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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Tarkovsky não tem a culpa! Repitam comigo. Tarkovsky não tem a culpa!

Hugo Gomes, 31.08.20

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O “Esculpindo o Tempo”, livro (e ideia) que virou teoria e consequentemente numa tendência de abraçar e relacionar com o cinema, os ensinamentos do cineasta russo perduram, ou pelos que desejam ser perdurados por apropriadores do título ‘herdeiro’. Tal como a gravura do monstro marinho cujo olho desenhado dá lugar à luz cintilante “roubada” por parte da Lua, Luís Patiño adquire por vias dessa transposição transitória um cognome que não lhe convém, até porque neste seu “Lúa Vermella”, a sua relação com o tempo, este transformado e moldado é um simples pergaminho para crítico escrever e interligar com a sua consciência.

Vindo de uma, como poderemos assinar, nova escola de cinema galego que encontra o seu berço nos meios naturais e rurais e no despojo dos seus (não) atores, como acontecera este ano com “O Que Arde, de Oliver Laxe (um forte braço deste suposto movimento), Patiño exorciza folclore antigo, oriundo de um medo arcaico e talvez, ainda hoje, com resquícios sobreviventes, que é esse tal receio pelo mar, e a sua ligação com o mero desconhecido.

Durante tempos, navegadores ou simplesmente trovadores incentivavam histórias de bestas submarinas ou demónios adormecidos no leito oceânico, eram guardiões bíblicos (referência a Leviatã) que encarregaria de manter o Homem na sua “praia”, na salvaguarda da terra, impedindo o seu espírito aventureiro e destemido seguir para além do possível horizonte. Porém, aqui não se trata de uma história de marinheiros ou corsários de qualquer espécie, mas sim, de um naufrágio, uma vítima da fúria de um tremendo e colossal monstro marinho, cujos rugidos acercam, tenebrosamente, a aldeia costeira ali de perto.

Os habitantes, tementes peões, instalam-se nas suas frágeis formas, do luto à iminente condenação, ou do impactante temor da morte que se materializa num atípico e misterioso rochedo. Como tal, três bruxas são invocadas para trazer à vida, Rubio, o homem cujo seu fim chegou com o encontro com tal bestialidade das águas. À medida que o feitiço das três é trabalhado, a Lua avermelha-se como sangue vivo, tornando tudo à sua volta uma dança espectral em tributo a divindades pagãs.

Patiño explora as imagens, e as embeleza para usufruir destas suas composturas sobrenaturais, dando forma a um misticismo improvisado e recorrente à imaginação do espectador. Curioso, que todo o seu filme é imóvel, os humanos adormecidos, encolhidos pela fragilidade das suas respetivas mortalidades, são apenas livres graças aos seus pensamentos repetidos e superstições paralisantes. Tudo o que se “mexe” neste filme é de natureza selvagem ou mágica, animais e criaturas do nosso imaginário parecem encontrar a liberdade para percorrer o território de ruralidade desgastante. Não vamos mentir, é uma obra lenta, que anseia admirar-nos com a sua contemplatividade e sugestão, que nos apela à nossa acessibilidade a estas sobrenaturalidades fingidas.

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Porém, é por esse caminho que o “Lúa Vermella” embate na sua limitação. Ao solicitar a nossa (in)compreensão, desesperar pelos simbolismos das suas imagens, dão-nos a liberdade de preenchê-la e dedicar-lhes o nosso tempo. Nesse aspeto, surgem as comparações tarkovskianas, como o tempo, esse, como fosse o catalisador que conecta estas imagens com as suas durações maleáveis, em que tempo fosse um berço convidativo ao espectador. Só que a sugestão dita tarkovskiana, de por exemplo, um “Stalker” (1979), regista o seu próprio movimento enquanto a intriga se move através dos pensamentos e emoções expostas das suas personagens. A Patiño lhe falta essa destreza em conquistar algo para além do seu mero tempo.

Por outras palavras, em “Lúa Vermella”, à nossa frente está um tempo emudecido, congelado sem uma dita entropia que o transpareça do seu casulo estético. Tudo calculado num gesto meticuloso. Em Tarko’s (carinhosa alcunha, no caso de dúvidas), por outro lado, o tempo encontra a sua fé na narrativa e vice-versa, tudo desenvolve, evolve e torna-se rico nessa sua simbiose.

Sim, Tarkovski não tem a culpa de quem acha por bem colar-se ao seu génio. “Lúa Vermelha” não é mais do que quadros pachorrentos de um misticismo contado entrelinhas.

“Slow cinema” com alma?

