por aí que o filme joga nos detalhes, como um samurai de primeira ordem (Seiji Miyaguchi) se importa com a sua posição para lançar a derradeira e mortífera tacada.

Akira Kurosawa filma, com o cuidado pelo qual é reconhecido, as expressões dos seus herois, os seus movimentos, os seus foros íntimos (sentimos uma aura de pacificação fabulista no campo de flores, que suscita um provável par amoroso) e os enquadra numa tática estratégia de os resumir num todo. Os sete são sete, é verdade, mas quando a batalha se adensa por entre vilões sem qualquer perfil (no realizador, as forças antagónicas são passadas para segundo plano) e os nosso herois caem um a um, é que a perda se vai, por fim, sentir, e o coletivo se dissolve.

São estas as “forças invisíveis” que tornam “Os Sete Samurais” num espetáculo de coração cheio, honroso para com a sua luta e que no final adquire um tom algo fúnebre que nos acompanha até ao gigantesco “kanji”, a representar FIM, a dominar o ecrã. Para lá dos cenários de grande dimensão e uma figuração engenhosa e à sua maneira “tosca” (uma das grandes características do dito épico à moda de Kurosawa) e das sequências de ação arrastadas maioritariamente num plano só, esconde-se um filme humanista que maneja as suas emoções como ninguém.

Um manual básico de sustos sem improvisação

Hugo Gomes, 13.09.20

223787.jpg

Os fantasmas devem andar todos a frequentar a mesma academia, porque em matéria de sustos (mais precisamente o tão vendido dispositivo jump-scare), todos parecem ter aprendido nas mesmas bandas.

“O 3.º Andar: Terror na Rua Malasana” (“Malasaña 32”) riposta no clássico filme de assombração, com um apartamento de um prédio madrileno a assumir palcos dos terrores materializados, após a chegada de uma família rural nos anos 70 (contextualizando a transição do franquismo para a nova democracia espanhola). Aqui, os ditos espectros recorrem aos mais variados truques, todos eles contrafeitos e retirados de vários “clássicos” do género, investido nos mais inúmeros clichés e adornos-cúmplices dessa criação fantasmagórica … ah, e o auxílio da sonoridade delatora que nos lança pré-avisos quanto à chegada dos tais pop-ups.

Sim, nada de relevante ou inventivo poderemos encontrar neste arraçado de “Poltergeist” com tiques / tendências de “The Conjuring: A Evocação” e dos seus primos afastados, a não ser o seu próprio twist, um quase whoddunit fantasmagórico que vem ao delinear uma crítica à sociedade intolerantemente patriarcal da época, mas novamente, são territórios que o terror enquanto veículo subliminar para com temáticas atuais incentivava-nos desde sempre.

Agora, inserindo-o no contexto da indústria espanhola, e fechando os olhos à “invasão” produtiva na Netflix, uma certeza assombrosa nos atinge – os espanhóis já demonstraram, sobretudo em tempos dos iniciais fracassos da Filmax ou das ocasionais incursões do antes e do paralelo dessa mesma produtora, mais ambição e obviamente mais afinco na sua condição de entretenimento terrífico-passageiro. No fim de contas é isto, o filme assinado por Alberto Pintó (“Matar a Dios” em colaboração com Caye Casas) é um esboço daquilo que poderia ser se este não estivesse ao pendurão das trendys do seu subgénero.

Été 85: o verão de um "condenado" amoroso

Hugo Gomes, 11.09.20

MV5BOTM4ZTg5ZjItNzdhNy00M2E1LThkOTUtODAyMzdiZjJjMjFalou-se aqui de um “Call Me By Your Name” francês, sendo que a única coisa que tem de comum (para além do óbvio romance homossexual) é o saudosismo para com a época descrita, transformando músicas pirosas em marcos da nossa emotividade e paixonetas estivais por amores shakespearianos com a sua pitada de macabro. É um (pequeno) grande passo de Ozon após o certinho e igualmente deslavado “Grâce à Dieu”, evidenciando aqui um jeito algo tosco em salivar por velhos temas existenciais e eternos gestos autorais. É um filme com a sua personalidade, mesmo que por vezes seja levado pelas ondas ("como uma onda no mar", já dizia o 'outro')

