João Botelho dirige Chico Diaz, Victoria Guerra e Cataraina Wallenstein na rodagem de "O Ano da Morte de Ricardo Reis” (2020)
João Botelho prometeu devolver o valor incalculável da literatura portuguesa e o faz através da sua própria arte – o Cinema. Depois de Agustina Bessa-Luís, Eça de Queiroz e Fernão Mendes Pinto, o realizador regressa ao universo pessoano [Fernando Pessoa], que o sempre acompanhou, para transcrever o romance do Nobel da Literatura, José Saramago.
O escritor havia concebido em 1984, um retrato descritivo e detalhado de um Portugal nos anos 30 a experienciar os seus ventos de fascismo, o pretexto para atribuir a dignidade ao heterónimo “esquecido” de Fernando Pessoa. É que o poeta esqueceu-se de criar um obituário à sua criação, deixando-o livre no mundo térreo enquanto o criador resistia no lado espiritual.
“O Ano da Morte de Ricardo Reis” é um enredo de duas forças opostas que se embatem num país que desiste do seu sonho de um Quinto Império. Falei com o realizador sobre este seu novo projeto e ainda sobre a inquietude do Cinema.
Queria que me começasse por responder sobre o embarque nesta adaptação e o facto de Fernando Pessoa ser uma aura que o acompanha ao longo da sua carreira, recordo que antes de “O Ano da Morte de Ricardo Reis” já havia trabalhado nesse universo em “Conversa Acabada” (1981) e o “O Filme do Desassossego” (2010).
É verdade, o Saramago também meteu-se com o Pessoa e, por via dele, meti-me eu. Mas a questão é que tanto se fala de apoio à cultura, às artes, mas o grande problema é essencialmente a educação. Devido a isso, há um total desprezo pelo que é nosso. E temos ‘coisas’ fantásticas neste país, o que pode resumir a uma ideia, a uma paisagem, sem sequer mencionar a Grande Literatura Portuguesa.
Tentei com isto salientar o nosso património, e não só do “Conversa Acabada”, esse modernismo diálogo entre Pessoa e [Mário de] Sá Carneiro, mas da literatura contemporânea, que tem uma proximidade com aquilo que está a acontecer hoje. O romance do Saramago tem uma capacidade notável de mostrar um ano de ’36 muito parecido com a nossa atualidade. Obviamente que não havia a COVID. [risos] Mas já existia a extrema-direita, os Trumps, os Bolsonaros, os Órbans, os irmãos da Polónia, os Putins e até o islamismo, ou seja uma tendência enorme de negritude.
O que Saramago fez com este seu livro foi o inventário de tudo o que acontecia em Portugal no mundo durante 9 meses correspondente a esse mesmo ano. Ele relatou as invasões da Etiópia, o surgimento do Nazismo, a Guerra Civil de Espanha, as inundações de meses em meses em Portugal, o fortalecimento do fascismo e até mesmo espetáculos e outras variedades. Isto tudo é visto hoje como uma espécie de retorno, por isso era mais que importante falar sobre isso.
Segundo, porque é uma obra muito bem escrita e muito cinematográfica. Dentro das obras de Saramago, esta é a mais propícia para o Cinema. E, no fundo, este filme é uma mensagem para os mais jovens: “Leiam, simplesmente leiam”. Temos grandes obras da literatura e devemos ter, acima de tudo, orgulho no que possuímos e produzimos. E, além do mais, é também uma mensagem sobre cinema, falar e abordar o cinema.
Bem sabemos que existe atualmente um triunfo do entretenimento, uma tendência tão infanto-juvenil, e que poderemos encontrar mais cinema nas séries. Ou seja na televisão do que nas salas. Por vezes é preciso gritar: “Para”. Nisso, uma das poucas “coisas” boas da COVID, foi que isto nos obrigou a parar e a pensar.
Este filme está longe dos 3000 planos ou dos “N” efeitos sonoros, está mais perto das luzes, das sombras, dos seres humanos aflitos e, essencialmente, da oralidade do Saramago. Isso porque quero que as pessoas leiam, porque acho que quando sou apoiado pelo Estado tenho de devolver um pouco esse mesmo serviço público. Para além do filme, há que ir às escolas, falar com os “miúdos” sobre Saramago ou sobre Cinema. Os jovens de agora chegam mesmo a pensar que o cinema começou com o Tarantino… simplesmente não! Tem mais de 120 anos. [risos]
Mas pronto, a aventura é esta!