Hugo Gomes, 31.08.20

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Dentro do mercado de cinema de autor, Tsai Ming-liang é um apogeu do tempo enquanto barro a ser moldado. Em “Rizi” (“Days”), apresentado na Competição do último Festival de Berlim, é uma obra que apela à paciência do espectador como o seu grande cúmplice, repensando os gestos quotidianos como elementos de impasse para um (re)encontro terno e sentido. Depois da subsistência de “Stray Dogs”, o malaio a operar em Taiwan abocanha” a solidão como base do seu cinema e como fio condutor da nossa sensibilidade. Somos ligados a isso e através disso mesmo é que “Rizi” funciona como um fascinante e desafiante retrato da nossa atualidade. Talvez nos tenhamos convertido em seres cada vez mais impacientes para apreciarmos a sinfonia do “slow cinema” com alma.

Os príncipes de cavalo branco também falam crioulo

Hugo Gomes, 30.08.20

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Numa conversa descontraída enquanto o seu filme era exibido numa segunda sessão da 17º Indielisboa, Basil da Cunha referiu-me que este seu regresso ao “bairro” consistia em filmar as pessoas que não conhecera completamente, uma outra geração que não a sua e que mesmo assim, encontrava-se presente no seu anterior “Até Ver a Luz”, porém em segundo plano. Esta mudança de protagonismo, ou antes mais, uma reveza de forma a continuar, hereditariamente, este mesmo universo. Será esta a sua única maneira de preservação?

Com um punhado de curtas contabilizadas na sua filmografia e a mencionada longa estreada em 2013 que envolvia o bairro da Reboleira (Amadora) em tons de misticismo quase xamânico, Basil (e os espectadores) retornam à comunidade pelos olhos de Spira (Michel Spencer), jovem “acabadinho” de sair da casa de correção, após 8 anos no estabelecimento. De volta a casa, deparará com um território do qual já não reconhece, constituído por novas hierarquias e por novos objetivos, enquanto o próprio bairro desmorona para dar lugar a outras “realidades”.

O dito jovem, filho da “teta” da Reboleira, detém outros desejos, o da evasão, o de outras ambições e a aventura – talvez tendo como imagem o seu pai residente na Suíça – em novos lugares e heranças. Sim, é uma personagem que anseia pelo novo, repugnando o “velho” endereçado ao seu passado delinquente, que o projeta em mundanos “adornos”, seja pela amiga agora virada mãe solteira, seja pelo semi-astral cavalo branco existente algures num descampado ali perto. Em comparação com o seu “Até Ver a Luz”, Basil da Cunha indicia uma obra mais térrea para com o seu realismo, mas nunca perder o gosto pela fantasia materializada. É um filme, que tal como o protagonista, não pretende sujeitar-se às primeiras instâncias.

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A jornada de Spira, no seu gangue e no seu biótopo, é um pego de cinema de guerrilha, povoado por gente-local que dialogam diretamente connosco [espectadores]. Sentimos aqui a voz dos marginalizados, mas não os retendo enquanto instrumentos de uma politização, “O Fim do Mundo” (curiosamente, quase partilhando o título com outro conto de desprezados [“Um Fim do Mundo” de Pedro Pinho]) não crê em utopias, mesmo resistindo para nos trazer dos confins do seu cosmos, os seus “miseráveis”, os ditos portugueses de segunda, anos e anos “empurrados” para as estribeiras da capital. Cada um a mercê da sua própria sorte. É uma discriminação espacial, esta, a da formação do dito bairro social, porém, não seguiremos por essas linhas, o filme é mais que o grito de guerra no propósito de um ativismo. É um retrato, literal como metafórico, de uma população sem lugar na nossa sociedade, escorraçados até mesmo dos seus condenados lares.

Nesse sentido, “O Fim dos Mundo” paraleliza com o cinema de Pedro Costa nos últimos anos, não numa mimetização estética ou formalizada, e sim no jeito como encara os dramas, porventura, esquecidos perante um ecossistema em constante desabamento. Aquele lugar, a Reboleira, tornar-se-á um não-lugar, uma memória distante. Para Spira, essa recordação a que certo dia apelidou de “casa” converteu-se no seu motivo de luta, não pela sua preservação, e antes pela sua separação.

O Fim do Mundo” “captura” um universo em extinção e o encara como a sua propriedade, preservado em âmbar, neste caso em filme com as promessas da sua “eternidade”. Uma coprodução luso-suíça que envergonha muitos da sua espécie e da sua nacionalidade pela forma como bravamente utiliza o “know-how”, pavimento de sugestões, fora-de-campos e o “desenrasque” (palavra tão portuguesa) para nunca perder a credibilidade deste quadrante de violência em cada esquina.