Na balada dos brancos cabelos de Maria Adelaide

Hugo Gomes, 10.09.20

ordem-moral.jpg

O filme abre com uma ode de admiração aos escondidos cabelos brancos de Maria Adelaide Coelho da Cunha, herdeira e dona do Diário de Notícias em 1918, que se depara no espelho estes sinais evidentes de envelhecimento, para mais tarde, tal cena ser replicada como uma determinação perante um ataque orquestrado por homens de poder ou simplesmente de influências insufladas.

Estes assuntos capilares não são mais que uma prolongada analogia de um sufoco feminino num país reinado por um patriarcado profundo, onde os romances são só apenas escândalos de alta sociedade no lado delas e que o desejo da mulher é automaticamente encarado como sintoma para uma eventual patologia mental. É assim, que a vida da não consinta Maria Adelaide é ditada por um universo médico e científico enraizada em esquemas de conservadorismo e ideologias machistas, o qual tenta perpetuar a sua luta através de peças teatrais com blasfémias fontes de prosa e poema qualificado.

ordem_moral_03A.jpg

O regresso da dupla criativa, o realizador Mário Barroso (“O Milagre Segundo Salomé”) e o argumentista Carlos Saboga, resulta numa biopic à portuguesa de nome “Ordem Moral”, que retalha as inspirações de Agustina Bessa-Luís no seu romance “Doidos e Amantes”. A história já havia originado uma obra de Monique Rutler em 1992, “Solo de Violino”, hoje de paradeiro desconhecido, e é sob o cunho da produção de Paulo Branco que assenta num efeito de produto de luxo, composto por elencos de estrelas do circuito e um retorno esperado ao nosso cinema – Maria de Medeiros.

Aliás, é através da veterana e celebrada atriz (“Adão e Eva”, “Capitães de Abril”) no qual concentra a grande força, e quiçá resistência, desta produção. A sua condução a leva a uma voluntária miopia quanto ao seu mundo, para reforçar a sua causa, quer pessoal que se via transmitir em algo universal e de efeitos revitalizadores à sociedade portuguesa da época. Por outras palavras, “Ordem Moral” é um dos poucos filmes que vem colmatar um enorme vazio de grandes protagonistas-femininas na nossa “indústria” (sob aspas porque ainda debatemos se realmente temos ou não), e o faz sobre a classe irreconhecível de Medeiros, que parece secar tudo à sua volta, até mesmo com João Pedro Mamede, que por vias da sua própria resistência, tenta aguentar a partilha de palco com a atriz.

Em destaque, ainda, está a atriz Júlia Palha (outro regresso à grande tela depois da revelação em “John From, de João Nicolau) que funciona como uma espectadora dentro do próprio filme, assim como uma objetora de consciência. Porque no final, a consciência nasce, cresce e morre (esperemos que não) do próprio espectador, não cabe às personagens (essas figuras históricas) decidir o rumo ou a prescrição da nossa “moralidade”.

Listen: Há filmes que simplesmente precisam ser ouvidos com atenção

Hugo Gomes, 09.09.20

ana.jpg

Um filme-denúncia dissecado por Ken Loach e todos esses cantos e recantos do cinema social. “Listen”, que erradamente tem servido de arma instrumental para guerras antigas, é um objeto curioso das suas próprias desgraças, num desencanto abalável que contrai momentos de pura emoção (muitos deles sustentados pela melhor das melhores Lúcias Moniz). É simples, digamos, sem espinhas, mas apoiado por uma coluna vertebral frágil e mesmo assim seguro da sua força. Curioso para ver esta visão à inglesa aplicada mais vezes no nosso cinema, nem que seja o seu caráter ativista e sem rodeios, sem floreados e à sua vontade, cru. Há qualquer ‘coisa’ em Ana Rocha.

