Tarkovsky não tem a culpa! Repitam comigo. Tarkovsky não tem a culpa!
O “Esculpindo o Tempo”, livro (e ideia) que virou teoria e consequentemente numa tendência de abraçar e relacionar com o cinema, os ensinamentos do cineasta russo perduram, ou pelos que desejam ser perdurados por apropriadores do título ‘herdeiro’. Tal como a gravura do monstro marinho cujo olho desenhado dá lugar à luz cintilante “roubada” por parte da Lua, Luís Patiño adquire por vias dessa transposição transitória um cognome que não lhe convém, até porque neste seu “Lúa Vermella”, a sua relação com o tempo, este transformado e moldado é um simples pergaminho para crítico escrever e interligar com a sua consciência.
Vindo de uma, como poderemos assinar, nova escola de cinema galego que encontra o seu berço nos meios naturais e rurais e no despojo dos seus (não) atores, como acontecera este ano com “O Que Arde”, de Oliver Laxe (um forte braço deste suposto movimento), Patiño exorciza folclore antigo, oriundo de um medo arcaico e talvez, ainda hoje, com resquícios sobreviventes, que é esse tal receio pelo mar, e a sua ligação com o mero desconhecido.
Durante tempos, navegadores ou simplesmente trovadores incentivavam histórias de bestas submarinas ou demónios adormecidos no leito oceânico, eram guardiões bíblicos (referência a Leviatã) que encarregaria de manter o Homem na sua “praia”, na salvaguarda da terra, impedindo o seu espírito aventureiro e destemido seguir para além do possível horizonte. Porém, aqui não se trata de uma história de marinheiros ou corsários de qualquer espécie, mas sim, de um naufrágio, uma vítima da fúria de um tremendo e colossal monstro marinho, cujos rugidos acercam, tenebrosamente, a aldeia costeira ali de perto.
Os habitantes, tementes peões, instalam-se nas suas frágeis formas, do luto à iminente condenação, ou do impactante temor da morte que se materializa num atípico e misterioso rochedo. Como tal, três bruxas são invocadas para trazer à vida, Rubio, o homem cujo seu fim chegou com o encontro com tal bestialidade das águas. À medida que o feitiço das três é trabalhado, a Lua avermelha-se como sangue vivo, tornando tudo à sua volta uma dança espectral em tributo a divindades pagãs.
Patiño explora as imagens, e as embeleza para usufruir destas suas composturas sobrenaturais, dando forma a um misticismo improvisado e recorrente à imaginação do espectador. Curioso, que todo o seu filme é imóvel, os humanos adormecidos, encolhidos pela fragilidade das suas respetivas mortalidades, são apenas livres graças aos seus pensamentos repetidos e superstições paralisantes. Tudo o que se “mexe” neste filme é de natureza selvagem ou mágica, animais e criaturas do nosso imaginário parecem encontrar a liberdade para percorrer o território de ruralidade desgastante. Não vamos mentir, é uma obra lenta, que anseia admirar-nos com a sua contemplatividade e sugestão, que nos apela à nossa acessibilidade a estas sobrenaturalidades fingidas.
Porém, é por esse caminho que o “Lúa Vermella” embate na sua limitação. Ao solicitar a nossa (in)compreensão, desesperar pelos simbolismos das suas imagens, dão-nos a liberdade de preenchê-la e dedicar-lhes o nosso tempo. Nesse aspeto, surgem as comparações tarkovskianas, como o tempo, esse, como fosse o catalisador que conecta estas imagens com as suas durações maleáveis, em que tempo fosse um berço convidativo ao espectador. Só que a sugestão dita tarkovskiana, de por exemplo, um “Stalker” (1979), regista o seu próprio movimento enquanto a intriga se move através dos pensamentos e emoções expostas das suas personagens. A Patiño lhe falta essa destreza em conquistar algo para além do seu mero tempo.
Por outras palavras, em “Lúa Vermella”, à nossa frente está um tempo emudecido, congelado sem uma dita entropia que o transpareça do seu casulo estético. Tudo calculado num gesto meticuloso. Em Tarko’s (carinhosa alcunha, no caso de dúvidas), por outro lado, o tempo encontra a sua fé na narrativa e vice-versa, tudo desenvolve, evolve e torna-se rico nessa sua simbiose.
Sim, Tarkovski não tem a culpa de quem acha por bem colar-se ao seu génio. “Lúa Vermelha” não é mais do que quadros pachorrentos de um misticismo contado entrelinhas.