Calculado até à medula, revoltado no seu espírito e com a garra de quem deseja fazer Cinema a todo o custo. Eis um portento!

Giulietta 8 ½

Hugo Gomes, 28.08.20

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No episódio de “Cinema Sem Tempo” (“Cinema senza Tempo”) dedicado a Giulietta Masina, o entrevistador perguntava a certa altura com qual das personagens de Fellini a atriz (e esposa do "mestre") mais se identificava: Gelsomina (de “La Strada”) ou Giulietta, deste “Giulietta degli Spiriti”? A resposta da “menina dos olhos mais sentimentais do Cinema” foi apaziguadora: “um pouco das duas, e até mesmo Cabíria" [referindo-se ao seu outro papel célebre no universo de Fellini, em “Le notti di Cabiria”] .

Durante muito tempo e talvez até hoje, “Giulietta degli spiriti” foi tido como a resposta feminina ao anterior “Fellini 8 1/2”. Este primeiro filme a cores do grande “mentiroso” do cinema [carinhosa alcunha atribuída a Fellini] permanece um objeto fascinante que recolhe as memórias do amor da sua vida, intrometendo-as numa ficção onírica e delirante, algures entre um surrealismo fervilhante ou um carnavalesco desfile. Fellini usufrui das cores para preencher a tela com um festim visual que vai dos décors excêntricos e fantasiosos ao guarda-roupa vanguardista-chique e o constante jogo de luzes e sombras que nunca deixam intacto o rosto de Masina. Todos os planos são trabalhados em prol de uma estrutura desencadeada pelo críptico das suas imagens ou dos simbolismos com que as visões espirituais integram uma narrativa intrinsecamente tempestuosa.

Tal como em "Mrs Dalloway", o romance de Virginia Woolf, a protagonista é confrontada com os seus receios e suspeitas do marido estar a traí-la com uma mulher bem mais nova e um divã que a remete a uma infância de opressão religiosa que reflete a sua… digamos, submissão. A juntar ao tormento está um despertar psíquico que abre portas secretas a entidades de outros mundos, todas apontando para o seu desejo inerente, a vontade de mão dada com uma eventual emancipação, seja amorosa, matrimonial ou sexual.

Em contraste com esta Julieta de costumes brandos está a fantasmagórica vizinha Suzy (Sandra Milo), uma representação algures entre o ilusório e o alusivo de Afrodite, a guia necessária para a levar a lugares até então desconhecidos. Tal como acontece com “La Dolce Vita”, existe aqui uma certa classe hedonista envolvida em absurdismos. Seres integrados na sua festa sem razão, implorando pela atenção da câmara e do espectador.

Tudo isto resulta num espetáculo descoordenado, de falas cortadas ou movimentos inacabados que realçam as veias circenses de Fellini, transformando aristocratas e burgueses e as suas respetivas “loucas e inúteis existências” em arlequins de um filme verdadeiramente pessoal e … feminino. Uma luxuriante dedicatória a Giulietta Masina.

Madame de ...

Hugo Gomes, 27.08.20

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Um dos grandes destaques da 17ª edição do Indielisboa foi a retrospetiva integral do cineasta e escritor senegalês que certo dia pegou numa câmara para poder comunicar com os seus conterrâneos, Ousmane Sembène. Desse ato nasceu todo um cinema rico em linguagens e com preocupação além daquelas imprimidas no Primeiro Mundo. Em “La Noire de …” (o título pode muito bem ser entendido como uma provocação a uma certa obra de Max Ophuls) seguimos uma apropriação que se camufla com os resquícios do colonialismo a partir do momento em que uma jovem senegalesa é convidada a trabalhar na Riviera Francesa. Inicialmente entusiasmada com a hipótese, segundo ela, de “trabalhar com os brancos”, a experiência transforma-se radicalmente num fantasma da propriedade humana. A jovem torna-se prisioneira dos seus patrões, “incentivada” a servir em todas as suas necessidades. Sembène constrói um filme com base em memórias que ditarão os sentimentos vividos no fingido cativeiro, uma epifania a um estatuto de poder nunca perdido. Neste caso não interessa o individualismo da trama, porque a nossa “noire” (negra) assume o corpo e a vontade no coletivo, ela representa todas as mulheres em idênticas situações e vivências. Uma obra-prima de um dos intelectuais mais esquecidos da nossa História branca.