Júlia Palha: “Tenho a vontade, tenho a paixão e sei que tenho o talento”

Hugo Gomes, 08.09.20

emptyname_28.jpg

As inundações das Terras Baixas da Papua Nova-Guiné sempre me fascinaram”, frase, no mínimo curiosa, que marcou um dos filmes mais singulares e recentes do panorama português – “John From” de João Nicolau – tendo como proclamadora uma, na altura, adolescente de nome Júlia Palha. Isto aconteceu em 2015, onde já se adivinhava um promissor percurso para a rapariga que suspirava pelos trópicos em pleno bairro de Telheiras (Lisboa).

Dois anos passaram, e a vimos com tamanha sedução na curta celebrada “Coelho Mau” de Carlos Conceição, uma fantasia em lençóis de fábula onde a atriz assumia o papel de uma hipotética “rapunzel” que no cimo da sua torre aguardava pelo príncipe encantado, este, facultado pelo seu irmão (João Arrais). Depois de uns quantos papéis em telenovelas e séries que tornaram Palha numa atriz cada vez mais requisitada e admirada, voltamos a contar com a sua presença no cinema sob a batuta de Mário Barroso e da escrita de Carlos Saboga – “Ordem Moral” – com produção de Paulo Branco.

Aqui, desempenhando Sophia de Azevedo, a amante deslocada de um triângulo amoroso que escandalizava a alta sociedade portuguesa no início do século XX, a atriz opera como uma voyeurista do enredo principal que serviria de inspiração para a escritora Agustina Bessa-Luís no seu “Doidos e Amantes”. Palha contracena com um dos grandes nomes do cinema português (que também retorna a “casa”), Maria de Medeiros que lidera um elenco de luxo nesta obra que veio para desvendar um desafiante caso na nossa cultura intrinsecamente patriarcal.

A jovem falou comigo sobre a sua experiência neste novo projeto do realizador de “O Milagre Segundo Salomé”, assim como a responsabilidade de se tornar numa das “cabeças de cartaz” de um novo cinema português.

Começando pelo início: como chegou a este projeto? O que pode-nos dizer sobre a sua personagem e a sua experiência em contracenar com Maria de Medeiros?

Foi um convite feito diretamente pelo Mário [Barroso], não havia como negar. A minha personagem foi muito desafiante. É uma personagem mais velha, mais madura, com o pé entre dois mundos, o saber estar em alta sociedade, a voz, a postura, e o saber viver bem com a infidelidade.

Nas cenas com o Marcello [Urgeghe], acabamos por ir fazendo pequenos resumos da história e por isso, sei a importância da personagem. A Maria para além de muito querida é uma atriz como nunca tinha visto, de uma profundidade e naturalismo equiparáveis, é uma honra saber-me num filme com ela.

“Ordem Moral” resgata uma mulher, em certa maneira, apagada da nossa História (sabendo que na literatura foi imortalizada por Agustina Bessa-Luís), muito devido às suas constantes “afrontas” a uma sociedade intrinsecamente patriarcal (basta ver como a vida de Maria Adelaide é decidida, assim tentam, por homens de poder). Conhecia esta história previamente? Considera esta a melhor altura para contar narrativas de mulheres progressistas (à sua maneira) na nossa História?

Apenas fiquei a conhecer a história quando li pela primeira vez o guião, fui pesquisar e fascinou-me o facto de ser uma história real, e de ter acontecido cá em Portugal. Soube instantaneamente – “tenho que fazer parte disto e tenho que o fazer bem”. Eu própria considero-me uma “progressista” na medida em que, por muito que as ‘coisas’ estejam melhores e tenham mudado, ainda existe muito que possa ser trabalhado.

Este filme é um grito de alerta que demonstra como as ‘coisas’ já foram, o que para nós, mais jovens, é ainda mais difícil de acreditar. Acho que o filme vai ser lançado numa altura importantíssima, incentivando as pessoas, por fim, a pensar.

MV5BZDMyMTAwMjgtOTA3MC00N2I5LWJhZGEtMjkwZGIyZWY4Yz

Júlia Palha e Marcello Urgeghe em "Ordem Moral" (Mário Barroso, 2021)

Voltando à sua personagem, ponto curioso é o facto de ela ser, como digamos, a “outra” de um matrimónio, mas ao mesmo tempo o filme não tende a criminalizá-la nem sequer dar uma de “palanque de condescendência”.