Recordo que “A Jangada de Pedra” (George Sluizer, 2002), a primeira adaptação cinematográfica de uma obra de José Saramago, foi repudiada pelo próprio. Acredita que este filme agradaria ao escritor?
Julgo que se Saramago estivesse vivo, gostaria disto. Eu não gosto do “A Jangada de Pedra”, nem do filme do [Fernando] Meirelles [“O Ensaio Sobre a Cegueira”]. Há uma pressão enorme por parte dos grandes estúdios em estabelecer nos atores um realismo vincado e como nós não temos dinheiro para isso, adquirimos, em certa parte, uma liberdade para fazermos o que queremos.
Chico Diaz e Luís Lima Barreto em "O Ano da Morte de Ricardo Reis” (2020)
Mas voltando à adaptação em si, para além da responsabilidade, como geriu esse processo criativo de transformar aquelas páginas em imagens? Obteve alguma liberdade nesse mesmo processo?
Eu não reescrevi nada, nem sequer podemos reescrever um grande escritor. Apenas utilizei os fragmentos que poderia adaptar com as circunstâncias e condições que tinha ao meu dispor; o preto-e-branco, o formato 36, o de transformar o Campo de Alcochete em Fátima, o de ter mil pessoas no Campo Pequeno e repetir umas quatro vezes para termos umas “quatro mil” naquele comício. Este tipo de atitudes pode-se fazer cá, porque numa grande produção é necessário uma habilidade imediata e dinheiro o qual tornam impossível esses mesmos improvisos.
De facto, toda esta ficção é um paradoxo sem fim. Temos um poeta solitário que cria um heterónimo e que, após a sua morte, a criação assume o papel de criador. É como se a sombra do Peter Pan emancipasse e, nesse sentido, os papéis eram invertidos.
O Fernando Pessoa era incapaz de escrever sobre os desejos carnais do Ricardo Reis. O Saramago, por outro lado, sabia perfeitamente o que é um ser humano. Já Pessoa conhece o espírito. [risos]
Em relação ao protagonista, porquê a escolha do muito experiente ator brasileiro Chico Diaz?
Tive um amigo que foi um ano para o Brasil e veio de lá com sotaque brasileiro. Logo, segundo a ficção, Ricardo Reis esteve lá 16 anos, por isso mesmo, teria de ser um brasileiro a desempenhar esse mesmo papel. Quanto à escolha do ator, inegavelmente Chico Diaz é excelente na sua arte, porém, para desempenhar a personagem, teve de aprender a atuar à portuguesa, nem que seja abrir as vogais e consoantes.
Tive a sorte de trabalhar com ele um mês antes das filmagens, juntamente com Luís Lima Barreto e o facto de ele também ser um ator de longa carreira facilitou esta transformação. Ele atribuiu a carnalidade que precisava para este Ricardo Reis. É um ator de corpo e inteiro.
Além disso, há uma história de cumplicidade com o Brasil em questões de produção, o que tornou verossímil esta decisão.
E em relação ao lado dos “espíritos”? A escolha de Luís Lima Barreto como Fernando Pessoa?
O Luís Lima Barreto é também uma escolha estranha. Mas o que aconteceu na realidade é que o Fernando Pessoa quando morreu, com 47 anos, parecia que tinha 90. É claro que o Lima Barreto não tem 90 nem anda lá perto [risos], mas eu precisava de alguém semelhante aquele Pessoa que morreu, que era um Pessoa mais “gordo”, longe da imagem angulosa que popularizou.
Existem, julgo eu, duas ou três fotos de quando ele morreu, o qual exibem um Pessoa calva, de feições rechonchudas e de bigode cinzento. É esta a imagem que procurava para este Pessoa. Por outro lado, há um cinismo no modo de representar o Pessoa que me interessava muito.
Mas pronto, no fundo, isto parece um western. A paixão de dois cowboys, depois surgem umas mulheres lá pelo meio, e um deles pega no outro e cavalgam até ao pôr-do-sol. Obviamente, algo que gosto de brincar, apesar de levar a sério o Saramago, é com o cinema e os seus géneros cinematográficos. Eu acho que o cinema não dá lições a não ser as de cinema. O resto é para inquietar, mas isso é o Saramago, não sou eu.
Então não acredita que o cinema pode, ou deve, dar “lições”?
Pode. Ético e moral. Todavia, a principal função do Cinema é a sua inquietação. Não é o conforto, nem o consolo, não é indicar caminhos, não é o de resolver, é sim, o de inquietar, e a partir daí são as pessoas que escolhem os seus próprios caminhos.