Os defuntos e vivos coabitam em memórias de um Brasil (não tão) distante

Hugo Gomes, 26.08.20

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Todos os Mortos” não é uma história “morta” invocada como conveniência, é um retrato de reflexão sobre os nossos próprios fantasmas, aqueles que assombram as nossas linhagens e que ainda permanecem escondidos nas sociedades várias, a fim de conquistar o seu desejado lugar de pódio. Este é claramente um filme de época sem o ser, uma variação de género que emprega o visível e o invisível, a resistência com a decadência, as mudanças que custam a atingir e que se cobrem com o seu manto de ilusão.

Pois bem, dirigido e escrito a meias por Marco Dutra e Caetano Gotardo, “Todos os Mortos” leva-nos à viragem do século XIX para o tão aguardado XX, numa São Paulo ansiosa em apagar os seus rastos históricos (assim como o Brasil atual deseja). Na avenida, uma casa, uma família de três mulheres que manifestam o seu luto pela morte da sua criada (assistimos a um momento em que escravos são uma somente palavra de ontem, porém, ainda não esquecida e fora do vocabulário). O tempo passa e as sombras acercam a residência e das suas memórias.

Habituados ao cinema de género brasileiro, muito deles erguidos nestes últimos anos pela produtora Filmes do Caixote, onde os realizadores integram (basta recordar “As Boas Maneiras”, de Dutra em conjunto com Juliana Rojas, um conto de fadas paulista com lobisomens à mistura). Pequeno empreendimento de Sara Silveira, produtora veterana e resistente face à situação cada vez mais precária e sufocante do audiovisual brasileiro. Assim o proclamou, gritando emotivamente por essas mesmas palavras – “Resistência” – na apresentação de “Todos os Mortos” em Berlim deste ano.

A obra toda compreende-se numa espécie de passiva resistência com que olha para o passado trazendo com isso os reflexos do presente e consequentemente do futuro. Abordando os temas cortantes, hoje em voga pela acesa discussão motivada pelas redes sociais ou das políticas populistas que empregam o seu estandarte identitário. Nesse sentido, é fácil encontrar analogias, similaridades e diálogos cruzados com mira apontada para o nosso quotidiano. É o Brasil, mas bem poderia ser outro país qualquer.

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Porém, não pensem que toda esta inserção é puro ativismo, fulgor de causas embrulhadas em propagandas escorridas, “Todos os Mortos” joga estrategicamente com os maneirismos dos seus autores (tendo em conta as suas experiências em histórias fantásticas não assumidas), a construção de um atípico caso de assombração, onde a fisicalidade dos planos de pormenor ou os point-of-views são armas que o espectador leva consigo para enfrentar o suposto sobrenatural. A invisibilidade sugestiva. E é através desses utensílios visuais que o filme adquire o seu bem-haja sensorial, invocando texturas ou cheiros hipotéticos, a terra cravada nas unhas da sua protagonista cada vez mais cedida ao tempo e o odor de café que ostenta-se como adereço histórico. O som, outra mais-valia para a experiência meta-temporal, alia-se também ao esqueleto de um filme que se quer esquematizado, em termos de personagens e figuras ancestrais, para nos salvaguardar com certa distância.

É uma atmosférica discussão sobre o racismo espectral, sistemático e ainda hoje em fortalecida pela legitimação da intolerância (principalmente, isso mesmo, no Brasil). Existe uma ideia algo abstrata que o preciso momento da abolição esclavagista levou-nos automaticamente à tolerância, às ‘novas’ causas sociais que remetem à igualdade e fraternidade, quer racial, género ou de outra natureza. Um engodo, visto que a transição foi rompida sobretudo na história brasileira, o processo atrasado, por vezes “varrido” para debaixo do seu tapete. “Todos os Mortos” apoia-se nesses factos, trazendo à luz … diria mais apropriadamente, à escuridão … o debate num contexto ficcionalizado, fantástico e meta-alusivo.

Um filme de idéias, atitudes e técnica.

Em inversão de marcha pelo resgate do espectáculo cinematográfico

Hugo Gomes, 25.08.20

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Tempos estranhos, aqueles que estamos a vivenciar. Do qual ficamos perplexos ao admirar multidões que se reúnem em óperas, lotando salas, como aquela que indiciamos nos primeiros minutos de “Tenet”. Pois bem, julgávamos nós que iríamos presenciar uma pequena amostra da performance da orquestra no palco, infelizmente (talvez os mais que habituados às iguais sinfonias), temos a alternativa dos rompantes trombones à lá Hans Zimmer (compositor que nas mãos de Christopher Nolan soa como um génio de um só acorde, aqui substituído por Ludwig Göransson), que dão entrada ao golpe, espaço tão familiar e comum no cinema do realizador. Mas não desviemos do objetivo, e novamente sublinhando o incomum da nossa disposição, é na empatia para com as máscaras vitais que o nosso protagonista e a sua trupe terão que recorrer num mundo, literalmente, ao “contrário”, ou seja, estranho mundo este em que identificamos com tais adereços.