Era uma coisa muito comum na altura, e a minha Sophia, na verdade, tem um bom fundo, como se pode ver na última cena que tem com o Alfredo da Cunha e até em algumas cenas com a Maria Adelaide.

Sobre os seus novos projetos, o que nos pode dizer sobre o seu papel de Loira no “Campo de Sangue”, de João Mário Grilo e sobre o filme de Hermano Moreira, “Amo-te Imenso”, para a Promenade?

A minha Loira será um papel pequenino, não exigirá muito de mim enquanto atriz, mas sei que é um papel muito relevante e estou muito honrada de ter sido escolhida pelo João Mário Grilo. Já em “Amo-te Imenso” serei a Tessa, uma personagem leve, divertida, mas com uma energia que se sente a quilómetros, chamada “alma velha”. Estou muito entusiasmada com ambos os projetos. Fazer cinema é a minha paixão e vou continuar a privilegiar nas minhas escolhas o grande ecrã.

Visto a sua carreira ser maioritariamente televisiva (em novelas e séries), atingiu um certo reconhecimento internacional com “John From”, de João Nicolau. Nesse filme, contracenava com Clara Riedenstein, que mais tarde tornar-se-ia protagonista de “A Portuguesa”, de Rita Azevedo Gomes, ambas são tidas como duas das principais caras de um certo e novo cinema português. De alguma forma, se vê como tal, alguém capaz de representar e içar esse mesmo cinema, e já agora, como encara o cinema português atual, antes e depois do Covid-19?

O meu querido “John From” foi quem me fez descobrir este amor à representação, a minha querida Clara, com quem tanto me diverti e o meu “Coelho Mau” que me levou tão nova ao Festival de Cannes e me deu a conhecer um mundo de glamour e de emoções.

Acho que todos sabemos, que pela falta de oportunidades, de BOAS oportunidades também, é mais difícil fazer cinema, ainda assim acho que com a minha idade já tenho um bom percurso nesta área. Se me considero capaz de içar esse novo cinema? Acho que sim. Sim. Tenho a vontade, tenho a paixão e sei que tenho o talento.

Acho que se tudo correr bem o COVID’ não vai afetar a arte, claro é, as salas têm que estar mais vazias, e tal, acabará sempre por ter consequências. Mas acredito que as pessoas têm saudades de ir ao cinema, e que este vírus não as vai impedir disso.

Já falta pouco para os 30 ...

Hugo Gomes, 05.09.20

Photo-1-06_Still__28_and_a_half.jpg

Em 2014, Adriano Mendes estreava na secção Novíssimos um pequeno e genuíno filme chamado “O Primeiro Verão”. Realizador, argumentista, protagonista, editor de som, um trabalho hercúleo que resumiu numa experiência estival de paixões e afetos tecidos pela atriz Anabela Caetano. Seis anos depois, regressa ao Indielisboa com uma segunda longa-metragem, mais madura e isenta do positivismo jovial. Em "28 1⁄2", Anabela Caetano não é mais a doce razão de sorrir de Adriano Mendes, é antes disso uma jovem no limiar da sua juventude, tendo de resistir às adversidades do qual nunca esteve preparada. Um filme na porta da maturidade, um ensaio de defraudações cujo sorriso é uma mera miragem. O mundo é impiedoso, bem nós sabemos, e Adriano Mendes parece saborear isso mesmo, essa crueldade silenciosa.

Catarina Wallenstein: "Dentro de mim podem existir 50 pessoas diferentes, mas a questão é quantas delas quero conhecer"

Hugo Gomes, 05.09.20

MV5BMzZmMGQ4ZjItNjcwOC00NGIyLWFmNGMtN2EzZTdhMDQ4Mz

Um Animal Amarelo (Felipe Bragança, 2020)

Há um animal, grande, felpudo e tons amarelos que traz consigo memórias amaldiçoadas e poeira cintilante, que é um convidado de honra no Indielisboa.