Claro que há uma questão ética, até porque a ética é a colocação da câmara, as luzes e as sombras. Ética é não deixar o espectador entrar lá para dentro, mas permitir que veja e ouça. O cinema pode bem contar histórias, só que tem de construir a distância segura para que o espectador se sinta livre de dizer – isto é o espetáculo, não é a vida.
João Botelho na rodagem de “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (2020)
O cinema americano atirou-nos para dentro do ecrã, por isso mesmo desejo fazer algo diferente, que é o de sair fora do ecrã e ser verdadeiro, e cuja verdade é o texto, os olhares, os gestos. O resto não é verdadeiro, aquilo não é vida, é uma espécie de representação da vida. Por isso é que gosto bastante de teatro, e corromper o cinema com o teatro. Gosto da ideia do artifício, a da mulher de 60 anos que faz de adolescente e que nos leva às lágrimas só pelo seu desempenho.
Adoraria fazer ópera. Chegar às emoções dos espectadores que não seja através da identificação das personagens.
Conhecendo a sua grande admiração por Manoel de Oliveira, digamos que está a fazer uso de uma das suas mais recorrentes “lições de cinema”, quanto mais o cinema se aproxima da realidade, mais se afasta da arte.
Absolutamente! Quanto mais uma pessoa entra lá dentro, menos vê e menos ouve. Aliás, o Oliveira não queria que os atores olhassem uns para os outros, mas sim, que olhassem para fora, porque estão a representar para o espectador.
Eu não vou tão longe, prefiro ter em conta algumas ambiguidades. Mas gosto da ética do Oliveira: para cada situação só existe um ponto-de-vista para quem o faz. Por exemplo, este romance dado a 10 realizadores diferentes originariam 10 filmes completamente distintos. O Cinema não é o que se passa, nem como se passa, é como se filma. O meu modo de filmar é inequívoco, assim como a maneira de filmar do João César [Monteiro], do Pedro Costa, do Oliveira, do José Álvaro [Morais], de muitos.
Cada um com o seu Cinema.
Voltando à sua anterior frase: “há mais cinema nas séries do que nas salas” …
Há mais cinema na televisão porque os adultos deixaram de ir às salas, não é somente uma situação portuguesa, mas 85% dos frequentadores de salas de cinema têm menos de 18 anos e, portanto, o entretenimento ganhou. Eu costumo dizer que houve um filme que nos condenou a todos, chama-se “Tubarão”. Simplesmente abriu a boca e engoliu tudo [risos]. Porque no fundo esta onda infanto-juvenil não é mais do que Série B ou Z com dinheiro investido. Atenção, eu não estou a insinuar que o “Tubarão” é um mau filme, apenas destruiu tudo à volta e agora sofremos com as sequelas.
Eu gosto e faço cinema-tempo, e não cinema-movimento. Não faço ação à americana ou policiais franceses, e sim filmes portugueses.
Devido a este ponto, deixe-me repescar uma outra frase sua, impressa no livro “O Cinema da Não-Ilusão: Histórias para o Cinema Português”, de João Mário Grilo, que foi o seguinte: “A verdade é que nenhum dos filmes portugueses de entretenimento interessa a qualquer um dos meus três filhos, que são espectadores normais de cinema. Porque, patetice por patetice, preferem os americanos, que são patetas grandes.”
Porque não há cinema comercial português, aquelas comédias populares que as pessoas adoram – “O Pátio das Cantigas”, “Canção de Lisboa”, entre outros – davam um prejuízo enorme, apenas eram apoiadas pelo Estado fascista. Eram comédias iguais umas às outras, era a pequena burguesia em ascensão, “portam-se bem e vão para o reino dos céus”. Ao contrário do que se afirma, não eram rentáveis, eram somente propaganda. Não há nenhum filme português que tenha sido pago na bilheteira… nenhum!
E outra “coisa”, nós não temos preponderância para fazer mainstream. Os americanos gastam em lançar um filme que equivale a dez filmes portugueses. O nosso cinema está mais próximo do europeu dos anos 60 ou até mesmo do americano mudo. Estamos mais próximos do Ford, do Dreyer, do Ozu, ou seja, com a História do Cinema do que com a indústria de entretenimento.
Para finalizar, quanto a novos projetos?
Já tenho um no “forno”. Já ganhei um concurso e só estou à espera para filmar sem máscaras. Vou adaptar Alexandre O’Neal e se intitulará “Um Filme em Forma de Assim”, tendo como base o seu conto “Uma Coisa em Forma de Assim”, ou seja, posso fazer tudo o que me apetece. Eu já tenho idade para isto. [risos]