Com isto, saliento, assim como muitos filmes que tem suscitado nas nossas salas de cinema após a nossa exposição de um confinamento longo acompanhado por um medo imposto pelos medias, redes sociais e não só, “Tenet” alterou-se perante o empírico da sua audiência. Porém, é também na vitalidade do cinema enquanto negócio que depositamos a fé em Nolan neste filme, até então, misterioso, mas que mesmo assim consumiu 200 milhões de dólares de orçamento. Como tal, adquire o seu quê de messiânico e comporta-se (isso mesmo) como a última “bolacha do pacote” em termos operáticos, sem com isto apercebermos que o realizador, aliás autor de uma indústria vincada, megalómana e destruidora, oferece-nos o mesmo joguete. Complicar o que não merece ser descomplicado, extraindo um enredo simples e por via de acupuntura, alfinetar com os diferentes atalhos de pseudociência (física quântica para a mesa quatro), daquela que Nolan nos habituara e que em certos casos funcionava às mil maravilhas (“Inception”, por exemplo, continua como o seu filme fundamental para entender a sua natureza de espectáculo).

Tenet” impõe-nos uma trama globalizada, algo que Ian Fleming se lembraria para induzir o seu amado James Bond em mais uma demanda ao serviço de sua Majestade, mas aqui, a espionagem física e brutalizada por um desencanto contagioso nas suas virtudes técnicas (a fotografia amarelada tão monótona como o próprio concreto que maioritariamente serve de cenário) é recolhido por um macguffin temporal, a desculpa servida em bandeja para a atração de cartaz deste mesmo circo.

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Sem surpresas (aliás porque os trailer assim o mostraram), a ação, muito afastada da pornografia CGI, é dependente da inversão, o fast forward para entendidos. Para sermos sinceros, nada impressiona nessas imagens de marcha-a-ré. A culpa? Essa, advém dos 120 anos de história cinematográfica, desde a invenção acidental dos irmãos Lumière que funcionou num artifício de espanto, quando o público deparou com um muro de pedra que ao invés de tombar, ergue-se “milagrosamente” dos seus próprios destroços ("Démolition d’un Mur”, 1896). E o que dizer das constantes acelerações da cómica série "Benny Hill” ou dos populares (hoje esquecidos no pó) “Gods Must Be Crazy”? Isto tudo para afirmar o óbvio, que mesmo sob o selo de espetacularidade embrulhadas nestas sequências de adrenalina sintética, o movimento não é um feito nem uma descoberta, é a reutilização de algo visto, revisto e reproduzido em incontáveis ocasiões. E basta ir fora do audiovisual tradicional, qualquer plataforma de vídeos tem ao seu lote de “brincadeiras temporais”.

Quanto ao filme propriamente dito, “Tenet” apoia-se na incapacidade acrescida de Nolan em criar personagens, recolher emoções sem a cumplicidade do seu compositor fetiche e com isso, dirigir os seus atores de forma transgressiva. O resultado está à vista, um John David Washington que soa mais enfadado que o próprio filme ou um Kenneth Branagh over the top em vestes de um traficante russo que condensa um dos mais esquecíveis vilões da galeria de Nolan. Enfim, apenas Elizabeth Debicki, mesmo com uma personagem chapa 5, consegue trazer charme a um "mastodonte" isento dele.

Certamente, não é este o futuro ou a dependência do cinema, mas é, à sua maneira, um filme adequado para estes tempos distorcidos e … estranhos. Cinema espetáculo que ondula nas mazelas da sua própria indústria.

Quantos Nolans cabem em Tenet?

Hugo Gomes, 24.08.20

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À espera de Nolan … assim estão algumas cadeias de cinema que olham para este blockbuster de quase 200 milhões de dólares de orçamento como a salvação de um negócio em ruínas. E quanto a nós, espectadores? O que podemos esperar de Nolan e o seu Tenet? Fácil, o cinema equacional, simples mas distorcido num quebra-cabeças chapado só para nos dar o seu ar de pseudo-intelectual. Pesado enfarta-brutos dramático com ação como se última de ponta fosse. Nolan a ser Nolan e a esquecer que é preciso menos Nolan para aguentar esta quantidade de Nolan.

 

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