"Um Animal Amarelo", o mais recente trabalho do jovem cineasta brasileiro Felipe Bragança, centra-se na história com ecos coloniais de um aspirante a realizador que decide refazer a sua vida como “caçador de riquezas” em Moçambique, sempre acompanhado pelo fémur dos seus antepassados e por um "espectro animalesco".

Conversei com Catarina Wallenstein, atriz que tem ganho nome na produção nacional em trabalhos de Manoel de Oliveira, João Botelho e Sérgio Tréfaut e que, do outro lado do oceano, tem trabalhado com Felipe Bragança numa reconstrução identitária brasileira, primeiro com "Tragam-me A Cabeça de Carmen M.", sobre uma atriz portuguesa que se acha perfeita para interpretar o papel de Carmen Miranda, e agora com o filme que encerra esta 17ª edição do festival IndieLisboa.

No IndieLisboa do ano passado, vimos "Tragam-me A Cabeça de Carmen M.”, que codirigiu com Felipe Bragança. Agora, chega-nos “Um Animal Amarelo”, mas sem a Catarina creditada na realização.

Na verdade, "Um Animal Amarelo” foi rodado antes do “Tragam-me A Cabeça de Carmen M.”, um filme menos ambicioso. Conheci o Felipe durante a rodagem do “Um Animal Amarelo” e decidimos trabalhar no “Carmen” durante a sua pós-produção, para estar pronto como filme-reação. Para existir com maior prontidão. Normalmente nos filmes aplicamos um maior desenvolvimento, aquele tempo todo para escrever, mas “Tragam-me A Cabeça de Carmen M.” foi uma experiência mais artesanal, um processo mais imediato com o momento presente, uma convulsão tão rápida para com esse tempo. Quisemos reagir e, por isso, já estamos a pensar fazer outro.

Em termos políticos, havia qualquer coisa de atualizado em "Tragam-me A Cabeça de Carmen M." em relação a este.

Um Animal Amarelo” é um filme de camadas sobre a identidade brasileira, que é atravessada pelos tempos. Nós, portugueses, também albergamos essas questões, visto que o filme lida com o colonialismo presente na sua sociedade. Quanto a essa atualização, é bem verdade que os tempos estão a mudar e muito rapidamente, mas "Um Animal Amarelo" aborda questões que não desatualizam em um ou dois anos. O Felipe começou a trabalhar nos filmes antes da eleição de Bolsonaro. Em 2017.

Em “Um Animal Amarelo”, as televisões têm importância para o seu contexto temporal. Quando o protagonista embarca na sua aventura africana, notamos que o Brasil está atento ao "impeachment" da presidente Dilma Rousseff.

Exatamente! Foi uma localização temporal e como o Brasil atravessa durante estes anos, em particularmente desde o golpe. Penso que devemos chamar os bois pelos nomes. Porque do "impeachment" ao golpe existe uma mudança do "status quo" que vai da irresponsabilidade de uma pessoa a uma engrenagem de um movimento ainda maior. Aliás, a Dilma já foi ilibada do que fora acusada, ou seja, ela poderia concorrer outra vez. Só que o seu processo de destituição deu espaço a este atual governo que está a desmantelar o Brasil.

tragam-me-a-cabeça-de-carmen-.jpeg

Tragam-me A Cabeça de Carmen M. (Felipe Bragança & Catarina Wallenstein, 2019)

 

No fundo, “Um Animal Amarelo” é uma fabulação da consciência colonial, quer do Brasil como também de Portugal?

Como cidadãos portugueses temos muito que olhar para a nossa História. “Um Animal Amarelo” é uma coprodução luso-brasileira que foi filmada em Rio de Janeiro, Beira (Moçambique) e Lisboa, criando uma rota comum com a da Escravatura. Permitindo aos dois países repensar o passado que carregamos nas costas. Mas isso depende de cada um e julgo que poucos estão abertos para o fazer.

Mas começa a questionar-se nos manuais escolares a nossa história colonial, nomeadamente a chamada Era dos Descobrimentos.

Sim, começa a existir, mas de forma simplificada. Aliás, um dos problemas de hoje é a facilidade de acesso à informação bastante simplificada, que traz pouca densidade de pensamento. Nós temos que olhar para tudo isto de forma mais complexa e não sermos abatidos pela culpa, porque esta não interessa para nada. O que interessa saber é de onde se vem e para onde vai e o nosso papel de causa-consequência efetivo no desenvolvimento socioeconómico de vários países.

Em relação ao cinema, os franceses “abriram” mais rápido essa desconstrução colonial, enquanto o português ainda vai em pequenos passos.

Sim, só que eles não passaram por uma ditadura de 40 anos que exaltava sentimentos de patriotismo de forma abnegada e pouco explicada. Como alguns “F” que nos ajudaram a construir uma identidade muito básica. A exaltação da bandeira através dos “futebóis” e dos seus respetivos clubismos. Reduzir a identidade nacional somente ao “Fado". Faz parte dela, mas nós não somos apenas isso. Não sou só a Catarina, não sou só uma atriz, não sou só uma mulher e não sou só uma portuguesa. Dentro de mim podem existir 50 pessoas diferentes, mas a questão é quantas delas quero conhecer, dentro da minha história, da minha família. Acho que devíamos ter um pouco mais de vontade de ser curiosos e deixar-nos surpreender.

Outro fator que julgo ser a essência das aventuras deste “herói” é que todo o filme traça um quadro geral do privilégio branco.

Talvez sobre o ridículo e a impossibilidade da utopia do "privilégio branco". O herói branco de “Um Animal Amarelo” é um anti-herói e o facto de ser um privilegiado branco não o faz dele heroico. Não é de todo uma boa pessoa, é um anti-herói que vivencia acasos e onde ele nem sempre é louvável. Isto é uma história onde os negros nem sempre os "bonzinhos", o branco não é nem o "bonzinho" nem o "mauzinho". Por outras palavras, nós não somos uma camada e o filme em si não recorre ao maniqueísmo, apenas desafia o que é "normalizado" para entendermos que existe uma faceta trágica em cada um de nós.

descarregar.jpg

Um Animal Amarelo (Felipe Bragança, 2020)

No fundo, este “anti-herói” brasileiro, como a Catarina lhe chama, que generaliza a ideia de privilégio branco, é um homem ridículo. O privilégio branco é, isso mesmo, “ridículo”?

Sim. Contudo, julgo que, na cultura portuguesa, não temos essa capacidade de auto-deboche, de ridicularizar-nos e, no fundo, penso que seria algo que individualmente nos enriqueceria bastante. Desde 1500 que andamos a exaltar e a glorificar os nossos feitos, o que é muito ridículo porque somos um país muito pequeno, muito provinciano e, ao mesmo tempo, com mil e uma qualidades. Não sou nenhuma traidora da pátria por constatar defeitos ou fragilidades no meu país. Trazia-nos a complexidade que falta ver essas contrariedades e não somente vermo-nos como um povo simplificado de valores tatuados pela ditadura. A nossa geração ainda é herdeira do Estado Novo, ainda somos medrosos. Não nos posicionamos ainda porque ainda temos medo do que o outro pensa, fruto de anos e anos de denúncias e do constante peso da Igreja. É uma carga gigantesca que carregamos às costas e não queremos falar.

Abordemos o futuro, mais especificamente o cinema e a COVID-19. Acredita nessa coexistência nestes novos tempos?

O cinema continuará a existir depois da COVID-19. Não me preocupa verdadeiramente o cinema, tendo em conta a falta de sustentações políticas culturais que alimentem um setor que não só está desnutrido como é necessário à boa saúde da nossa democracia. Evidentemente que o Estado tem que ter um papel importante no apoio da criação plural, independente e diversificada. Não podemos todos depender de plataformas, marcas, curadorias empresariais para estarem a criar produtos massificados, todos parecidos uns com os outros, só porque sabe-se à partida que vai resultar a nível de bilheteira.